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Entrelinhas - Vol. 5, n. 1 (jan/jun. 2011)ISSN 1806 9509 54 O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Memory speech and female identity inafro-brazilian literature Paraguassu de Ftima Rocha Mestre - UNIANDRADE 1 Av. Comendador Franco, 6040, Uberaba Curitiba PR, Brasil [email protected] ResumoAbstract A literatura afro vem conquistando espao no cenrio culturalbrasileiroatravsdaconstruodeuma poticaquebuscatrazeronegroparaocentroda narrativa.Aconstituiodessanovapoticapermite abandonaresteretiposquedurantemuitotempo caracterizaramoafrodescendenteequeressaltavam apenasseusatributosfsicos,suasensualidade,sua falaesuafaltadeinteligncia.Aoabrirmode conceitosestreitosquetendemaaumentaras desigualdades, a literatura possibilita o surgimento de personagens que se destacam no pela raa ou cor da pele,masporumatrajetriamarcadapelosucesso, contrariando o registro encontrado na maioria de seus textos ficcionais que mostra uma imagem desvirtuada do afrodescendente, cujo processo de desumanizao esubalternizaoseevidenciatantonaconscincia negraquantonoolhardobranco.Dessaforma,o presenteartigovisaanalisarasrelaesentre identidade e memria nos romances rsula (1859) de MariaFirminadosReis,PonciVicncio(2003)e Becos da memria (2006) de Conceio Evaristo e Um defeitodecor(2006)deAnaMariaGonalvescom basenospressupostostericosdeStuartHalleElisa LarkindoNascimentosobreaidentidadeeMaurice Halbwachs a respeito da memria coletiva.Bycreatinganewpoeticsthatbringsthenegrotothe centerofnarrative,afro-literatureiswinningitsspacein the Brazilian cultural scenery. The construction of this new poeticsallowsabandoningthestereotypesthat characterizedafro-descendantsforalongandhasonly stoodouthisphysicalattributes,hissensuality,hisvoice andlackofintelligence.Surpassingnarrowconceptsthat tendtointensifythedifferences,literatureenablesthe negrocharacterstogainprominencehavingasuccessful trajectory,contestingtheregisterinmostfictionaltexts thatshowsadepreciatedimageoftheafro-descendant, whose inhumanity and inferiority become as evident in the negro conscience as in the white view. In this perspective, thisworkaimstoanalyzetherelationshipsbetween memoryandidentityinthenovelsrsula(1859)written byMariaFirminadosReis,PonciVicncio(2003)and BecosdaMemriabyConceioEvaristoandUmdefeito decor(2006)deAnaMariaGonalvesbasedonthe theoreticalproposesofStuartHallandElisaLarkindo NascimentoaboutidentityandMauriceHalbwachs concerning to collective memory. Palavras-chave:LiteraturaAfro-brasileira, Identidade, Memria. Key words: Afro-brazilian Literature, Identity, Memory.

1 Professora do curso de Letras do Centro Universitrio Campos de Andrade Uniandrade, Curitiba/PR. O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 55 Esteartigoinsere-senosestudosdaliteraturadeautoriademinoriastnicasevisaexaminaro processodeconstruodaidentidadedoromanceafro-brasileiroatravsdaleituradostextosdeMaria FirminadosReis,ConceioEvaristoeAnaMariaGonalves,destacando-seasdiferentesvozesque emanamdoromanceesoenunciadastantopelasautorasquantopelaspersonagens.Considera-se, tambm, no presente estudo, a questo da memria e sua relao com a identidade.Paraentenderaconstruodeumaidentidadeliterriaafro-brasileira,relevantelembrarqueo negro cativo, trazido da frica, no serviu ao Brasil apenas como mo de obra nas lavouras de caf ou cana deacar,masatuoutambmcomoelementodisseminadordevaloresculturaisdasuaterradeorigem. Tratar, portanto, da Literatura Afro-Brasileira sem se voltar para os primeiros passos dados no processo de aculturaodonegro,queocorrejnasuavindaparaoBrasil,verrompidaumalinhaquemostraa evoluo dessa etnia numa nao que ajudou a edificar. OPaspareceteresquecidooquejdefendiaJoaquimNabucoemsuascampanhasabolicionistas, ouseja,quearaanegrafoiresponsvelpelaviabilizaodeumsonhodocolonizadorbranco. Evidentemente,asmarcasdaescravidoedoracismoimpostasaonegroeperpetuadasaolongodos sculos por uma sociedade que no soube reconhecer suas contribuies continuam indelveis, assim como as tentativas de reparao desse erro histrico tm gerado discusses muitas vezes contrrias afirmao de um povo que quer apenas ser brasileiro e, como tal, legitimar os seus direitos cidadania. Apresenadonegroafricanonahistriabrasileiradatade1502quandoosprimeirosnavios tumbeiroscarregadosdeescravosaportaramemnossasterras.Suavinda,almdosaspectoseconmicos favorveis s naes europeias, justificava-se pela necessidade de uma mo de obra mais qualificada para desenvolverotrabalhonosengenhosetambmparasubstituirotrabalhodondioquenosemostrava eficaz na execuo de determinadas tarefas. Entretanto, o contingente de aproximadamente dois milhes de negros,arrancadodediversospontosdafricaeespalhadopelosolobrasileiro,nocontribuiuparao crescimentodanaoapenaspelasuaforabruta,umavezque,trazendoconsigoseusconhecimentos, tradiesecostumes,ajudouadefiniroperfildeumasociedadequesequerbranca,masquereivindica para si a ancestralidade da frica quando isso pode lhe beneficiar, chamando-se de negro, mulato ou pardo. Porm, independente das posies poltico-sociais que englobam tambm as questes raciais, onegro tem mostradoimensadeterminaoempreservarseusvaloresculturais,dentreosquais,asuaproduo literria,sejarecontandosuahistria,oubuscando,atravsdealternativasdiversas,fazervalersua identidade. Adiscussoqueseinstauraemtornodaconstruodaidentidadedodescendenteafricano encontra-se embasada no processo de transformao, de trocas e de identificaes. Para tratar da questo da identidade, faz-se necessrio retomar os pensamentos de Stuart Hall e Elisa Larkin do Nascimento. Hall (2001,p.13)defendequeosujeitoassumeidentidadesdiferentesemdiferentesmomentos,identidades quenosounificadasemtornodeumeucoerente,identidadescontraditriasqueproporcionamum deslocamento dos processos de identificao. J para Nascimento (2003, p. 31), a identidade representa a articulaodereferenciaisqueorientamaformadeagiredemediararelaodosujeitocomosoutros, comomundoeconsigomesmoeestrelacionadacomaexperinciadevidaindividualmescladas O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 56 representaes da experincia coletiva de sua comunidade e sociedade, aprendidas na sua interao com os outros. Ao relacionar os pensamentosde Hall e Nascimento, percebe-se que a identidade estdiretamente ligada memria na construo da escrita afro-brasileira, uma vez que A narrativa duma vida faz parte de um conjunto de narrativas que se interligam, est incrustada nas histrias dos grupos a partir dos quais os indivduos adquirem sua identidade, conforme salienta Jodelet (1994, p. 55) em seu artigo Memorie che si evolvono. Dessa forma, o escritor afro-brasileiro, ao recontar seu passado de abusos, firma-se, ainda que margem, como senhor de uma histria que s poderia ser contada de forma to incidente por aqueles que a viveram. Nesse contexto, cabe lembrar a posio da escritora e poeta negra, Conceio Evaristo. Para ela,Aoseobservararesistnciadatradioculturalnegraeasuareelaborao,asua reterritorializao no Brasil e em outros pases, da dispora africana, percebemos o carter pessoal e coletivo da memria como possibilitador de construo de uma identidade. [...] A literaturaafro-brasileiratrazoregistrodeumamemriasocial,enquantolembranasde vriosindivduos.Memriaquepermitiuumconhecimentodeumsistemasimblico,que possibilitou uma reorganizao do territrio negro da dispora, atravs de uma mstica negra, vividaemumtempoqueescapaaumamediaocronolgica,porsetratardeumtempo mtico (Evaristo, 2008, p. 6). Esse posicionamento vai ao encontro do que postula Maurice Halbawachs sobre a memria coletiva. Segundo o autor, [...]seamemriacoletivatirasuaforaesuaduraodofatodeterporsuporteum conjunto de homens, no obstante eles so indivduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranas comuns, e que se apiam uma sobre a outra, no so asmesmasqueaparecerocommaisintensidadeparacadaumdeles.Diramos voluntariamente que cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que este ponto de vista muda conformeo lugarque eu ali ocupo, e que este lugar mesmo mudasegundoasrelaesquemantenhocomoutrosmeios.Nodeadmirarquedo instrumentocomumnemtodosaproveitemdomesmomodo.Todaviaquandotentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinao de influncias que so, todas, de natureza social (Halbwachs, 1990, p. 51). Nesse processo de construo da identidade negra na literatura, pertinente salientarque a escrita feminina,emboraocultadapormuitotempopelovudapobrezaedafaltadeinstruovinculados exclusoracialedegnero,conformelembraMariaConsueloCunhaCampos,merecedestaquenahistria daLiteraturaAfro-Brasileira,especialmentenostextosautobiogrficosqueremetemsnarrativasde escravosouslavenarrativesnorte-americanas.Taisnarrativasseapresentamcomodescriesescritasou oraisdeeventosousituaesparticularesvividaspelosescravoseestcentradanoritodepassagemdo narrador escravo que escapa da escravido e alcana a liberdade, como observa Henry Louis Gates sobre as conquistasdosescravos,[...]essasconquistasrefletemasuperaodoescravodasseverascondiesde sua escravido (Gates, 1987, p. ix traduo da autora)2. Exemplos dessa conquista podem ser observados nos relatos biogrficos de Rosa Maria Egipiciaca de Vera Cruz e Teresa Margarida da Silva Orta que datam do sculo XVIII. Como se percebe, a produo literria negra no recente no Brasil, embora o seu reconhecimento tardio date dos anos 70, quando pesquisadores e a prpria comunidade afro-brasileira decidiram fazer ecoar essa voz. Entretanto, a primeira manifestao literria negra no pas surgiu atravs das modinhas, lundus e poemasdeDomingosCaldasBarbosa,contidosnosdoisvolumesdeVioladeLereno(1798/1826).Aele, seguiram-se poetas e prosadores como Gonalves Dias, Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, 2 []theseachievementsreflecttheslavesovercomingofthesevereconditionsoftheirbondage(traduoda autora). O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 57 Tobias Barreto,Cruz e Sousa, Lima Barreto, Lino Guedes e Solano Trindade, os quaisconstituem os pilares de uma literatura que se encontra em construo, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2006).Em 1859, num perodo em que o Brasil vivia ainda sob a forte influncia dos padres europeus, e em quetantoosafrodescendentesquantoasmulheresestavamsubmetidosaopoderpatriarcal,MariaFirmina dos Reis3, considerada a primeira escritora afro-brasileira, publica o romancersula, oqual desponta como umatentativafundamentalnosentidodereestruturaroquadrodedescasoparacomosdescendentes africanosnocenriodaficoecomopontodereferncianotocantepercepodaidentidadeenquanto sinnimodeinterrelaes.Seurecenteresgate(1975)trouxeparaaliteraturaafro-brasileiraumalentono que diz respeito tradio histrica deste tipo de escrita que despertava em meados do sculo XIX, e no qual a autora prope uma leitura factual do comportamento do negro exilado.Nesse romance, alm das personagens brancas, tem-se destacada a presena dos negros Tlio e Me Susana. Essas vozes que ecoamno romance no deixam de ser a narrativa da histria da autora enquanto afro-descendenteporque,assimcomoela,clamampeloidealdeliberdadeeigualdade.Aorelataras experincias da escravido, Firmina dos Reis revela a histria e as razes negras, a preservao da etnicidade esuasprticasculturaiscomoformaderesistnciaaocolonialismo.Aautoratambmdemonstra preocupao com a construo de uma nova identidade do negro que se afirma diante do seu opressor. So as experincias vividas pela autora e as histrias compartilhadas entre os membros de um mesmo grupo que ativaro o plano da memriaindividual, estabelecendo, dessa forma, a dimensosocial, conforme assevera Halbwachs:Paraquenossamemriaseauxiliecomadosoutros,nobastaqueelesnostragamseu depoimento: necessrio ainda que ela no tenha cessado de concordar com suas memrias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrana que nos recordam possa ser reconstruda sobre um fundamento comum. No suficiente reconstituir pea por pea a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrana. necessrioqueestareconstruoseopereapartirdedadosenoescomunsquese encontram tanto no nosso esprito como no dos outros, porque elas passam incessantemente dessesparaaqueleereciprocamente,oquespossvelsefizeramecontinuamafazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrana possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruda (Halbwachs, 1990, p. 34). Maisrecentemente,odiscursopoticonegrotomoucorponasvozesdeAlineFrana,MirianAlves, SoniaFtimaConceio,GeniGuimares,ConceioEvaristoeAnaMariaGonalves,quesedestacamno somente na poesia, mas fazem de seus romances um campo de contextualizao e discusso da realidade do afrodescendente no Brasil.OromancedeAlineFrana,AmulherdeAleduma(1985),emboracontrariandoatendnciada literatura afro-brasileira de pormenorizar os horrores da escravido, mostra, atravs de um estilo surrealista e metafrico, a batalha do negro para se fazer reconhecido enquanto sujeito de sua histria. Dessa forma, os heriscriadospelaautora,numromancequeremeteepopeia,representamumideal:oorgulhodeser negro.AescritadapoetaeromancistaGeniGuimaresmarcadapelotomdeprotestoeafirmaoda identidadenegra.Seuromanceautobiogrfico,Acordaternura(1988),voltadoparaopblicoinfanto-juvenil,desenvolveumapersonagemfemininanegra,construindotambmumaidentidadeafrocentrada. 3 Maria Firmina dos Reis nasceu em So Luis, em 11 de outubro de 1815 e faleceu em Guimares/MA, em 1917. Foi a primeiraprofessoraprimriaaobterocargoporconcurso.Comoescritora,colaborounaimprensalocalcomfices. Escreveu os contos A escrava (1887) e Gupeva (1861); poesias que se encontram reunidas no livro Cantos beira mar (1871); crnicas e charadas; e, como musicista, comps o Hino libertao dos escravos e o Hino mocidade. O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 58 Desta feita, porm, no h heroicizao como no texto de Frana. Ao contrrio, a autora bem representa as questes que envolvem a discriminao, o preconceito e o racismo a que so submetidas as crianas negras no contexto social.Tambmpoetaeromancista,ConceioEvaristo4,autoradePonciVicncio(2003)eBecosda memria(2006),reforaoquadrodasescritorasnegrasqueexperimentam,pormeiodasvozesdas protagonistasdeseusromances,engrossarocorodosqueclamampeloreconhecimento,numuniverso marcado pela pobreza e a discriminao.Em Ponci Vicncio, Evaristo traa o perfil da mulher negra vivendo numa sociedade ps-abolicionista quedeixaoafrodescendenteemposiotovulnervelsupremaciadobrancoquantoquelavivida duranteoregimeescravocrata.Aautoradiscuteasconsequnciasdadisporanegraqueresultouno afastamento do negro das suas origens, pela busca da personagem por sua identidade e pelo reencontro com afamlia,oqueseapresentacomoumaexpectativadeversuperadaasituaoamargavividaporseus antepassados e redefinir o papel do negro na sociedade. O romance de Evaristo, mesmo resgatando a memria de seus antepassados, situa-se nashistrias contemporneas porque, conforme Assis Duarte (2006, p. 105), busca trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de prosperidade cercadas de misria e excluso. Ponci Vicncio traz tona a realidade do cativeiro social da modernidade, em que o negro exposto a toda forma de negao.Seusegundoromance,BecosdaMemria,retomalembranasdainfncia,seuspersonagens representampessoasquepossivelmentefizerampartedavidadaautora.Essa,fazendousodesuavoz, reivindicaaidentidadedequemdesejaserprotagonistadaprpriahistriaaoresgatarahistriadeseus antepassados. Evaristo, em seu artigo Memria e Escrevivncia Parte I, reafirma a origem de sua escrita como um conjunto de lembranas de sua infncia, como se traduzisse a sua escrita ficcional: [...] creio que a gnese de minha escrita est no acmulo de tudo que ouvi desde a infncia. O acmulo das palavras, das histrias que habitavam em nossa casa e adjacncias. Dos fatos contadosameiavoz,dosrelatosdanoite,segredos,histriasqueascrianasnopodiam ouvir.[...].Naorigemdaminhaescrita,ouoosgritos,oschamadosdasvizinhas debruadassobreasjanelas,ounosvosdasportascontandoemvozaltaumaparaas outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias (Evaristo, 2007, p. 19). Entretanto, no apenas o negro-autor capaz de trazer, atravs da memria, a voz dos excludos. E aqui, importante ressaltar as consideraes de Eduardo de Assis Duarte sobre a autoria naconstruo da literaturaafro-brasileira.AautoriaentendidaporDuartenoapenascomoumdadoexterior,masna condiodetraduzidaemconstantediscursivaintegradamaterialidadedaconstruoliterria(DUARTE, 2006, p. 106), o que requer, dessa forma, um engajamento com a problemtica do negro. Isso significa que apenas a conscincia de ser afrodescendente no basta para se filiar ao contexto da Literatura Afro-Brasileira, precisoantesadotarprticasdiscursivasqueatendamaospropsitosesnecessidadesdestegrupo marginalizado.Noentenderdoautor,trata-sedeumtpicocontroverso,namedidaemquehautores brancosfazendoliteraturanegra,comoajornalistaAnaMariaGonalves5,queem2006,apsencontrar alguns manuscritos, cuja autoria atribuda Luiza Mahin, decide us-los como base para o seu romance Um defeito de cor. 4 MariaConceioEvaristodeBritonasceuemBeloHorizonte/MGem1946.Foiprofessoraprimriaeatualmente professora universitria.Alm dos romancesPonci Vicncioe Becos da memria autora de vrios artigos, contos e poesias. Essas reunidas no livro Poemas da recordao e outros movimentos (2008). 5 Ana Maria Gonalves nasceu em Ibi/MG em 1970. formada em Publicidade e escritora. O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 59 Trata-sedeumromancehistrico,narrado,tambm,porumavozfeminina.Kahinde,anarradora-autora, decide, no final da vida, escrever sobre suas andanas desde que fora capturada na frica e trazida ao Brasil. Os escritos de Kahinde representam a esperana de manter viva sua memria, o que se configura no texto de Ana Maria, na medida em que esta recompe a histria da protagonista e preserva a memria do seu povo marginalizado. A narrativa da personagem no fruto de uma identidade individual, ao contrrio, construdacoletivamenteeperpassauniversosdistintos:aancestralidadedafrica;oshorroresda escravido no Brasil; o retorno frica e, finalmente, o regresso ao Brasil em busca do filho perdido. Em seu trabalho de pesquisa, Ana Maria rene as memrias da narradora e, ao preencher as lacunas dahistriaque,segundoela,correspondemspginasperdidasdomanuscrito,brindaoleitorcomum romancehbrido,noqualrealeficosecomplementam.Oromancerepresenta,portanto,umaescrita conjunta da construo da identidade do negro excludo, ou seja, a memria guardada encontra respaldo no desejodepreserv-la,quepodeserentendidocomoumcomprometimentodoautornegrooubranco,de denunciar a opresso.AnaMaria,ementrevistaaRenatoPompeudarevistaRetratodoBrasil(2006,p.45),embora declarequenoconsideraquealiteraturatenhaaresponsabilidadedeinfluenciarnaformaodeuma conscincianegraequeescreveuumlivroquegostariadeler,cominformaesquegostariadeter encontrado em um livro sobre o assunto, reconstri, atravs de suas pesquisas, o passado de horrores que viveu o negro no Brasil. As histrias contadas em Um defeito de cor correspondem aos acontecimentos que marcaramoperodoescravocrataesonarradaspartindodavisodaspersonagens,sejamelasreaisou ficcionais.Dessaforma,aautoracontribuiparafortaleceranoodaexistnciadeumaidentidadenegra que se manifestava j naquela poca, mas que somente agora se tornou objeto de discusso.MariaNazarethSoaresFonseca,aoanalisaroromanceBecosdamemria,ressaltaaimportncia dessa tomada de posio. Para ela, O sujeito que assume a ao de narrar o que expressam essas vozes excludas sabe que o registro dos sofrimentos dos miserveis expe os cortes constantes do prprio corpo, feridas difceis de serem cicatrizadas. Para salvar do esquecimento as histrias de vida mergulhadas napobrezaextremaenoabandono,oescritor,fazendo-sesujeitoparticipante,assume narrarashistriasdoslugaresdegradadoscomoumaformadelutacontraamisria, deslocandooprazermeramentecontemplativo,comodizWalterBenjamin,parauma atitude poltica que se concretiza na maneira como a escrita procura vasculhar as vidas dos que lutam por sobreviver em condies intensamente desfavorveis (Fonseca apud Evaristo, 2006, p. 12). Todas as autoras mencionadas neste artigo exercem com propriedade o papel de crticas do regime daescravido,dandovozaonegromarginalizado.Entretanto,destaca-seMariaFirminadosReispeloseu pioneirismoeasescritasrecentesdeConceioEvaristoeAnaMariaGonalves,porfazeremparteda modernidade, entendendo-se que os sculos, que separam as autoras, correspondem necessidade de ver consolidada a identidade literria do afrodescendente. Firmina dos Reis o prprio exemplo dessa filiao, pois em funo de fatores externos, tais como a cor da pele, o gnero e os valores impostos pela sociedade patriarcal de sua poca, obriga-se a negarsua origem e lana seu romance sob a alcunhade Uma Maranhense. Entretanto, a posio daautora como afrodescendente que faz vir tona um romance inteiramente pautado na questo do negro. O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 60 ConceioEvaristotambmafirmaseupertencimentoclassedeautoresafrodescendentes,no apenas pelos romances Ponci Vicncio e Becos da memria, mas pelas vozes que ressoam em seus contos epoesiaequedestacam,nosomenteaimagemestereotipadadopovonegro,osofrimentodeseus antepassados,mastambmadimensopolticaehistricadasvitimasdadisporanegra.Aotratarda questodaautoria,Evaristodeclarasobreoseuromance,ementrevistaaGiselleArajoqueHuma relao muito grande entre o sujeito autoral com a fico na literatura afro-brasileira. Mas Ponci tem uma histriaprpria,emboraeupartadevivncianacomunidadenegraparatiraroselementosdafico (Evaristo,p.1,2007),comprovandodessaformaquealiteraturaafroprecisa,decertamaneira,de elementos reais para contar sua histria. Essa prtica discursiva encontra respaldo no pensamento de Elaine Showalter citada por Lucia Osana Zolin(2005,p.277-278).Emseusestudossobrealiteraturainglesa,Showalterpercebequeaescrita femininadosgruposminoritriosrecorreadeterminadospadres,temaseproblemascomoumaforma prpriademanifestaoemrelaosociedadedominante,ouseja,aindasegundoaautora,constri-se umasubculturadentrodasociedadepatriarcal.Showalterdestaca,tambm,astrsfasespercorridaspor essas subculturas literrias: a imitao ou internalizao dos padres dominantes; as fases de protesto e de autodescoberta. OromancedeFirminadosReis,oprimeiroaelevaronegrocategoriadesujeitodoromance, pertenceaprimeirafase,poisimita,decertaforma,ospadreseuropeusnasuafunoesttica6. Eticamente,porm,enquadra-senasegundafasedevidoaosurgimentodevozesqueprotestamcontraos valoresdapocaevmemdefesadosdireitosevaloresdasminorias,questoessaqueserepeteno romance de Ana Maria Gonalves, agora na voz de Kahinde.Seguindo a classificao de Showalter, observa-se que, nos romances de Conceio Evaristo,ocorre tambm uma intercalao de fases. Em Ponci Vicncio, por exemplo, a busca da personagem pela afirmao da identidade se manifesta como forma de protesto ao regime patriarcalista, j que a personagem no aceita o fato de seu sobrenome ser o mesmo do senhor das terras que os negros escravos ocupavam. Ponci No ouviaoseunomeresponderdentrodesiesentia-seferidapelareminiscnciadopoderiodosenhor (Evaristo,2003,p.19).JBecosdamemriatraduz,atravsdavozdeMaria-Nova,osentimentode Evaristo.Ambasrejeitamacondiodevtimasdasociedadeeassumemumaidentidadeoutra, protagonistas de suas histrias pessoais e porta-vozes das histrias de seu povo.Partindo dos conceitos de Hall e Nascimento sobre a identidade e de Halbawachs sobre a memria coletivaforamanalisadososromancesdeMariaFirminadosReis,ConceioEvaristoeAnaMaria Gonalves.Nessaanlise,constatou-sequeafixaodaidentidadenegraconstituioalicerceticodos textos,umavezqueodiscursoproferidopelaspersonagensrefleteopensamentodeautorasque, independentedacordapele,estoligadasproblemticanegraedemonstrampormeiodesuaescrita que, como indivduos nicos, compartilham de experincias mltiplas resgatadas e reunidas pela memria. 6 Em linhas gerais, o texto de Firmina dos Reis narra a histria de amor entre os jovens brancos Tancredo e rsula e a interferncia malfica do Comendador Fernando P., tio da menina que se apaixona por ela e rejeitado, culminando com o fim trgico dos dois apaixonados, delineando, assim, as caractersticas do romance ultra romntico, em que o amor s atingidoemsuaplenitudeapsa morte.Entretanto,odiscursoanti-escravagistadaautora, enunciadoatravsde sua prpria voz, bem como da voz das personagens negras, Me Susana e Tlio, que vai constituir o foco narrativo do romance. O discurso da memria e a identidade feminina na literatura afro-brasileira Entrelinhas - Vol. 5, n.1 (jan/jun. 2011) 61 Referncias CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. A escrita da mulher negra: do sculo XVIII ao limiar do sculo XXI. In: VIII Congresso Internacional ABRALIC 2002, Belo Horizonte. Mediaes. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002. v. 1. DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura Afro-Brasileira: Um conceito em construo.In: Afolabi, Niyi et al.A mente afro-brasileira: crtica literria e cultural afro-brasileira contempornea, Toronto: frica World Press, 2007, p. 104. EVARISTO,Conceio.VestibulareEducao.ConceioEvaristo:FoconaCulturaBrasileira.D+,01maio 2007. Disponvel em http://www.santaluzianet.com/ _____________.Escrevivnciasdaafro-brasilidade:histriaememria.In:Revistareleitura.Belo Horizonte: Fundao Cultura Prefeitura, 2008. _____________. Memria e escrevivncia Parte I. In: ALEXANDRE, Marcos Antonio (org). Representaes performticas brasileiras: teorias, prticas e suas interfaces. 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