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Inferno, de Yael Bartana: Destaque da 31 a Bienal de São Paulo, gerando curiosidade do público e comentários da crítica, Inferno (2013) é um trabalho de video arte de cerca de vinte minutos, da artista israelense Yael Bartana . O vídeo narra a auto-implosão do templo do Templo do Rei Salomão durante aquilo que seria sua inauguração. O Templo foi erguigo no Bráz em 2014 pela Igreja Universal do Reino de Deus. Neste breve texto, apresentaremos uma leitura da obra, fazendo emergir os questionamentos políticos que ela levanta: a função da imaginação filiativa com culturas da antiguidade para justificar a ascenção de grupos sociais, a ideia de decadência implicada em todos os movimentos utópicos, o embaralhamento da narrativa oficial do Estado de Israel e a crítica à homofobia promovida por determinados setores evangélicos. Inferno deve ser entendida dentro do contexto da obra de Yael Bartana, sobretudo em diálogo com os três videos que criou para o seu movimento, o JRMiP - Jewish Renaissance Mouvement in Poland (Movimento de Renascimento Judaico na Polônia), apresentado, entre outras exposição, na 29 a da Bienal de São Paulo. O JRMiP promovia a volta de 3.300.00 judeus à Polonia, em uma clara referência ao que foi o movimento sionista. Na trilogia tratava-se de revisitar as visões de utopia envolvidas em diversos movimentos políticos durante o século XX como o sionismo, o comunismo e o nazismo. Concentrando-se nos mitos criados para justificar as bases do Estado de Israel, Bartana propõe uma reflexão que transcende esse caso específico: questiona o caráter imaginativo não apenas do moderno Estado de Israel, mas de toda formação nacional e movimento utópico que acreditasse na construção do futuro como redentora. Esses questionamentos extramemente centrados na recente

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Inferno, de Yael Bartana:Destaque da 31a Bienal de So Paulo, gerando curiosidade do pblico e comentrios da crtica, Inferno (2013) um trabalho de video arte de cerca de vinte minutos, da artista israelense Yael Bartana . O vdeo narra a auto-imploso do templo do Templo do Rei Salomo durante aquilo que seria sua inaugurao. O Templo foi erguigo no Brz em 2014 pela Igreja Universal do Reino de Deus. Neste breve texto, apresentaremos uma leitura da obra, fazendo emergir os questionamentos polticos que ela levanta: a funo da imaginao filiativa com culturas da antiguidade para justificar a asceno de grupos sociais, a ideia de decadncia implicada em todos os movimentos utpicos, o embaralhamento da narrativa oficial do Estado de Israel e a crtica homofobia promovida por determinados setores evanglicos.

Inferno deve ser entendida dentro do contexto da obra de Yael Bartana, sobretudo em dilogo com os trs videos que criou para o seu movimento, o JRMiP - Jewish Renaissance Mouvement in Poland (Movimento de Renascimento Judaico na Polnia), apresentado, entre outras exposio, na 29a da Bienal de So Paulo. O JRMiP promovia a volta de 3.300.00 judeus Polonia, em uma clara referncia ao que foi o movimento sionista.

Na trilogia tratava-se de revisitar as vises de utopia envolvidas em diversos movimentos polticos durante o sculo XX como o sionismo, o comunismo e o nazismo. Concentrando-se nos mitos criados para justificar as bases do Estado de Israel, Bartana prope uma reflexo que transcende esse caso especfico: questiona o carter imaginativo no apenas do moderno Estado de Israel, mas de toda formao nacional e movimento utpico que acreditasse na construo do futuro como redentora.

Esses questionamentos extramemente centrados na recente histria judaica na Europa e sua imigrao para o Oriente Mdio deslocado a partir do projeto Inferno, realizado em 2013 no Brasil. O contexto o dos movimentos neo-pentecostais no Brasil reivindicando determinados smbolos judaicos para justificar a narrativa que defendem como grupo. De um certo modo, a imaginao coletiva e inventidade desses grupos apenas salientam a pertinncia do procedimento utilizado pela trilogia do JRMiP para colocar em cheque os mitos e invenes envolvidos nas criaes nacionais.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), particularmente conhecida pela sua agressividade e conservadorismo, anunciou para o ano de 2014 a inaugurao do Templo do Rei Salomo: uma rplica exata daquilo que seria o terceiro templo de Jerusalm, tal como previsto pelas profecias de Ezequiel.

A utopia aqui no mais uma inveno de Bartana, um projeto artstico mirabulante. Aqui a realidade da construo do Templo do Rei Salomo no Brasil que se apresenta como to ficcional como o projeto de retorno dos judeus Polnia. Em Inferno, o Templo implodido no momento de sua inaugurao.

A citao , assim como na trilogia, a maneira pela qual Bartana opera: refere-se aos smbolos judaicos, ao modo como os neopentecostais se esto valendo de referncias do antigo testamento para justificarem sua prtica, subvertendo-os. No lugar do sumo sacerdote, uma drag queen. A importao dos bens judaicos realizados pela IURD apresentada como um remake da cena inicial de La Dolce Vita: no mais um uma esttua de Cirsto chegando em Roma, com pessoas correndo atrs dela e atrapalhando o banho de sol de um grupo de mulheres, mas a arca sagrada e outros smbolos judaicos chegam por helicptero em So Paulo.

Dois pontos desse trabalho recebero nossa ateno nas pginas que se seguem: a maneira como ele dialoga com questes fundamentais da histria da arte, ao questionar o modo como uma cultura herdada da antiguidade (no caso a hebraica) utilizada por um movimento especfico; e o modo como a mise-en-scne da destruio prope um embaralhamento dos fatos que se encontram na base da narrativa mtica que justifica o Estado de Israel, levando os questionamentos propostos pela trilogia do JRMiP a outros pontos.

Os neopentecostais e o judasmo/

Nos ltimos anos, nomes e smbolos associados a tradio judaica, tais como a menor (candelabro para nove velas), a mezuz (proteo no batente da porta), o talit (vestimenta ritual) e a kip (indumentria ritual diria) tem se tornado cada vez mais presentes no apenas em Igrejas Evanglicas, favelas e zonas pobres das cidades brasileiras, mas tambm em casas de class media e alta. Igrejas, shoppings centers e restaurantes recebem nomes como El Shaddai, Adonai, Shalom. Estrelas de David so usadas por jogadores de futebol para atrair sorte. Rplicas da arca da aliana podem ser encontradas em igrejas ao redor do pas.

Em uma escala ainda mais espetacular, algumas igrejas importam pedras de Jersualm ou constrem centros culturais inteiramente voltados voltados para a divulgao de Jerusalm e das prticas judaicas. O mais grandioso, faranico tambm o que mais tem recebido ateno, de todo esse movimento: a reconstruo do templo sagrado de jersualm, o Templo do Rei Salomo, no Brz, tradicional bairro da cidade de So Paulo, Brasil. Pode-se dizer que a Terra Santa est sendo transportada ao Brasil.

Estamos diante de um fenmeno social em que um grupo cria vinculaes ''imaginrias'' com outros. Tanto do passado (Israel bblica), quanto do presente (moderno Estado de Israel), e passa a forjar smbolos para assegurar essa relao, como forma de justificar sua asceno em tradies antiqussimas, como se a volta a prticas do passado lhes pudesse libertar de uma corrupo do presente. Tal procedimento imaginativo de si a partir de referncias distantes que so tornadas proximas foi analisado por Bartana de maneira extremamente refinada quando se valia do JRMiP para revisitar o sionismo, mas tambm todas as lgicas existente por detrs de movimentos que tentam vincular uma cultura, povo, lngua e nao.

A temtica de reinveno de um grupo a partir de referncias antigas encontra-se na origem de importantes reflexes na histria da arte. Como nos mostra Aby Warburg em seus belos ensaios, um olhar para a arte florentina do quattrocento pode nos permitir entender o modo como essa nova classe de comerciantes urbanos via a si mesma, e se valia de uma leitura particular da antiguidade clssica grega para justificar o seu novo papel: a identificao do chefe poltico, pela primeira vez na histria, como comerciante urbano, na figura de Loureno de Mdici veio acompanhaa de uma leitura singular da arte antiga que deu origem ao chamado Renascimento.

Um estudo exemplar de Aby Warburg nesse sentido aquele intitulado A arte do retrato e a burguesia florentina, de 1902, em que fica clara a tentativa de compreender a maneira como os artistas, poetas e pintores italianos no esto buscando uma reaproximao com a antiguidade, ms antes, deturpam-na para adapt-la nascente realidade dos comerciantes urbanos de Florena. Ou seja, de que maneira a poetas e pintores florentinos exprimem uma nova realidade criando um vnculo com o passado.

A maneira como os evanglicos hoje imaginam suas afinidades com simbolos judaicos difere da maneira como o Renascimento reinterpreta a histria clssica para pensar o seu papel nico na histria? Ou mesmo a maneira como naes se imaginaram na histria europeia? Do mesmo modo que a nascente burguesia florentina se valia de uma leitura singular da antiguidade para justificar sua asceno, do mesmo modo que as naes forjaram uma srie de imaginrios para dar sentido a unificao de diferentes povos sob a gide de um Estado, os neopetencostais prope uma leitura indita do Velho Testamentos e prticas judaicas para afirmarem sua posio. Mitos e processos imaginativos encontram-se novamente no centro dos questionamentos levantados por Bartana.

O Templo de Salomo em So Paulo/

O filme se inicia com um tom festivo, pessoas vestidas com tnicas brancas, flores e frutas, como se fosse uma mistura de oferendas a serem realizadas por acasio da festa judaica de Shavut, a festa da colheita, como ocorria na poca do Segundo Templo, e a icnica figura tropical de Carmem Miranda. Caminham nas ruas, a sensao de entusiasmo e festividade se assemelham s cenas de trabalho coletivo da Trilogia, sobretudo em Muro e Torre: algo grandioso parecia estar sendo criado. Enquanto caminham em direo s festividades, helicpteros trazem de Israel objetos sagrados uma meno ao fato de que as pedras do Templo do Rei Salomo construdas pela IURD venham todas de Israel.

Em entrevista indita, a ser veiculada no making of do filme, Yael Bartana afirma que seu interesse era em deixar tudo ainda mais falso, mais irreal do que poderia aparentar. Para a artista, o seu filme tentava tocar na ideia de que em toda ''viso utpica j se pode pressagiar a destruio'' .

No caso da trilogia isso se d no campo do fracasso inerente a todos os movimentos polticos utpicos. Em Inferno, estamos diante da utopia pessoal vendida pelas igrejas neopetencostais: a venda de uma certa teologia da superao pessoal, que se inspira em uma narrativa que veria nos judeus e em Israel o sucesso de uma experincia de sucesso e da a importao dos smbolos judaicos.

Segundo essa pregao, os judeus, recm-sados da catstrofe, teriam sabido superar as maiores adversidades j impostas pela histria (o holocausto - extermnio dos judeus da Europa) para ento criarem uma sociedade moderna. Tal percurso serviria de modelo para todos os evanglicos crerem em sua prpria superao pessoal em meio s adversidades cotidianas de uma dura realidade social.

O moderno ''sucesso judaico'' j estaria prefigurado, segundo esta viso, em tempos bblicos, durante a errncia no deserto at o estabelecimento do povo hebreu na Judia, e criao de Israel antiga. Assim, nesse paralelo traado pelo Bispo Edir Macedo, isso que estamos livremente chamando de teologia da superao pessoal conecta diretamente a experincia rdua de sofrimentos cotidianos experimentados pelas camadas populares nas grandes metropoles brasileiras, com a possibilidade de superao inspirada em uma narrativa especfica acerca da histria judaica. Desse modo, nada mais simblico do que o construir o templo do Rei Salomo (visto pelos cabalistas tradicionais como o smbolo mximo da reunificao e harmonia dos judeus) para os seus fiis. Tudo se passa como os fiis evanglicos tambm tivessem a sua Terra Santa se concretizando para eles.

No filme de Bartana, quando o Cohen Gadol, o sacerdote supremo (no filme uma drag queen) inicia a fazer os rituais, o prdio comea a desabar, com fogo para todos os lados, e uma cena em cmera lenta retrata a destruio. A esttica do filme, como a artista afirma, inspirada em uma das tantas representaes do Templo de Jerusalm existentes na histria da arte, a pintura do sculo XIX de Francesco Haiyes: os corpos contorcidos, as quedas de abismos, as tentativas de fugas levando consigo o que poderia ser possvel, so pontos presentes em ambas as obras.

Existe algo de extremamente pictrico no movimento das imagens. Sobretudo a dramaticidade dos movimentos (quase teatrais), bem como a maneira como a filmagem parece nos estar monstrando o mesmo momento da destruio de ngulos diversos, lentamente. Como se tivesse a pretenso de abarcar todos os mnimos detalhes da cena, como uma pintura, e no como um filme que apenas permite uma rpida viso do todo.

A escolha de uma drag queen para o papel do Sumo Sacerdote um ponto relevante na obra, a ser mencionado, sobretudo pela ateno que os movimentos neopentecostais do aos homossexuais, vistos pelos primeiros como uma doena a ser curada. Assim, Bartana seleciona algum excludo dos sistemas religiosos (sejam eles judaicos, cristos ou mesmo muulmanos), para jogar o papel principal entre os atores. E no selecionou um homem gay ou uma mulher lsbica, mas precisamente uma drag queen, que exagera traos de ambos, tornando difceis quaisquer distines claras.

Inferno e a narrativa oficial israelense/

Mas o que significa a construo desse templo no Brasil? Os debates ao redor da sua reconstruo do Templo em Jerusalm esto entre os pontos mais complexos do atual conflito israelo-palestino. Segundo a tradio ortodoxa judaica, o Segundo Templo de Jerusalm foi destrudo pelos Romanos, nos primeiros anos da Era Comum, no evento que ficou conhecido como incio da segunda dispora judaica. Sua reconstruo ocorreria com a chegada do Messias, a volta de todos os judeus para Israel e a ressuscitao dos mortos. O sionismo moderno, ao propor o retorno dos judeus para a palestina, ignorou tais tradies religiosas, acreditando que o homem poderia voltar por si s Palestina.

Existe muita controvrsia nos meios judaicos a respeito dessa empreitada levada a cabo pelo prprio homem, ou seja, o sionismo em sua verso laica. Alguns judeus ultra-ortodoxos se contrapem ao moderno Estado de Israel, afirmando que a sua construo pelas mos dos homens so contrrias aos preceitos de Deus. Outros grupos religiosos acreditam que o estabelecimento desse Estado seja uma forma de ''apressar'' a vinda do Messias, existindo tambm aqueles que defendem a construo do Terceiro Templo em Jerusalm justamente para que o Messias chegue, e traga a redeno para todos.

As implicaes polticas de tais ideias fanticas sobre a construo do Templo tocam diretamente o povo palestino e sua luta por autodeterminao.

Se lido em conjunto com os filmes que compem a Trilogia, Inferno prope um grande embaralhamento dos fatos que estruturam a narrativa oficial judaica, e dos mtos que encontram-se na base da moderna nao israelense. De um lado, o sionismo, ideologia laica que ignorou o mito do Templo promovendo o retorno dos judeus Palestina, vivido novamente, agora clamando o retorno dos judeus para a Polnia. De outro lado o Templo de Jerusalm, cuja destruio em 70 D.C. teria dado origem disperso judaica pelo mundo, e que deveria ser reconstrudo em Israel para a congregao do povo Judeu na Terra Santa, reconstrudo (e ento destrudo) no em Israel, mas no Brasil!

Como defende Bartana a propsito de Inferno, comparando-o com a Trilogia ''novamente, estou tentando quebrar outro mito''.Aby WARBURG. Essais florentins. Paris, Klincksieck, 2003. p. 114

Ver Philipe-Alain MICHAUD. Aby Warburg et l'image en mouvement, p. 91