Upload
belinni
View
214
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Português
Citation preview
1
LER E ESCREVER SE APRENDE BRINCANDO: A IMPORTÂNCIA DE PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA PRÉ-ESCOLA DE SURDOS
Tatiana Bolivar Lebedeff
Universidade de Passo Fundo
Sussi Abel menine Guedes
Universidade de Passo Fundo
Palavra-chave: língua de sinais; alfabetização; O trabalho discute possibilidades de inclusão lingüística a partir de práticas de letramento, em língua de sinais, com crianças pré-escolares surdas. Entende-se que “letrar” significa inserir a criança no mundo letrado, trabalhando com os diferentes usos de escrita na sociedade. O letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto o aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e da escrita. Sabe-se da grande influência que um ambiente familiar rico em eventos de letramento oferece ao desenvolvimento inicial da leitura, sendo que, uma das atividades mais importantes é a exposição da criança pré-escolar à leitura de livros infantis. No caso de crianças surdas, fatores lingüísticos dificultam sua exposição precoce ao letramento, pois necessitam de interlocutores fluentes em língua de sinais (LS) para este fim. Autores argumentam que devido às condições dos meios familiar e social (incluindo a escola), não há acesso à língua (LS), o que dificulta o desenvolvimento normal da linguagem, além da não imersão do aprendiz na prática social da língua escrita, ou seja, em atividades de letramento. Estudos recentes com crianças surdas provenientes de famílias onde a primeira língua é a LS trazem à tona a possibilidade de equiparar os níveis de leitura de crianças surdas e crianças ouvintes. Argumenta-se que se deve incrementar o ensino da LS, pois, quanto maior seu domínio, maior será o número de conceitos semânticos e dispositivos lingüísticos disponíveis para a aprendizagem da língua escrita. Deverá ser com a LS que a criança será inserida nas práticas discursivas, em que serão apresentados diferentes gêneros textuais, que produzirá e irá ler seus primeiros textos. Acredita-se, portanto, que compete à educação infantil proporcionar um ambiente de letramento, onde as crianças surdas possam conferir à língua escrita, a partir da língua de sinais, seu caráter de objeto social.
Letramento – surdez – língua de sinais – pré-escola
Aprender a ler e escrever, como comenta Soares (2002), traz inúmeras
conseqüências para o indivíduo, influenciando sobre fatores sociais, psíquicos,
2
políticos, cognitivos, lingüísticos e, inclusive, econômicos. Segundo a autora, o
impacto dessas mudanças sobre o sujeito, ou seja, a apropriação da leitura e da
escrita e a incorporação das práticas sociais que as demandam denomina-se
letramento. Ampliando o conceito, Soares (2002) salienta que letramento não
pode ser visto apenas como um conjunto de habilidades individuais, mas sim,
como um conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os
sujeitos se envolvem no seu contexto social.
Nesse sentido, Martins (2003) comenta que “letrar” significa inserir a
criança no mundo letrado, trabalhando com os diferentes usos de escrita na
sociedade. Essa inserção começa muito antes da alfabetização propriamente dita,
quando a criança começa a interagir socialmente com as práticas de letramento
no seu mundo social: os pais lêem para ela, a mãe faz anotações, os rótulos
indicam os produtos, reconhecidos nas prateleiras dos supermercados e na
cozinha da casa. O letramento, conclui a autora, é cultural, por isso muitas
crianças já vão para a escola com o conhecimento adquirido incidentalmente no
dia-a-dia.
Além disso, Soares (2002) argumenta que a criança precisa saber fazer uso
e envolver-se nas atividades de leitura e escrita. Ou seja, para entrar nesse
universo do letramento, ela precisa apropriar-se do hábito de buscar um jornal
para ler, de freqüentar revisteiras, livrarias, e com esse convívio efetivo com a
leitura, apropriar-se do sistema de escrita. Segundo a autora, para que ocorra a
adaptação adequada ao ato de ler e escrever ... “é preciso compreender, inserir-
se, avaliar, apreciar a escrita e a leitura”. O letramento compreende tanto a
apropriação das técnicas para a alfabetização quanto esse aspecto de convívio e
hábito de utilização da leitura e da escrita.
Nesse sentido, Terzi (1985) comenta a grande influência que um ambiente
familiar rico em eventos de letramento oferece ao desenvolvimento inicial da
leitura. A autora discute, como uma das atividades mais importantes de
letramento, a exposição da criança pré-escolar à leitura de livros infantis e salienta
que esta exposição constante promove uma expansão do conhecimento sobre
histórias, sobre tópicos de estórias, estrutura textual e sobre a escrita.
3
O primeiro contato da criança com o texto, segundo Abramovich (2001), é
feito oralmente, através da voz da mãe, do pai ou dos avós, contando contos de
fada, trechos da Bíblia, histórias inventadas, livros, poemas sonoros, etc. Para a
autora, ler histórias para crianças é suscitar a imaginário, é encontrar outras idéias
para solucionar questões. É uma possibilidade de descobrir o mundo dos conflitos,
dos impasses, das soluções que todas as pessoas vivem e atravessam, o que é
feito através dos problemas que vão sendo enfrentados e resolvidos pelas
personagens de cada história. É através de uma história que podem ser
descobertos outros lugares, outros tempos, outro jeito de vestir e viver, outra ética,
outra ótica. É conhecer história, geografia, filosofia, política, sociologia, etc.
Percebe-se, portanto, que a história é importante tanto como fonte de
prazer como pela contribuição que oferece ao desenvolvimento da criança
(Coelho,1986). Nesse sentido, Morais (1996) ressalta que a audição de livros é o
primeiro passo para a leitura. A audição da leitura feita por outras pessoas teria
uma tripla função: cognitiva, lingüística e afetiva. No nível cognitivo geral, segundo
o autor, a audição de histórias possibilita conhecimentos que a conversação sobre
outras atividades cotidianas não consegue comunicar; permite estabelecer
associações esclarecedoras sobre a experiência dos outros e a sua própria. Mais
importante ainda, talvez, pela própria estrutura da história contada, pelas questões
e comentários que sugere, pelos resumos que provoca, ela ensina a compreender
melhor os fatos, a melhor organizar e reter a informação, a melhor elaborar os
roteiros e os esquemas mentais.
No nível afetivo, a criança descobre o universo da leitura pela voz, plena de
entonação e de significação, daqueles em quem ela tem mais confiança e com
quem se identifica.
Já no nível lingüístico, a audição de livro permite esclarecer um conjunto
muito variado de relações entre a linguagem escrita e a linguagem falada: o
sentido da leitura, as fronteiras entre as palavras, a relação entre o comprimento
das palavras faladas e o das palavras escritas, a recorrência das letras e dos
sons, as correspondências letra-som, os sinais de pontuação, etc. Essa audição
leva a criança a aumentar e estruturar seu repertório de palavras e a desenvolver
4
estruturas de frases e de textos. A criança habitua-se a parafrasear, a dizer de
outro modo, a compreender e utilizar figuras de estilo. O autor salienta que essas
capacidades serão particularmente úteis após os dois primeiros anos de
aprendizagem da leitura, durante os quais os textos a serem lidos são ainda
relativamente simples. Com efeito, os conhecimentos lingüísticos adquiridos
durante a audição de histórias proporcionam à criança um trunfo considerável
para enfrentar uma leitura progressivamente mais sofisticada.
A importância do contar histórias também é defendida por Coelho (1993),
ao afirmar que a literatura é um fenômeno de linguagem e uma experiência vital
cultural. Conforme a autora, direta ou indiretamente ligada a determinado contexto
social, a literatura é fundamental para a formação do indivíduo, pois, ao estudar a
história das culturas e o modo pela qual elas foram sendo transmitidas de geração
para geração, verifica-se que a literatura foi seu principal veículo. Literatura oral ou
literatura escrita são as principais formas pelas quais se recebem a herança e a
tradição cultural.
Nesse sentido, se for levado em consideração que apenas 10% das
crianças surdas nasce em lares surdos, percebe-se que os outros 90% estão em
extrema desvantagem com relação às ouvintes. Para as crianças surdas que
vivem em ambientes ouvintes, portanto, a possibilidade de participarem de
atividades relacionadas a narrativas de histórias é muito limitada. Essas crianças
precisam ter familiares que aprendam a língua de sinais, ou conviver com a
comunidade surda, de modo que surdos adultos contem histórias para elas. De
acordo com Griffith e Ripich (1988), muitos surdos possuem experiência limitada
com histórias antes de começar a ler.
Alguns autores, como Yoshinaga-Itano (1986) e Torres (1993), que
pesquisam a compreensão textual através de reconto de histórias, sugerem que
crianças surdas teriam dificuldades de contar histórias. Entretanto, o tipo de input
e output utilizado nessas pesquisas não foi a língua de sinais, mas a língua escrita
ou oral. Os mesmos resultados são encontrados na pesquisa de Banks, Gray e
Fyfe (1990) sobre compreensão textual. Os autores solicitaram output escrito, e
sugerem que crianças surdas possuem deficiências na habilidade de usar o
5
esquema de histórias durante a leitura, fato diagnosticado em razão do número de
distorções que produziam no seu reconto escrito. Distorções que eles apontam
como: recordação equivocada, quebra da linha de história, introdução de material
novo e irrelevante, inversões temporais, etc. Os autores concluem que crianças
surdas podem ter dificuldades na aquisição do esquema de histórias.
Já o trabalho de Williams e McLean (1997) mostra que crianças surdas
acostumadas com leituras de livros de histórias em língua de sinais não
apresentam comportamentos verbais como imitação ou simples descrição das
figuras da história; pelo contrário, realizam comentários espontâneos e perguntas
que demonstram respostas emocionais e intelectuais às idéias e sentimentos
expressos nos livros; por exemplo, descrevem os sentimentos dos personagens
baseados no texto e na ilustração, predizem futuras ações dos personagens,
explicam razões para o comportamento e julgam as ações dos personagens. Os
autores também salientam o fato de que essas crianças, quando vão ler ou contar
uma história, brincam de professor e repetem os comportamentos de interação
social pertinentes a esta atividade, que são realizados pelos professores ou pais
surdos.
De acordo com Wilbur (2000), no período que a criança ouvinte começa a
aprender a ler, ela já possui uma fluência conversacional em sua língua nativa e
pode ser ensinada a transferir este conhecimento para a leitura. Já criança surda
não chega na escola com as mesmas habilidades de formação de sentenças,
vocabulário e conhecimento de mundo como as ouvintes. Ou seja, chegam na
escola sem uma base lingüística, e são tradicionalmente ensinadas a aprender a
estrutura lingüística da língua oral, fala, leitura, e, muitas vezes Língua de Sinais,
tudo ao mesmo tempo. Além da falta desta base lingüística, as crianças surdas,
geralmente, não participam de atividades de letramento como as crianças
ouvintes, dadas as resistências ou não informação familiar sobre a língua de
sinais, a comunicação criança-família restringe-se a gestos icônicos.
Desde o início das tentativas formais de educação do surdo, o
desenvolvimento da aprendizagem da leitura e da escrita foram prioridades. A
história educacional das iniciativas nesta área está entrelaçada com a história de
6
atitudes e práticas relacionadas à tentativa de minimizar o impacto da surdez no
desenvolvimento das crianças surdas. Neste sentido, questionamentos sobre a
possibilidade do input visual substituir o input oral, e, se os educadores poderiam
diminuir os efeitos das características especiais de linguagem dos surdos que
aprendem a ler, de acordo com Power e Leigh, (2000), orientaram as práticas
educativas. Esses autores salientam que, conseqüentemente, a maioria das
práticas educativas de ensino de leitura limitou-se com a preocupação da
remediação de leitores fracos em sintaxe da língua. Esta preocupação geralmente
levou a confusões sobre o objetivo do ensino de leitura e escrita para surdos.
Diversos estudos demonstram o baixo desempenho de crianças e adolescentes
surdos em testes de leituras quando comparados a ouvintes (Kuntze, 1998;
Yoshinaga-Itano & Snyder, 1984; Perfetti & Sandak, 2000; Power & Leigh, 2000).
No entanto, os pesquisadores da área realmente ainda não sabem como o surdo
aprende a ler (Musselman, 2000), as pesquisas apenas indicam algumas
estratégias utilizadas pelo aprendiz surdo, que serão discutidas a seguir.
Estudos recentes com crianças surdas provenientes de famílias onde a
primeira língua é a Língua de Sinais (LS) trazem à tona a possibilidade de
equiparar os níveis de leitura de crianças surdas fluentes em LS e crianças
ouvintes (Wilbur, 2000). Esses achados provocaram uma série de pesquisas que
buscam encontrar as relações entre LS e leitura. As atenções direcionadas ao
estudo dessas relações (entre leitura e LS) provêm, portanto, de trabalhos que
demonstram a correlação entre exposição precoce à LS e desenvolvimento
normal da linguagem e habilidades cognitivas (Nelson 1998; Padden & Ramsey,
1998; Prinz & Strong, 1998; Stuckless, 1997). Esses trabalhos, como já
comentado, foram realizados comparando níveis de leitura entre crianças surdas
filhas de pais ouvintes e crianças surdas filhas de pais surdos, demonstrando a
alta performance das últimas. O que esses trabalhos não respondem é de que
maneira a fluência em LS pode ser responsável por uma maior habilidade em
leitura, visto que muitas pessoas ouvintes fluentes em sua língua podem
apresentar dificuldades na leitura; ou seja, questiona-se se é realmente a LS que
7
cria este diferencial ou se são outros fatores co-ocorrentes com a exposição
precoce à LS que contribuem para o bom desempenho em leitura.
Padden & Ramsey (1998) salientam alguns fatores de porque esta relação
entre LS e leitura pode existir. Primeiramente, crianças surdas filhas de pais
surdos crescem em um ambiente de aceitação, com menos estresse em função
da surdez da criança, e os pais são aptos a focalizar recursos parentais e
familiares no desenvolvimento lingüístico precoce da criança. Além disso, pais
surdos são hábeis em detectar precocemente a surdez na criança, e também
costumam colocá-la antes na escola. A exposição à primeira língua funciona como
uma plataforma de lançamento para o desenvolvimento de outras habilidades
lingüísticas. Desta forma, os autores propõem que a exposição precoce e longa à
escolarização e instruções de leitura, além de outros fatores (não apenas a LS),
podem predizer o desenvolvimento de leitura da criança surda.
Os autores também argumentam que a LS é composta por unidades
gestuais que não possuem correspondência com a língua oral, e os sistemas
alfabéticos são baseados em fonemas da língua oral. Neste caso, eles
questionam como podem dois sistemas tão diferentes influenciar um ao outro.
Musselman (2000) argumenta que existem evidências de que o conhecimento de
leitura e escrita em uma primeira língua transfiram-se para a segunda, mas não há
evidências que as habilidades interpessoais em uma primeira língua sejam
transferidas para habilidades de leitura e escrita numa segunda língua. Em função
de que o que se aprende na escola não é a forma impressa da LS, não há
satisfação das condições de interdependência lingüística. A argumentação
desenvolvida por Nelson (1998) e Padden & Ramsey, (1998) é de que as
correlações que existem entre LS e leitura não são naturais, mas derivadas do
conhecimento de associações cultivadas entre a escrita e a LS.
Entre essas associações encontradas em professoras de alunos hábeis em
leitura estão as estratégias de “sanduíche” e “encadeamento”. O “sanduíche”
consiste em “soletrar” uma palavra com alfabeto manual entre dois sinais. Já o
encadeamento consiste em “traduzir” uma palavra nos diferentes sistemas: sinal,
alfabeto manual e escrita. Esta é uma atividade de letramento bastante comum às
8
crianças surdas expostas à língua de sinais. Elas brincam de “soletrar” palavras
acompanhadas de seu sinal, e são encorajadas nessas brincadeiras pelos adultos
surdos.
Nelson (1998) argumenta que, além do desenvolvimento dessas
associações e estratégias de leitura adequadas, deve-se incrementar o ensino da
LS. Para ele, quanto maior o domínio da LS, maior será o número de conceitos
semânticos e dispositivos lingüísticos de que a criança disporá para a
aprendizagem do léxico e sintaxe da língua escrita. A fluência em LS incrementa a
compreensão dos materiais de ensino e exercícios propostos pela professora (se
ela é razoavelmente fluente em LS). Além disso, a língua em comum favorece o
estabelecimento de um ambiente encorajador de aprendizagem, pela
possibilidade de interações, feedbacks, aumento de auto-estima, identificação
cultural positiva, altas expectativas de professores e alunos com relação ao
resultado da aprendizagem, e maior nível de atenção e motivação.
Musselman (2000) segue na mesma linha de raciocínio, argumentando que,
embora as características específicas da LS não possam ser transferidas para a
língua escrita ela promove estratégias semânticas e sintáticas, aumenta o
conhecimento de mundo, possibilita o desenvolvimento de habilidades
metalingüísticas e metacognitivas e promove uma comunicação compreensiva e
eficiente. A autora salienta ainda que habilidades em LS estão cientificamente
relacionas à compreensão de leitura, e questiona a pouca utilização do contexto e
conhecimento do mundo (acessados pela LS) por leitores surdos ao retirar
significado do texto. Esta pouca utilização é atribuída ao fracasso de professores
em encorajar seu uso, uma vez que é dada muita atenção à decodificação do
texto escrito.
Outra situação que envolve a relação entre LS e leitura, é a de que alguns
leitores surdos acessam uma estratégia de recodificação baseada em sinais. Esta
recodificação pode ajudar na representação e reforçar a informação semântica
(Oakhill & Cain, 2000). Esses autores ainda salientam que a compreensão não é
desenvolvida automaticamente uma vez que a decodificação de palavra seja
eficiente, mas depende de diferentes habilidades que necessitam ser ensinadas.
9
Habilidade de realizar inferências e produzir histórias coerentes podem estar
implicadas no desenvolvimento da compreensão textual para os surdos que são
fluentes em LS. Torna-se possível, então, apresentar textos escritos via LS com o
objetivo de ensinar estratégias tais como a de realizar inferências, monitorar a
compreensão, e planejar e estruturar histórias. Essas estratégias podem ajudar o
leitor a desenvolver habilidades necessárias para construir representações
coerentes integradas dos textos em LS, habilidades que podem ser transferidas
para entender textos escritos.
Além dessas questões, Wilbur (2000) argumenta que a LS desenvolve
cognição, socialização, e um conhecimento básico apropriado para a idade. Para
esse autor, o uso da LS em conversas modelaria importantes características da
linha do discurso de LS e discursos de maneira geral. Crianças que aprendem LS
como a primeira língua estariam preparadas com uma completa fluência
conversacional antes de começar a tarefa de aprender outro idioma fluentemente.
A fluência conversacional completa inclui a responsabilidade de assegurar que o
destinatário possa seguir o tópico da conversa e permitir perceber quem está
fazendo o que e para quem. Além disso, o autor salienta que o conhecimento
precoce da LS permitiria aos estudantes surdos o acesso a sua história e cultura.
Paul (1998) argumenta que os problemas que os surdos enfrentam tanto na
aquisição da leitura como da escrita estão relacionados à dificuldade em adquirir o
que ele chama de “verdadeiro motor da comunicação verbal”, ou seja, a forma
social (falada ou sinalizada) da língua a qual eles estão tentando ler ou se
expressar via escrita. O autor chama a atenção de que os alunos muitas vezes
entram na escola sem conhecer nenhuma língua convencional. Esta situação é
patente nas escolas brasileiras onde os surdos estão integrados e recebem
educação em Português antes de serem expostos à Língua de Sinais.
Na busca para sanar esses problemas, o que autores como Erting & Pfau
(1999), Kuntze (1998), Prinz & Strong (1998), dentre outros salientam e defendem,
é a necessidade urgente de expor precocemente a criança surda à LS e da oferta
de programas escolares bilíngües nas escolas de surdos. Afinal, ler e escrever
são práticas culturais que pressupõem práticas interculturais, pois apesar de que
10
dependam de processos individuais, são adquiridas e exercitadas em contextos
coletivos, socialmente organizados (Fernandes, 1999).
Sánchez (1999) argumenta que devido às condições dos meios familiar e
social (incluindo a escola), não há condições de acesso à língua (LS), criando
condições que dificultam o desenvolvimento normal da linguagem e,
conseqüentemente, da inteligência; além da não imersão do aprendiz na prática
social da língua escrita, ou seja, em atividades de letramento. Para possibilitar,
portanto, o que Paul (1998) chama de pensamento alfabetizado (habilidade de
pensar de maneira criativa, reflexiva e crítica), para os surdos, a escola deve
oportunizar o acesso à leitura e à escrita em qualquer língua que seja acessível ao
estudante, neste caso, a língua de sinais.
O que é premente no caso dos surdos, é oferecer práticas de letramento o
mais cedo possível, seja na família ou na escola. Na escola, as atividades de
educação infantil e, mais especificamente, de pré-escola, podem e devem
possibilitar atividades de letramento, desde que se leve em consideração que a
alfabetização será em segunda língua (L2). Isto quer dizer que, a primeira língua
(L1) da criança surda será a língua de sinais. Será com esta língua que a criança
será inserida nas práticas discursivas, será a língua em que serão apresentados
diferentes gêneros textuais, será nesta língua que a criança produzirá e irá ler
seus primeiros textos. A língua escrita será apresentada como sua segunda língua
(L2) e não se sobreporá em importância a Língua de Sinais.
O professor, de acordo com Martins (2003), deve tomar alguns cuidados
para envolver o aluno no processo de aquisição da escrita, tais como:
• Criar um ambiente letrado, em que a leitura e a escrita estejam presentes
mesmo antes que a criança saiba ler e escrever convencionalmente.
• Considerar o conhecimento prévio das crianças, pois, embora pequenas,
elas levam para a escola o conhecimento que advém da vida.
• Participar com as crianças de práticas de letramento, ou seja, ler e escrever
com função social.
• Utilizar textos significativos, pois é mais interessante interagir com a escrita
que possui um sentido, constitui um desafio e dá prazer.
11
• Utilizar textos reais, que circulam na sociedade.
• Utilizar a leitura e a escrita como forma de interação, por exemplo, para
informar,convencer, solicitar ou emocionar.
Uma atividade de letramento que pode ser realizada com crianças surdas é a
leitura de imagens. Reily (2003) sugere que os educadores envolvidos com a
educação dos surdos devem refletir mais sobre o papel da imagem visual na
apropriação do conhecimento. Salienta a necessidade de utilizar-se a imagem
adequadamente como recurso cultural que permeia todos os campos de
conhecimento e que traz consigo uma estrutura capaz de instrumentalizar o
pensamento. A autora cita Hughes (1998) ao salientar que o letramento visual
possibilitaria diferentes funções, como, por exemplo, ler imagens do entorno; ler
imagens de livros ilustrados; usar imagens visuais como apoio para leitura de texto
simples; ler sinais, símbolos e figuras no ambiente escolar com o objetivo de
promover a alfabetização; criar imagens visuais significativas para registrar
compreensão de tarefas; usar figuras em textos de não ficção como apoio da
aprendizagem de conteúdo escolar; usar figuras em textos de que são como apoio
para aprendizagem de conteúdo escolar; e, finalmente, ler a página, ou seja,
diferentes maneiras de apresentar o texto e as figuras.
Hughes (1998) citada por Reily (2003) comenta que o letramento visual é
ignorado nos currículos oficiais das escolas a imagem não pode ser compreendida
apenas como uma função meramente motivacional, colocada para criar interesse,
na criança, pelo livro, deve ser vista como parte integrante do processo de
significação de dedos e que a imagem auxiliar e o aluno a compreender o texto.
Os educadores tendem a subestimar as possibilidades das imagens na escola, por
se preocupar demais com letramento no sentido restrito, limitado ao texto escrito.
No entanto, a criança não lê apenas a palavra num livro, mas lê, o atribui sentido
também considerando as ilustrações, a forma atuação gráfica, bem como contexto
social em que a leitura se dar. A figura visual traz consigo o potencial de ser
aproveitada como recurso para transmitir conhecimento e desenvolver o
raciocínio. Para alunos surdos, o caminho da aprendizagem necessariamente será
12
visual, daí a importância de os educadores compreenderem mais sobre o poder
constitutivo da imagem.
À leitura de imagens pode-se vincular a leitura de histórias. Esta atividade tão
importante de letramento é, de certa forma, muito negligenciada para as crianças
surdas. Mesmo crianças ouvintes que não possuem um ambiente familiar de
letramento têm acesso a histórias pelos desenhos animados da televisão. As
crianças surdas necessitam, portanto, de um incremento dessa atividade. Em
pesquisa que está sendo realizada pelas autoras deste artigo, na Universidade de
Passo Fundo, uma das propostas é a de instrumentalizar as professoras surdas
de uma classe de pré-escola de surdos com diferentes mídias para o conto de
histórias infantis.
A necessidade da oferta de diferentes mídias dá-se em função de que a
professora surda, para contar histórias, depende das mãos, nesse sentido, é
extremamente trabalhoso narrar a história e segurar o livro ao mesmo tempo. Para
facilitar a apresentação das histórias, os livros infantis a serem apresentados
estão sendo adaptados, no momento, das seguintes maneiras: ampliação das
ilustrações, para colocação em cavalete (esta ampliação é feita artesanalmente,
com caneta esferográfica e lápis de cera); ampliação das ilustrações em fotocópia
colorida, para colocação em cavalete; fotocópia das ilustrações em lâminas para
uso em retroprojetor; transformação dos personagens em bonecos manipuláveis;
confecção de guarda-pó com vários bolsos, para que, em cada bolso, seja
guardado um personagem ou componente da história, a fim de que os mesmos
sejam apresentados pela professora, à medida que a história se desenvolve; e
cópia, da televisão para fita de vídeo-cassete, de desenhos animados que não
necessitam da linguagem oral para sua compreensão. À medida que as histórias
vão sendo apresentadas, estão sendo gravadas, por filmadora 8mm, a narrativa
da professora e os recontos dos alunos, para posterior análise da evolução
longitudinal de suas produções.
Tecendo algumas considerações:
A pré-escola tem a competência de assegurar espaços de apropriação de
novas linguagens à criança surda, que são inerentes a sua faixa etária, ou seja,
13
possibilitar a reorganização das aprendizagens já construídas nas vivências
familiares e de sua comunidade em saberes e conhecimentos.
Trabalhar com atividades de letramento na pré-escola, impõe,
necessariamente, que a leitura e a escrita sejam relevantes à vida, que segundo
Vygotsky significa...”que as letras se tomem elementos da vida das crianças, da
mesma maneira como, por exemplo, a fala”. Rojo (1995) cita de Lemos (1988) ao
explicar que é o modo de participação da criança, ainda na oralidade (e neste
caso, em língua de sinais), nas práticas de leitura e escrita e, dependentes do
grau de letramento familiar e escolar em que a criança está inserida que lhe
permitirá construir uma relação com a escrita enquanto prática discursiva e
enquanto objeto de mediação com o mundo. Nesse sentido, utiliza-se aqui a
tradução do poema de Kate Chong, realizada por Soares (2002), para ilustrar a
importância do letramento ...”letramento é sobretudo, um mapa do coração do
homem, um mapa de quem você é, e de tudo que você pode ser.” Acredita-se,
portanto, que compete à educação infantil proporcionar um ambiente de
letramento, onde as crianças surdas possam conferir à língua escrita, a partir da
língua de sinais, seu caráter de objeto social.
Referências Bibliográficas
ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2001. BANKS, J., GRAY, C. E FYFE, R. The written recall of printed stories by severely deaf children. British Journal of Educational Psychology, 60, 192- 206,1990. COELHO, B. Contar histórias:Uma arte sem Idade. São Paulo: Ática, 1986. COELHO, N.N. Literatura Infantil. São Paulo: Ática, 1993. FERNANDES, S. É possível ser surdo em português? Língua de sinais e escrita: em busca de uma aproximação. In: SKLIAR, C. (Org.), Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999.
14
GRIFFITH, P.L. e RIPICH, D.N. Story structure recall in hearing-impaired, learning-disabled and nondisabled children. American Annals of the Deaf, 133 (1), 43-50, 1988. KUNTZE, M. Literacy and deaf children: the language question. Topics in Language Disorders. 18 (4), 1-10, 1998. MARTINS, Alice. Alfabetização e letramento. Disponível em: <http://www.brazcubas.br/professores/alice/download/texto2s4.doc>. Acesso em 3/12/2003. MORAIS, J. (1996). A arte de ler. São Paulo: Unesp, 1996. MUSSELMAN, C. How do children who can't hear learn to read an alphabetic script? A review of the literature on reading and deafness. Journal of Deaf Studies and Deaf Education. 5(1) 9-3, 2000.
NELSON, K. Toward a differentiated account of facilitators of literacy development and ASL in deaf children. Topics in Language Disorders. 18 (4), 73-82, 1998. OAKHILL, J. & CAIN, K. Children's difficulties in text comprehension: assessing causal issues. Journal of Deaf Studies and Deaf Education. 5 (1) 51-59, 2000.
PADDEN, C. e RAMSEY, C. Deaf culture and literacy. American Annals of the Deaf. 138 (2), 96-99, 1993.
PADDEN, C. e RAMSEY, C. Reading ability in signing deaf children. Topics in Language Disorders. 18 (4), 30-40, 1998.
PAUL, P.V. Literacy and Deafness. Needham Heights: Allyn & Bacon, 1998. PERFETTI, C.A. e SANDAK, R. Reading optimally builds on spoken language: implications for deaf readers. Journal of Deaf Studies and Deaf Education. 5(1) 32-50, 2000.
POWER, D. e LEIGH, G.R. Principles and Practices of literacy development for deaf learners: a historical overview. Journal of Deaf Studies and Deaf Education 5(1), 3-8, 2000.
PRINZ, P. e STRONG, M. ASL proficiency and English literacy within a bilingual deaf education model of instruction. Topics in Language Disorders. 18 (4), 47-56, 1998. REILY, Lucia H. As imagens: o lúdico e o absurdo no ensino de arte para pré-escolares surdos. In: SILVA, I.; KAUCHAKJE, S. e GESUELI, Z. (Orgs.) Cidadania, surdez e linguagem. São Paulo: Plexus, 2003.
15
ROJO, Roxane H. R. Concepções não valorizadas da escrita: a escrita como “um outro modo de falar”. In: KLEIMAN, A. (Org.) Os significados do letramento. Campinas: Mercado de letras, 1995. SÁNCHEZ, C. La lengua escrita: esse esquivo objeto de la pedagogia para sordos y oyentes. In: SKLIAR, C. (Org.), Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. STUCKLESS, E. R. The influence of early manual communication on the linguistic development of deaf children. American Annals of the Deaf. 142 (3), 71-79, 1997. TERZI, Sylvia B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In: KLEIMAN, A. (Org.) Os significados do letramento. Campinas: Mercado de letras, 1995. TORRES, E. Memoria y representación en los sordos. In: MARCHESI, A. (Org.), El desarrollo cognitivo y lingüístico de los niños sordos. Madrid: Alianza: Editorial, 1993. YOSHINAGA-ITANO, C. e SNYDER, L. Form and meaning in the written language of hearing- impaired children. Volta Review, 87, 75-90, 1984. YOSHINAGA-ITANO, C. Beyond the sentence level: what’s in a hearing-impaired child’s story? Topics in Language Disorders, 6 (3), 71-83, 1986. WILBUR, R. The use of ASL to support the development of english and literacy. Journal of Deaf Studies and deaf Education. 5(1) 81-104, 2000. WILLIAMS, C.L. e MCLEAN, M.M. Young deaf children's response to picture book reading in a preschool setting. Research in The Teaching of English. 31(3), 337-350, 1997.