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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO AS INTERPRETAÇÕES MARXISTAS DA CRISE ECONÔMICA ATUAL: UMA ANÁLISE COM BASE NA TEORIA DAS CRISES DE MARX FLÁVIO FERREIRA DE MIRANDA RIO DE JANEIRO NOVEMBRO 2011

12. MIRANDA, F, F. as Interpretações Marxistas Da Crise Atual - Uma Análise Com Base Nas Teorias Da Crise de Marx

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As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas. As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.As interpretações marxistas da crise atual - uma análise com base nas interpretações marxistas.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE ECONOMIA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    AS INTERPRETAES MARXISTAS DA CRISE ECONMICA ATUAL:

    UMA ANLISE COM BASE NA TEORIA DAS CRISES DE MARX

    FLVIO FERREIRA DE MIRANDA

    RIO DE JANEIRO

    NOVEMBRO 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE ECONOMIA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    AS INTERPRETAES MARXISTAS DA CRISE ECONMICA ATUAL:

    UMA ANLISE COM BASE NA TEORIA DAS CRISES DE MARX

    FLVIO FERREIRA DE MIRANDA

    ORIENTADOR: PROF. DR. REINALDO GONALVES

    RIO DE JANEIRO

    NOVEMBRO 2011

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    FICHA CATALOGRFICA

    M672 Miranda, Flvio Ferreira de.

    As interpretaes marxistas da crise econmica atual : uma anlise com base

    na teoria das crises de Marx / Flvio Ferreira de Miranda. 2011. 157 f. : il. ; 31 cm.

    Orientador: Reinaldo Gonalves.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia, Programa de Ps-Graduao em Economia, 2011.

    Bibliografia: f. 153 - 157.

    1. Marxismo. 2. Crise econmica. 3. Acumulao de capital. I. Gonalves,

    Reinaldo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Economia.

    III. Ttulo.

    CDD 335.412

    F

    4. Vacinas contra dengue e HPV. I. Chamas, Claudia Ins. II.

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    Agradecimentos

    Ao Prof. Reinaldo Gonalves, orientador desta dissertao, sempre disposto a

    ajudar, paciente e com dicas valiosssimas que transcendem o escopo de um trabalho

    como este e mesmo a vida acadmica.

    Aos meus pais, Mrio e Mrcia, e ao meu irmo Rafael. Sem os quais no seria

    possvel mesmo pensar em seguir carreira acadmica, mostrando-se sempre dispostos a

    ajudar nos momentos mais difceis deste caminho que apenas se inicia.

    Aos professores da Faculdade de Economia da UFF que me apresentaram

    teoria social de Marx e marxistas, tanto em sala de aula, quanto em grupos de estudo:

    Marcelo Carcanholo, grande inspirador e contribuinte deste trabalho; Joo Leonardo

    Medeiros; Mario Duayer; Andr Guimares Augusto; Paulo Henrique Furtado; Lrida

    Povoleri; e Alice Helga Werner.

    Aos amigos Rmulo, Hugo, Bianca, Henrique, Maracajaro, Eduardo, Rodrigo,

    Wellington, Paula e Renata, companheiros nos grupos de estudo, parceiros nesta

    caminhada.

    Aos professores e funcionrios do Instituto de Economia da UFRJ e Professora

    Nazira Camely, da UFF, por ter se colocado a disposio para me ajudar em momentos

    de grande aflio.

    Ao Grupo T na Rua de teatro. Especialmente a Amir Haddad, grande

    responsvel por uma linguagem teatral realmente popular e revolucionria e a Miguel

    Campelo, mestre e fonte de inspirao para os primeirssimos passos nesta arte. No

    esquecendo, contudo, dos demais integrantes desse grupo (muitos para citar) que no

    apenas representou uma importantssima vlvula de escape nos momentos de tenso,

    como abriu as portas de um novo mundo de possibilidades artsticas e de militncia

    contra-hegemnica.

    Aos meus alunos na Faculdade de Economia da UFF.

    Aos meus grandes e verdadeiros amigos.

  • 5

    AS INTERPRETAES MARXISTAS DA CRISE ECONMICA ATUAL:

    UMA ANLISE COM BASE NA TEORIA DAS CRISES DE MARX

    RESUMO: A crise que assola a economia mundial desde 2007 deu margem s mais

    variadas interpretaoes a respeito de seu significado e de suas causas. Acredita-se,

    contudo, que a teoria social de Marx corresponde, at os dias de hoje, a mais poderosa

    ferramente terica em termos de capacidade explanatria dos fenmenos concretos.

    Nesse sentido, pretende-se, neste trabalho, analisar como tericos sociais inspirados em

    Marx avaliaram os acontecimentos recentes, em especial a forma histrica do processo

    de acumulao de capital iniciado na dcada de 70 que culminou na crise atual. Em

    especial, pretende-se analisar a forma como se utilizou a teoria de Marx, isto ,

    comprovar se estas leituras foram capazes de aproveitar seu fecundo ponto de partida

    terico em todo seu potencial explanatrio. Acredita-se que interpretar a crise atual a

    partir da lgica de acumulao de capital fictcio, caracterstica desta fase histrica de

    acumulao de capital, corresponda leitura marxista oferecida, dentre tantas, para a

    crise atual, como maior capacidade explanatria. Para comprovar sintetiza-se a noo de

    Marx sobre as crises cclicas do capitalismo, apresenta-se diferentes interpretaes

    marxistas, para, posteriomente, avaliar qual delas utiliza melhor as categorias da Crtica

    da Economia Poltica.

    Palavras-chave: Marx, lei do valor, crises cclicas, capital fictcio

  • 6

    MARXIST INTERPRETATIONS ON THE CURRENT ECONOMIC CRISIS:

    AN ANALISIS BASED OS MARXS THEORY OF CRISIS

    ABSTRACT:The economic crisis that began in 2007 gave rise to a variety fo

    interpretations on its significancy and causes.However, we believe that till our days

    Marxs social theory corresponds to the Best theoretical tool to understand concrete fenomenas.In this sense, we intend to anlise how social theorists inpired in Marx saw

    the current developments, more specifically, the historical formo f accumulation of

    capital that began in de 1970s and gave rise to this crisis.It is oura in to analise IF those theoristas were able to use marxian theory in its full explanatory potencial.We believe

    that, in this sense, interpreting this crisis trhow the dialectical logic of fictitious capital

    accumulation is the best way in terms of explanatory power. To prove it, we offer a

    sinthesis of Marxian theorya of crises, presente different marxist explanations for this

    crisis and, finally, check which of those interpretations fit best in Marxian theory.

    Key-words: Marx, law of value, cyclical crisis, fictitious capital

  • 7

    SUMRIO

    Introduo.............................................................................................................................9

    CAPTULO 1 As Crises Econmicas na Anlise de Marx ................................. .14

    1.1 Contedo .............................................................................................................................. 15

    1.1.1 Contedo em sua forma mais abstrata: a crise como possibilidade....... 21

    1.1.2 Capital como barreira para o capital: a crise como realidade.....................26

    1.1.2.1 Tendncia produo ilimitada de mercadorias......................................30

    1.1.2.2 Tendncia ao aumento da massa consumidora.........................................37

    1.1.2.3 Tendncia a restringir a realizao do valor produzido........................40

    1.2 Causa e forma de manifestao.......................................................................................48

    CAPTULO 2 Interpretaes Marxistas da Crise Atual ..................................... 52

    2.1 A Crise a partir da lei de tendncia queda da taxa de lucro .......................... 53

    2.1.1 A lei da queda da taxa de lucro como causa das crises em alguns autores marxistas................................................................................................................... ....................57

    2.1.2 A lei da queda da taxa de lucro e a crise atual....................................................62

    2.2 Problemas para realizao do valor produzido como causa da crise........... 66

    2.2.1 Os "estagnacionistas"....................................................................................................66

    2.2.1.1 A leitura "estagnacionista" da crise.................................................................76

    2.2.2 A interpretao subconsumista de Michel Husson..........................................79

    2.2.2.1 A crise nesta perspectiva subconsumista......................................................81

    2.3 A financeirizao do capitalismo e sua crise .......................................................... 84

    2.3.1 Sobre-acumulao de capital e financeirizao.................................................85

    2.3.1.2 A crise do capitalismo financeirizado..............................................................92

    2.3.2 A expropriao financeira e a financeirizao...................................................96

    2.3.2.1 A crise da expropriao financeira................................................................101

    2.4. A crise atual a partir da dialtica do capital fictcio ......................................... 103

    2.4.1 A gnese dialtica do capital fictcio....................................................................104

    2.4.1.1 Do capital mercantil ao capital fictcio.........................................................105

    2.4.2 A crise do capital fictcio............................................................................................125

    CAPTULO 3 Concluso: A teoria das crises de Marx e as leituras marxistas da crise atual ................................................................................................................... 134

    3.1 A lei do valor de Marx: base para a anlise marxista das crises ................... 137

    3.2 Formas de manifestao, contedo e causa das crises .................................... 143

    3.3 Produo e apropriao de mais-valia: o cerne da questo ........................... 145

  • 8

    3.4 A lgica de acumulao do capital fictcio: especificidade da crise atual....148

    3.5 Sntese...........................................................................................................150

    s

    REFERENCIA BIBLIOGRFICAS .................................................................154

  • 9

    Introduo

    A crise que se iniciou no mercado imobilirio dos EUA em 2007, alastrou-se

    pelo mercado financeiro mundial, devido ao fato de os ativos que puxaram a grande

    expanso financeira da ltima dcada (bem como das duas dcadas precedentes)

    flurem, em um sistema financeiro internacional cada vez mais livre a esse tipo de

    restrio, por todo o globo, encontrando morada aonde quer que haja capital procura

    de aplicao1. Em pouco tempo o setor produtivo foi contaminado, pela secagem dos

    canais de crdito, reduo do consumo, desincentivo aos novos investimentos e mesmo

    pelo envolvimento de grandes firmas industriais em complexos esquemas financeiros.

    Enquanto, j em 2008, a variao percentual no PIB das economias do G7 indicava uma

    leve retrao, os resultados do ano de 2009 patenteavam o rpido contgio global da

    crise, atingindo mesmo as economias emergentes que vinham apresentando forte

    crescimento nos anos anteriores, como Brasil (-0,64%), Rssia (-7,8%) e frica do Sul

    (-1,68%).

    A melhora nos indicadores econmicos ao longo do ano de 2010 fez com que

    alguns analistas econmicos mais apressados decretassem o fim da crise e o incio de

    uma nova fase de bonana. No entanto, a crise da dvida dos pases europeus emergiu,

    mostrando a todos que os efeitos dessa crise econmica estavam longe de seu fim. Fica

    cada vez mais claro que se trata no apenas de mais uma das crises financeiras que

    irromperam nas trs ltimas dcadas e que puderam ser debeladas, aparentemente, por

    meio da ao dos Bancos Centrais como provedores de liquidez ao sistema. Na verdade,

    o que todos podem ver agora que essas crises foram resolvidas na medida em que

    puderam ser adiadas e que, os acontecimentos recentes denotam o esgotamento de um

    padro (ou regime, ou ciclo) de acumulao de capital, isto , de uma fase cclica de

    expanso da acumulao de capital. Cada um dessas fases possui caractersticas

    prprias, de acordo com as contingncias histricas, moldadas pelos problemas

    engendrados pela fase expansiva anterior e manifestados em sua crise, momento em que

    so criadas as condies para a retomada do processo de acumulao de capital, isto ,

    para uma nova fase expansiva. Nesse sentido, pode-se dizer, com se pretende deixar

    claro ao longo deste trabalho, que as sucessivas crises financeiras, cada vez mais

    1 Para uma especificao detalhada da natureza desses ativos ver a seo 2.4 deste trabalho.

  • 10

    freqentes a partir da dcada de 90, corresponderam a manifestaes preliminares do

    esgotamento desta fase expansiva e que a soluo usual, o resgate do sistema financeiro

    pelas autoridades monetrias, no poderiam ter feito mais do que adi-las ao mesmo

    tempo em que permitiam o aprofundamento das contradies subjacentes a essa fase

    especfica, na media em que permitiam a reproduo da lgica de acumulao de capital

    fictcio. Os remdios usuais mostram-se incuos e, apesar disso, no se consegue propor

    nada de novo que possa salvar o sistema financeiro.

    Diante desse quadro pululam perguntas, que dizem muito mais do que as

    respostas usuais sobre acontecimentos desse tipo. Apesar da ineficcia desse tipo de

    ao, porque o resgate financeiro aparece como uma das principais alternativas

    propostas pelos governos? Qual a funo social dos planos de austeridade impostos aos

    pases que necessitam de socorro? claro que a resposta para tais perguntas deve partir

    de uma correta caracterizao dessa crise, e mais ainda, de uma anlise cuidadosa do

    sistema capitalista, em suas leis subjacentes de movimento. Acredita-se que uma

    ferramenta poderosa, em termos de capacidade que a ferramenta terica mais poderosa,

    em termos de capacidade explanatria, para se entender a realidade social do modo de

    produo capitalista e mesmo o caminho metodolgico mais fecundo para a teoria

    social, em geral, encontram-se na teoria de Marx. A teoria marxiana representa a nica

    formulao terica sobre os determinantes do desenvolvimento (dialtico) do modo de

    produo capitalista fundada em bases objetivas, como se pode perceber na teoria do

    valor de Marx, fundada no trabalho humano em geral, na forma histrico-social da

    necessidade eterna e imutvel que tem o ser humano de efetivar seu intercmbio com a

    natureza. Como Marx afirma na famosa passagem da Crtica da filosofia do direito de

    Hegel (2005): Ser radical tomar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz o

    prprio homem. Apesar da ao humana sempre pressupor a relao (estrutura) social,

    esta no pode ser concebida sem os seres humanos. A descoberta do trabalho humano

    em geral como fundamento do valor representa no s a resoluo do problema do valor

    presente em economistas polticos clssicos como Smith e Ricardo, como tambm uma

    crtica sociabilidade capitalista, sociedade na qual os indivduos estabelecem relao

    atravs da troca dos produtos de seus trabalhos, ou seja, atravs do trabalho abstrato

    (criador de valor). Encontra-se a a nica teoria sobre a origem do lucro, da riqueza na

    forma capitalista e, conseqentemente, dos determinantes da acumulao de capital

    fundamentada objetivamente. Qualquer teoria que busque a origem do valor fora do ser

  • 11

    humano cai no fetiche de considerar que as relaes sociais surgem, reproduzem-se,

    independentemente dos seres humanos.

    Sob esta base Marx construiu sua anlise da dinmica capitalista. No entanto,

    como se sabe, sua obra ensejou interpretaes das mais diversas e, muitas vezes,

    conflitantes entre si. Como no poderia deixar de ser, em virtude da longa histria de

    embates tericos no seio do marxismo, diversas leituras sobre a crise atual invocam

    diferentes interpretaes da teoria de Marx. A pergunta bvia que emerge a seguinte:

    Qual(is) dessa(s) leituras aproveita(m) a herana terica de Marx da melhor maneira

    possvel, aproveitando o potencial explanatrio da mesma? Ou mesmo, quais delas

    podem ser consideradas de fato como continuaes da obra terica de Marx, aplicao

    da mesma aos desenvolvimentos contemporneos?

    O presente trabalho procura responder a estas questes tendo por base uma

    interpretao de Marx que se julga a mais correta, de modo a apresentar maior

    capacidade explanatria frente ao objeto em questo: a economia capitalista. A leitura

    em questo parte de uma caracterizao da teoria das crises cclicas do capitalismo em

    Marx. Apesar de Marx no ter preparado um captulo sequer de O Capital para tratar

    especificamente do tema, tendo em vista que o mesmo diz respeito ao processo cclico,

    contraditrio, de acumulao de capital, pode-se dizer que todo o livro trata do tema.

    exatamente esta a tarefa assumida no primeiro captulo deste trabalho: sintetizar o

    argumento de Marx de forma que se possa oferecer uma teoria sobre as crises

    econmicas que desmistifique seu contedo, para alm das muitas formas de

    manifestao possveis para o fenmeno, e, a partir da, possa explicitar sua causa geral.

    A interpretao particular para a crise atual defendida neste trabalho, como se

    pretende demonstrar, procura estar em prefeito acordo com a teoria marxiana das crises

    cclicas do capitalismo. Essa leitura baseia-se na lgica-dialtica de acumulao de

    capital fictcio. O caminho escolhido para realizar a tarefa assumida neste trabalho foi o

    de apresentar as propostas marxistas mais proeminentes de interpretao do capitalismo

    contemporneo e, conseqentemente, da crise desta fase especfica de acumulao de

    capital. O segundo captulo desta dissertao tem este objetivo, sendo dividido em

    quatro sees, cada qual apresentando teoricamente perspectivas marxistas para o

    capitalismo contemporneo e, posteriormente, a leitura dos fatos que culminaram na

    crise atual a partir dessa base terica. Sendo assim, o captulo dividido em quatro

    sees, na ordem que segue: a primeira sobre propostas que tm por base a lei de

  • 12

    tendncia queda da taxa de lucro de Marx; em seguida, uma seo para autores que

    entendem que o fato contraditrio de o capital criar, no curso de seu processo de

    acumulao, problemas para a realizao da mais-valia produzida seja a causa das crises

    econmicas em geral, e desta em particular; a terceira seo apresenta duas, dentre

    muitas, interpretaes que entendem o que se convencionou chamar de processo de

    financeirizao do capitalismo, como principal caracterstica do regime de acumulao

    de capital contemporneo; e, finalmente, a ltima seo do segundo captulo apresenta a

    perspectiva assumida neste trabalho, a que entende o capitalismo contemporneo, este

    ciclo de acumulao de capital a partir da lgica do capital fictcio, como a resposta do

    sistema aos problemas para a acumulao de capital na produo, que tornaram-se

    evidentes a partir da crise da dcada de 1970.

    Para mostrar a superioridade desta viso com relao s demais, escolheu-se

    apontar o que deve possuir uma teoria sobre as crises econmicas e qual aspecto do

    capitalismo contemporneo deve ser ressaltado, de forma a se aproveitar o potencial

    explanatrio da teoria social de Marx. Ao longo desta exposio, no terceiro captulo

    deste trabalho, ser demonstrado como a leitura aqui defendida apresenta-se como a

    melhor opo dentre as demais. Acredita-se que a leitura marxista da crise atual deve

    basear-se, rigorosamente, na lei do valor de Marx, de forma que seja capaz de

    vislumbrar a contradio entre produo e apropriao da mais-valia como o motor do

    comportamento cclico da acumulao de capital, o que possvel aps se ter clara a

    separao analtica entre as formas de manifestao e o contedo do fenmeno. Por fim,

    acredita-se que a correta acepo da categoria capital fictcio encaixa-se perfeitamente

    nesta leitura, representando um aprofundamento da contradio entre o domnio social

    da produo de mais-valia e a lgica privada de sua acumulao, alm de corresponder

    forma de acumulao de capital que emergiu como grande vetor para a acumulao

    em todas as suas formas e absorvedor do capital sem possibilidade de aplicao rentvel

    na produo de mais-valia.

    Reconhece-se que todas as leituras que aqui so apresentadas oferecem

    importantes contribuies para que se possa entender essa fase atual do capitalismo,

    bem como para o posicionamento da classe trabalhadora e dos bilhes de excludos do

    processo de acumulao de riqueza no mundo. No entanto, a evoluo da teoria que se

    coloca como crtica e, conseqentemente, da prtica que emerge desta apreenso da

    realidade social, pressupe este tipo de debate. O que se quer mostrar que a leitura de

  • 13

    Marx aqui oferecida e a interpretao da crise a partir da dialtica do capital fictcio

    representam a ferramenta terica com melhor capacidade explanatria, dentre as demais

    que sero expostas ao longo do trabalho, para se entender os acontecimentos recentes na

    economia mundial.

  • 14

    Captulo 1 As Crises Econmicas na Anlise de Marx

    Neste captulo tem-se a inteno de destacar alguns elementos que se julga de

    fundamental importncia para a concepo das crises econmicas na obra de Marx.

    Apesar da carncia de um tratamento acabado e sistemtico do assunto pelo autor em

    questo, sendo as crises o momento em que as contradies do modo de produo

    capitalista se explicitam, pode-se argumentar que o tema esteja presente desde o incio

    de O Capital, uma vez que o desvendar dos domnios causais subjacentes realidade

    histrico-especfica do capitalismo o mote da obra, desenvolvendo-se dialeticamente as

    categorias que explicam esta formao social do mais simples e abstrato ao mais

    complexo e concreto. Sendo assim, tem-se o tema das crises de forma latente desde o

    incio, ou seja, desde a contradio entre valor e valor-de-uso na anlise da mercadoria,

    e de forma mais desenvolvida a partir da parte segunda do primeiro livro de O Capital,

    momento no qual passa explicitamente a considerar o processo a que o capital diz

    respeito.

    Ademais, pode-se encontrar na obra de Marx alguns trechos em que fala

    abertamente do tema, entre outros: o captulo XV de O Capital; o captulo XVII das

    Teorias da Mais-Valia; e um trecho sobre o processo de circulao do capital no

    captulo sobre o capital dos Grndrisse. Este primeiro captulo tem por base,

    fundamentalmente, esses trs trechos da produo bibliogrfica de Marx, buscando-se, a

    partir das indicaes de dois interpretes Ribeiro (2008) e Carcanholo (1996) ,

    elementos dispersos nas obras de Marx que sirvam para demonstrar a necessidade das

    crises econmicas a partir do desenvolvimento contraditrio do modo de produo

    capitalista.

    Nas crises os aspectos contraditrios dos dois plos de uma mesma relao se

    manifestam violentamente e essa a nica forma possvel de restabelecer-se a unidade

    necessria entre eles. As crises, portanto, so solues bruscas que restabelecem

    transitoriamente a normalidade, ou seja, no so terminais consideradas em si mesmas

    , no se deve esperar o fim do capitalismo como mera conseqncia de uma crise

    econmica, que pelo contrrio o restaura, recolocando-o em seu curso normal

    (contraditrio) de desenvolvimento. Isto significa dizer que as crises criam as condies

    para um novo processo de acumulao de capital, o que denota seu carter cclico.

  • 15

    Para comear, as crises aparecem como resultado do desenvolvimento das

    contradies imanentes ao modo de produo capitalista. O carter contraditrio destas

    relaes sociais fica patente no momento que eclodem as crises. Esse aspecto, por si s,

    j indica a importncia que o estudo deste fenmeno representa para entender-se a

    dinmica prpria do capitalismo. Nas palavras do filsofo Roy Bhaskar:

    It might be conjectured that in periods of transition or crisis generative

    structures previously opaque, become more visible to agents. And that this,

    though it never yields quite the epistemic possibilities of a closure (even

    when agents are self-consciously seeking to transform the social conditions

    of their existence), does provide a partial analogue for the role played by

    experimentation in natural science. (BHASKAR, 1998, p.48)

    Seguem-se as indicaes de Ribeiro (2008) e Carcanholo (1996), no sentido de

    que para o estudo das causas de um fenmeno, faz-se necessrio entender seu contedo.

    Uma teoria marxista da crise deve, portanto, entender o contedo do fenmeno,

    explicar a sua causa, e explicitar as formas pelas quais ele se apresenta na economia.

    (CARCANHOLO, 1996, p. 173). Assim prossegue este captulo: a primeira seo tem

    por objetivo entender o contedo das crises econmicas, identificando-o desde as

    categorias mais gerais da anlise marxiana do modo de produo capitalista, onde as

    crises aparecem apenas como possibilidade, para em seguida demonstrar como as leis

    gerais desse modo de produo transformam o que antes era mera possibilidade em

    nvel terico em realidade, isto , em resultado necessrio do funcionamento dessas leis;

    em seguida pretende-se explicitar, na forma de concluso seo anterior, a causa

    essencial do desenvolvimento contraditrio que culmina nas crises e, de maneira breve,

    citar algumas possveis formas de manifestao, uma vez que nos captulos seguintes

    trabalhar-se- diretamente com crise econmica em sua mais recente forma de

    manifestao.

    1.1 - Contedo

    Antes de desenvolver apontamentos sobre as crises, Marx j concluiu o

    enunciado da lei do valor em O Capital, isto , identificou o valor como relao social

  • 16

    de igualao quantitativa entre os muitos trabalhos teis possveis de qualidades

    diversas, sua forma de manifestao na troca por um equivalente geral, o valor de troca,

    e sua forma de manifestao na troca tendo por equivalente em dinheiro, o preo,

    analisando cuidadosamente o processo de produo e circulao do capital sem

    considerar divergncia quantitativa entre preo e valor, at tratar do processo global de

    acumulao capitalista (terceiro livro de O Capital), com o exame da interao

    concorrencial dos capitais individuais para investigar a formao de uma taxa mdia de

    lucro, ou seja, seguindo o caminho em direo forma mais concreta de manifestao

    da mais-valia, o lucro. Neste ponto surge a categoria preo de produo, forma

    transmutada do valor que indica que as mercadorias no se vendem necessariamente por

    seus valores (individualmente consideradas, pois so vendidas por seus valores tendo-se

    em vista a totalidade, ou seja, o somatrio dos preos de produo igual ao somatrio

    dos valores das mercadorias), indicando a formao de uma taxa mdia de lucro, como

    poro da mais-valia global que cada capital, individualmente considerado, se apropria.

    O preo de produo, somatrio do preo de custo com o lucro mdio, indica que um

    capital com composio orgnica superior composio mdia do capital social2, ou

    seja, com maior razo entre capital constante e capital varivel, utilizando

    proporcionalmente menos fora de trabalho, portanto, pode vender sua mercadoria

    acima do valor da mesma, apropriando-se de maior massa de mais-valia do que ele

    mesmo produziu, enquanto um capital de composio orgnica inferior apropria-se de

    mais-valia em quantidade menor do que por ele produzida. Assim, a mais-valia de que

    se apropriam os capitalistas no necessariamente a que gerada no processo de

    produo particular que cada um comanda, mas a que lhe cabe como parte alquota do

    capital global numa repartio uniforme da mais-valia produzida. Essa uma tendncia

    que pode ser observada a este nvel de abstrao, tendo-se em vista a possibilidade de

    que os capitais migrem de um ramo para outro em busca das taxas de lucro mais altas

    possveis.

    Aqui, do ponto de vista do lucro, os capitalistas so vistos como simples

    acionistas de uma sociedade annima em que os dividendos se repartem

    segundo percentagem uniforme, s se distinguindo os dividendos

    2 O termo refere-se aqui totalidade do capital existente na sociedade, isto , ao somatrio dos muitos

    capitais individuais, em nada se assemelhando noo burguesa de capital social to em voga ultimamente e que encerra um oximoro uma vez que capital supe a apropriao privada da mais-valia,

    enquanto a expresso ps-moderna diz respeito a um bem comum que corresponde a uma vantagem em

    termos de rendimento para os indivduos que fazem parte de um determinado grupo social.

  • 17

    correspondentes a cada capitalista pela magnitude do capital que cada um

    colocou no empreendimento comum, pela participao percentual que tem na

    empresa, pelo nmero de aes que possui. Assim, regula-se inteiramente

    pelo dispndio feito dentro do respectivo ramo o preo de custo, isto , a

    parte do preo das mercadorias a qual substitui as fraes de valor do capital

    consumida na produo e, por isso, necessariamente serve para compr-las de

    volta. Mas, diversamente, o outro componente do preo das mercadorias, o

    lucro acrescentado ao preo de custo, no se regula pela quantidade de lucro

    que determinado capital produz em determinado ramo em dado tempo, e sim

    pela quantidade de lucro que corresponde em mdia, em dado perodo, a cada

    capital aplicado como parte alquota do capital global da sociedade

    empregado em toda a produo. (MARX, 2006, V. 4, p. 211-212)

    Ento, tendo-se em vista todo o capital social, quanto menor a composio

    orgnica, maior a quantidade de mais-valia produzida e, portanto, maior a massa de

    mais-valia que caber a cada parte alquota do capital total. No entanto, do ponto de

    vista individual, aumentar a composio orgnica significa reduzir o preo de custo,

    uma vez que todo o capital varivel circulante, enquanto grande parte do capital

    constante transfere valor aos poucos, ao longo de muitos processos produtivos,

    mercadoria. Desta forma, para o capitalista individual, poupar trabalho significa poder

    apropriar-se de mais-valia extraordinria, isto , apropriar-se de mais valor do que foi

    produzido, o que se expressa para ele como mera reduo de custos frente taxa de

    lucro a que faz jus enquanto parcela do capital total. A origem do lucro assim

    mistificada, uma vez que determinado por fatores externos a cada processo de

    produo individualmente considerado. Ao capitalista parece que seu lucro no provm

    do trabalho por ele mesmo empregado, embora a taxa mdia de lucro dependa da

    explorao global do trabalho. Trabalho vivo no parece, portanto, ser fonte de lucro,

    pelo contrrio, a economia de trabalho fonte direta de aumento do lucro para um

    capitalista individual.

    Para concluir a lei do valor e partir para a anlise completa de suas

    conseqncias tendo-se em vista o processo global de acumulao capitalista, Marx

    passa a considerar as influncias mais rasteiras, isto , mais superficiais, sobre os preos

    de mercado, a interao entre oferta e demanda determinando os desvios com relao ao

    valor de mercado (tempo de trabalho socialmente necessrio), ou ao preo de produo.

  • 18

    Se a demanda for maior que a oferta os preos de mercado so regulados pelas

    mercadorias produzidas nas piores condies; se a oferta for maior que a demanda os

    preos de mercado regulam-se pelas mercadorias produzidas na melhores condies.

    Assim, preos de mercado flutuam em torno do valor de mercado (ou dos preos de

    produo, considerando-se o nvel de abstrao da tendncia igualao da taxa mdia

    de lucro3) de acordo com as variaes entre oferta e demanda. Portanto, nada se pode

    explicar com a relao entre a oferta e a procura sem antes conhecer a base sobre a qual

    opera essa relao.

    Qualquer que seja o modo como, de incio, os preos das diferentes

    mercadorias reciprocamente se fixem ou regulem, a lei do valor governa o

    movimento deles. Quando diminui o tempo de trabalho exigido para produzi-

    las, caem os preos, quando aumenta, aumentam os preos, desde que no se

    alterem as demais condies. (Ibid., p. 233)

    Chega-se a lei da tendncia queda da taxa de lucro como conseqncia

    necessria do progresso da produtividade social do trabalho no modo de produo

    capitalista. Como se disse, a possibilidade de apropriar-se de maior massa de mais-valia

    e de, desta forma, situar-se em uma posio vantajosa com relao aos demais capitais

    concorrentes empurra cada capital, individualmente, ao aumento da produtividade, isto

    , adoo de processos produtivos que utilizem proporcionalmente menos fora de

    trabalho e mais meios de produo4, em especial capitais fixos. Em outras palavras, h

    uma tendncia ao aumento da composio orgnica dos capitais individualmente

    considerados (aumento relativo do capital constante frente ao varivel) e, como

    resultado, do capital social, se essa alterao acontece, mais ou menos, em todos os

    ramos decisivos. Ento, esse aumento progressivo do capital constante em relao ao

    varivel deve, necessariamente, ter por conseqncia queda gradual na taxa geral de

    lucro, desde que no varie a taxa de mais-valia ou o grau de explorao do trabalho pelo

    capital. (Ibid., p. 282) Isto ocorre porque cada unidade do produto passa a conter

    3 O que dissemos do valor de mercado estende-se ao preo de produo quando o substitui. O preo de

    produo regulado em cada ramo, e tambm segundo as condies particulares. E ele o centro em

    torno do qual giram os preos quotidianos de mercado, que nele tendem a nivelar-se dentro de

    determinados perodos [...]. (MARX, 2006, V.4, p. 235-236) 4 Graas ao progresso da produtividade do trabalho social, quantidade sempre crescente de meios de

    produo pode ser mobilizada com um dispndio progressivamente menor de fora humana. Este

    enunciado uma lei na sociedade capitalista, onde o instrumental de trabalho emprega o trabalhador, e

    no este o instrumental. (MARX, 2006, V. 2, p. 748)

  • 19

    progressivamente menos trabalho e, portanto, menor massa de mais-valia, de forma que

    como os preos so em ltima instncia governados pelo tempo de trabalho socialmente

    necessrio, a lei de tendncia queda da taxa de lucro se expressa como conseqncia

    do progresso da produtividade do trabalho social e pela afirmao da lei do valor, como

    determinante ltimo dos preos das mercadorias.

    A identificao dessa lei como tendncia do processo de acumulao de capital

    no exclui que a massa de mais-valia, e conseqentemente de lucro, se elevem, pelo

    contrrio, condio de existncia deste modo de produo que a massa de lucro

    aumente, uma vez que ele ao mesmo tempo processo de acumulao5. Alm disso,

    trata-se de uma lei cuja manifestao objetiva pode ser modificada por circunstncias

    diversas. Os mesmos motivos que levam tendncia queda geram foras que atuam

    em direes opostas. O processo global de acumulao de capital gera, como tendncia,

    o aumento do grau de explorao da fora de trabalho, reduo dos salrios, queda no

    valor dos elementos do capital constante, entre outros fatores contrrios tendncia

    queda da taxa de lucro6. A predominncia ora para uma direo, ora para a outra,

    obedece ao movimento cclico da economia capitalista. Diversos fatores atuam

    incessantemente sobre o objeto em questo, a taxa de lucro. As mesmas causas que

    concorrem para a tendncia queda, portanto, moderam a realizao dessa tendncia.

    Assim, pode parecer arbitrria a escolha da queda da taxa de lucro para tendncia, j

    que outros fatores atuam em sentido contrrio, isto , como contra-tendncias. Ou seja,

    porque lei da queda tendncia e os fatores contrrios que levam ao aumento da taxa de

    lucro so contra-tendncias e no o oposto? Levando-se a cabo um raciocnio acerca dos

    limites dos fatores que atuam em direes contrrias, elimina-se a aparncia de

    arbitrariedade na escolha. O aumento na composio orgnica da capital , em abstrato,

    ilimitado, enquanto que os fatores que so listados por Marx como contrrios lei so

    todos limitados7.

    5 Ao progredir o processo de produo e de acumulao, cresce necessariamente tambm a massa de

    trabalho excedente de que o capital se apropria e pode se apropriar, e, por conseguinte, a massa absoluta

    do lucro obtido pelo capital da sociedade. Mas as mesmas leis da produo e da acumulao aumentam,

    alm da massa, o valor do capital constante em progresso crescente, de maneira mais rpida que o do

    capital varivel, que se converte em trabalho vivo. As mesmas leis geram, para o capital sociedade,

    crescimento absoluto da massa de lucro e taxa cadente de lucro. (MARX, 2006, V. 4, p. 290) 6 Esses e alguns outros fatores contrrios queda da taxa de lucro esto listados no Captulo XIV do

    Livro III de O Capital (Fatores contrrios lei). 7 Por exemplo, o aumento do grau de explorao da fora de trabalho no pode chegar ao ponto em que os

    capitalistas se apropriam de todo o tempo de trabalho, mesmo assim, imaginando-se extremos, o limite

    para o aumento da mais-valia absoluta a durao do dia, limite que nem o capital conseguiria transpor, e

  • 20

    A terceira parte do livro III ento encerrada com um captulo sobre algumas

    contradies internas lei da tendncia queda da taxa de lucro. neste captulo que o

    tema das crises capitalistas abordado como em nenhum outro de O Capital, contudo

    de maneira confusa, dando margens s mais diversas interpretaes sobre o fenmeno.

    curioso que, a partir deste captulo, podem-se retirar citaes que corroboram

    diferentes vises sobre as causas das crises no clssico debate marxista a esse respeito8,

    a despeito de que descontextualizar pode ser um subterfgio para que as palavras soem

    exatamente como se quer ouvi-las. No referido debate confuso entre causa e forma de

    manifestao regra na maior parte dos casos. A esse respeito falar-se- com mais

    cuidado, embora ainda com perigosa brevidade, mais a frente no texto.

    Acredita-se poder argumentar que a forma de exposio, no que tange escolha

    de primeiro enunciar por completo a lei do valor para depois analisar as crises, se deve

    ao fato de que ciclos econmicos, e, portanto, crises, envolvem variao nos preos das

    mercadorias de forma que estes podem divergir dos respectivos valores, no se podendo

    estudar o tema em um nvel de abstrao no qual no se considera ainda possibilidade

    da ocorrncia desse desvio. As mercadorias so vendidas por seus valores quando oferta

    e procura se equilibram, no sendo possvel, portanto, a partir da hiptese de que as

    mercadorias so trocadas por seus valores abordar um fenmeno que envolve a no

    realizao de parte do produto e, consequentemente, da mais-valia produzida. Alm

    disso, em O Capital fala-se em crises econmicas antes de tratar-se dos capitais cujo

    ciclo de valorizao no penetra na esfera da produo, as chamadas formas

    autonomizadas do capital, o que atesta o fato de que para Marx a explicitao das

    tendncias subjacentes produo capitalista suficiente para atestar e demonstrar o

    fato de que o processo de acumulao de capital, em sua totalidade, necessariamente

    implica no aparecimento de situaes em que parte do capital social, ento em

    quantidade excessiva com relao s possibilidades reais de valorizao, deve ser

    destrudo, isto , nas crises.

    Assim, para se falar de contedo e causa geral das crises econmicas no se faz

    necessrio tratar dos capitais que habitam unicamente a esfera da circulao. No

    entanto, na medida em que o desenvolvimento lgico-categorial se aproxima da

    a reduo do valor da fora de trabalho no pode chegar zero. Por outro lado, o aumento do capital

    constante sobre o varivel tende ao infinito. 8 Sobre o debate marxista acerca das causas das crises econmicas e para uma interpretao do mesmo

    ver Carcanholo (1996).

  • 21

    realidade concreta dos fenmenos faz-se necessrio o tratamento de todas as parties

    do capital total, o que se pretende fazer no captulo seguinte.

    Antes, comea-se a tratar do contedo do fenmeno da maneira mais geral

    possvel, desenvolvendo-se a contradio interna mercadoria, valor e valor de uso,

    ponto inicial da anlise da Marx do modo de produo capitalista. Da crise como

    possibilidade, parte-se para a mesma como realidade, atravs das tendncias gerais do

    capital em seu processo de acumulao, processo este que o constitui enquanto tal, uma

    vez que o capital no pode ser entendido seno como processo de valorizao.

    1.1.1 - Contedo em sua forma mais abstrata: a crise como possibilidade

    A concepo marxiana de valor como equalizao de trabalhos teis de

    qualidades diversas, uma relao quantitativa que denota a subordinao da produo

    social a uma lgica estranhada; como elemento descortinado de maneira mais geral

    como um dos plos constituintes da mercadoria, juntamente com o valor de uso,

    formando uma relao contraditria, compreende o primeiro passo para a compreenso

    das crises capitalistas.

    Ao nvel de abstrao, com o qual Marx inicia seu estudo em O Capital,

    produtores privados de mercadorias oferecem os produtos de seus trabalhos particulares

    em troca dos produtos de trabalhos alheios. Dessa forma, o produto de cada indivduo

    para si parte alquota da riqueza social, capaz de ser trocado por qualquer outra

    mercadoria em quantidades determinadas pelo tempo de trabalho socialmente

    necessrio contido na mercadoria, isto , pelo valor de troca da mercadoria,

    manifestao do valor na troca.

    As mercadorias, recordemos, s encarnam valor na medida em que so

    expresses de uma mesma substncia social, o trabalho humano; seu valor ,

    portanto, uma realidade apenas social, s podendo manifestar-se,

    evidentemente, na relao social em que uma mercadoria se troca por outra.

    (MARX, 2006, V. 1, p.69)

    Podem ser, portanto, igualadas, comparveis umas as outras, como encarnaes

    de trabalho humano em geral. Mas no haveriam de ser trocadas se no fossem

  • 22

    diferentes quanto s suas propriedades materiais particulares, podendo ser aplicadas,

    desta forma, satisfao de necessidades tambm particulares. A mercadoria, enfim,

    objeto de desejo para o consumo humano por ser um valor de uso.

    Com base neste argumento, pode-se agora assinalar que a dupla determinao da

    mercadoria (valor e valor de uso) forma uma contradio. A objetividade do valor da

    mercadoria (universal) se contrape objetividade do carter til da mercadoria

    (particular), contradio essa que fica patente antes de tudo no fato de o valor de uso

    ocultar, em lugar de revelar, o valor. Os dois plos so, portanto, determinaes

    complementares da mercadoria que, ao mesmo tempo, se repelem como formas de

    manifestao do seu contedo9.

    O carter contraditrio da mercadoria, isto , ser unidade de plos antitticos,

    valor e valor de uso, se patenteia, portanto, na circulao simples de mercadorias. Na

    troca, passando do produtor para o consumidor, a mercadoria assume a forma da

    categoria especfica conveniente ao ator da troca em cujo poder se encontra. , para

    cada um, valor de troca (cujo fundamento o valor) ou valor de uso. Na circulao, a

    realizao de uma categoria sempre a negao da outra.

    Enquanto mercadoria, cada uma de suas formas agua, sua maneira, a ambio

    de cada agente: um s v nela valor de uso; outro s v valor de troca, ou, descendo

    realidade dos fenmenos, dinheiro (em prespectiva). A mercadoria dinheiro apresenta-

    se, na relao entre os sujeitos envolvidos na troca, como medida para o trabalho

    humano em geral. O trabalho concreto para a produo da mercadoria que assume a

    funo social do dinheiro manifesta direta e concretamente o trabalho humano

    abstrato10

    . O dinheiro, um produto genuno da circulao, adquire nela um grau de

    autonomia diante das mercadorias que expressam em seu corpo o valor que possuem. A

    autonomia do dinheiro com relao s mercadorias no pode, entretanto, ser total, posto

    que, mesmo que s idealmente, o dinheiro deve sempre manter relao com os valores

    de uso aos quais serve de medida de valor valores de uso que com ele podem ser

    adquiridos, levando o dinheiro novamente para a circulao.

    9 Por exemplo: Admitamos que [...] se reduza metade [o tempo necessrio para a produo de um

    casaco] [...] dois casacos passam a ter o valor de um, embora [...] o casaco tenha a mesma utilidade de

    antes e o trabalho til nele contido continue sendo da mesma qualidade. (MARX, 2006, V. 1, p.67) 10

    Reside justamente na dificuldade de compreender essas propriedades do dinheiro as interpretaes

    equivocadas que o julgam ser, como dinheiro, valor e no forma fenomnica real da expresso relativa do

    valor de outras mercadorias.

  • 23

    Assim, a circulao simples de mercadorias, M-D-M, do ponto de vista de um

    nico indivduo divide-se em dois atos: venda, M-D; e compra, D-M11

    . Para ir de

    encontro satisfao de seus carecimentos, um indivduo deve oferecer o produto de

    seu trabalho no mercado, ao preo que j diz de imediato qual a parcela da riqueza

    social que este produtor faz jus. Valor, como tempo de trabalho socialmente necessrio

    para a produo de uma mercadoria, acha no preo forma de expresso quando a

    mercadoria trocada por dinheiro. O valor, interno mercadoria, se expressa

    externamente no preo12

    da mercadoria. Para se apropriar do valor produzido, tem,

    portanto, de vend-la. A manifestao externa s pode realizar-se externamente, isto ,

    com a alienao da mercadoria por dinheiro. Para lhe dar um preo, basta igual-la ao

    ouro13

    idealizado. A fim de prestar a seu dono o servio de equivalente geral, tem ela de

    ser substituda por ouro. (Ibid., p. 130)

    Em M-D confrontam-se o produtor da mercadoria e o dono do dinheiro. Para

    que este decida comprar, a mercadoria deve ser para ele um valor de uso,

    [...] e o trabalho nela despendido tem de possuir, portanto, forma socialmente

    til, ou de ser reconhecido como elemento da diviso social do trabalho. Mas

    a diviso social do trabalho um organismo de produo que se formou e

    continua a evolver, natural e espontaneamente, margem da conscincia dos

    produtores de mercadorias. (Ibid., p. 133)

    Dessa forma, novas necessidades podem ser criadas, bem como produtos que

    satisfaziam determinada necessidade podem ser substitudos por outros. Alm disso, o

    trabalho do produtor da mercadoria pode no ser confirmado socialmente pela venda se

    as necessidades que sua mercadoria deve satisfazer encontrarem-se saciadas. No sendo

    esse o caso, pode ainda haver alterao no tempo de trabalho socialmente necessrio

    para a produo da mercadoria (valor de mercado), algo sobre o qual o produtor no tem

    controle, fazendo com que o preo obtido no seja o inicialmente desejado.

    11

    Venda e compra coincidem imediatamente apenas na media em que representam uma transao entre

    dois indivduos polarmente opostos, o comprador e o vendedor. 12

    Nessa relao, pode o preo expressar tanto a magnitude do valor da mercadoria quanto essa magnitude deformada para mais ou para menos, de acordo com as circunstncias. A possibilidade de

    divergncia quantitativa entre preo e magnitude de valor, ou do afastamento do preo da magnitude de

    valor, , assim, inerente prpria forma preo. Isto no constitui um defeito dela, mas torna-a forma

    adequada a um modo de produo em que a regra s se pode impor atravs de mdia que se realiza,

    irresistivelmente, atravs da irregularidade aparente. (Ibid., p. 129) 13

    No incio do Captulo III do Livro I de O Capital, captulo sob o qual se referencia a maior parte desta

    subseo, Marx supe, para simplificar, que o ouro a mercadoria dinheiro. (Ibid., p. 121)

  • 24

    Efetuada a venda, contudo, o dinheiro deixa de ser apenas ideal, mera medida do

    valor, para tornar-se dinheiro real. O produtor pode, a partir da, partir para a segunda

    etapa da metamorfose da mercadoria, D-M. Agora o produtor da mercadoria

    inicialmente considerada que de posse do representante universal do valor, o dinheiro,

    pode troc-lo por um valor de uso.

    Tendo-se como referncia a troca direta de mercadorias, M-M, v-se que a troca

    de mercadorias por intermdio do dinheiro rompe com limites individuais e locais,

    dissociando os atos de compra e venda do ponto de vista de um indivduo. Mas s o faz,

    no entanto, desenvolvendo todo um ciclo de espontneas conexes sociais,

    incontrolveis pelos que intervm nas operaes. (Ibid., p. 139)

    A existncia da mercadoria apenas enquanto unidade de valor e valor de uso,

    essa contradio imanente, se expressa externamente na separao dos atos de compra e

    venda, de maneira que o valor, expresso em dinheiro, adquire independncia relativa

    com relao ao seu par dialtico. Nas palavras de Marx:

    A identidade de venda e compra tem por conseqncia tornar intil a

    mercadoria que, lanada na retorta alquimista da circulao, no vira

    dinheiro, no a vende seu possuidor nem a compra, por conseguinte, o

    possuidor do dinheiro. Essa identidade faz com que, terminado o processo de

    compra e venda, se constitua um ponto de repouso, um intervalo na vida da

    mercadoria, o qual pode durar mais ou menos tempo. Uma vez que a primeira

    fase da mercadoria , ao mesmo tempo, venda e compra, esse processo,

    embora parcial, autnomo. [...] Dizer que esses atos antitticos,

    independentes entre si, possuem uma unidade interior equivale a dizer que

    essa unidade interior transparece atravs de antteses externas. Se essa

    independncia exterior dos dois atos interiormente dependentes por serem

    complementares prossegue se afirmando alm de certo ponto, contra ela

    prevalece, brutalmente, a unidade, por meio de uma crise. A contradio

    imanente mercadoria, que se patenteia na oposio entre valor-de-uso e

    valor, no trabalho privado, que tem, ao mesmo tempo, de funcionar como

    trabalho social imediato, no trabalho concreto particular, que, ao mesmo

    tempo, s vale como trabalho abstrato geral, e que transparece na oposio

    entre a personificao das coisas e a representao das pessoas por coisas

    essa contradio imanente atinge formas completas de manifestar-se nas

  • 25

    fases opostas da metamorfose das mercadorias. Essas formas implicam a

    possibilidade, mas apenas a possibilidade das crises. (Ibid., p. 140)

    Se na contradio interna mercadoria, expressa de maneira externa pela

    mediao do dinheiro na metamorfose das mercadorias, j possvel vislumbrar, da

    forma mais abstrata possvel, o fenmeno das crises capitalistas, no se pode, contudo, a

    partir da explicitar suas causas. A converso dessa possibilidade em realidade depende,

    como lembra Marx, de um conjunto de condies ainda no presentes a este nvel da

    anlise14

    . Esse conjunto de condies diz respeito s leis que regem o movimento da

    produo capitalista e seus resultados contraditrios que foram a separao entre valor

    e valor de uso, exacerbando a contradio at o ponto em que a unidade interna s pode

    ser recobrada de maneira violenta por meio de uma crise.

    A este nvel de abstrao, isto , da circulao simples de mercadorias, o

    objetivo final dos produtores privados a apropriao de valores de uso, a satisfao de

    necessidades dadas, limitadas por natureza. A produo capitalista funda-se, contudo,

    sobre a apropriao do valor, necessidade constitutiva do capital que , em si, ilimitada.

    Uma lgica que se sobrepe aos indivduos como fora estranha, externa, subordinando

    seus comportamentos a este objetivo primordial para esta forma social de produo. Sob

    essa lgica determina-se o processo que desemboca em crises de maneira cclica, o da

    acumulao capitalista. A contradio entre valor e valor de uso uma realidade no

    modo de produo capitalista, mas a sua constatao apenas ao nvel da circulao

    simples de mercadorias no mostra a subordinao do trabalho humano lgica

    expansiva do valor, embora j demonstre o imperativo de seu reconhecimento social,

    porm ainda no mbito da satisfao de necessidades diretamente humanas. Nesse

    sentido, pode-se dizer que o modo de produo capitalista move-se pela satisfao de

    necessidades coisais, que so apenas indiretamente humanas.

    A mera possibilidade da crise, sua identificao da maneira mais abstrata

    possvel a partir dos elementos at aqui desenvolvidos, no pode explicar porque os

    plos antinmicos entram em conflito de tal forma que a crise surge pela necessidade de

    se repor as condies em que repousam sua unidade. Explicar la crisis sobre la base de

    14

    No consideramos at agora nenhuma outra relao econmica entre os homens, alm da que se estabelece entre possuidores de mercadoria, e, nela, os homens s se apropriam do trabalho alheio

    alienando o produto do prprio trabalho. (Ibid., p. 135-136)

  • 26

    esto, su forma elemental, es explicar la existncia de la crisis mediante la descripcin de

    su forma ms abstracta, es decir, explicar la crisis por la crisis. (MARX, 1975, p. 429)

    Isso no significa que a forma abstrata no seja real, significa apenas que no

    suficiente para explicar o aparecimento da crise. No haveria crise sem a separao

    potencialmente conflituosa entre compra e venda. A crise no pode existir sem

    manifestar-se ao mesmo tempo em sua forma simples. A esse respeito julga-se oportuno

    reproduzir a advertncia de Pedro Lpez Diaz:

    Nos encontramos, tericamente, frente a una condicin general como

    possibilidad abstracta de la crisis en su connotacin fundamentalmente

    mercantil. Queda claro que el proceso histrico del desarollo de la sociedad

    nunca ha atravesado por una etapa tal que estuviera configurada por la

    existencia de la produccin mercantil en si misma. El concepto de produccin

    mercantil simple como abstraccin alude ms bien a las condiciones

    primigenias y necesarias del punto de partida del capitalismo en su existencia

    histrica, como una de sus condiciones generales que adquirirn fisonomia

    propia con el trastocamiento del valor en plusvalor, es decir, en capital.

    (DAZ, 1993, p. 32-33)

    Para se constatar, portanto, o contedo das crises econmicas capitalistas em sua

    forma mais desenvolvida, ou seja, como realidade ao invs de apenas possibilidade,

    deve-se considerar o capital como barreira para o capital. Ou seja, deve-se demonstrar

    como as leis que regem o processo global de acumulao capitalista, expressas como

    necessidades que constrangem os capitalistas individuais por meio da concorrncia,

    criam, ao mesmo tempo, barreiras para a acumulao de capital, manifestando-se

    periodicamente de maneira aguda em crises. Este ser o objeto da prxima seo.

    1.1.2 - Capital como barreira para o capital: a crise como realidade

    A partir de um nvel lgico-categorial mais concreto, isto , considerando-se as

    determinaes essenciais do processo de produo capitalista, ou seja, as leis que

    regulam o seu movimento pode-se vislumbrar as crises como momentos necessrios do

    processo global de acumulao de capital. A partir deste ponto de vista, percebe-se que,

  • 27

    a despeito de no existir nenhum captulo que trate especificamente do fenmeno das

    crises em O Capital, o tema perpassa toda a obra, na medida em que esta descortina as

    tendncias gerais do modo de produo capitalista15

    , cujo desenvolvimento

    contraditrio desemboca periodicamente em crises, que nada mais so que solues

    circunstanciais a restaurar a unidade nos momentos em que as contradies se

    exacerbam para alm dos limites que permitem a reproduo das relaes essenciais

    subjacentes a esta formao social. Em Teorias Sobre a Mais-Valia, Marx aponta que a

    possibilidade das crises, que se evidncia na circulao simples de mercadorias, queda

    demonstrada una vez ms, y ms desarollada, por la discrepancia entre el proceso de

    produccin (directo) y el proceso de circulacin. (MARX, 1975, p. 435)

    Um ponto importante a ser destacado na anlise marxiana que o estudo da

    dinmica da sociedade fundada no capital , ao mesmo tempo, sua crtica a partir das

    relaes sociais, formas de pensamento e reproduo, subjacentes. Crtica a uma forma

    de sociabilidade fundada na lgica do valor, que subordina os sujeitos desde fora. Ou

    seja, dado o carter mercantil da sociedade capitalista, a produo confronta seus

    prprios sujeitos como fora autnoma, externa, estranha. Nesta formao social o

    homem passa de sujeito a objeto de seu prprio produto.

    A produo capitalista dirige-se satisfao das necessidades humanas apenas

    indiretamente, de maneira subordinada lgica da apropriao de mais-valia16

    ,

    conforme acima mencionado. Nas palavras de Marx:

    O capital, cada vez mais, se patenteia fora social: tem o capitalista por

    agente e no se relaciona mais com o que pode criar o trabalho de cada

    indivduo; mas patenteia-se fora social alienada, autnoma, que enfrenta a

    sociedade como coisa e como poder do capitalista por meio dessa coisa.

    (MARX, 2006, V. 4, p. 344)

    Sob o imperativo, em si mesmo ilimitado da apropriao do lucro, o modo de

    produo capitalista tem a tendncia de desenvolver de maneira absoluta as foras

    produtivas sociais, engendrando, ao mesmo tempo, relaes antagnicas de distribuio,

    o que se patenteia em um conflito entre as condies de produo e realizao. Isto ,

    um conflito entre o desenvolvimento das foras produtivas e as condies sociais de

    15

    Las condiciones generales de la crisis, [...], deben ser explicables a partir de las condiciones generales de la produccin capitalista. (MARX, 1975, p. 440) 16

    Ou lucro, forma imediata de manifestao do excedente em valor.

  • 28

    produo (unidade de produo e realizao). Desta forma, [n]o se produz riqueza

    demais. Mas a riqueza que se produz periodicamente demais nas formas antagnicas

    do capitalismo. (Ibid., p. 337)

    Assim, tendo-se em vista todo o capital social, o processo da acumulao de

    capital ergue barreiras a si prprio. Patenteia-se nas crises a existncia de capital

    suprfluo, juntamente com populao suprflua. Ou seja, a incapacidade da

    continuidade do processo de acumulao para todo o estoque de capital existente.

    Essa pletora de capitais nasce das mesmas circunstncias que provocam a

    superpopulao relativa, sendo, portanto, fenmeno que a completa, embora

    ambas estejam em plos opostos, de um lado capital desempregado e, do

    outro, populao trabalhadora desempregada. (Ibid., p. 330)

    A paralisao, ou mesmo destruio, de parte do capital social contm as razes

    da superao da crise, isto , da reposio das condies de acumulao de capital,

    dando incio a um novo momento de prosperidade, denotando o carter cclico das

    crises econmicas capitalistas. O processo que leva retomada da acumulao de

    capital, no entanto, ocorre de maneira bastante traumtica (piora geral nas condies de

    vida da populao), com luta feroz entre os capitais para decidir qual a parcela do

    capital social ter de ser posta em ociosidade, isto , decidir quem vai carregar o fardo

    da crise, o que em geral leva a uma maior centralizao do capital.

    [...] quando no se trata mais de repartir os lucros e sim as perdas, procura

    cada um reduzir ao mximo possvel a parte que tem nelas, transferindo-a

    para os outros. As perdas so inevitveis para a classe. Quanto cada um ter

    de suportar delas, at onde ter de nelas participar, problema a ser resolvido

    pela fora e pela astcia, transformando-se a concorrncia em luta entre os

    irmos inimigos. Positiva-se ento a contradio entre o interesse de cada

    capitalista e o da classe capitalista, do mesmo modo que antes, por meio da

    concorrncia, se impunha a identidade de interesses. (Ibid., p. 332)

    As crises se resolvem pela destruio de parte do capital, at que o excesso, em

    termos de possibilidade de valorizao, isto , da razo de ser do capital, tenha sido

    eliminado. As perdas se distribuem de maneira desigual de acordo com as vantagens e

    posies j conquistadas de cada um. No entanto, as contradies que desembocam em

  • 29

    crises so por estas solucionadas apenas na medida em que so repostas. As crises se

    apresentam como nica maneira possvel de ser restaurada a unidade de uma relao

    cujos aspectos contraditrios de seus plos constitutivos exacerbaram-se alm da conta,

    isto , alm da capacidade de reproduo da relao. Isto significa dizer que as crises

    criam as condies para um novo processo de acumulao de capital e que o fazem

    repondo as contradies que a geraram, possivelmente em maior nvel de complexidade,

    isto , aprofundando-as.

    As tendncias gerais do processo global de produo capitalista engendram,

    portanto, resultados contraditrios que desembocam em crises. Estas tendncias gerais

    afirmam-se para os capitalistas individuais como leis, como condies para a

    manuteno de suas existncias enquanto tais, por meio da concorrncia. Da citao

    anterior, depreende-se que concorrncia no se apresenta para os capitalistas de maneira

    imutvel ao longo do ciclo, antes evoluem com este, de forma a incutir-lhes as

    necessidades supremas do capital em seus diferentes estgios cclicos, que, conforme j

    mencionado, assume forma de coisa estranha, externa, uma espcie de regulador

    transcendente da prxis social. Assim, em momentos de crise a concorrncia

    transforma-se em luta entre os irmos inimigos. De maneira geral concorrncia a

    forma pela qual as tendncias imanentes do capital realizam-se como necessidades

    externas. Conceptually, competition is nothing but the inner nature of capital, its

    essential character, manifested and realized as the reciprocal action of many capitals

    upon each other; immanent tendency realized as external necessity. (MARX, 1986, p.

    341)

    A mera constatao de que o contedo das crises econmicas consiste no fato de

    que a produo capitalista engendra as condies que criam dificuldades a sua prpria

    realizao, isto , de que a barreira efetiva da produo capitalista o prprio capital,

    (MARX, 2006, V. 4, p.328) no explica o surgimento dessas condies como momentos

    necessrios no processo de acumulao de capital. Para tanto, deve-se reproduzir os

    argumentos utilizados por Marx para demonstrar que:

    Os limites intransponveis em que se podem mover a manuteno e a

    expanso do valor-capital, a qual se baseia na expropriao e no

    empobrecimento da grande massa dos produtores, colidem constantemente

    com os mtodos de produo que o capital tem de empregar para atingir seu

    objetivo e que visam ao aumento ilimitado da produo, produo como

  • 30

    fim em si mesma, ao desenvolvimento incondicionado das foras produtivas

    sociais do trabalho. O meio desenvolvimento ilimitado das foras

    produtivas sociais , em carter permanente, conflita com o objetivo

    limitado, a valorizao do capital existente. (Ibid., p. 329)

    Deve-se demonstrar, portanto, como as leis que regulam o modo de produo

    capitalista geram uma tendncia superacumulao de capital, que sempre implica em

    superproduo de mercadorias17

    , isto , em termos concretos implica em queda da

    atividade econmica, desemprego, acumulao de estoques invendveis de mercadorias

    etc. Ou seja, demonstrar como essas legalidades criam, ao mesmo tempo e como

    tendncia: produo ilimitada de mercadorias; aumento da massa consumidora; e

    obstculos ao consumo. (RIBEIRO, 2008, p. 90) Resultados que denotam a coliso

    entre as condies de produo das mercadorias e as condies de realizao dessa

    produo, o que implica em dificuldades para a continuidade da acumulao de capital.

    Em suma, as subsees seguintes pretendem demonstrar como:

    No modo capitalista de produo, relativamente populao, desenvolve-se

    em demasia a produtividade, e, embora sem atingir a mesma proporo,

    aumentam os valores-capital (e no s o substrato material desses valores) de

    maneira mais rpida que a populao. Os dois fatos colidem com a base

    que, em relao riqueza crescente, cada vez mais estreita, e para a qual

    opera essa produtividade imensa e com as condies de valorizao do

    capital que se expande. Da as crises. (MARX, 2006, V. 4, p. 347)

    1.1.2.1 - Tendncia produo ilimitada de mercadorias

    Tomando-se por base a anlise de Marx, chega-se a concluso que o modo

    capitalista de produo, para reproduzir-se, tem a tendncia de produzir mercadorias

    ilimitadamente, quer destinem-se para consumo pessoal, quer sirvam como meios de

    produo, incluindo-se ampliao da oferta da mercadoria fora de trabalho no

    17 Superproduo de capital, no de mercadorias isoladas embora a superproduo de capital implique sempre superproduo de mercadorias , nada mais significa que superacumulao de capital. (MARX, 2006, V. 4, p. 330)

  • 31

    mercado. Essa tendncia expanso da oferta ocorre tanto em termos da massa de

    valores de uso disponveis no mercado, quanto em termos de valor. Alm disso, o

    prprio capital enquanto mercadoria tende a expandir-se de maneira ilimitada, o que

    redunda no fenmeno da superacumulao de capital, na j citada incapacidade de

    valorizao para todo o estoque de capital da sociedade, isto , nas crises.

    Pretende-se demonstrar brevemente os elementos da anlise marxiana que

    permitem identificar como as leis que regem o modo de produo capitalista resultam

    na tendncia produo ilimitada de mercadorias. Para tanto, deve-se resgatar

    elementos presentes ao longo de toda a obra de Marx.

    A sociedade capitalista necessita da produo constante de bens de consumo e

    meios de produo. O capital s pode funcionar se dispuser de meios de produo e

    fora de trabalho, colocando-os em ao conjuntamente de acordo com propores

    tcnicas socialmente determinadas. A fora de trabalho constitui a nica mercadoria de

    que dispe a maior parte da populao, despojada da propriedade imediata de seus

    meios de vida (meios de subsistncia e produo) das mais variadas formas, que, por

    isso, deve oferecer no mercado sua capacidade de trabalho a fim de adquirir os valores

    de uso de que necessitam. Nos termos da circulao simples de mercadorias, do ponto

    de vista do trabalhador, sua fora de trabalho valor, incapaz de satisfazer

    imediatamente suas necessidades, devendo, portanto, ser trocada pelos bens de consumo

    necessrios sua vida, condio para que possam continuar a oferecer no mercado a

    nica mercadoria que possuem.

    O modo de produo capitalista no s necessita e produz essas diferentes

    classes de mercadorias, como o faz, e tem de fazer, de maneira sempre crescente. O

    objetivo da produo capitalista a apropriao do maior volume possvel de trabalho

    excedente. Segundo Marx:

    Todo o carter da produo capitalista determinado pelo imperativo de

    aumentar o valor-capital adiantado, de produzir, portanto, antes de tudo, a

    maior quantidade possvel de mais-valia; em seguida pelo imperativo de

    produzir capital, ou seja, de transformar mais-valia em capital. (MARX,

    2006, V. 3, p. 89)

  • 32

    A reproduo ampliada , portanto, a forma normal que o capital tem de

    reproduzir-se. Para que possa haver reproduo ampliada deve-se no apenas repor os

    meios de produo gastos, mas transformar parte da mais-valia em capital. Para tanto,

    [...] parte do trabalho anual excedente tem de ser transformado para produzir

    meios adicionais de produo e de subsistncia acima da quantidade

    necessria para substituir o capital adiantado. Em suma, a mais-valia s pode

    ser transformada em capital porque o produto excedente, do qual ela o

    valor, j contm os elementos materiais de um novo capital. (MARX, 2006,

    V. 2, p. 678)

    Alm disso, lei, que se expressa por meio da concorrncia, a tendncia ao

    aumento da composio orgnica do capital na tentativa da apropriao de mais-valia

    extraordinria. Como se disse anteriormente, produzir uma mercadoria abaixo do tempo

    de trabalho socialmente necessrio, isto , abaixo do seu valor de mercado uma

    posio vantajosa, pois permite a realizao de um superlucro (a venda da mercadoria

    acima do seu valor) e confere ao capitalista uma posio privilegiada com relao aos

    seus concorrentes diretos em uma possvel guerra de preos em momentos em que a

    demanda no for suficiente para a oferta disponvel do produto, de forma que o

    capitalista que no acompanhar o progresso da produtividade do trabalho pode nesses

    momentos sucumbir se o preo de mercado cair abaixo do seu preo de custo. O

    aumento de produtividade permite, ao nvel individual, maior apropriao de mais-valia,

    o que implica em concentrao do capital e ainda na centralizao do capital, quando os

    capitais em piores condies so engolidos por aqueles que por motivos variados

    conquistaram posies de destaque. Uma vez que o grau da produtividade do trabalho

    [...] se expressa pelo nmero dos meios de produo que um trabalhador, num tempo

    dado, transforma em produto, com o mesmo dispndio de fora de trabalho (Ibid., p.

    725), preciso que haja sempre disponvel no mercado as mercadorias que servem de

    meios de produo. O processo de acumulao em sua totalidade implica na

    necessidade de que essas mercadorias estejam disponveis em escala crescente. Se, por

    ventura, um capital em seu processo de reproduo no encontra disponvel no mercado

    os meios de produo de que necessita, paralisa-se o seu ciclo, ficando impossibilitado

    de exercer o imperativo que configura o seu ser, qual seja, valorizar-se.

  • 33

    A produo dos elementos que compe o capital constante tambm produo

    capitalista, de forma que a necessidade de haver disponvel quantidade sempre crescente

    de meios de produo, para o processo global de acumulao, so satisfeitas por estar

    esse setor sujeito s mesmas leis que impelem produo sempre crescente de

    mercadorias, que se pretende apontar ao longo desta seo. Seria um obstculo depender

    de modos de produo no capitalistas para obterem-se os meios materiais necessrios

    produo e apropriao de mais-valia. A tendncia da produo capitalista, entretanto,

    transformar, sempre que possa, toda produo em produo de mercadorias, e seu

    principal instrumento para isto traz-la para seu processo de circulao. (MARX,

    2006, V. 3, p.124)

    Esse apetite crescente por meios de produo no curso do processo de

    acumulao , por outro lado, apetite crescente pelo emprego de capital varivel. Apesar

    da tendncia ao aumento da composio orgnica, a massa de trabalhadores empregados

    tem de crescer, uma vez que o progresso da acumulao de capital que implica na

    tendncia ao aumento da composio orgnica. Quanto maior o nmero de

    trabalhadores que o capital emprega simultaneamente, isto , quanto mais ele troca

    trabalho objetivado por vivo, maior a valorizao de uma s vez. No regime capitalista

    o nmero de trabalhadores empregados cresce de maneira absoluta, embora decresa

    relativamente18

    . A mercadoria fora de trabalho deve, por isso, estar disponvel de

    maneira constante e em escala crescente no mercado. Essa necessidade tambm

    satisfeita pelo prprio processo de acumulao capitalista.

    Segundo Marx, a lei geral, absoluta, da acumulao capitalista implica que

    quanto maior a riqueza social, o capital em funo, sua fora de expanso e,

    conseqentemente, a magnitude do proletariado, maior o exrcito industrial de reserva.

    A fora de trabalho disponvel ampliada pelas mesmas causas que aumentam a fora

    expansiva do capital. (MARX, 2006, V. 2, p. 748) A tendncia ao aumento da

    produtividade, com o aumento da composio orgnica do capital, significa que um

    dado estoque de capital necessita de um nmero decrescente de trabalhadores para ser

    posto em movimento. A superpopulao relativa produto necessrio e ao mesmo

    18

    Um desenvolvimento das foras produtivas que diminusse o nmero absoluto dos trabalhadores, isto , capacitasse realmente a nao inteira a efetuar a produo em menor espao de tempo, acarretaria

    revoluo, pois tornaria marginal a maior parte da populao. Mais uma vez, revela-se o limite especfico

    da produo capitalista, e v-se que no de maneira alguma forma absoluta do desenvolvimento das

    foras produtivas e da criao de riqueza, colidindo com este desenvolvimento, a partir de certo ponto. (Ibid., p. 343-344)

  • 34

    tempo alavanca da produo capitalista. Em momentos de prosperidade massa crescente

    de riqueza pode ser transformada em capital adicional, lanando-se a ramos de produo

    antigos e novos, para isso grandes massas humanas tm de estar disponveis para

    serem lanadas nos pontos decisivos, sem prejudicar a escala de produo nos outros

    ramos. (Ibid., p. 735-736) Dessa forma a superpopulao relativa condio de

    existncia do modo de produo capitalista, proporcionando a fora de trabalho a

    servio das necessidades variveis de expanso do capital.

    Alm disso, os mtodos utilizados para aumentar a produtividade so mtodos

    para aumentar o trabalho excedente, isto , acelerar a acumulao de capital. A

    concentrao do capital est limitada, contudo, pelo crescimento da riqueza social. A

    acumulao gera, por outro lado, o acirramento da competio entre os capitais

    individuais, a repulso recproca de muitos capitais individuais. (Ibid., 728-729) Os

    capitais menores incapazes de acompanhar o progresso tecnolgico que implica, como

    tendncia, que o volume da capital para que se possa engajar competitivamente em

    atividades produtivas seja crescente, so engolidos pelos capitais maiores e mais aptos

    realizao dos vultuosos investimentos necessrios. Isso significa a expropriao do

    capitalista pelo capitalista, a transformao de muitos capitais pequenos em poucos

    capitais grandes. (Ibid., p. 729) Juntem-se a isso os velhos e novos modos de

    expropriao, de separao do trabalhador de seus meios de produo, e tem-se uma

    tendncia ao aumento do nmero de pessoas que tm de oferecer sua capacidade de

    trabalho ao capital como nica forma de manter sua existncia. O capital, em seu

    processo de reproduo, repe constantemente as relaes de produo subjacentes,

    dissolvendo formas pr-capitalistas, dissociando trabalhadores dos meios de produo,

    colonizando atravs da circulao modos de produo arcaicos. Nesse sentido, o

    captulo XXIV do primeiro livro de O Capital (A chamada acumulao primitiva) no

    deve ser visto como simplesmente um captulo histrico, mera ilustrao, mas como um

    momento do processo global de produo capitalista, constantemente repondo sua

    lgica, isto , como parte do argumento terico de Marx.

    Todo esse contingente de pessoas que so lanadas constantemente no mercado

    de trabalho precisa consumir, para manterem-se vivas e suficientemente saudveis, de

    forma que possam, potencialmente, exercer atividade laboral. A reproduo do sistema

    capitalista necessita, portanto, da produo crescente de mercadorias bens de consumo.

  • 35

    Quando a produo por meio de trabalho assalariado se torna geral, a produo

    de mercadorias tem de ser forma geral da produo. Os trabalhadores tm de encontrar

    venda, isto , na forma de mercadoria os meios de subsistncia de que necessitam. A

    busca da mais-valia extraordinria, motor da inovao tecnolgica nos processos

    capitalistas de produo, tem como conseqncia a queda no valor de cada unidade

    produzida, uma vez que por meio desta um dispndio igual de trabalho humano, ceteris

    paribus, se expressa em quantidade maior de produto. Desta forma, para realizar a

    mesma massa de valor precisa-se, como tendncia, de quantidade crescente de valores

    de uso. Sob essas condies, os capitalistas so obrigados, portanto, a lanar no

    mercado uma quantidade sempre crescente de mercadorias.

    J se observou que a produo capitalista tem por suas caractersticas imanentes

    a tendncia a reproduzir-se de maneira ampliada e, portanto, a necessidade de realizar

    quantidade crescente de valor, ao invs de constante. Isto , consumo produtivo sob

    bases capitalistas tem por intuito fazer crescer o valor inicial e reproduzir o ciclo de

    acumulao de um capital em maior escala. Por um lado, os meios de produo so

    consumidos de forma que seu valor retirado da circulao apenas temporariamente,

    sendo posteriormente relanado sob a forma de um valor de uso diverso. Por outro, com

    relao ao consumo da fora de trabalho, o capitalista paga seu valor para receber seu

    valor de uso (como qualquer outra mercadoria), que nesse caso criar valor novo, que

    idealmente deve ser maior que o seu valor prprio. Assim, a necessidade no sistema

    capitalista de que a produo de mercadorias seja sempre crescente satisfeita a partir

    de suas prprias leis internas de funcionamento. (RIBEIRO, 2008, p. 95-96)

    Alm disso, mesmo o consumo pessoal se enquadra na superproduo em

    termos de valor, uma vez que a retirada do mercado do valor das mercadorias que se

    destinam ao consumo pessoal implica na reproduo da fora de trabalho, isto , que se

    possa lanar novamente a mercadoria fora de trabalho na circulao. E, esta ,

    precisamente, a mercadoria capaz de criar mais-valor. (Ibid., p. 97)

    O trabalho excedente que a classe trabalhadora fornece de graa ao capitalista

    em um perodo torna-se capital no perodo seguinte. Isto o que se chama de produzir

    capital com capital. (MARX, 2006, V. 2, p. 680) A acumulao de capital entra em

    uma espcie de crculo vicioso, no sentido de que quanto mais se acumula, mais se

    poder acumular, j que a condio para apropriar-se de trabalho vivo no pago a

    propriedade sobre trabalho passado no pago. A concorrncia impele o capitalista a

  • 36

    expandir continuamente seu capital, para conserv-lo, e s pode expandi-lo por meio da

    acumulao progressiva. (Ibid., p. 690) O desenvolvimento da produtividade se torna o

    principal meio pelo qual o capital se amplia, atravs da apropriao e direcionamento do

    progresso cientfico, uma vez que todos os mtodos para elevar a produtividade do

    trabalho so mtodos para aumentar a mais-valia. So, portanto, ao mesmo tempo

    mtodos para produzir capital com capital ou mtodos para acelerar sua acumulao.

    (Ibid., p.727) Como dito anteriormente, esse processo de concentrao de capital acaba

    levando ao acirramento da concorrncia e, consequentemente, a um processo de

    centralizao do capital, que aprofunda ainda mais a tendncia sobreacumulao de

    capital, uma vez que dado o grau de explorao da fora de trabalho, a quantidade de

    mais-valia produzida por um capital depende do nmero de trabalhadores empregados,

    isto , da magnitude do capital. E, por fim, todas as molas da produo funcionam com

    mais energia quanto mais aumenta sua escala com o montante do capital adiantado.

    (Ibid., p. 708).

    Para usar um termo que Marx usa ao tratar do capital portador de juros, pode-se

    dizer que o modo de produo capitalista apresenta a tendncia superproduo

    tambm da mercadoria-capital19

    . Mercadoria esta que tem a peculiaridade de seu valor

    de uso, a capacidade de gerar lucro a seu possuidor, no desaparecer com o consumo,

    pelo contrrio, seu consumo no s conserva o valor e o valor de uso, como tambm os

    acrescem. Alm disso, acumular, isto , reproduzir-se de forma ampliada uma

    necessidade no modo de produo capitalista, pois como j se mencionou ficar parado,

    ou seja, no acompanhar o progresso da produtividade, ou mesmo tomar sua dianteira,

    no se expandir buscando novos espaos para valorizao, pode significar ao capitalista

    individual a perda de seu capital. Portanto, uma vez que a reproduo ampliada a

    forma tpica da reproduo capitalista, a mercadoria-capital produz a si prpria de

    maneira crescente.

    19

    Marx utiliza o termo ao tratar do capital portador de juros na medida em que neste ponto do

    desenvolvimento lgico categorial de seu argumento, o capital-dinheiro vira mercadoria. O dono do

    dinheiro pode ced-lo, fazendo dele mercadoria, para receb-lo de volta, acrescido de mais-valia criada

    pelo capitalista que recebeu o emprstimo e o aplicou produtivamente, tambm como capital. A

    mercadoria capital , portanto, peculiar, uma vez que alienada no pelo seu valor, ou por expresso

    deste, mas por uma parcela da mais-valia produzida pelo tomador, que assume a forma de juros. Alm

    disso, o valor de uso dessa mercadoria produzir lucro, portanto este no desaparece com o seu consumo.

    A mercadoria-capital pode inclusive tomar a forma de meios de produo. Mas todo capital emprestado, qualquer que seja a forma dele, como quer que a natureza do valor-de-uso modifique o modo de

    devoluo, sempre forma particular do capital-dinheiro, pois o que se empresta ento sempre

    determinada soma de dinheiro sobre a qual se calculam os juros. (MARX, 2006, V. 5, p.459)

  • 37

    A superproduo da mercadoria capital est contida na j mencionada

    superacumulao de capital, isto , a multiplicao do estoque existente de capital social

    para alm da possibilidade de valorizao do mesmo. As dificuldades de realizao da

    produo e, portanto, da valorizao do capital, bem como o aprofundamento das

    tendncias que levam superacumulao de capital, ao considerar-se capitais que

    habitam unicamente a esfera da circulao, sero tratadas mais a frente, cada qual a seu

    tempo. Antes disso ser demonstrado como o capital possui a tendncia a criar um

    nmero crescente de potenciais consumidores para seus produtos, a partir das leis

    internas de funcionamento do modo de produo capitalista, as mesmas leis que geram a

    tendncia produo ilimitada de mercadorias.

    1.1.2.2 - Tendncia ao aumento da massa consumidora

    claro que essa produo com tendncia crescente deve encontrar mercado, isto

    , a apropriao da mais-valia produzida pressupe a realizao da produo. A

    produo crescente faz necessria ento uma massa crescente de consumidores. O

    capital possui, em resposta, a tendncia imanente a expandir-se geograficamente,

    criando novos pontos de troca e, consequentemente, dissolvendo formas arcaicas de

    produo, consumando a acumulao primitiva, isto , repondo as suas condies de

    funcionamento de maneira constante, o que significa ao mesmo tempo o aumento

    constante do nmero de pessoas que depende do salrio para sobreviver, adquirindo

    seus meios de subsistncia atravs da circulao geral de mercadorias.

    De forma similar ao que foi visto anteriormente, as necessidades do capital, as

    barreiras que se erguem sua frente, tendem a ser ultrapassadas (mas, apenas na medida

    em que so repostas em grau crescente de complexidade). Assim, do mesmo modo que

    o capital tem tendncia a produzir quantidade sempre crescente de mais-valia, tem

    tendncia complementar a criar mais pontos de troca. A esfera da circulao tende a ser

    constantemente expandida pelas necessidades da produo capitalista, de realizao da

    massa crescente de mais-valia. The tendency to create the world market is inherent

    directly in the concept of capital itself. Every limit appears as a barrier to be overcome.

    (MARX, 1986, p. 335)

  • 38

    Observa-se, desta forma, uma tendncia ampliao do mercado para as

    mercadorias j produzidas, uma espcie de expanso extensiva do capital. Contudo a

    busca pela ampliao da massa consumidora no se restringe apenas ao seu alargamento

    extensivo, atua tambm na criao de novas necessidades. Assim, trata-se em primeiro

    lugar de criao de novas necessidades em lugares ainda no explorados completamente

    pelo capital, atravs da propagao das necessidades de consumo existentes por uma

    rea maior, e, em segundo lugar, da descoberta de novos valores de uso, ou seja, na

    criao de necessidades inteiramente novas, o que caminha de par com a tendncia j

    observada do aumento da produtividade. No curso do processo de acumulao de

    capital buscam-se produtos qualitativamente novos que, como os outros, sejam veculos

    de mais-valia.

    Hence the exploration of the whole of nature in order to discover new useful

    properties of things; the universal exchange of the products coming from the

    most diverse climates and lands; new (artificial) modes of processing natural

    objects to give them new use values. (Ibid., p. 336)

    As razes do capital expandem-se, como tendncia, para todos os lados, ao

    mesmo tempo em que buscam mais profundamente sua energia vital, o que tem claras

    repercusses para as relaes de intercmbio entre as diferentes naes e para a

    explorao desmedida da natureza. Note-se de passagem que a tendncia ao

    esgotamento da natureza criando, consequentemente, problemas para a reproduo da

    espcie humana imanente ao modo de produo capitalista, de forma que se pode

    criticar a maior parte dos movimentos ecolgicos atuais pela falta de uma perspectiva

    crtica com relao a este modo histrico-especfico de produo, e as relaes sociais

    subjacentes a este, em suas reivindicaes20

    .

    Essa tendncia do modo de produo capitalista a universalizar suas formas de

    reproduo, de forma a espalhar-se, tendencialmente, ao redor de todo o globo terrestre

    satisfeita pela in