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1 LER E ESCREVER SE APRENDE BRINCANDO: A IMPORTÂNCIA DE PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA PRÉ-ESCOLA DE SURDOS Tatiana Bolivar Lebedeff Universidade de Passo Fundo Sussi Abel menine Guedes Universidade de Passo Fundo Palavra-chave: língua de sinais; alfabetização; O trabalho discute possibilidades de inclusão lingüística a partir de práticas de letramento, em língua de sinais, com crianças pré-escolares surdas. Entende-se que “letrar” significa inserir a criança no mundo letrado, trabalhando com os diferentes usos de escrita na sociedade. O letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto o aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e da escrita. Sabe-se da grande influência que um ambiente familiar rico em eventos de letramento oferece ao desenvolvimento inicial da leitura, sendo que, uma das atividades mais importantes é a exposição da criança pré-escolar à leitura de livros infantis. No caso de crianças surdas, fatores lingüísticos dificultam sua exposição precoce ao letramento, pois necessitam de interlocutores fluentes em língua de sinais (LS) para este fim. Autores argumentam que devido às condições dos meios familiar e social (incluindo a escola), não há acesso à língua (LS), o que dificulta o desenvolvimento normal da linguagem, além da não imersão do aprendiz na prática social da língua escrita, ou seja, em atividades de letramento. Estudos recentes com crianças surdas provenientes de famílias onde a primeira língua é a LS trazem à tona a possibilidade de equiparar os níveis de leitura de crianças surdas e crianças ouvintes. Argumenta-se que se deve incrementar o ensino da LS, pois, quanto maior seu domínio, maior será o número de conceitos semânticos e dispositivos lingüísticos disponíveis para a aprendizagem da língua escrita. Deverá ser com a LS que a criança será inserida nas práticas discursivas, em que serão apresentados diferentes gêneros textuais, que produzirá e irá ler seus primeiros textos. Acredita-se, portanto, que compete à educação infantil proporcionar um ambiente de letramento, onde as crianças surdas possam conferir à língua escrita, a partir da língua de sinais, seu caráter de objeto social. Letramento – surdez – língua de sinais – pré-escola Aprender a ler e escrever, como comenta Soares (2002), traz inúmeras conseqüências para o indivíduo, influenciando sobre fatores sociais, psíquicos,

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LER E ESCREVER SE APRENDE BRINCANDO: A IMPORTÂNCIA DE PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA PRÉ-ESCOLA DE SURDOS

Tatiana Bolivar Lebedeff

Universidade de Passo Fundo

Sussi Abel menine Guedes

Universidade de Passo Fundo

Palavra-chave: língua de sinais; alfabetização; O trabalho discute possibilidades de inclusão lingüística a partir de práticas de letramento, em língua de sinais, com crianças pré-escolares surdas. Entende-se que “letrar” significa inserir a criança no mundo letrado, trabalhando com os diferentes usos de escrita na sociedade. O letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto o aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e da escrita. Sabe-se da grande influência que um ambiente familiar rico em eventos de letramento oferece ao desenvolvimento inicial da leitura, sendo que, uma das atividades mais importantes é a exposição da criança pré-escolar à leitura de livros infantis. No caso de crianças surdas, fatores lingüísticos dificultam sua exposição precoce ao letramento, pois necessitam de interlocutores fluentes em língua de sinais (LS) para este fim. Autores argumentam que devido às condições dos meios familiar e social (incluindo a escola), não há acesso à língua (LS), o que dificulta o desenvolvimento normal da linguagem, além da não imersão do aprendiz na prática social da língua escrita, ou seja, em atividades de letramento. Estudos recentes com crianças surdas provenientes de famílias onde a primeira língua é a LS trazem à tona a possibilidade de equiparar os níveis de leitura de crianças surdas e crianças ouvintes. Argumenta-se que se deve incrementar o ensino da LS, pois, quanto maior seu domínio, maior será o número de conceitos semânticos e dispositivos lingüísticos disponíveis para a aprendizagem da língua escrita. Deverá ser com a LS que a criança será inserida nas práticas discursivas, em que serão apresentados diferentes gêneros textuais, que produzirá e irá ler seus primeiros textos. Acredita-se, portanto, que compete à educação infantil proporcionar um ambiente de letramento, onde as crianças surdas possam conferir à língua escrita, a partir da língua de sinais, seu caráter de objeto social.

Letramento – surdez – língua de sinais – pré-escola

Aprender a ler e escrever, como comenta Soares (2002), traz inúmeras

conseqüências para o indivíduo, influenciando sobre fatores sociais, psíquicos,

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políticos, cognitivos, lingüísticos e, inclusive, econômicos. Segundo a autora, o

impacto dessas mudanças sobre o sujeito, ou seja, a apropriação da leitura e da

escrita e a incorporação das práticas sociais que as demandam denomina-se

letramento. Ampliando o conceito, Soares (2002) salienta que letramento não

pode ser visto apenas como um conjunto de habilidades individuais, mas sim,

como um conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os

sujeitos se envolvem no seu contexto social.

Nesse sentido, Martins (2003) comenta que “letrar” significa inserir a

criança no mundo letrado, trabalhando com os diferentes usos de escrita na

sociedade. Essa inserção começa muito antes da alfabetização propriamente dita,

quando a criança começa a interagir socialmente com as práticas de letramento

no seu mundo social: os pais lêem para ela, a mãe faz anotações, os rótulos

indicam os produtos, reconhecidos nas prateleiras dos supermercados e na

cozinha da casa. O letramento, conclui a autora, é cultural, por isso muitas

crianças já vão para a escola com o conhecimento adquirido incidentalmente no

dia-a-dia.

Além disso, Soares (2002) argumenta que a criança precisa saber fazer uso

e envolver-se nas atividades de leitura e escrita. Ou seja, para entrar nesse

universo do letramento, ela precisa apropriar-se do hábito de buscar um jornal

para ler, de freqüentar revisteiras, livrarias, e com esse convívio efetivo com a

leitura, apropriar-se do sistema de escrita. Segundo a autora, para que ocorra a

adaptação adequada ao ato de ler e escrever ... “é preciso compreender, inserir-

se, avaliar, apreciar a escrita e a leitura”. O letramento compreende tanto a

apropriação das técnicas para a alfabetização quanto esse aspecto de convívio e

hábito de utilização da leitura e da escrita.

Nesse sentido, Terzi (1985) comenta a grande influência que um ambiente

familiar rico em eventos de letramento oferece ao desenvolvimento inicial da

leitura. A autora discute, como uma das atividades mais importantes de

letramento, a exposição da criança pré-escolar à leitura de livros infantis e salienta

que esta exposição constante promove uma expansão do conhecimento sobre

histórias, sobre tópicos de estórias, estrutura textual e sobre a escrita.

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O primeiro contato da criança com o texto, segundo Abramovich (2001), é

feito oralmente, através da voz da mãe, do pai ou dos avós, contando contos de

fada, trechos da Bíblia, histórias inventadas, livros, poemas sonoros, etc. Para a

autora, ler histórias para crianças é suscitar a imaginário, é encontrar outras idéias

para solucionar questões. É uma possibilidade de descobrir o mundo dos conflitos,

dos impasses, das soluções que todas as pessoas vivem e atravessam, o que é

feito através dos problemas que vão sendo enfrentados e resolvidos pelas

personagens de cada história. É através de uma história que podem ser

descobertos outros lugares, outros tempos, outro jeito de vestir e viver, outra ética,

outra ótica. É conhecer história, geografia, filosofia, política, sociologia, etc.

Percebe-se, portanto, que a história é importante tanto como fonte de

prazer como pela contribuição que oferece ao desenvolvimento da criança

(Coelho,1986). Nesse sentido, Morais (1996) ressalta que a audição de livros é o

primeiro passo para a leitura. A audição da leitura feita por outras pessoas teria

uma tripla função: cognitiva, lingüística e afetiva. No nível cognitivo geral, segundo

o autor, a audição de histórias possibilita conhecimentos que a conversação sobre

outras atividades cotidianas não consegue comunicar; permite estabelecer

associações esclarecedoras sobre a experiência dos outros e a sua própria. Mais

importante ainda, talvez, pela própria estrutura da história contada, pelas questões

e comentários que sugere, pelos resumos que provoca, ela ensina a compreender

melhor os fatos, a melhor organizar e reter a informação, a melhor elaborar os

roteiros e os esquemas mentais.

No nível afetivo, a criança descobre o universo da leitura pela voz, plena de

entonação e de significação, daqueles em quem ela tem mais confiança e com

quem se identifica.

Já no nível lingüístico, a audição de livro permite esclarecer um conjunto

muito variado de relações entre a linguagem escrita e a linguagem falada: o

sentido da leitura, as fronteiras entre as palavras, a relação entre o comprimento

das palavras faladas e o das palavras escritas, a recorrência das letras e dos

sons, as correspondências letra-som, os sinais de pontuação, etc. Essa audição

leva a criança a aumentar e estruturar seu repertório de palavras e a desenvolver

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estruturas de frases e de textos. A criança habitua-se a parafrasear, a dizer de

outro modo, a compreender e utilizar figuras de estilo. O autor salienta que essas

capacidades serão particularmente úteis após os dois primeiros anos de

aprendizagem da leitura, durante os quais os textos a serem lidos são ainda

relativamente simples. Com efeito, os conhecimentos lingüísticos adquiridos

durante a audição de histórias proporcionam à criança um trunfo considerável

para enfrentar uma leitura progressivamente mais sofisticada.

A importância do contar histórias também é defendida por Coelho (1993),

ao afirmar que a literatura é um fenômeno de linguagem e uma experiência vital

cultural. Conforme a autora, direta ou indiretamente ligada a determinado contexto

social, a literatura é fundamental para a formação do indivíduo, pois, ao estudar a

história das culturas e o modo pela qual elas foram sendo transmitidas de geração

para geração, verifica-se que a literatura foi seu principal veículo. Literatura oral ou

literatura escrita são as principais formas pelas quais se recebem a herança e a

tradição cultural.

Nesse sentido, se for levado em consideração que apenas 10% das

crianças surdas nasce em lares surdos, percebe-se que os outros 90% estão em

extrema desvantagem com relação às ouvintes. Para as crianças surdas que

vivem em ambientes ouvintes, portanto, a possibilidade de participarem de

atividades relacionadas a narrativas de histórias é muito limitada. Essas crianças

precisam ter familiares que aprendam a língua de sinais, ou conviver com a

comunidade surda, de modo que surdos adultos contem histórias para elas. De

acordo com Griffith e Ripich (1988), muitos surdos possuem experiência limitada

com histórias antes de começar a ler.

Alguns autores, como Yoshinaga-Itano (1986) e Torres (1993), que

pesquisam a compreensão textual através de reconto de histórias, sugerem que

crianças surdas teriam dificuldades de contar histórias. Entretanto, o tipo de input

e output utilizado nessas pesquisas não foi a língua de sinais, mas a língua escrita

ou oral. Os mesmos resultados são encontrados na pesquisa de Banks, Gray e

Fyfe (1990) sobre compreensão textual. Os autores solicitaram output escrito, e

sugerem que crianças surdas possuem deficiências na habilidade de usar o

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esquema de histórias durante a leitura, fato diagnosticado em razão do número de

distorções que produziam no seu reconto escrito. Distorções que eles apontam

como: recordação equivocada, quebra da linha de história, introdução de material

novo e irrelevante, inversões temporais, etc. Os autores concluem que crianças

surdas podem ter dificuldades na aquisição do esquema de histórias.

Já o trabalho de Williams e McLean (1997) mostra que crianças surdas

acostumadas com leituras de livros de histórias em língua de sinais não

apresentam comportamentos verbais como imitação ou simples descrição das

figuras da história; pelo contrário, realizam comentários espontâneos e perguntas

que demonstram respostas emocionais e intelectuais às idéias e sentimentos

expressos nos livros; por exemplo, descrevem os sentimentos dos personagens

baseados no texto e na ilustração, predizem futuras ações dos personagens,

explicam razões para o comportamento e julgam as ações dos personagens. Os

autores também salientam o fato de que essas crianças, quando vão ler ou contar

uma história, brincam de professor e repetem os comportamentos de interação

social pertinentes a esta atividade, que são realizados pelos professores ou pais

surdos.

De acordo com Wilbur (2000), no período que a criança ouvinte começa a

aprender a ler, ela já possui uma fluência conversacional em sua língua nativa e

pode ser ensinada a transferir este conhecimento para a leitura. Já criança surda

não chega na escola com as mesmas habilidades de formação de sentenças,

vocabulário e conhecimento de mundo como as ouvintes. Ou seja, chegam na

escola sem uma base lingüística, e são tradicionalmente ensinadas a aprender a

estrutura lingüística da língua oral, fala, leitura, e, muitas vezes Língua de Sinais,

tudo ao mesmo tempo. Além da falta desta base lingüística, as crianças surdas,

geralmente, não participam de atividades de letramento como as crianças

ouvintes, dadas as resistências ou não informação familiar sobre a língua de

sinais, a comunicação criança-família restringe-se a gestos icônicos.

Desde o início das tentativas formais de educação do surdo, o

desenvolvimento da aprendizagem da leitura e da escrita foram prioridades. A

história educacional das iniciativas nesta área está entrelaçada com a história de

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atitudes e práticas relacionadas à tentativa de minimizar o impacto da surdez no

desenvolvimento das crianças surdas. Neste sentido, questionamentos sobre a

possibilidade do input visual substituir o input oral, e, se os educadores poderiam

diminuir os efeitos das características especiais de linguagem dos surdos que

aprendem a ler, de acordo com Power e Leigh, (2000), orientaram as práticas

educativas. Esses autores salientam que, conseqüentemente, a maioria das

práticas educativas de ensino de leitura limitou-se com a preocupação da

remediação de leitores fracos em sintaxe da língua. Esta preocupação geralmente

levou a confusões sobre o objetivo do ensino de leitura e escrita para surdos.

Diversos estudos demonstram o baixo desempenho de crianças e adolescentes

surdos em testes de leituras quando comparados a ouvintes (Kuntze, 1998;

Yoshinaga-Itano & Snyder, 1984; Perfetti & Sandak, 2000; Power & Leigh, 2000).

No entanto, os pesquisadores da área realmente ainda não sabem como o surdo

aprende a ler (Musselman, 2000), as pesquisas apenas indicam algumas

estratégias utilizadas pelo aprendiz surdo, que serão discutidas a seguir.

Estudos recentes com crianças surdas provenientes de famílias onde a

primeira língua é a Língua de Sinais (LS) trazem à tona a possibilidade de

equiparar os níveis de leitura de crianças surdas fluentes em LS e crianças

ouvintes (Wilbur, 2000). Esses achados provocaram uma série de pesquisas que

buscam encontrar as relações entre LS e leitura. As atenções direcionadas ao

estudo dessas relações (entre leitura e LS) provêm, portanto, de trabalhos que

demonstram a correlação entre exposição precoce à LS e desenvolvimento

normal da linguagem e habilidades cognitivas (Nelson 1998; Padden & Ramsey,

1998; Prinz & Strong, 1998; Stuckless, 1997). Esses trabalhos, como já

comentado, foram realizados comparando níveis de leitura entre crianças surdas

filhas de pais ouvintes e crianças surdas filhas de pais surdos, demonstrando a

alta performance das últimas. O que esses trabalhos não respondem é de que

maneira a fluência em LS pode ser responsável por uma maior habilidade em

leitura, visto que muitas pessoas ouvintes fluentes em sua língua podem

apresentar dificuldades na leitura; ou seja, questiona-se se é realmente a LS que

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cria este diferencial ou se são outros fatores co-ocorrentes com a exposição

precoce à LS que contribuem para o bom desempenho em leitura.

Padden & Ramsey (1998) salientam alguns fatores de porque esta relação

entre LS e leitura pode existir. Primeiramente, crianças surdas filhas de pais

surdos crescem em um ambiente de aceitação, com menos estresse em função

da surdez da criança, e os pais são aptos a focalizar recursos parentais e

familiares no desenvolvimento lingüístico precoce da criança. Além disso, pais

surdos são hábeis em detectar precocemente a surdez na criança, e também

costumam colocá-la antes na escola. A exposição à primeira língua funciona como

uma plataforma de lançamento para o desenvolvimento de outras habilidades

lingüísticas. Desta forma, os autores propõem que a exposição precoce e longa à

escolarização e instruções de leitura, além de outros fatores (não apenas a LS),

podem predizer o desenvolvimento de leitura da criança surda.

Os autores também argumentam que a LS é composta por unidades

gestuais que não possuem correspondência com a língua oral, e os sistemas

alfabéticos são baseados em fonemas da língua oral. Neste caso, eles

questionam como podem dois sistemas tão diferentes influenciar um ao outro.

Musselman (2000) argumenta que existem evidências de que o conhecimento de

leitura e escrita em uma primeira língua transfiram-se para a segunda, mas não há

evidências que as habilidades interpessoais em uma primeira língua sejam

transferidas para habilidades de leitura e escrita numa segunda língua. Em função

de que o que se aprende na escola não é a forma impressa da LS, não há

satisfação das condições de interdependência lingüística. A argumentação

desenvolvida por Nelson (1998) e Padden & Ramsey, (1998) é de que as

correlações que existem entre LS e leitura não são naturais, mas derivadas do

conhecimento de associações cultivadas entre a escrita e a LS.

Entre essas associações encontradas em professoras de alunos hábeis em

leitura estão as estratégias de “sanduíche” e “encadeamento”. O “sanduíche”

consiste em “soletrar” uma palavra com alfabeto manual entre dois sinais. Já o

encadeamento consiste em “traduzir” uma palavra nos diferentes sistemas: sinal,

alfabeto manual e escrita. Esta é uma atividade de letramento bastante comum às

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crianças surdas expostas à língua de sinais. Elas brincam de “soletrar” palavras

acompanhadas de seu sinal, e são encorajadas nessas brincadeiras pelos adultos

surdos.

Nelson (1998) argumenta que, além do desenvolvimento dessas

associações e estratégias de leitura adequadas, deve-se incrementar o ensino da

LS. Para ele, quanto maior o domínio da LS, maior será o número de conceitos

semânticos e dispositivos lingüísticos de que a criança disporá para a

aprendizagem do léxico e sintaxe da língua escrita. A fluência em LS incrementa a

compreensão dos materiais de ensino e exercícios propostos pela professora (se

ela é razoavelmente fluente em LS). Além disso, a língua em comum favorece o

estabelecimento de um ambiente encorajador de aprendizagem, pela

possibilidade de interações, feedbacks, aumento de auto-estima, identificação

cultural positiva, altas expectativas de professores e alunos com relação ao

resultado da aprendizagem, e maior nível de atenção e motivação.

Musselman (2000) segue na mesma linha de raciocínio, argumentando que,

embora as características específicas da LS não possam ser transferidas para a

língua escrita ela promove estratégias semânticas e sintáticas, aumenta o

conhecimento de mundo, possibilita o desenvolvimento de habilidades

metalingüísticas e metacognitivas e promove uma comunicação compreensiva e

eficiente. A autora salienta ainda que habilidades em LS estão cientificamente

relacionas à compreensão de leitura, e questiona a pouca utilização do contexto e

conhecimento do mundo (acessados pela LS) por leitores surdos ao retirar

significado do texto. Esta pouca utilização é atribuída ao fracasso de professores

em encorajar seu uso, uma vez que é dada muita atenção à decodificação do

texto escrito.

Outra situação que envolve a relação entre LS e leitura, é a de que alguns

leitores surdos acessam uma estratégia de recodificação baseada em sinais. Esta

recodificação pode ajudar na representação e reforçar a informação semântica

(Oakhill & Cain, 2000). Esses autores ainda salientam que a compreensão não é

desenvolvida automaticamente uma vez que a decodificação de palavra seja

eficiente, mas depende de diferentes habilidades que necessitam ser ensinadas.

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Habilidade de realizar inferências e produzir histórias coerentes podem estar

implicadas no desenvolvimento da compreensão textual para os surdos que são

fluentes em LS. Torna-se possível, então, apresentar textos escritos via LS com o

objetivo de ensinar estratégias tais como a de realizar inferências, monitorar a

compreensão, e planejar e estruturar histórias. Essas estratégias podem ajudar o

leitor a desenvolver habilidades necessárias para construir representações

coerentes integradas dos textos em LS, habilidades que podem ser transferidas

para entender textos escritos.

Além dessas questões, Wilbur (2000) argumenta que a LS desenvolve

cognição, socialização, e um conhecimento básico apropriado para a idade. Para

esse autor, o uso da LS em conversas modelaria importantes características da

linha do discurso de LS e discursos de maneira geral. Crianças que aprendem LS

como a primeira língua estariam preparadas com uma completa fluência

conversacional antes de começar a tarefa de aprender outro idioma fluentemente.

A fluência conversacional completa inclui a responsabilidade de assegurar que o

destinatário possa seguir o tópico da conversa e permitir perceber quem está

fazendo o que e para quem. Além disso, o autor salienta que o conhecimento

precoce da LS permitiria aos estudantes surdos o acesso a sua história e cultura.

Paul (1998) argumenta que os problemas que os surdos enfrentam tanto na

aquisição da leitura como da escrita estão relacionados à dificuldade em adquirir o

que ele chama de “verdadeiro motor da comunicação verbal”, ou seja, a forma

social (falada ou sinalizada) da língua a qual eles estão tentando ler ou se

expressar via escrita. O autor chama a atenção de que os alunos muitas vezes

entram na escola sem conhecer nenhuma língua convencional. Esta situação é

patente nas escolas brasileiras onde os surdos estão integrados e recebem

educação em Português antes de serem expostos à Língua de Sinais.

Na busca para sanar esses problemas, o que autores como Erting & Pfau

(1999), Kuntze (1998), Prinz & Strong (1998), dentre outros salientam e defendem,

é a necessidade urgente de expor precocemente a criança surda à LS e da oferta

de programas escolares bilíngües nas escolas de surdos. Afinal, ler e escrever

são práticas culturais que pressupõem práticas interculturais, pois apesar de que

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dependam de processos individuais, são adquiridas e exercitadas em contextos

coletivos, socialmente organizados (Fernandes, 1999).

Sánchez (1999) argumenta que devido às condições dos meios familiar e

social (incluindo a escola), não há condições de acesso à língua (LS), criando

condições que dificultam o desenvolvimento normal da linguagem e,

conseqüentemente, da inteligência; além da não imersão do aprendiz na prática

social da língua escrita, ou seja, em atividades de letramento. Para possibilitar,

portanto, o que Paul (1998) chama de pensamento alfabetizado (habilidade de

pensar de maneira criativa, reflexiva e crítica), para os surdos, a escola deve

oportunizar o acesso à leitura e à escrita em qualquer língua que seja acessível ao

estudante, neste caso, a língua de sinais.

O que é premente no caso dos surdos, é oferecer práticas de letramento o

mais cedo possível, seja na família ou na escola. Na escola, as atividades de

educação infantil e, mais especificamente, de pré-escola, podem e devem

possibilitar atividades de letramento, desde que se leve em consideração que a

alfabetização será em segunda língua (L2). Isto quer dizer que, a primeira língua

(L1) da criança surda será a língua de sinais. Será com esta língua que a criança

será inserida nas práticas discursivas, será a língua em que serão apresentados

diferentes gêneros textuais, será nesta língua que a criança produzirá e irá ler

seus primeiros textos. A língua escrita será apresentada como sua segunda língua

(L2) e não se sobreporá em importância a Língua de Sinais.

O professor, de acordo com Martins (2003), deve tomar alguns cuidados

para envolver o aluno no processo de aquisição da escrita, tais como:

• Criar um ambiente letrado, em que a leitura e a escrita estejam presentes

mesmo antes que a criança saiba ler e escrever convencionalmente.

• Considerar o conhecimento prévio das crianças, pois, embora pequenas,

elas levam para a escola o conhecimento que advém da vida.

• Participar com as crianças de práticas de letramento, ou seja, ler e escrever

com função social.

• Utilizar textos significativos, pois é mais interessante interagir com a escrita

que possui um sentido, constitui um desafio e dá prazer.

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• Utilizar textos reais, que circulam na sociedade.

• Utilizar a leitura e a escrita como forma de interação, por exemplo, para

informar,convencer, solicitar ou emocionar.

Uma atividade de letramento que pode ser realizada com crianças surdas é a

leitura de imagens. Reily (2003) sugere que os educadores envolvidos com a

educação dos surdos devem refletir mais sobre o papel da imagem visual na

apropriação do conhecimento. Salienta a necessidade de utilizar-se a imagem

adequadamente como recurso cultural que permeia todos os campos de

conhecimento e que traz consigo uma estrutura capaz de instrumentalizar o

pensamento. A autora cita Hughes (1998) ao salientar que o letramento visual

possibilitaria diferentes funções, como, por exemplo, ler imagens do entorno; ler

imagens de livros ilustrados; usar imagens visuais como apoio para leitura de texto

simples; ler sinais, símbolos e figuras no ambiente escolar com o objetivo de

promover a alfabetização; criar imagens visuais significativas para registrar

compreensão de tarefas; usar figuras em textos de não ficção como apoio da

aprendizagem de conteúdo escolar; usar figuras em textos de que são como apoio

para aprendizagem de conteúdo escolar; e, finalmente, ler a página, ou seja,

diferentes maneiras de apresentar o texto e as figuras.

Hughes (1998) citada por Reily (2003) comenta que o letramento visual é

ignorado nos currículos oficiais das escolas a imagem não pode ser compreendida

apenas como uma função meramente motivacional, colocada para criar interesse,

na criança, pelo livro, deve ser vista como parte integrante do processo de

significação de dedos e que a imagem auxiliar e o aluno a compreender o texto.

Os educadores tendem a subestimar as possibilidades das imagens na escola, por

se preocupar demais com letramento no sentido restrito, limitado ao texto escrito.

No entanto, a criança não lê apenas a palavra num livro, mas lê, o atribui sentido

também considerando as ilustrações, a forma atuação gráfica, bem como contexto

social em que a leitura se dar. A figura visual traz consigo o potencial de ser

aproveitada como recurso para transmitir conhecimento e desenvolver o

raciocínio. Para alunos surdos, o caminho da aprendizagem necessariamente será

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visual, daí a importância de os educadores compreenderem mais sobre o poder

constitutivo da imagem.

À leitura de imagens pode-se vincular a leitura de histórias. Esta atividade tão

importante de letramento é, de certa forma, muito negligenciada para as crianças

surdas. Mesmo crianças ouvintes que não possuem um ambiente familiar de

letramento têm acesso a histórias pelos desenhos animados da televisão. As

crianças surdas necessitam, portanto, de um incremento dessa atividade. Em

pesquisa que está sendo realizada pelas autoras deste artigo, na Universidade de

Passo Fundo, uma das propostas é a de instrumentalizar as professoras surdas

de uma classe de pré-escola de surdos com diferentes mídias para o conto de

histórias infantis.

A necessidade da oferta de diferentes mídias dá-se em função de que a

professora surda, para contar histórias, depende das mãos, nesse sentido, é

extremamente trabalhoso narrar a história e segurar o livro ao mesmo tempo. Para

facilitar a apresentação das histórias, os livros infantis a serem apresentados

estão sendo adaptados, no momento, das seguintes maneiras: ampliação das

ilustrações, para colocação em cavalete (esta ampliação é feita artesanalmente,

com caneta esferográfica e lápis de cera); ampliação das ilustrações em fotocópia

colorida, para colocação em cavalete; fotocópia das ilustrações em lâminas para

uso em retroprojetor; transformação dos personagens em bonecos manipuláveis;

confecção de guarda-pó com vários bolsos, para que, em cada bolso, seja

guardado um personagem ou componente da história, a fim de que os mesmos

sejam apresentados pela professora, à medida que a história se desenvolve; e

cópia, da televisão para fita de vídeo-cassete, de desenhos animados que não

necessitam da linguagem oral para sua compreensão. À medida que as histórias

vão sendo apresentadas, estão sendo gravadas, por filmadora 8mm, a narrativa

da professora e os recontos dos alunos, para posterior análise da evolução

longitudinal de suas produções.

Tecendo algumas considerações:

A pré-escola tem a competência de assegurar espaços de apropriação de

novas linguagens à criança surda, que são inerentes a sua faixa etária, ou seja,

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possibilitar a reorganização das aprendizagens já construídas nas vivências

familiares e de sua comunidade em saberes e conhecimentos.

Trabalhar com atividades de letramento na pré-escola, impõe,

necessariamente, que a leitura e a escrita sejam relevantes à vida, que segundo

Vygotsky significa...”que as letras se tomem elementos da vida das crianças, da

mesma maneira como, por exemplo, a fala”. Rojo (1995) cita de Lemos (1988) ao

explicar que é o modo de participação da criança, ainda na oralidade (e neste

caso, em língua de sinais), nas práticas de leitura e escrita e, dependentes do

grau de letramento familiar e escolar em que a criança está inserida que lhe

permitirá construir uma relação com a escrita enquanto prática discursiva e

enquanto objeto de mediação com o mundo. Nesse sentido, utiliza-se aqui a

tradução do poema de Kate Chong, realizada por Soares (2002), para ilustrar a

importância do letramento ...”letramento é sobretudo, um mapa do coração do

homem, um mapa de quem você é, e de tudo que você pode ser.” Acredita-se,

portanto, que compete à educação infantil proporcionar um ambiente de

letramento, onde as crianças surdas possam conferir à língua escrita, a partir da

língua de sinais, seu caráter de objeto social.

Referências Bibliográficas

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2001. BANKS, J., GRAY, C. E FYFE, R. The written recall of printed stories by severely deaf children. British Journal of Educational Psychology, 60, 192- 206,1990. COELHO, B. Contar histórias:Uma arte sem Idade. São Paulo: Ática, 1986. COELHO, N.N. Literatura Infantil. São Paulo: Ática, 1993. FERNANDES, S. É possível ser surdo em português? Língua de sinais e escrita: em busca de uma aproximação. In: SKLIAR, C. (Org.), Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999.

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