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25 Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social: a Secularização do ritual em Usos e Costumes dos Bantos, de Henri Junod Paulo Gajanigo (UERJ) Na década em que Bronislaw Malinowski desenvolvia o método etnográfico, um missionário suíço, vivendo no sul de Moçambique, publicou um largo trabalho sobre o povo que denominou tsonga. Henri-Alexandre Junod não tinha um método muito definido para lidar com o conjunto da vida social. Tinha, apenas, uma experiência científica fornecida pela entomologia, além da leitura de textos de James Frazer (1956), Edward Tylor (1994), R. R. Marret (1997), Van Gennep (1978) e estudos realizados por outros missionários na África. A etnografia “Usos e Costumes dos Bantu”, publicada entre 1912 e 1913, foi uma tentativa de entender a vida social dos tsonga como um todo, e colocou, por isso, o desafio de compreender as práticas sociais sem que houvesse um instrumento teórico-metodológico desenvolvido para tanto. Junod não pode ser comparado a Malinowski: não desenvolveu um método próprio e paradigmático. Tentou, à sua maneira, cumprir o objetivo de apresentar um estudo total de um grupo com as teorias que tinha em mão. Por ter obtido sucesso (sua monografia foi saudada por importantes antropólogos), o estudo da obra de Junod nos parece bastante estimulante para visualizar as tensões entre as perspectivas da antropologia tida como evolucionista e a nascente antropologia social. Junod ficou conhecido na história da antropologia, principalmente, por protagonizar um debate com Radcliffe-Brown acerca da relação entre o “irmão da mãe” e o “filho da irmã”. Na historiografia da disciplina, ele foi considerado, de maneira geral, um evolucionista, em grande medida, por ter servido como representante da aplicação da “história conjectural” na argumentação de Radcliffe- Brown 1 . Não trataremos dessa questão que, ao nosso ver, deve ser questionada por sua excessiva generalização, mas, no mesmo sentido, defendemos aqui que a obra de Junod serviu e ainda pode servir para uma antropologia social, fundamentada no método etnográfico. De alguma maneira, buscamos, ao mesmo tempo, ressaltar a importância de sua obra pouco conhecida no Brasil 2 , apesar de, como trataremos no final do artigo, ser referência para importantes antropólogos. Campos 10(2):25-39, 2009

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social: a Secularizao do ritual em Usos e Costumes dos

    Bantos, de Henri Junod

    Paulo Gajanigo(UERJ)

    Na dcada em que Bronislaw Malinowski desenvolvia o mtodo etnogrfico, um missionrio suo, vivendo no sul de Moambique, publicou um largo trabalho sobre o povo que denominou tsonga. Henri-Alexandre Junod no tinha um mtodo muito definido para lidar com o conjunto da vida social. Tinha, apenas, uma experincia cientfica fornecida pela entomologia, alm da leitura de textos de James Frazer (1956), Edward Tylor (1994), R. R. Marret (1997), Van Gennep (1978) e estudos realizados por outros missionrios na frica. A etnografia Usos e Costumes dos Bantu, publicada entre 1912 e 1913, foi uma tentativa de entender a vida social dos tsonga como um todo, e colocou, por isso, o desafio de compreender as prticas sociais sem que houvesse um instrumento terico-metodolgico desenvolvido para tanto. Junod no pode ser comparado a Malinowski: no desenvolveu um mtodo prprio e paradigmtico. Tentou, sua maneira, cumprir o objetivo de apresentar um estudo total de um grupo com as teorias que tinha em mo. Por ter obtido sucesso (sua monografia foi saudada por importantes antroplogos), o estudo da obra de Junod nos parece bastante estimulante para visualizar as tenses entre as perspectivas da antropologia tida como evolucionista e a nascente antropologia social.

    Junod ficou conhecido na histria da antropologia, principalmente, por protagonizar um debate com Radcliffe-Brown acerca da relao entre o irmo da me e o filho da irm. Na historiografia da disciplina, ele foi considerado, de maneira geral, um evolucionista, em grande medida, por ter servido como representante da aplicao da histria conjectural na argumentao de Radcliffe-Brown1. No trataremos dessa questo que, ao nosso ver, deve ser questionada por sua excessiva generalizao, mas, no mesmo sentido, defendemos aqui que a obra de Junod serviu e ainda pode servir para uma antropologia social, fundamentada no mtodo etnogrfico. De alguma maneira, buscamos, ao mesmo tempo, ressaltar a importncia de sua obra pouco conhecida no Brasil2, apesar de, como trataremos

    no final do artigo, ser referncia para importantes antroplogos. Campos 10(2):25-39, 2009

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    Paulo GajanigoARTIGOS

    J u n o d , e v o l u c i o n i s m o e m i s s o s u a

    Os estudos de sociedades chamadas de primitivas no final do sculo XX estavam marcados pela histria conjectural e pelo mentalismo. Tylor, Frazer e Marret, entre outros, buscaram comparar a sociedade ocidental com as que passaram a ser conhecidas por relatos de viajantes, missionrios, administradores coloniais, por meio de uma abordagem no propriamente social. Apoiaram-se no estudo de procedimentos mentais da magia e da religio para desenvolver teorias sobre o nascimento e desenvolvimento do pensamento e da prtica humana. Evans-Pritchard (1978) e Marvin Harris (1968) chamaram esse mtodo de mentalismo. Os saberes e prticas nessas sociedades eram isolados do conjunto social e recolocados de forma artificial numa perspectiva evolucionista, o que foi chamado, negativamente, de histria conjectural. Com os estudos mais detalhados e profissionais dessas sociedades e com o desenvolvimento, nas universidades, de uma conhecimento propriamente sociolgico (ressalta-se o papel da escola durkheimiana), do-se as principais condies para o surgimento da antropologia social. No entanto, essa passagem no se fez de forma abrupta, como esperamos demonstrar na anlise da obra de Junod. No caso do presente artigo, apresentaremos a tenso entre essas perspectivas no mbito da discusso sobre o estudo dos rituais elemento-chave no estudo de Junod.

    Essa etnografia completa, como indicou Malinowski (Junod 1944 vol.I:6), s pde obter tal rtulo por uma articulao complexa dos diversos dados etnogrficos recolhidos nas duas dezenas de anos vividos por Junod no sul de Moambique quando foi figura destacada da Misso Sua3. Junod no foi um etngrafo profissional, porm, sua posio de missionrio, seu interesse cientfico e o contexto especfico em Moambique foram fatores que o ajudaram a apresentar uma etnografia num patamar superior mdia dos relatos de viajantes e missionrios.

    Em boa parte do tempo, Junod esteve ocupado na misso protestante com as tarefas de evangelizao. Para tanto, teve de estudar a lngua verncula, ajudar na sua sistematizao para a traduo da bblia, assim como analisar as razes culturais da populao para que se pudesse formular maneiras de insero de prticas e crenas crists. Sua obra abriga uma mistura entre objetivos de compreenso gerais do modo de vida dos tsongas, e nesse aspecto, ele busca o dilogo com as principais referncias cientficas do seu tempo, notadamente James Frazer, e de concluses prticas de reforma dos costumes em direo vida crist. Nota-se, no entanto, que Junod se preocupa em dividir as anlises nesses dois campos na obra (no final dos volumes ele inclui o que chamou de concluses prticas, onde declaradamente aponta para as preocupaes e julgamentos das condutas dos tsongas). Apesar de no ser nossa preocupao, indicaremos ao longo do artigo que ele no obtm um pleno sucesso nesse aspecto, j que a prpria sistematizao dos costumes tsonga marcada pela preocupao em encontrar pontos de contato que facilitariam a evangelizao.

    O contexto colonial que imps uma grande mobilidade populacional; migraes constantes dos jovens; guerras entre os nativos e os brancos, ou mesmo entre nativos; alm da imposio de condutas atravs de leis pelo governo colonial portugus no se apresentava como um terreno frtil para a realizao do tipo de estudo pretendido pelo missionrio. Seu grande objetivo era sistematizar a cultura tsonga para ela servir de relicrio

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    ao prprio povo que a concebeu (Ibidem: 28-29). Essa posio de reconstruir a cultura tsonga conformou uma ambiguidade, que percorre toda a obra de Junod, entre a busca por reformas civilizacionais e uma atrao pelas particularidades culturais tsongas em relao cultura europia. A antroploga moambicana Tereza Cruz e Silva (2001: 47) identifica que a guerra entre chefes locais e o governo portugus foi um fator decisivo para que a Misso Sua se aproximasse de fato dos africanos, j que a prpria Misso foi vista como inimiga pelo governo portugus, posio incentivada pela Igreja Catlica, que buscava a hegemonia religiosa em territrio portugus. Esse contexto criou um ambiente de colaborao e confiana, muitas vezes, entre missionrios e nativos, que se expressa em Junod no interesse de resgatar e sistematizar o conjunto da cultura tsonga4.

    R i t u a l , R e l i g i o e m a g i a e m J u n o d

    Para delimitar a tribo tsonga, Junod usou o critrio da lngua. Porm, com ela no se poderia unificar as prticas dos indivduos. Era, portanto, necessrio que uma linha reunisse todas essas prticas, pensamentos, instituies. Junod teve de buscar outro caminho.

    O plano que pretendo adotar esse: depois de explicar resumidamente, em um captulo preliminar, o que a tribo tsonga, pego em um indivduo e sigo-o sempre, durante toda a sua vida, desde o nascimento at a morte. A histria da evoluo de um homem e depois de uma mulher constituir primeira parte deste livro (Ibidem: 27).

    Do nascimento morte, muitas fases se sucedem: o perodo de amamentao, a juventude, a puberdade, o casamento, a idade madura e a velhice. Junod apresentou essas fases como se acompanhasse realmente um indivduo, caminhando pelos anos, vencendo desafios, descobrindo novos e envolto por dilemas. Foi assim que encontrou no ritual um momento privilegiado para descrever e compreender a relao entre indivduo e sociedade tsonga. Pois so nesses momentos em que a sociedade e o indivduo se apresentam distintamente. Mais do que isso, so nos rituais que marcam passagens das fases vividas por um indivduo ou por uma instituio que Junod encontrar seu mais importante material etnogrfico. Em uma palavra, se a lngua foi-lhe fundamental para delimitar e definir o povo tsonga, o ritual, particularmente o ritual de passagem, foi a categoria de anlise bsica para unir as prticas dos falantes tsongas.

    O conceito de ritual de passagem fundamentou-se numa viso de sociedade fragmentada e ao mesmo tempo totalizante, como fica explcita nas primeiras palavras de Van Gennep em Les Rites de Passage (1978 [1909]): Toda sociedade geral contm vrias sociedades especiais, que so tanto mais autnomas e possuem contornos tanto mais definidos quanto menor o grau de civilizao em que se encontra a sociedade geral. (1978: 25) na dinmica entre sociedade geral e sociedades especficas, segundo Van Gennep, que o ritual de passagem obtm sua razo de ser. Numa sociedade em que se encontrariam sociedades mais autnomas, o indivduo movimenta-se pelo espao atravs de demarcaes e passagens.

    Entre os tsongas, Junod no encontrou essas sociedades especficas to claramente demarcadas. Suas anlises de descries de rituais basearam-se mais em situaes de passagem do que em ilustrao das divisrias

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    entre sociedades menores. Ainda assim, sua descrio mais ntida do ritual de passagem, no por acaso, foi relativa escola de circunciso dos tsongas uma verdadeira sociedade especfica, afastada inclusive geograficamente da aldeia5. Nessa anlise podemos perceber nitidamente a utilizao das categorias, cunhadas por Van Gennep, de passagem, perodo marginal, ritos de separao e agregao.

    Junod dividiu os ritos da escola de circunciso em trs sries que obedecem, consequentemente, a trs momentos indicados por Van Gennep: os ritos de separao; os ritos de margem; e os ritos de agregao. No primeiro momento, os meninos saem da aldeia em companhia dos rapazes circuncidados na escola anterior, que tero o papel de servidores e guardas dos novatos (1996 vol.I:88). A sada da aldeia , para Junod, o primeiro rito de separao, seguido por outros ritos realizados no caminho para o sungi (escola de circunciso), que exigem do iniciado a capacidade de lidar com a dor.

    Entre as duas fileiras deixa-se uma passagem. Os rapazes recebem ento copiosas varadas (a flagelao tambm, muitas vezes, um rito de separao). Depois de submetidos a esta experincia inesperada so agarrados no outro extremo da passagem por quatro homens que os despojam de todo o vesturio. Os cabelos so cortados (evidentemente para mostrar que se separam inteiramente do passado) e em seguida conduzem-nos junto de oito pedras onde os obrigam a sentarem-se. (...) Em frente delas h outras oito pedras em que esto sentados oito homens. So os Nyahambe, os Homens-Lees (...). Logo que o rapaz tomou o seu lugar numa pedra, em frente do Homem-Leo, recebe uma pancada por trs; volta a cabea para ver quem lhe bateu e avista um dos pastores que escarnece dele. O operador aproveita este momento, enquanto a ateno do rapaz est assim desviada, o operador agarra o prepcio e corta-o com dois movimentos. (Ibidem:89)

    A ablao do prepcio , para Junod, um rito de separao por excelncia. Trata-se de uma separao fsica

    de uma parte do corpo, representando a vida que o iniciado deixou para trs ao se dirigir ao sungi. Assemelha-se bastante s palavras de Van Gennep: Cortar o prepcio equivale exatamente a arrancar um dente (...). Com estas prticas retira-se o indivduo mutilado da humanidade comum mediante um rito de separao (...) que automaticamente o agrega a um grupo determinado (1978:74-75).

    D-se, ento, o perodo marginal. Os iniciados vivero por cerca de trs meses num recinto distante da aldeia proibidos de ter contato com pessoas exceo dos homens que j foram iniciados. A alimentao provida pelas mes dos iniciados, por exemplo, entregue sem que haja contato. Elas caminham diariamente at uma parte do percurso da escola e deixam as marmitas de comida ao cho, do um sinal e vo embora. S depois as marmitas so levadas para dentro da escola pelos pastores, como denomina Junod os homens j iniciados (1996 vol.I:91).

    Nesse perodo se impem vrios tabus, o principal o tabu sexual. O curioso, como atenta Junod, o contraste entre essa forte proibio e o uso deliberado da linguagem obscena durante esse perodo. Quando as mulheres levam os alimentos at perto da entrada do sungi, os pastores que os vo buscar podem dirigir a essas mulheres toda a espcie de palavras impuras que quiserem. As prprias mes tm o direito de cantar canes obscenas quando pilam o milho para o sungi. (Ibidem:92) Trata-se de uma caracterstica patente do perodo de margem, como j mostrara Van Gennep, quando a ordem suspensa e novos tabus so impostos.

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    Durante os trs meses, so introduzidos aos iniciados frmulas secretas, alm de aprenderem o ofcio da caa. H um largo uso de termos estrangeiros no sungi, desconhecidos pelos no-iniciados. Essas frmulas no podem ser transmitidas fora deste recinto, e uma maneira de reconhecimento de um iniciado no cotidiano da aldeia. Para Junod, essas frmulas tm por finalidade aumentar a impresso de mistrio da escola. Os ritos do perodo de margem so calculados para dar aos candidatos a impresso de que so homens novos e de que devem prov-lo, submetendo-se virilmente a todas as provas desta dura e s vezes cruel iniciao. (Ibidem:93)

    A marca da passagem imprime-se em sucessivas provaes. Os iniciados recebem pancadas diariamente por mais de uma hora, alm das pancadas avulsas que levam ao fracassarem nas atividades propostas pelos pastores; dormem ao relento (Ibidem:94); nenhum gole dgua permitido aos iniciados durante todo o perodo da escola; a alimentao precria, composta somente de farinha de milho. Essa soma de provaes pode levar alguns iniciados a um estado de sade lamentvel e at a morte (Ibidem:96). Se isso ocorre, o infeliz enterrado em terreno mido tal como um beb quando falece antes do cordo ter sido atado, ou seja, morre como se no fosse ainda uma pessoa.

    O perodo de margem, portanto, no parece nada agradvel a esses meninos que aguardam ansiosamente pelos ltimos dias, quando ocorrem os ritos de agregao. O primeiro deles tem lugar em todas as ltimas manhs da escola.

    Na extremidade acha-se um homem, meio escondido numa massa circular branca parecida com l ou cabelo. Acordam os rapazes, e os pastores conduzem-nos para o ptio. Fazem-nos deitar de costas, cabeas voltadas para o mastro que se chama mulagaro, e fazem-nos dizer: Bom dia, av. Ento, uma voz vinda do alto do mastro responde-lhes: Eu vos sado, meus netos (...). A significao deste rito clara: os candidatos so postos em comunicao com o velho que representa o cl; o princpio da participao na vida dos adultos da tribo. (Ibidem:101)

    Como parte desses ritos, h tambm um que busca, segundo Junod, a purificao atravs da ingesto de medicamentos pelos iniciados. Este rito assemelha-se mais a um rito de separao que de agregao. Encontramos muitas vezes no fim de perodos de margem ritos de separao. Significam a separao do prprio perodo de margem, o qual implica uma espcie de poluio que deve ser apagada. (Ibidem:101)

    J preparando a volta dos circuncidados aldeia, uma dana se sucede com os iniciados mascarados, com a identidade preservada, tendo, como pblico, as mulheres da aldeia. Depois, j no ltimo dia, todos os materiais usados na escola so reunidos, alguns homens tacam-lhe fogo, o grupo dos circuncisos, rodeado dos pastores e dos homens, dirige-se correndo para um lago sem olhar para trs (separao do sungi, do perodo de margem). Se olhassem o que se passava atrs de si, teriam os olhos varados e ficariam para sempre cegos! (Ibidem:102)

    Da se dirigem para a capital do chefe, onde realizam uma entrada solene.

    Cobertos de ocre eles marcham sobre esteiras estendidas no cho para que os seus ps no toquem a poeira; avanam lentamente, curvados, estendendo primeiro uma perna depois a outra num movimento vivo, tentando imitar a marcha do camaleo o sbio, o prudente. Da em diante so homens que pensam e no rapazes

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    desprovidos de inteligncia. Depois de todos se sentarem em silncio na praa central da capital, com as cabeas ainda inclinadas para o cho, as irms e as mes vindas de todas as aldeias devem ir reconhec-los. Cada mulher leva consigo um bracelete, ou um xelim, ou qualquer pequeno presente, e procura o seu filho na multido. Quando supe t-lo encontrado, beija-o na face e oferece-lhe o seu presente. Os rapazes empunham duas varas. Uma tem alguns pequenos ramos laterais em que penduram os braceletes (vusenga) que lhes do. A outra menor; quando a me encontra o filho e o beija, ele toca-lhe com ela levemente se a me ou a av; com muito mais fora se a irm ao mesmo tempo, pronuncia o novo nome que escolheu. Em resposta a esta demonstrao, a me pe-se a danar e a cantar o louvor do seu filho! um rito de agregao tpico, chamado o kukunga a ruptura do silncio que encontraremos por mais de uma vez nos ritos de passagem da tribo. (Ibidem:102-103)

    Nos rituais relacionados escola de circunciso, Junod parece ter encontrado a situao social perfeita para

    aplicar as categorias cunhadas por Van Gennep. Pde identificar nitidamente as vrias fases da escola de circunciso, utilizando apenas essas categorias, sem recorrer, portanto, a conceitos provindos diretamente do mentalismo corrente no evolucionismo. Porm, esse no o nico caso em que Junod aplicou a ideia de passagem, tampouco foi a nica forma com que analisou os rituais.

    No decorrer da etnografia, a anlise dessas situaes se mostra mais complexa e heterodoxa. Faz-se sentir a influncia direta de autores como Tylor, Frazer e Marett, pela qual o formalismo marcante do procedimento de Van Gennep perde espao. A abordagem mais formal do ritual em Junod encontra-se dispersa em toda a sua etnografia. De outro lado, a abordagem referenciada na anlise mentalista encontra-se mais concentrada, apesar de podermos ver elementos dispersos ao longo da etnografia, no seu estudo sobre a religio e a magia dos tsongas. Esse trecho constitui uma curiosa oportunidade de observarmos teorias, formuladas num estgio anterior ao desenvolvimento do mtodo etnogrfico, serem aplicadas por Junod atravs de um modo de se realizar pesquisa que possibilitou a base para a demolio dessas prprias teorias. Gostaria de me estender um pouco na exposio das anlises de Junod sobre o pensamento religioso tsonga para demonstrar como essas teorias sofreram com a aplicao ecltica do missionrio e como isso se deveu principalmente por estar Junod preocupado tambm com a prtica ritual.

    Para Junod, haveria, entre os tsongas, trs grupos de crenas e prticas mgico-religiosas: a ancestrolatria, o monotesmo e a prtica da adivinhao. A ancestrolatria seria a religio mais difundida e presente na vida tsonga. Para o pensamento desse grupo, concebe-se que todo indivduo, quando morre, continua com seu esprito no mundo. Esse esprito denominado xikwembu, aps a morte, passa a ser encarado como uma divindade, um antepassado-deus.

    Junod no v a ancestrolatria como uma religio bem sistematizada, apesar de estar constantemente presente na vida tsonga. A principal ideia sobre os antepassados-deuses a de que moram em bosques sagrados, onde so enterrados os chefes da tribo. Esses bosques so interditados aos homens, apenas permitida a entrada de um guardio, descendente do antepassado l enterrado. A proibio reforada por diversas histrias assustadoras que os tsongas contam sobre pessoas que invadiram a rea do bosque, ou que colheram frutos de suas rvores, e, por esses atos, foram perseguidas pelos espritos ou sofreram infortnios.

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    O relacionamento dos vivos com esses antepassados ocorre atravs de sacrifcios e preces. Existe um termo nativo que, para Junod, pode ser entendido como sacrifcio ou oferenda: o mhamba6 definido como todo o objeto, ato ou pessoa que se emprega para estabelecer uma ligao entre antepassados-deuses e os seus adoradores (1996 vol.II:359). Junod se utiliza de uma definio ampla porque lida com algo de fato amplo, mhamba pode tanto significar objetos utilizados em ddivas a esses deuses como tambm referem-se a objetos utilizados em aes mgicas. Pois os sacrifcios que se estabelecem para os antepassados-deuses no podem ser classificados como atos simplesmente religiosos.

    A magia apareceria nesses ritos a partir de aes baseadas em axiomas da mentalidade primitiva, seriam estes muito prximos aos dos definidos por Frazer, porm com variaes: o semelhante age sobre o semelhante e produz o semelhante; a parte representa o todo e age sobre o todo; o desejo expresso produz o resultado desejado (Ibidem:313). O primeiro axioma quase idntico ao da lei de similaridade de Frazer, o segundo consiste em uma ampliao da definio da lei de contigidade, pois Junod argumenta que no s o contato que liga os objetos ou elementos, como afirmava o pensador britnico, mas h consideraes mais espirituais. Transcrevo o exemplo que o autor usa para ilustrar o argumento:

    Por que deve a primeira mulher do caador encerrar-se na palhota, para salvar seu marido da fria do hipoptamo? Porque, sendo, como , a sua verdadeira mulher, a mulher por excelncia, ela est unida a ele por uma ligao misteriosa. A comunidade de vida mais completa entre ela e seu marido que entre o caador e suas outras mulheres (Ibidem:314)

    Junod parece querer dizer que esse tipo de magia baseada no axioma da parte sobre o todo pressupe, por vezes, no apenas um contato e uma relao direta entre os elementos, mas uma concepo, chamada de misteriosa, ou talvez social, dessa relao. No toa que Junod prefira usar o termo magia comunialista ao termo consagrado simptica por dar um carter mais social e menos mentalista definio. O terceiro axioma (o desejo expresso produz o resultado desejado) uma adio aos estabelecidos por Frazer, Junod acredita que a forte hierarquia do grupo social transformou a palavra (primeiramente do chefe) em algo poderoso, fazendo com que se praticasse essa magia verbal. Como ilustrao desses atos mgicos nos ritos do sacrifcio, pode-se citar o uso de unhas e cabelos dos chefes falecidos que agem no rito para que os deuses tomem tal atitude desejada.

    Junod encontra, ento, nos rituais envolvidos na ancestrolatria, prticas que denomina por religiosas, so elas: sacrifcios de animais, bebidas, objetos de valor e, raramente, humanos. Tais prticas tm o objetivo de agradar aos deuses, ou de reparar por alguma ofensa. Para Junod, as oferendas no tm valor real, j que os deuses no consomem as ddivas e nem os tsongas abrem mo de consumi-las; tm, somente, um valor religioso, pois so usadas para entrar em relao com os antepassados-deuses. Desse conjunto, Junod viu a ancestrolatria como uma religio pouco desenvolvida. Estaria presente nos antepassados-deuses o carter divino, trazido pela onipresena e onipotncia destes, mas ainda haveria humanidade em demasia nesses antepassados, uma identificao entre os vivos e os deuses que percebida na falta de respeito e temor dos religiosos frente aos antepassados-deuses, bem

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    como na ambigidade desses deuses que poderiam tanto fazer o bem quanto o mal. Faltaria, para a ancestrolatria, transcendncia e moral, presentes nas religies elevadas (monotestas).

    Junod encontra outras crenas que, acredita, no podem ser atribudas ancestrolatria. Estariam relacionadas, antes, a uma religio pouco atuante no pensamento tsonga, de forma a constiturem uma srie paralela ancestrolatria. Consistiria numa crena monotesta que teria como deus o Cu (Tilo). O missionrio no esconde a animao em encontrar pistas de monotesmo entre os tsongas: o encontro com essa concepo religiosa definida por Junod como um filo de ouro que foi descoberto graas a certas circunstncias fortuitas e que se deve explorar com grande cuidado (Ibidem:367).

    No h muitos ritos e prticas relativas ao Tilo, que se ocupa, principalmente, de grandes fenmenos meteorolgicos e csmicos. Dos poucos campos restantes de atuao do Cu, a chuva parece ser o assunto que apresenta mais indefinio sobre seu verdadeiro poder religioso, pois para conseguir a chuva, os tsongas procurariam o Cu, os antepassados-deuses, como tambm vrias outras foras. A chuva na vida tsonga uma questo capital, a falta nas estaes midas significa fome e misria, essa importncia que, para Junod, faz esse assunto ser envolvido por vrios rituais. Segundo Junod, a principal idia entre os tsongas consistiria em que a chuva seria causada pelos antepassados-deuses, portanto os rituais ganhariam a forma de sacrifcios com a finalidade de lhes agradar. A magia poderia tambm atuar para impedir a chuva de cair, isso seria efeito de drogas encantadas manipuladas por deitadores de sorte. Seria possvel tambm que abortos no tratados pelas regras da tribo fossem causas naturais da suspenso da chuva, dever-se-ia, ento, realizar ritos purificadores para restabelecer a ordem.

    Se o achado de elemento monotesta na crena tsonga agradou os olhos do missionrio, pode-se dizer que, com mesma intensidade, a arte da adivinhao impressionou Junod. A complexidade desta prtica, a sofisticao de seu saber e, principalmente, o carter representativo da vida tribal, fez esse etngrafo suspirar pelas qualidades do pensamento tsonga.

    Segundo Junod, a adivinhao entre os tsongas estaria presente em vrias prticas, desde pressgios feitos ao se ver animais que significam certo acontecimento na vida de um tsonga, passando por meios para tirar a sorte (semelhantes aos dados), ou estados de xtase que revelam a localizao de ouro escondido, at um sistema complexo que utiliza ossculos. Junod dedica menos de trs pginas para descrever os primeiros, no entanto, delonga-se por quase todo o captulo a explicar a arte de adivinhao atravs de ossculos. sobre sua anlise desta ltima prtica que, semelhantemente, daremos mais ateno.

    Essa arte consiste em jogar os ossculos e interpretar suas posies como um todo, realizando ento um prognstico ou um diagnstico. Cada ossculo representa um elemento presente na vida social tsonga, relacionado pela semelhana de formato, pelo local e principalmente por analogia. Por exemplo, Junod mostra que os ossculos dos animais domsticos representam as pessoas da aldeia, cada ossculo de animal representa uma pessoa, cargo ou idia baseado nas caractersticas dos animais. H outros objetos, porm, que no ossos, cuja funo representar idias e objetos. A interpretao dos ossculos divinatrios obedece a regras resumidas por Junod desta forma: primeiramente, faz-se perguntas sucessivas para saber de quem a culpa pelo problema causado (caso

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    seja uma doena), procurando inicialmente nos parentes do lado paterno e depois do lado materno; dependendo da posio em que caem os ossculos e a relao entre eles, tem-se certo significado que aponta o causa do mal. Para Junod, o sistema tsonga ultrapassa em muito a engenhosidade dos outros sistemas que [conhece] e responde admiravelmente s necessidades do indgena, porque corresponde a todos os elementos da sua vida e fotografa-os, por assim dizer, de tal maneira que, em todos os casos possveis, indicaes e diretivas podem ser obtidas (Ibidem:464-5) De tudo quanto precede conclui-se facilmente que a arte dos deitadores de ossculos est longe de ser um jogo de crianas e que no , tambm, negcio de charlates intrujando o semelhante demasiado crdito (Ibidem:488).

    A interpretao dos ossculos, como dito, baseia-se em regras compartilhadas pela populao, inclusive as interpretaes so discutidas, porm no se trata de uma aplicao de regras matemticas: esto fundamentadas na imaginao. No uma imaginao aproveitadora do deitador, mas uma criatividade aceita pela vontade de se saber o futuro. Essa crena, ento, na adivinhao, no parece pertencer a uma matriz clara do pensamento tsonga, poderia haver um fundamento religioso, pois os antepassados-deuses foram deitadores de sorte, apesar de os prprios ossculos poderem revelar desejos desses antepassados, em certo sentido, os ossculos so superiores aos deuses (Ibidem:489).

    A viso e descrio de Junod sobre essas trs matrizes mgico-religiosas que apresentei aqui nos possibilitam observar como as categorias de magia e religio que abrigaram um debate caloroso no evolucionismo clssico foram utilizadas pelo etngrafo. Vemos um desvio desses conceitos se compararmos sua formulao no debate evolucionista. Primeiramente, em Junod, a distino entre magia e religio no pode ser traada de maneira clara. Os atos mgicos no so resumidos a uma concepo desalmada do mundo, e nem a religio pode ser identificada por apenas exigir a existncia de espritos (Frazer 1956). Ao considerar os rituais, alm das crenas, na definio do carter de certo sistema ou prtica, Junod no consegue manter a coerncia que percebemos nas definies de Frazer, e torna-se possvel afirmar que o ritual da chuva, mesmo evocando um deus, mgico, ou que sacrifcios, mesmo imerso em crenas mgicas, religioso. A questo, para Junod, no est simplesmente na crena com a qual se realiza tal ao, mas no sentido geral do ritual. Como diriam, dez anos antes, Mauss e Hubert, ao criticar as delimitaes entre magia e religio em Frazer, para definir certa prtica preciso olhar o conjunto de prticas do qual ele faz parte (Mauss & Hubert 1979:52-3).

    Outro elemento desviante que aparece na etnografia a substituio de alguns termos da teoria mentalista sobre a magia. Junod utiliza o conceito de magia comunalista, em lugar da magia simptica. Uma diferena significativa se olharmos a partir da crescente importncia da anlise social da prtica mgica. A magia simptica pressupe uma interrelao de efeitos, assim como a comunialista. Porm aquela localiza essa interrelao na similaridade de ideias, objetos ou qualquer caracterstica que relacionada por associao mental. Diferentemente, a ideia de magia comunialista pressupe uma associao de elementos distintos a partir das relaes sociais. Aquilo que fundamentaria uma ligao entre dois elementos no moraria na mente canhestra de um selvagem, mas nas formas das relaes sociais.

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    Paulo GajanigoARTIGOS

    Por ltimo, seu interesse e admirao pela prtica da adivinhao reafirmam a busca crescente pela anlise social do ritual. A adivinhao, claramente mgica para o missionrio , possuiria uma concepo da sociedade, e o processo de interpretao de seus resultados levaria em conta o saber sobre a sociedade e suas relaes. Dessa forma, a prpria magia estaria imbuda pelo saber social e pelo conjunto das relaes presentes na tribo

    a c o n t R i b u i o d e J u n o d

    Como mostram Sally Falk Moore e Brbara Myerhoff (1977:3), os primeiros estudos antropolgicos sobre o ritual estiveram intimamente relacionados s prticas religiosas ou mgicas. Nessa perspectiva, pode-se incluir Tylor, Frazer e Marret. A ruptura epistemolgica que teve em Durkheim o mais forte representante no se estendeu diretamente para uma secularizao do ritual, mas abriu caminho para tal. Robert Bellah (2008:200) argumenta que j nAs Formas Elementares da Vida Religiosa, o autor permite uma leitura que identifique na vida secular prticas ritualizadas. No entanto, Durkheim, formalmente, ainda define o ritual como prtica referente ao sagrado.

    Marcel Mauss, membro da escola durkheimiana, foi o que mais precocemente tratou o ritual de forma secular. Desde o comeo de sua carreira, segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1979:24), Mauss pensava os costumes em geral como o objeto da antropologia, e no uma parte especfica ligada ao pensamento mgico ou religioso. Em seu texto sobre A Prece (1909), Mauss no mais insistir na diviso entre sagrado e profano (Karady 1968:XLIII), e assim abrir campo para seus estudos posteriores sobre prticas rituais seculares.

    Nada indica que Junod tenha lido poca Mauss ou Durkheim. Como dissemos, sobre o tema dos rituais, sua influencia principal Van Gennep, uma figura ambgua, marcado tanto pelo mentalismo quanto pela anlise social do ritual. Como aponta Da Matta,

    Van Gennep foi provavelmente o primeiro a tomar o rito como um fenmeno a ser estudado como possuindo um espao independente, isto , como um objeto dotado de uma autonomia relativa em termos de outros domnios do mundo social, e no mais como um dado secundrio, uma espcie de apndice ou agente especfico e nobre dos atos classificados como mgicos pelos estudiosos. (1978:12)

    No entanto, Les Rites de Passage no se apresentou como uma crtica ao acmulo terico sobre o ritual

    gerado pelos mentalistas. Na verdade, se acompanharmos as primeiras pginas de seu livro, veremos uma estranha juno de conceitos das duas abordagens distintas de ritual. Para Van Gennep, haveria dezesseis combinatrias de ritos que variariam segundo as seguintes categorias: dinamismo-animismo; positivo-negativo; simpticos-de contgio; diretos-indiretos. So classificaes que consideram fundamentalmente o contedo do rito, e no sua forma. Sem se confrontar diretamente com essas categorias, e at reproduzindo-as, o autor chama ateno para outro elemento: o mecanismo do rito. A anlise dos mecanismos formais do rito vai ento ganhando espao no texto e, nas palavras de Da Matta,

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    possvel perceber nitidamente como a viso tipolgica, apresentada logo nas primeiras pginas do livro, cede lugar a uma viso estrutural, fundada no mais numa classificao exclusiva e complicada de tipos de rituais, mas em princpios organizatrios, dos quais a necessidade de incorporar o novo, reduzir a incerteza e realizar a passagem de posio, num deslocar constante, fundamental. (1978:17)

    O movimento e a tenso vistos em Les Rites de Passage so, creio, bastante semelhantes ao que pode ser observado na etnografia de Junod, porm, obviamente, perceptvel de maneira mais rdua, por no ser um livro de sntese, como o caso da obra de Van Gennep. No que se refere viso secular do ritual, Van Gennep ainda define o ritual de passagem como uma forma de se passar por limites que separam o profano e o sagrado7, fala, ao tratar dos ritos de iniciao, de rotao do sagrado:

    O sagrado, de fato, no um valor absoluto, mas um valor que indica situaes respectivas.(...) Assim, alternadamente, conforme nos coloquemos em uma posio ou em outra da sociedade geral, h um deslocamento dos crculos sagrados. (1978:32-33)

    Nesse sentido, Junod tem uma contribuio para alm de Van Gennep. Como afirmou Gluckman, Junod also used this schema [rites de passage], sometimes implicitly, but mostly explicitly, to describe and discuss not only other Tsonga rituals but also much of Tsonga secular life. (1966:8-9) Como toda a contribuio deste missionrio, o aspecto ressaltado por Gluckman encontra-se perdido pelas narrativas etnogrficas do missionrio. No encontramos, portanto, uma anlise anunciadamente secular do ritual, mas sim o resultado de um uso deliberado do conceito de rito de passagem em quase todas as fases crticas da vida social dos tsongas.

    Mesmo na prpria descrio da escola de circunciso detalhada mais acima, vemos uma abordagem no focalizada na relao com o sagrado, mas no procedimento pelo qual se opera uma mudana de status8. Para Junod, o rito de passagem pelo qual so submetidos os jovens tsongas, ao contrrio do batismo cristo que significaria a entrada numa comunidade santa, ignora completamente esta idia moral e espiritual (1996 vol.I:469). Portanto, o fim da escola de circunciso , principalmente, introduzir o rapazinho na idade viril, purific-lo do vukhuna, fazer dele um membro adulto e consciente da comunidade (Ibidem, 104)9.

    Em outras prticas, percebemos a ausncia de uma ideia de sagrado nessa interpretao de Junod, apesar da utilizao da ideia de passagem. Um caso interessante o dos ritos de guerra os procedimentos pelos quais passam os guerreiros tsongas durante uma batalha so os mesmos, segundo Junod, que os vistos na escola de circunciso e nos ritos de luto. Durante o conflito, toda a povoao deve observar severos tabus, como a proibio de relaes sexuais em toda a povoao. O perodo das hostilidades parece ser verdadeiramente considerado como um perodo margem para toda a tribo. (Ibidem:425). Tal semelhana chega a causar espanto no prprio missionrio: No impressionante ver a correspondncia que existe entre estes ritos, com a sua seqncia particular, e os da escola de circunciso, do luto, e da mudana de uma aldeia? (Ibidem:426).

    Portanto, creio, fazendo coro com as palavras de Gluckman, ser essa a contribuio de Junod para a teoria

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    ritual na antropologia, que deve ser localizada na sua utilizao extensiva do conceito de ritual de passagem que se mostrou frtil ao se deparar com a vida social dos tsongas. Junod pde, assim, explorar alguns limites do conceito. A viso mais formalista desse conceito permitiu ao missionrio se desfazer, por vezes, da necessidade de um elemento sagrado no ritual. Explorou o rito de passagem como um procedimento, desenvolvendo as potencialidades do trabalho mpar e criativo de Van Gennep.

    Uma demonstrao desse argumento pode ser encontrado ao percorrermos o caminho traado pelas referncias ao Usos e Costumes dos Bantos. A despeito de sua contribuio discusso do estudo do parentesco, as referncias obra de Junod se restringem aplicao do conceito de rito de passagem. Gluckman, certamente, foi um dos antroplogos que leram o trabalho de Junod com mais ateno (Cabral 1996:26). Victor Turner tambm foi um leitor minucioso da obra (Engelke 2000:845). Em ambos podemos entender o interesse e o impacto provocados pelas descries de Junod dos ritos de passagem. Ambos os autores tiveram um papel central na transfigurao da ideia do rito de passagem para a anlise da vida social mais ampla, para a compreenso dos conflitos inerentes s novas relaes sociais forjadas no contexto colonial africano. Em Turner, por exemplo, vemos a transformao da categoria de perodo marginal em algo mais amplo, para alm de uma existncia ritual, marcando um processo comum presente em sociedades variadas, inclusive na sociedade ocidental moderna (Turner 1974). Como coloca sinteticamente Joo de Pina Cabral, Vemos assim surgir uma nova concepo de liminaridade, que no a identifica exclusivamente com os processos de transio, mas abrange tambm as formas de conceber os fenmenos marginais ou antiestruturais (1996:32).

    A Pina Cabral, por sua vez, deve-se atribuir um papel semelhante ao que foi forjado por Gluckman, com a ressalva do perodo que atuou. O antroplogo portugus resgatou o trabalho de Junod para indicar a contribuio de seu pensamento para o conceito de liminaridade. Caracterizou, em sintonia com Gluckman, o estudo de Junod como um passo a mais ao que fora dado por Van Gennep, e atribui tal feito ao desenvolvimento de categorias propriamente sociais (1996:29).

    Dois pontos, creio, servem-nos como concluso. Primeiro, a pouco conhecida obra de Junod, em particular no Brasil, pode ser objeto de estudo da antropologia social, j que apresenta reflexes relevantes que ainda dialogam com o estgio atual das pesquisas, principalmente, na temtica dos rituais seculares. Por fim, a etnografia Usos e Costumes dos Bantos demonstra que a transio da abordagem mentalista ao foco de anlise social no foi linear nem abrupta; mesmo autores que apresentam perspectiva claramente evolucionista (Junod partia da ideia de uma linha evolutiva da cultura) podem apresentar reflexes e categorias de anlise frteis para uma perspectiva no evolucionismo e fortemente social.

    ____________________________________________Paulo Gajanigo mestre em Antropologia Social pela UNICAMP e

    doutorando em Cincias Sociais pela UERJ

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    n o ta s

    1 No famoso artigo The mothers brother in South Africa, escrito em 1924, Radcliffe-Brown critica a explicao dada por Junod para o comportamento lcito e ntimo entre o irmo da me e o filho da irmo entre os tsongas. Junod argumenta que essa intimidade pode ser explicada como uma sobrevivncia de um perodo anterior de matriarcado. Da a atribuio de Junod como partidrio da histria conjectural. Radcliffe-Brown, usando das prprias descries de Junod, prope uma explicao sincrnica, negando a busca por explicaes que no poderiam ser encontradas dentro da estrutura social. O debate foi visto como um clssico do confronto entre a nascente antropologia social, e particularmente o estrutural-funcionalismo, com o evolucionismo. Em minha dissertao, discuto como isso obscureceu vrias sutilezas que impedem uma definio to rgida de Junod, mesmo no que diz respeito ao tema do parentesco. Para um aprofundamento dessa discusso, ver Gajanigo 2006, especialmente, o captulo I da segunda parte O irmo da me de Junod.

    2 Parte desse objetivo se deu com a publicao, pelo Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp, do vol. I de Usos e Costumes do Bantos em 2009.

    3 O que chamo de Misso Sua possuiu vrios nomes, entre os quais destacamos Mission des glises Libres de la Suisse romande (Mission romande), denominao que tinha em 1883, e Mission Suisse Romande, nome que receber em 1917 (Butselaar 1984).

    4 George Stocking, ao comentar sobre a passagem da antropologia evolucionista para a que chama de sociocultural, aponta que no mbito poltico, a crtica ao evolucionismo parte j de um perodo mais avanado do colonialismo, onde a questo da completa assimilao questionada, dando cabo a uma resposta romntica de preservao das culturas (1987: 289). Junod, de fato, afirmava que os africanos deveriam se adaptar s novas situaes de vida, modernizar-se. No entanto, ressaltava que deveriam fazer de forma prpria, atravs de sua prpria cultura (1996, vol.II: 534). Sobre a posio de Junod frente a preservao da cultura tsonga, ver Gajanigo 2006:36-7.

    5 Segundo Junod, os meninos que somavam seus 10 a 16 anos, ou mesmo os adultos que por algum motivo como estarem trabalhando nas minas na frica do Sul no puderam ser circuncidados, dirigiam-se escola de circunciso que era realizada com uma frequncia de 4 ou 5 anos.

    6 Sobre a caracterizao do mhamba, Junod s a realizou na segunda verso de Life in a South African Tribe, ou seja, a que foi traduzida para o francs e posteriormente para o portugus, sendo essa a que estudamos.

    7 Como afirma Terence Turner, a concepo do ritual como transio entre profano e sagrado foi fortemente influenciada pelo texto de Mauss e Hubert sobre o sacrifcio e ainda pelo trabalho de Robertson Smith um precursores na anlise social do ritual (Turner 1977:69).

    8 Apesar de em Van Gennep quase todos os dados apresentados serem de cerimnias mgico-religiosas, encontra-se um dado sobre a iniciao profissional do arteso (1978: 95), o que aponta Van Gennep que h um princpio subjacente no ritual de passagem que tambm influencia outros procedimentos, como o citado. Ou seja, Van Gennep d uma chave fundamental aqui para a utilizao do esquema indicado do ritual para eventos seculares.

    9 O fim de purificar o iniciado do vikhuna no significa que tem um sentido sagrado, pois, segundo Junod, o vukhuna simplesmente o estado de um jovem que ainda no foi circuncidado, sendo considerado um ser incompleto (1996, Vol.I: 74).

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    Paulo GajanigoARTIGOS

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    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social

    Entre o Evolucionismo e a Antropologia Social: a Secularizao do ritual em Usos e Costumes dos Bantos, de

    Henri Junod

    R e s u m o

    O conceito de ritual de passagem, hoje largamente utilizado para descrever momentos de marcao social, significou um passo no sentido da secularizao nos estudos dos rituais. Van Gennep, ao formul-lo, pensou ainda no sagrado como objeto essencial do rito, mas deu instrumentos importantes para superar essa vinculao. Henri Junod, amigo de Van Gennep, missionrio e etngrafo, usou o conceito para dar unidade s suas descries etnogrficas, avanando assim no uso desse conceito para a compreenso da vida secular. Buscou-se demonstrar como o largo uso que Junod faz do conceito de ritual de passagem em sua etnografia Usos e Costumes dos Bantos, publicada entre 1912 e 1913, criou uma tenso com sua tentativa de aplicar as categorias mentalistas desenvolvidas por Tylor, Frazer, Marret e outros. Dessa forma, o trabalho de Junod aparece como uma expresso importante do conflito entre o evolucionismo e a ento nascente Antropologia Social.PALAVRAS-CHAVE: Henri-Alexandre Junod; Ritual; Ritos de Passagem; Crena; Etnografia.

    Between Evolutionism and Social Anthropology: The Secularization of Ritual in Henri Junods Uses and Customs

    of the Bantu

    a b s t R a c t

    The concept of rite of passage, which has been widely used nowadays to describe social milestones, meant one step towards a secular view on the ritual studies. Although Van Gennep thought holiness as an essential ritual object when first enunciating this concept, he furnished important instruments to overcome this bound. Henri Junod, Van Genneps friend, missionary and ethnographer; applied this concept to unify his ethnographic descriptions grasping the secular life. We try to demonstrate that the large application made by Junod of the rite of passage concept in his ethnography Life in South African Tribe (published between 1912 and 1913) tensions with his attempt to use the mentalist categories of Tylor, Frazer, Marret and others. Thus, Junods work emerges as a important expression of the conflict between Evolucionism and the rising Social Anthropology.KEYWORDS: Henri-Alexandre Junod; Ritual; Rites of Passage; Beliefs; Ethnography.

    Recebido em 08/03/2010

    Aprovado em 05/10/2010