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Revista Eletrônica de Educação, v. 2, n. 2, nov. 2008. Artigos. ISSN 1982-7199. Programa de Pós-Graduação em Educação _______________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________ SIROTA, R. – As delícias de aniversário: uma representação da infância. Trad. de Rosária Cristina Costa Ribeiro. Revista Eletrônica de Educação. São Carlos, SP: UFSCar, v.2, no. 2, p. 32-59, nov. 2008. Disponível em http://www.reveduc.ufscar.br. 32 AS DELÍCIAS DE ANIVERSÁRIO: UMA REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA Colóquio O Aniversário Clermont-Ferrand Régine Sirota 1 Université Paris Descartes Tradução original do Francês: Rosária Cristina Costa Ribeiro Revisão Técnica: Anete Abramowicz SIROTA (R.), «Les délices de l’anniversaire, Une mise en représentation de l’enfance», in Montandon, A.,(ed), L’anniversaire, Presses Universitaires Blaise Pascal, Clermont Ferrand, 2008, p.117-144. Resumo O artigo da Profa Régine Sirota: As delícias do aniversário: uma representação da infância nos mostra que além desta festa fazer parte de uma espécie de relógio social que marca os acontecimentos sociais e culturais, socializando e construindo os indivíduos no interior de uma determinada cultura, com suas regras de civilidade (dar e receber presentes, por exemplo), por esta via transmite uma cultura literária, gastronômica além de produzir a infância. Por outro lado, é também, uma forma de estetização do cotidiano. O artigo a partir de algo, aparentemente efêmero e pequeno como um bolo de aniversário, refaz e discute de maneira impressionante, conceitos preciosos da história cultural: como a civilidade e as coisas “ordinárias”, e da sociologia da criança e da infância, para além do processo de socialização. Palavras-chave: Aniversário, infância, bolo de aniversário, rito de socialização, identidade Veja também a versão original em francês publicada nesta edição. Mots-clés: Anniversaire, enfance, Gâteau d'anniversaire, rite de socialisation, identité Voir aussi la version originale française publiée dans ce numéro. Abstract The pleasures of birthday: a representation of childhood The article of Professor Régine Sirota – The pleasures of birthday: a representation of childhood – shows us that, apart from being part of a kind of social clock that sets the social and cultural situations, socializing and building individuals in a determined culture, with its rules of civility (give and get gifts, for 1 Professora Universitária, Université Paris Descartes, Cerlis, UMR 4070, CNRS.

18-74-1-PB

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infância

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  • Revista Eletrnica de Educao, v. 2, n. 2, nov. 2008. Artigos. ISSN 1982-7199. Programa de Ps-Graduao em Educao _______________________________________________________________________________________________

    __________________________________________________________________ SIROTA, R. As delcias de aniversrio: uma representao da infncia. Trad. de Rosria Cristina Costa Ribeiro. Revista Eletrnica de Educao. So Carlos, SP: UFSCar, v.2, no. 2, p. 32-59, nov. 2008. Disponvel em http://www.reveduc.ufscar.br.

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    AS DELCIAS DE ANIVERSRIO: UMA REPRESENTAO DA INFNCIA

    Colquio O Aniversrio Clermont-Ferrand

    Rgine Sirota1 Universit Paris Descartes

    Traduo original do Francs: Rosria Cristina Costa Ribeiro Reviso Tcnica: Anete Abramowicz

    SIROTA (R.), Les dlices de lanniversaire, Une mise en

    reprsentation de lenfance, in Montandon, A.,(ed), Lanniversaire, Presses

    Universitaires Blaise Pascal, Clermont Ferrand, 2008, p.117-144.

    Resumo O artigo da Profa Rgine Sirota: As delcias do aniversrio: uma representao da infncia nos mostra que alm desta festa fazer parte de uma espcie de relgio social que marca os acontecimentos sociais e culturais, socializando e construindo os indivduos no interior de uma determinada cultura, com suas regras de civilidade (dar e receber presentes, por exemplo), por esta via transmite uma cultura literria, gastronmica alm de produzir a infncia. Por outro lado, tambm, uma forma de estetizao do cotidiano. O artigo a partir de algo, aparentemente efmero e pequeno como um bolo de aniversrio, refaz e discute de maneira impressionante, conceitos preciosos da histria cultural: como a civilidade e as coisas ordinrias, e da sociologia da criana e da infncia, para alm do processo de socializao.

    Palavras-chave: Aniversrio, infncia, bolo de aniversrio, rito de socializao, identidade

    Veja tambm a verso original em francs publicada nesta edio.

    Mots-cls: Anniversaire, enfance, Gteau d'anniversaire, rite de socialisation, identit

    Voir aussi la version originale franaise publie dans ce numro.

    Abstract The pleasures of birthday: a representation of childhood The article of Professor Rgine Sirota The pleasures of birthday: a representation of childhood shows us that, apart from being part of a kind of social clock that sets the social and cultural situations, socializing and building individuals in a determined culture, with its rules of civility (give and get gifts, for 1 Professora Universitria, Universit Paris Descartes, Cerlis, UMR 4070, CNRS.

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    instance), it also portrays a gastronomic and literary culture, producing childhood. However, it is also a way of aesthetically portray daily life. Having something apparently ephemeral and small as a birthday cake as starting point, the article wonderfully rebuilds and discusses precious concepts of cultural history: civility, ordinary things and childhood sociology beyond the socialization process.

    Key-words: Birthday, childhood, birthday cake, socialization rite, identity

    See also the original French version published in this issue.

    O aniversrio da criana, um ritual que reflete a alterao do lugar da criana no conjunto dos rituais.

    O ritual de aniversrio, ritual antigo, datado da Antiguidade, toma no perodo contemporneo, qualificado como modernidade tardia ou segunda modernidade, uma fora e uma importncia inditas que sublinha a evoluo do status da criana. Isso acontece a partir de uma srie de mudanas, pois um ritual no se reinventa, no se cria do nada, ele surge em uma exploso das referncias sociais, como explica Lvi-Strauss a propsito do rito de Natal, e prope uma reorganizao de formas em parte j existentes.

    Duas principais mudanas marcam essa evoluo: Primeiramente, passa-se na Frana da celebrao de participao

    em um grupo o que representava a festa patronal do Santo sob a gide da

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    igreja catlica celebrao do indivduo, mais especfica dos pases de origem protestante2.

    Em segundo lugar, o aniversrio no celebra mais o idoso da famlia do que a criana. No sculo passado era o ancio que era festejado, assim o historiador Vincent Gendron mostra o lugar central ocupado pelos avs. principalmente em torno deles que estava organizado o cerimonial familiar de aniversrio. Os netos tinham de oferecer pequenos presentes, preparados por suas prprias mos, buqu de flores colhidas nos prados ou poesia escrita pela criana e recitada em honra dos seus avs.

    Enquanto eu me arrumava, bateram minha porta. Eu dissera entre. Georges e Jeanne entram com Alice. Eles me desejam feliz aniversrio. Georges me trouxe um excelente desenho, uma cabea de moo feita por ele junto com Bonnat. Eu o incentivo a continuar junto natureza. Jeanne me d um lindo bordado, um marcador para meus livros, feito por ela. Alice me envia da parte de Lockroy um enorme buqu que eu deposito a seus ps.

    Assim, Victor Hugo relata seu prprio aniversrio em Coisas

    vistas. Flores do campo, colhidas com intenes a uma pessoa amada, so consideradas como equivalentes ao mais rico objeto encontrado no comrcio. A ordem dos valores familiares evoluiu desde ento, agora a criana que faz a famlia, e em torno dela que se ordena o crculo familiar. A celebrao da ordem geracional inverteu-se.

    No mais, o aniversrio faz parte de um crculo de festividades e de rituais em recomposio.

    Na ordem individual do ciclo da vida, ele aparece entre os rituais que marcam as principais etapas da biografia de cada pessoa. Desde o surgimento do indivduo (por meio de ritos religiosos tais como o batismo e a circunciso), at sua maioridade religiosa (que seja por meio da primeira comunho ou do Bar-mitsva), o casamento e a morte. Ao mesmo tempo o conjunto de rituais religiosos marca essas etapas, muda, enfraquece ou renasce, paralelamente a esse ritual profano que se instala. Assim enquanto rito de passagem, o aniversrio marca tambm as etapas do ciclo de vida, pois ele se repete em data fixa, por meio de uma forma ritual globalmente idntica, mas que se modifica ao longo do curso da vida do celebrante, primeiro durante a infncia o crescimento, depois durante a idade adulta o envelhecimento do indivduo.

    Nessa ordem coletiva, enquanto rito de integrao social, suas formas se multiplicam e se constroem nos diferentes crculos sociais que marcam a trajetria da vida do indivduo. Assim, durante a infncia, esse ritual aparece em trs espaos sociais: a clula familiar, a instituio encarregada de cuidar da criana (creche, jardim da infncia, escola maternal ou primria) e no

    2 Como mostra a historiadora Franoise Lefvre em sua obra sobre histria do aniversrio.

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    grupo de amigos, por meio do qual se pode nomear o aniversrio entre colegas.

    O ritual de aniversrio na infncia encontra-se, pois multiplicado por trs, a criana enquanto pequeno indivduo celebrada em trs instncias de socializao nas quais cada uma atribui uma importncia cada vez mais marcada pela individualizao da criana no quadro de seu processo educativo. Mas cada instncia vai celebrar cada um de seus membros a sua maneira. Repete-se, pois no ciclo de vida do indivduo, tomando formas levemente diferentes.

    O que quer dizer uma multiplicao exponencial do ritual por meio dessa conjugao do ritual, da clula familiar, clula de cuidado, at o grupo de pares. Mesmo as mutaes da clula familiar, devidas aos divrcios, separaes e recomposies trouxeram uma certa diminuio do ritual. Poetas e cantores contemporneos tais como Julien Clerc fazem nostalgicamente eco como nessa msica intitulada Double Enfance/Dupla infncia composta por Mxime Le Forestier: Ela no dada a todo mundo/ A sorte de se amar pela vida inteira/ Duas casas, dois bairros/ Dois bolos de aniversrio/Multiplicar os pais e as mes/S h lados ruins; Antes dos outros eu saberia/ Que o nico sentimento que dura/ a dor da ruptura.

    O aniversrio insere-se tambm em uma dupla temporalidade, aquela do ciclo da vida e do ciclo do ano. Pois celebrando a passagem dos anos ao longo do avano da vida, repete-se em data fixa, no dia do nascimento. O aniversrio toma seu lugar no ciclo do calendrio que marca o ritmo do ano. Mas em uma datao prpria para cada indivduo, em oposio ao ritmo do calendrio coletivo idntico para todos.

    O aniversrio da criana: um ritual e suas regras

    Se o aniversrio familiar se celebra frequentemente em torno de um bolo, degustado no final da refeio ou tarde, o aniversrio escolar e entre os colegas se organizam em volta de um degustar das crianas, retomando as tradies da aristocracia anglo-saxnica e alem: Para meu aniversrio, ns tnhamos habitualmente uma festa de crianas. Tnhamos autorizao de nos sentar grande mesa de jantar na sala do andar trreo. Havia uma boa quantidade de bolos, de chocolate, e cheios de biscuit assim como pequenos presentes que seria preciso ganhar por meio de todo tipo de jogo, e no final havia uma espcie de procisso por toda a casa, em que minha me acompanhava ao piano... 3 4

    O aniversrio entre colegas adota globalmente essas prticas, mas em uma seqncia bem especfica, pois segue certo nmero de etapas

    3 Retirado das memrias de Brigitte Bermann-Fisher filha do editor Samuel Fisher Hedwig, (1905-1991, Museu judeu de Berlin). 4 A exemplo de Mauss pode-se considerar o sistema de troca realizvel em um aniversrio em um sistema de presente, lembrana e assim considerar o aniversrio da criana como sendo um potlatch. Cf Sirota, R., 1998, "Les copains d'abord, les anniversaires de l'enfance, donner et recevoir", Ethnologie franaise, n spcial Les cadeaux, dc., p. 457-471, (reedio 2001).

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    que se encontram sistematicamente por meio do cerimonial do aniversrio5. Pode-se assim formalizar certo nmero de regras:

    A regra do convite: uma pequena carta comprada ou enviada alguns dias antes. A regra do presente: categoria imperativa do aniversrio, grande amigo, grande presente, amiguinho, presentinho. A regra da lembrana: o ciclo de trocas completado por uma pequenina lembrana oferecido a cada convidado. A regra da decorao: colocao de uma decorao infantil especfica para o ambiente e para a mesa. A regra da roupa: elegante para os mais jovens, leve para os mais velhos. A regra da oferta de comida: balas, bebidas doces e um grande bolo so oferecidos. A regra da gula: pode-se comer quanto de balas se quer. A regra do bolo: o bolo feito ou comprado e decorado especialmente. A regra da partio do bolo: nenhuma criana se serve sozinha do bolo, cada participante recebe dele uma parte. A regra das velas de aniversrio: a quantidade de velas que decoram o bolo referente aos anos, somente a criana que faz aniversrio pode sopr-las. A regra do canto de celebrao: cada participante deve cantar e mencionar o nome da criana que faz aniversrio. A regra da presena dos pais: ao menos um dos pais est presente, geralmente os dois. A regra das brincadeiras e jogos colocados a disposio ou propostos: em funo da idade e dos centros de interesses da criana. A regra da recordao: concretizao da felicidade da criana moderna no lbum de fotos familiar.

    Organizado em torno dessas regras, um verdadeiro potlach6 da infncia vai se estabelecer, pois o ciclo de trocas de convites ao participar do aniversrio vai se instalar ao longo do ano. Se uma criana convida em mdia 10 crianas, ele convidado uma dezena de vezes cada ano durante 10 anos; o ciclo comea por volta dos dois anos alcanando sua plenitude at a entrada no colgio. Pode-se considerar que uma criana comemore esse ritual intensamente mais de cem vezes durante a sua infncia, se somados os aniversrios familiares, escolares e dos colegas. Poucos rituais profanos atingem uma tal intensidade. 5 Esse artigo se apia sobre a pesquisa etnogrfica conduzida h vrios anos a respeito do aniversrio considerado como ritual de socializao, para a observao participativa, sobre sessenta aniversrios aproximadamente observados no XIII arrondissement (distrito) de Paris. Essa presquisa se prolonga atualmente sobre um mapa internacional sob a tica comparatista. 6 O potlatch uma cerimnia praticada entre tribos ndigenas da Amrica do Norte, como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl. Tambm h um ritual semelhante na Melansia. Consiste num festejo religioso de homenagem, geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou salmo, seguido por uma renncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado. O valor e a qualidade dos bens dados como presente so um sinal do prestgio do homenageado. Originalmente o potlatch acontecia somente em certas ocasies da vida dos indgenas, como o nascimento de um filho; mas com a interferncia dos negociantes europeus, os potlaches passaram a ser mais frequentes (pois haviam bens comprados para serem presenteados) e em algumas tribos surgiu uma verdadeira guerra de foras baseada no potlatch. Em alguns casos, os bens eram simplesmente destrudos aps a cerimnia. Os governos canadense e estadunidense proibiram o potlach em fins do sculo XIX, por considerar o ritual uma perda "irracional" de recursos. Com a compreenso do significado do potlatch, a proibio desapareceu em 1934 nos EUA e em 1954 no Canad. Algumas tribos praticam a cerimnia ainda hoje, e os presentes incluem dinheiro, taas, copos, mantas, etc. (N.T.)

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    Representatividade do destino de um pequeno indivduo

    Smbolo, s vezes, da felicidade familiar e dos percalos dos pequenos destinos individuais, o aniversrio tende a tornar-se uma cena de predileo da literatura e da cinematografia contempornea. Pode-se por meio de algumas de suas declinaes seguir a evoluo de seus prmios e do status da criana. Se considera como a exemplo um certo nmero de antroplogos para quem a noo de ritual secular pode se estender aos comportamentos rituais, repetidos e coletivos, os quais compreendem uma forma de imposio na qual o mediador do ritual toma a forma de alguma coisa consumvel em comum, bebida ou refeio, o bolo de aniversrio parece simbolizar ele prprio esse rito. Tomemos essa regra do bolo e seu envolvimento na literatura contempornea para seguir a evoluo e os prmios de aniversrio para criana.

    Raymond Carver em um trecho de sua coleo As vitaminas da felicidade intitulada No grande coisa, mas faz bem faz desse pensamento o quadro de sua indagao.

    Desde a primeira cena, o aniversrio posto em cena, por meio da compra e do pedido do bolo de aniversrio: Sbado tarde, ela foi padaria do centro comercial. Aps ter folheado um classificado com fotos de bolos, colados sobre as pginas, ela encomendou um de chocolate, o sabor preferido de seu filho. Seu nome, Scott, seria escrito em letras verdes embaixo do planeta. Sado da cozinha domstica, tornado objeto comercial, o bolo de aniversrio se padronizou como produto especfico, vendido em supermercados, ou seja, tornou-se objeto de catlogo. Produzido profissionalmente, s vezes mesmo de maneira industrial, ele deve, entretanto ser individualizado e corresponder ao gosto de cada criana. O bolo escolhido estava decorado com uma nave espacial com plataforma de lanamento, sob um polvilhamento de estrelas, com um planeta vertendo lava na borda. Os catlogos e as vitrines das padarias, em numerosos pases, oferecem dessa forma uma grande variedade de possibilidades de escolha, que pressupem traduzir os centros de interesses de cada criana, mas atravs dos quais se expressam e se constituem as escolhas culturais do mundo infantil, determinados lugar e poca. Ela era me, tinha 33 anos e lhe parecia que todo mundo, sobretudo um homem da idade do padeiro velho demais para ser seu pai, devia ter filhos e conhecer esse ritual dos bolos e degustao do aniversrio. Ritual que atravessa as classes sociais, proveniente da aristocracia britnica, o aniversrio efetivamente se banalizou na Amrica contempornea, tomando formas mais ou menos simples ou sofisticadas segundo os meios sociais. Mas ainda ele expressa os smbolos da felicidade da infncia e de sua ecloso pessoal em uma sociedade de abundncia. O bolo estaria pronto segunda de manh, to quente sado do forno, e bem a tempo para o degustar tarde. Mas de segunda de manh, o heri da festa de aniversrio vai a escola a p com um outro garotinho, eles se passam e repassam um saco de batatas chips, o danado tentando descobrir o que seu amigo vai lhe dar como presente. Distrado pela discusso, ao atravessar a rua,

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    foi atropelado por um carro. A criana foi hospitalizada com urgncia. Em sua inquietude, os pais esquecem a encomenda. O bolo ficou na padaria de onde o ataque telefnico do padeiro, que irritado pela encomenda perdida e no sabendo de nada em relao ao coma depois da agonia da criana, telefona sem parar, lembrando esse dia de festa de uma felicidade em decomposio. Os pais loucos de dor e de raiva voltam padaria, lugar em que eles se abatem, e terminam a manh, para dividir com o padeiro uma xcara de caf e seus pezinhos de canela, quentes recm sados do forno. Eles coam a cabea quando o padeiro se pe a falar da solicitude, e dessa impresso de dvida e de limitao que ele sentia de sua idade murcha. Ele lhes diz, o que era ter passado toda uma vida sem filhos. Ele lhes falou dos dias que se repetiam, com os fornos todo o tempo cheios e todo tempo vazios. A preparao dos buffets, das festas. As coberturas assim grossas. Os noivinhos plantados no alto dos bolos de casamento. Centenas, no milhares, agora. Os aniversrios. Vocs vem isso, todas essas velas que queimam. Divide o mesmo vazio de uma vida sem filhos, esses filhos do desejo, tornados, s vezes, muralhas contra a solido e o centro da vida familiar. Mas felicidade eminentemente frgil como ilustra o acidente de Scotty no dia de seu aniversrio, segue Ulrich Beck em sua anlise de uma sociedade de risco. Essa criana, bem rara, tornou-se o heri do cotidiano, forma particular do encantamento do mundo profundamente desencantado pintado por Raymond Carver. Mas tambm pintura do avesso da decorao desses dias extraordinrios das existncias ordinrias, por meio do destino do bolo de aniversrio, esquecido em uma padaria.

    A encarnao do rito em um objeto: o bolo de aniversrio

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    O bolo de aniversrio tornou-se com o passar do tempo um bolo especfico, e pode ser considerado uma espcie de relgio social que se apresenta no quadro de confeitarias frequentemente de origem religiosa que marcam um calendrio social, tornado amplamente profano: Panetone de Natal, Crpes de Chandeleur7, Bolachas de Dia de Reis, Cuca de So Nicolau, Beignet8 de Mardi Gras (tera-feira de Carnaval). O calendrio das etapas da vida marcado por confeitos especficos, tais as peas montadas para comunho ou os bolos de casamento. Cada uma dessas ocasies marcada por um aparato especfico, refletindo a simbologia do ritual, assim Mary Douglas toma como exemplo do sistema alimentar ingls o bolo de casamento:

    O apogeu marcado pela arquitetura imaculada e cintilante do bolo de trs andares que celebra esse grande acontecimento da vida, o casamento. Seu glac to duro que preciso cortar com esforos conjugados dos dois noivos armados de uma faca de tamanho de um sabre.

    Em uma ordem menos tradicional e menos acadmica, o bolo de aniversrio se instalou no imaginrio da cultura americana, apoteose dos romances ou das sagas de poderosos desse mundo. Mltiplos exemplos poderiam ser dados, tal como o bolo de aniversrio ofertado a John Fitzgerald Kennedy de onde sairia Marilyn Monroe molhada em um super vestido branco cantando languidamente Happy Birthday to you, Mister President ou como aquele do padrinho da mfia do filme de Billy Wilder de onde jorravam seus assassinos, metralhando. Da mesma forma a degustao do bolo, que se instalou no centro do ritual do aniversrio da criana, segue um protocolo bem particular no qual se conjugam elementos culturais que celebram a cultura infantil e constroem a identidade pessoal do indivduo contemporneo.

    O castelo de Anne Hiversre, ou a aprendizagem moderna de regras de civilidade

    O bolo pode mesmo tornar-se o n da intriga, dessa forma um dos ltimos livros de Claude Ponti, publicado na ocasio da retomada do grande prmio do Salo do livro da juventude de Montreuil em 2004 por seu autor, intitulado Blaise e o Castelo dAnne Hiversre9. O ttulo da obra baseado sobre um jogo de palavras, entre bolo (gteau) e castelo (chteau). O mesmo acontece para o nome e sobrenome da herona, Anne Hiversre, que retoma um jogo de pedras de madeira, ligando o nome e o sobrenome, muito na moda entre as crianas. Eis aqui o bolo de aniversrio claramente em cena. No

    7 A Chandeleur a comemorao da apresentao do menino Jesus no Templo. comemorada no dia dois de fevereiro (N.T.) 8 Tipo de massa mole de farinha na qual se passa legumes cozidos, prpria para a fritura, como o tempur. (N.T.) 9 O nome Anne Hiversre reproduz sonoramente em francs a palavra Aniversrio. (N.T.)

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    castelo maravilhoso vo se abrigar e se expressar, sob o signo do humor, valores e normas da infncia contempornea.

    Mas elas se encontram ensinadas de maneira bem particular. Um duplo registro de normas, para a base de referncias de como dividir utilizado. Esse registro pressupe um certo nvel de capital cultural. Pois o leitor, criana ou adulto, supostamente capaz de decifrar o implcito social subjacente aos jogos de palavras utilizados nesse humor diferente. Primeira observao: a ao se desenrola em um universo de companheiros, de pintinhos, no h nenhum adulto. A transmisso no mais entre geraes. Segunda observao: nenhuma diferena feita entre meninos e meninas, e os pintinhos de Claude Ponti aparecem de forma neutra. O conjunto de regras de aniversrio est respeitado, se o centro da ao levado para a confeco do bolo de aniversrio, este deve ser o presente surpresa dos pintinhos. Esse bolo deve ser uma obra-prima, pronto na hora exata do nascimento de Anne Hiversre. Todos os seus amigos so convidados. Cada um vem e traz um presente. Anne Hiversre se veste elegantemente para os receber e ao final, toda a assemblia divide o bolo.

    Cada uma das regras do aniversrio assim colocada em cena com humor. Tomemos a regra do convite.

    Na tarde do primeiro dia, os pintinhos escreveram a todos os outros melhores amigos de Anne Hiversre. Eles moram um pouco pra cada lado, s vezes muito longe, felizmente, os CaixadeCartas conhecem todos os endereos. Blaise preparou um modelo de convite. Venham todas a nossa casa, domingo. Faremos uma grande surpresa para a festa de Anne Hiversre. Haver um superirresistivilhoso castelo. Assinado

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    os pintinhos. Mas cada um escreve o que quer e enquanto que Kinonne copia Hipsonne, Pic e Asso se ocupam dos selos.

    Os jogos de palavras penetram a narrativa, eles so construdos

    em referncia aos clssicos da cultura infantil, seja ela literria ou cinematogrfica, como esse superirresistivilhoso bolo que mais tarde tornar-se- inacreditavilhoso melhor castelo, diretamente retirado de Mary Poppins. Sem esquecer dos elementos da literatura contempornea, se re-introduz em um pastiche de famosas biografias de Georges Perec: Kinonno copia Hipsonne, Pic e Asso se ocupam dos selos. No somente a escritura, mas tambm a ilustrao utiliza o segundo grau, com a ajuda dessas diferenas, jogando sobre a intertextualidade. No h somente transmisso de uma cultura literria, mas tambm esttica e gastronmica. Mais de uma dzia de confeitarias tradicionais da gastronomia francesa so mencionadas e colocadas em imagens: Ma do amor, Merengues, Roscas de uva passa, Bombas de chocolates, Wafers, Biscoitos, Mousses de frutas, Ps-de-moleque, Chantilly, Bombas, Tortas, Sovertes de frutas, Torrones, Balas. Ao modo de Viagem ilha dos prazeres de Fnelon, esse inventrio retoma uma antiga tradio de construo de decoraes literrias, por meio de elementos da confeitarias, criando quadros prximos aos de Arcimboldo:

    Na manh do nono dia, o castelo de Anne Hiversre terminado. No falta um merengue. As torres bem redondas esto ornamentadas e kouggueloffes deliciosos... Todo o perodo do nono dia, aps a confirmao, os pintinhos admiram sua obra-prima. Eles esto particularmente orgulhosos da grande sala de festas circular, com seus espelhos, suas iluminaes e seu piso multi-arte. Em volta, h seis salas mdias quadradas, doze redondas ou quadradas, trinta corredores de saladas de frutas vermelhas e manga paixo, sessentas escadas em torrone mole, sessenta tobogans de caramelo, dois mil trezentas e vinte e sete travesseiros de mousse de baunilha e a mesma quantidade de laranja.

    No mais, a obra segue o ritmo de uma verdadeira receita de

    culinria, mas sempre se misturam princpios culinrios e princpios de transgresso prprios s festas. Se aluso feita a essas delcias da infncia que so as bobagens de Mimi Cracra, os termos utilizados conjugam vocabulrio tcnico culinrio e prazeres da brincadeira com os alimentos: Kouggueloffes saborosos, Espitulhar a massa, Rataplatissar com o rolo, Tartislopar os cremes. Pois a aposta sria Se a sova est perdida, todo o castelo est perdido, os ingredientes devem ser liquidificados, batidos e espatulados na ordem correta... no mais preciso perfeitamente bem se sujar. A encenao e a explicao das receitas retomam tambm os tradicionais jogos de poeira e areia doce da caixa de areia:

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    __________________________________________________________________ SIROTA, R. As delcias de aniversrio: uma representao da infncia. Trad. de Rosria Cristina Costa Ribeiro. Revista Eletrnica de Educao. So Carlos, SP: UFSCar, v.2, no. 2, p. 32-59, nov. 2008. Disponvel em http://www.reveduc.ufscar.br.

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    A manh do quarto dia a manh da farinha. Uma boa farinha de castelo deve ser muito fina. Como a poeira da poeira. Antes de coloc-la no saco, preciso claspatular. A nica verdadeira forma de claspatular de se deixar deslizar de se iluminar nas colinas de farinha. Blaise e os pintinhos fazem muito corretamente o que preciso.

    A confeitaria mesmo uma brincadeira de crianas, para retomar o ttulo do famoso livro de culinria de Raymond Oliver.

    Para essa cpia culinria junta-se a uma cpia do primeiro livro da Bblia Berechit10, dividindo a criao do mundo, todo dia completa uma etapa dessa receita:

    Na manh do segundo dia, os pintinhos vo procurar ovos na casa de Olga Ponlemonde. Blaise explicou aos pintinhos como escolher bons ovos. S preciso pegar ovos do castelo. No pegar sobretudo ovos de pintinho. (...) No stimo dia, Blaise e os pintinhos no fazem nada. Eles descansam .... Convite leitura do livro dos livros.

    Quanto aos convidados desse aniversrio, so personagens

    literrios. Misturam-se, heris patrimoniais da literatura clssica infantil e juvenil e personagens mais modernos, sados tanto das histrias em quadrinhos quanto do universo de Walt Disney, surgem lado a lado em uma multido falsamente annima. Encontra-se assim descrito, sem uma palavra, o universo cultural da infncia contempornea. Ao leitor (cabe) reconhecer por meio dos desenhos, como nos lbuns de uma srie dos anos 80 Onde passou Charlie?, mais de uma centena de personagens, to diversos como Dumbo, o elefante, Asterix, A princesa das escolas, Charlot, A chapuzinho vermelho, Tarzan, Gasto, o Professor Girassol, os sobrinhos de Tio Patinhas, os Dalton, Pequeno texugo, Aggie, Jeannot Lapin ou Bettie Boop..... Nenhuma exclusividade, nenhuma hierarquia entre os gneros literrios bons e ruins. Todo personagem vindo frequentar as noites da infncia do autor, o bem-vindo assim como expressa a explicao de Marcel Proust, dessa homenagem literatura infantil:

    Muito tempo eu me deitei cedo, com meus livros e uma lanterna de bolso. Desde que acendia minha luminria, os personagens saiam por entre as pginas. Loucamente. Com os vizinhos, os cavalos, os pssaros, os marcianos ambidestros, os heris medrosos, os malficos, os superpoderosos, os caminhos, os sem-perigo, os enfeitiados, os injustamente condenados, os invisveis, os subterrneos, os

    10 Berechit () um dos parashas mais importantes do Torah. Ele representa a criao

    do mundo, no tempo de Ado e Eva. Ele contm um mandamento positivo: o dever de procriar. (N.T.)

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    rostos angelicais, as princesas a entregar. Ningum saber nunca quantos ns ramos embaixo da coberta....

    Ns no estamos mais frente a um conto tico considerando a

    criana como um ser imaturo que precisaria de uma boa moral simples e clara, e para quem seria preciso selecionar leituras ss por meio de seus presentes de aniversrios. Inversamente, a criana considerada como um ator social inteiro, pequeno indivduo competente, que pode e que deve aprender a decifrar por ele mesmo os diferentes nveis de mensagem, frente ao quebra-cabea cultural da modernidade. Esses lbuns sendo destinados a permitir s crianas, assim como diz Claude Ponti, brincar, crescer e envelhecer, cortar com os olhos como com as tesouras, misturar, recompor e colar com a gua dos sonhos um universo no qual elas podero ir em todos os sentidos de seus sentidos. A transmisso das formas culturais e dos saberes culinrios sempre feita por meio de mltiplas maneiras de dizer e de fazer, sejam elas explcitas ou implcitas. Por meio dessas leituras e releituras feitas no vazio da cama, noite aps noite, por meio dessas competncias e desses gestos infinitamente repetidos, se coloca em cena, se transmite e se inscreve uma ordem social.

    O bolo de aniversrio, um minsculo cruzamento de histrias

    Uma rpida genealogia desse objeto s vezes ordinrio e extraordinrio que o bolo de aniversrio o situa na interseco de uma multiplicidade de influncias culturais. Se o bolo de chocolate de aniversrio francs nos parece hoje uma evidncia Os pintinhos levam tanto chocolate quanto podem porque impossvel imaginar o castelo de Anne Hiversre sem chocolate, , entretanto portador de uma longa histria, emprestando os elementos tanto da histria culinria quanto da cultura infantil sem esquecer a memria familiar. Receita e decorao tornam-se ento importantes, tanto uma quanto a outra, pois retomam os elementos materiais que refletem uma inscrio scio-cultural. Os bolos de aniversrio, incontornveis no ritual, se tornaram assim, por vezes, objetos comerciais e de formas de expresso e de exposio de si. Algumas incurses do lado da literatura, aquela dos livros de culinria, permitem marcar algumas etapas no comeo desse glorioso objeto efmero, pois no importa qual objeto, mesmo o mais comum, guarda a engenhosidade, as escolhas, uma cultura, Franois Dagognet. Sem esquecer todas as pequenas histrias individuais, confidencias trocadas, que ligam um pedao do romance familiar, meu bolo de aniversrio preferido o mil-folhas, voc ver, dizia meu av bem depois da guerra, quando os confeiteiros o refizerem, voc ver como com um Mil-folhas. Isso me marcou.

    Da celebrao dos grandes celebrao dos pequenos

    Se o bolo de aniversrio agora confeccionado para a criana, ele foi primeiramente dedicado aos deuses, depois aos reis. Retomemos elementos desse longo percurso

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    histrico. Os gregos colocavam bolos de mel, com velas iluminadas, sobre o altar de rtemis, a deusa da Lua. Depois, utilizado no tempo dos romanos, o bolo era colocado no altar dos deuses Lares. Pois o bolo de aniversrio fora muito tempo um prato raro, destinado aos poderosos. Se segue a muito bela e muito refinada histria dos bolos e das guloseimas de Maguelonne Toussaint-Samat, o termo mesmo bolo apareceu em sua forma moderna sob o reinado de Lus XIII. E s em 1739 que nascem os confeitos de chocolate, dos quais se encontra traos nos famosos biscoitos de chocolate de Menon11. Pois essa bebida sacra, comida dos deuses, essa bebida milagrosa, smbolo de luxo, vinda do novo mundo e trazida do Mxico por Cortes est autorizada primeira e unicamente aos soldados e aos nobres. Considerada a princpio como afrodisaco, o chocolate em seguida utilizado como medicamento. Ele s ser manufaturado e introduzido na confeitaria tardiamente. A lenda imputada a um confeiteiro vienense Franz Sacher, chefe confeiteiro do prncipe de Metternich, a inspirao, a idia de misturar tanto o p de chocolate quanto a farinha, o que deu nascimento a um grande bolo, a Sachertorta, cujo sucesso fora imediato e sua reputao se expandiu em toda Europa. O Cacau, comida divina, iria tornar-se loucura gulosa e depois delcia favorita das crianas.

    Depois esse bolo de chocolate tomou formas particularmente espetaculares retomando deferentes tradies. A princpio, ele retoma a tradio dos bolos arquitetados, preparados para as grandes figuras desse mundo tais quais aqueles realizados por Antonin Carme.

    Um elemento da gastronomia francesa, os bolos de reis

    De longa data, moldes em flor-de-lis foram utilizados para apresentar os confeitos e bolos dos reis da Frana. Mas a sofisticao da apresentao, em seguida os entremeios da pintura, promove um novo tesouro no sculo XVIII com os extraordinrios confeitos que fizeram Lebeau, Bailly, Goufe e sobre tudo Antonin Carme. Apelidado o rei dos confeiteiros, ele tinha o hbito de dizer As belas artes so cinco: a pintura, a escultura, a poesia, a msica e a arquitetura, cujo ramo principal a confeitaria. Esse confeiteiro dos reis fora o confeiteiro de numerosas cortes. Aps ter trabalhado para Talleyrand, ele fora empregado pelo Czar da Rssia, o rei da Inglaterra, depois pelo imperador austro-hngaro. Ele torna-se particularmente famoso graas aos buffets muito extraordinrios que ele tinha o hbito de preparar dando tanta importncia decorao quanto culinria. Fora mesmo apelidado de Palladio da culinria em referncia ao famoso arquiteto clssico tal qual os de Vitrvio. Em seu prprio tratado O confeiteiro pitoresco, ele

    11 Os ingredientes do conjunto de receitas francesas esto j a, eles variam pouco: farinha de

    trigo, ovos, acar, chocolate aos quais preciso juntar manteiga.

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    retoma certos quadros e explica como construir e erguer magnficos bolos, refletindo arquitetura clssica ou extica. Aparecem em seu tratado pavilhes chineses, russos, pirmides egpcias, runas de mesquita turca e outras loucuras as quais ele explica muito claramente os modos de construo a partir do acar, gua e farinha utilizando uma tcnica cuidadosamente elaborada, a pastilhagem, que permite a partir do acar em fios realizar essas fabulosas construes.

    Da mesma poca datam de outros locais o molde de bolo e a cerca de torta em metal leve do arteso Trottier. Essas invenes, produzidas mais tarde em srie e em todos os tamanhos, permitiro aos confeiteiros, depois s donas-de-casa dar aos bolos, mais facilmente do que com os moldes em cermica, as formas decorativas mais variadas. Seguir a industrializao de fornos permitindo obter um calor constante, depois a introduo do fermento qumico. Eis aqui o estabelecimento dos modelos e das condies de realizao de confeitos mais comuns, que no mais iro simplesmente celebrar os prncipes e os grandes desse mundo, mas tambm aos pequenos prncipes e princesas do lar. Uma tradio culinria anglo-saxnica, a expresso do amor domstico por meio da esttica culinria

    O bolo de aniversrio para crianas ganhou fora na tradio culinria anglo-saxnica. Ele figura na cultura domstica, dele se encontra mltiplos modelos nos livros de culinria mais populares. Um dos mais correntes nos lares americanos, vendidos no ps-guerra a mais de trs milhes e quinhentas mil pessoas, o Cook Book de Betty Crooker, em seu captulo intitulado: Os bolos, um smbolo da vida do lar, aborda assim o objeto: H um bolo para cada ocasio da vida: do belo bolo de noivado ao triunfal bolo de casamento, dos bolos de aniversrio cintilando com suas velas, at o orgulhoso bolo que celebra as bodas de prata ou de ouro, os bolos interpretam um papel importante nos momentos mais significativos da nossa vida ... Um pouco do seu amor,

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    lembrem-se, se inscreve em cada presente que voc colocar no forno.

    assim proposta uma srie de bolos de aniversrio para crianas retomando elementos do cotidiano da infncia americana, tais como Urso Teddy, o urso de pelcia. Se as decoraes so elaboradas e coloridas, as receitas so muito simples. So geralmente receitas semi-industrializadas de sponge-cake, espcie de massa, que utiliza misturas prontas para a utilizao assegurando constncia e consistncia ao volume, para cada dona-de-casa. Mas, para obter o resultado esperado, preciso ainda recobrir o bolo com coberturas cremosas e coloridas que permitam neles se inserir as decoraes, ou lhes dar formas particulares graas a moldes ou a recortes ad hoc. Eis o porqu de exercer a engenhosidade e a criatividade da me de famlia, e permitir se adaptar aos gostos das crianas.

    Essa moral de amor domstico, encarnada em um bolo, longe de ser tornada ultrapassada, retomada numa viso mais moderna e ainda mais explcita pela americana Kathryn Kleinman na introduo de um livro muito mais sofisticado Bolos de aniversrio, receitas e lembranas:

    Este livro uma coleo de receitas de bolos de aniversrio, cada um deles nico e pessoal. Eu espero que esses bolos e essas lembranas de votos feitos no momento de soprar as velas lhes inspirem a lembrar em torno de voc aqueles que voc ama e para perseguir sua prpria tradio ou delas criar novas... Aquele que prepara os bolos e os oferece com amor ser aquele cujos desejos se realizaro.

    A mesma felicidade familiar prometida pela obra Kids Party Cake, obra retomando uma seleo de Australian Womens Weekly, largamente distribudo no mundo anglo-saxo, o que quer dizer no somente na Austrlia, mas tambm no Reino-Unido, nos Estados-Unidos, na Nova-Zelndia e na frica do Sul:

    Voc se lembra dos seus tremores de impacincia, que voc provava quando criana, encolhido no fundo de sua cama e que cresciam medida que se aproximava seu aniversrio? Voc se lembra quando voc devaneava, imaginando-o com os olhos abertos, escolhendo, pedindo um bolo de aniversrio bem especfico? Depois mudava de opinio, discutia com os colegas, folheando revistas e livros de culinria a procura do bolo perfeito? Eh bem, voc sabe que certas coisas no mudam nunca (Graas a Deus), as crianas de hoje tem ainda os mesmos desejos, as mesmas vontades e os mesmos sonhos, sob formas diferentes talvez, mas eles se identificam ainda com os mesmos temas universais que refletem imaginrios favoritos e divertimentos de criana. Certas de nossos mais grandes presentes esto nossas lembranas de infncia: d vida a essas fotos de bolos de aniversrio e olhe

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    seus filhos sorrirem. Mais de cento e vinte pensamentos presumidamente fceis de realizar seguem, devidamente explicados, fotos-montagens e obras de apoio, o essencial dos conselhos destinados a formatao do bolo. Eis nossa me de famlia empenhada a levar a cabo o que se tornou uma verdadeira prova social de paternidade. E longe de estar segura da realizao de seu papel social, diante desse desafio muito moderno, levar a cabo o aniversrio de seu filho respeitando s vezes uma tradio e reinventando um ritual da aurora das lacunas de seu querido fofinho. Pois nessa exigncia de criatividade domstica se encontra em jogo, estetizao do cotidiano e expanso da infncia.

    O bolo dos ogros e das fadas da literatura infantil:

    Do conto de Pele de asno de Charles Perrault datado de 1694, ao Boneco de cuca de Jim Aylesworth, ou mais simplesmente em Roule Galette de Natha Caputo, os bolos tomam mltiplas formas e tornam-se companheiros familiares do imaginrio da criana. A casa de cuca do conto dos irmos Grimm, Joo e Maria, tornou-se uma das figuras emblemticas dessa literatura se aproximando, eles viram que a casinha tinha paredes de po doce e um teto de biscoitos; quanto s janelas, eram de acar em fios. Ento, eles tiveram boas coisas para comer, leite e crepes aucarados, maas e nozes... Construindo o abecedrio das construes ldicas alimentares, ela oferece uma forma introduo de elementos da cozinha domstica e tambm da biscoitaria e da confeitaria industrial, elementos pr-fabricados de uma arquitetura do prazer. O bolo torna-se o suporte de um imaginrio social que pode depositar-se em mltiplas metamorfoses desse objeto aparentemente andino, mas incorporvel. Os livros de cozinha para crianas transmitem esse imaginrio.

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    Pele de asno toma sua farinha/ Que ele tinha feito brotar por querer/ para tornar sua pata mais fina/ Seu sal, sua manteiga e seus ovos frescos/ e para bem fazer sua bolacha/ Fecha-se sozinho em seu quartinho... Os bolos ocupam, desde muito tempo, um lugar certo na literatura infantil, como ns vimos precedentemente em O castelo de Anne Hiversre, seja dotados de poder mgico ou utilizados como simples decorao.

    Esses bolos tomam formas efmeras, obras-primas domsticas a exemplo de certas esculturas contemporneas comestveis12. Associando brincadeira e alimentao, instauram uma esttica da arte domstica que se considerar, em funo de seus prprios valores e julgamentos estticos, como ftil e insignificante, deploravelmente comercial ou relevante do Pop Art ou da Eat Art, conjugando valores de uso, valores que buscam o prazer e valores simblicos mltiplos.

    A fbrica de aniversrio: celebrao e construo da identidade individual por meio de um momento efmero

    O que coloca em cena essas realizaes efmeras de um dia em particular, escolhidas com tanto cuidado em honra do principiante?

    A celebrao de um indivduo, por meio de diversos rituais que acompanham o curso da vida, utiliza sempre semnticas baseadas em referncias culturais. Festejar o aniversrio de uma criana, participar de sua celebrao recebendo um convite, trazendo um presente, repartindo o bolo e brincando com ela, tambm contribuir para a produo de um indivduo.

    Escolher um bolo, como escolher um presente ou um tema da festa de aniversrio fazer escolhas entre as possibilidades, montar objetos, para construir uma situao para dividir, na qual vo se expressar afetos e amizades. Dividir um bolo de aniversrio tambm dividir referncias culturais e mesmo as incorporar, tanto no plano material quanto simblico. O aniversrio da criana, organizado em torno de um experimentar, toma frequentemente a forma de uma festa temtica. Tal tema est geralmente expresso desde o convite, decorao da mesa, passando pelo bolo e pelas atividades propostas. Da receita s decoraes do aniversrio, se conjugam elementos culturais que no jogo da troca tornam-se elementos de identidade. Trata-se de levar a srio essas decoraes efmeras, pois por meio do indivduo que esses elementos celebram, tornam-se elementos da construo identitria que se posicionam. Nada menos insignificante que os elementos dessa socializao do cotidiano, de aparncia ftil, que recorre a essas fontes, tanto de uma cultura de consumo quanto de uma cultura patrimonial.

    12 Como a exemplo dos camponeses de acar de Dorothe Selz.

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    Um bolo individualizado, as diferentes formas do bolo de aniversrio

    Seja feito em casa ou comprado na confeitaria, o bolo cuidadosamente escolhido; smbolo das delcias da infncia marca o tempo excepcional consagrado criana.

    Um bolo feito em casa. Quando a criana muito nova, geralmente um dos membros da famlia que dispensa o tempo para preparar o bolo, depois que a criana cresce, ela familiarizada passo a passo preparao do bolo. Geralmente, a me que conduz a consagrao. Mas nesse dia excepcional, outros membros da famlia podem dar sua contribuio, irmo, av ou pai, em funo de suas especialidades respectivas. Frequentemente instaura-se uma tradio familiar em torno da receita ou de uma habilidade particular. A receita mais freqente aquela do bolo de chocolate, em suas infinitas variantes...

    Um bolo comprado na confeitaria. Se para certas famlias, a exceo do dia significa fabricar em casa, para outros ao contrrio, trata-se de comprar um bolo. O que pode representar uma soluo simples para pais muito ocupados, ou para realizar um desejo particular da criana: torta de morango, rocambole de framboesas ou bolo com formas particulares. Nesse caso, o bolo sustenta orgulhosamente uma placa de acar especfico desejando com todas as letras um feliz aniversrio, e at mesmo o nome da criana.

    Um bolo com decoraes da infncia, das modestas smarties aos heris de Walt Disney

    A decorao mais comum do bolo feito em casa utiliza smarties, pequenos bombons de mltiplas cores formando, sejam simples manchas de cores ou motivos mais elaborados. Os tesouros da imaginao so estendidos sobre os bolos para individualiz-los em funo de centros de interesses especficos da criana. s vezes o nome ou a inicial da criana desenhado sobre o bolo, smbolo claro de sua individualizao. Um amplo inventrio de velas, concebidas especialmente para essa ocasio, concorrem nessa decorao: a simples escolha das cores, azul ou rosa, marca a identidade de gnero. As velas em forma de fonte de luz sublinham o aspecto festivo, sem falar das mltiplas figuras modeladas em cera ou porta velas de plstico mesclando elas tambm a idade e o centro de interesse da criana.

    O bolo pode ele mesmo ilustrar o tema da festa de aniversrio, tomando a forma de um totem para o aniversrio ndio, de uma cabea de morte para um aniversrio pirata, de um domador com seus animais para um aniversrio em torno do circo. Disforme ou esculpido, o bolo retoma personagens, animais ou objetos favoritos da criana.

    A essas figuras do imaginrio infantil podem juntar-se figuras mais modernas da indstria da mdia de massa. A indstria do cinema penetra na esfera privada, e seus heris na mente. Pois nos aniversrios, propostos e vendidos completos nos buffets, essas temticas so colocadas desde os pequenos saquinhos de lembrana, nos guardanapos, copos e toalhas de

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    papel fornecidas. Aparecem sob a forma de bolos, seguindo a atualidade cinematogrfica Mickey Mouse ou o Rei Leo, produtos derivados de uma cultura globalizada e internacionalizada.

    A criolizao do bolo de aniversrio: mestiagem cultural e tenses de identidades

    Ora, o ritual de aniversrio da criana se difundiu, transformou, mestiou emprestando aqui e ali figuras culturais, receitas e modos de ser.

    Duas tradies so imbricadas aqui. A tradio ocidental do

    grande bolo para partilhar e mais especificamente a tradio anglo-saxona do sponge-cake recoberto de creme de manteiga que passando por Hong Kong e Mc Donald parece ter conquistado as crianas chinesas, e por outro lado, a temtica das flores, tradicional na cultura chinesa clssica. Se este grande bolo confeccionado a partir de uma receita ocidental parece um smbolo de modernidade, a sua decorao, retoma os elementos mais clssicos. Mas no

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    pas do Sol Nascente, cujo um dos mais antigos nomes era Hua, a flor, o renascimento da cultura das flores e o seu uso decorativo marcam o fim da revoluo cultural e mais ainda, dos primeiros passos para a abertura econmica de acordo com Jack Goody. As flores sempre ocuparam um lugar importante na cultura letrada chinesa, s vezes na literatura e na pintura simbolizando o amor natureza, por parte da elite. Esta cultura tornou-se cada vez mais popular. Prosperidade, riqueza, longevidade e felicidade, toda essa linguagem das flores se encontra, pois, sobre o bolo. Aqui as flores de ltus, primeira flor a aparecer na poesia chinesa e emblema da realizao espiritual, convivem com rosas, cercadas de pedaos de Kiwi e de morangos. Os frutos so submetidos de modos simples junto s crianas. Assim, o antroplogo James L Watson, em seu estudo sobre a implantao do MC Donald em Hong Kong, por meio da anlise das festas de aniversrio mostra que o bolo de aniversrio um marcador infalvel do status social junto s crianas, e mais especificamente, o tipo e a qualidade das frutas que o decoram. Em 1994, framboesas estavam na moda e os morangos fora. Outros elementos da cultura chinesa so particularmente retomados sobre estes bolos tais como os sinais do horscopo chins: Zi, o rato, (shu); A couve, o bfalo (niu), Yn, o tigre (hu), Mao, o coelho (tu), Chen, o drago (long), Si, a serpente (she), Wu, o cavalo (ma), Wei, o carneiro (yang), Shen, o macaco (hou), You, o galo (ji), Xu, o co (ji), Hai, o porco (zhu). Mas eles tm sentidos e valores bem diferentes. O signo escolhido em funo do ano de nascimento da criana, ela tem tambm um smbolo especfico que lhe imbudo. Pode-se tomar esse fato como um exemplo, que enfatiza o sentido dos votos desejados neste dia de festa da criana e a alterao do lugar da criana chinesa tornada a nica portadora das esperanas de prosperidade familiar.

    O macaco o animal mais malicioso, ele considerado no somente gil, mas tambm inteligente, forte, potente, maravilhoso e imortal. Pois na mitologia chinesa, ele teria roubado os pssegos, sinal de longevidade, no jardim da mulher do imperador Xiwang Mu. Os pais chineses consideram ento que o macaco um signo do zodaco favorvel, smbolo do sucesso nos estudos. O desejo do aniversrio no se faz aqui sob uma forma ldica, mas conforme a cultura chinesa ele associa os valores educativos a esse dia de festa, e de desejos de xito social.

    Unem-se assim a cultura tradicional chinesa e o status moderno da criana na China. Tornado filho nico, frente a uma sociedade em mutao, a criana cada vez mais tomada nas formas de individualizao moderna, o que no excluiu os elementos de uma cultura de classe ou de gnero. Pois bem, outros smbolos podem ser encontrados nas confeitarias das grandes cidades como Pekin, Shangai ou Suzhou. Pequenos imperadores e pequenas imperatrizes esto crescendo em um mundo em mutao muito rpida no qual a ocidentalizao parece rimar muito frequentemente com consumo.

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    Exotismo modernizado ou manuteno da identidade cultural: de bolos de chocolate aos cheiros mais diferentes

    No apenas na decorao, mas tambm na receita podem enfrentar-se ou completar-se identidades culturais. Vinda da ilha da Martinica, chegada Frana recentemente, uma famlia prepara o aniversrio da sua filha Carole, com um bolo ao chocolate. Este uso era tambm desconhecido na Martinica at a pouco, foi importado pelos metropolitanos para as suas prprias crianas. As idas e voltas do chocolate entre continentes, idas e voltas da globalizao. A receita foi adotada, mas a sua realizao ligeiramente diferente. Certamente a receita utiliza ingredientes clssicos da confeitaria francesa, ovos, farinha, manteiga, acar e chocolate. So s acrescentados alguns elementos para perfumar o bolo: canela, extrato de baunilha e uma pequena gota de rum. No mais, o bolo decorado com coco ralado, salpicado sobre um glac branco base tambm de acar e coco e decorado de flores exticas. o que se chama dar o perfume do pas, a partir das especiarias supostamente tpicas e tradicionais da culinria martinquenha. Por meio dessa re-interpretao, pode-se apreender como a identidade cultural pode estar em jogo nesse ritual de celebrao do indivduo, e como as marcas de identidade podem ser o objeto de um trabalho social para serem mantidas e transmitidas. A sua partilha , entretanto, difcil, sada do crculo familiar. Certa jovem universitria brasileira, em estgio em Paris, faz essa dolorosa experincia. Para o aniversrio de seu filho, ela prepara uma srie de pequenos bolos ao chocolate ao rigor no Brasil, os Brigadeiros. No final de um certo tempo, ela percebe com surpresa, que delicadamente, os seus pequenos convidados os cospem o mais discretamente possvel. A receita deste prato totem da infncia brasileira bem diferente do bolo de chocolate francs: o sabor do chocolate cozido com o Doce de Leite fabricado a partir de leite condensado aucarado, decorado com coco e com chocolate granulado, surpreendeu e desconcertou um pouco os pequenos amigos franceses.

    Heris da cultura patrimonial contra heris da cultura comercial

    Os exemplos da complexidade da globalizao da cultura infantil e as tenses entre as quais se constroem as identidades individuais so mltiplos. Assim como mostrado por muitos socilogos tais como Richardson, a favor da globalizao dos meios de comunicao social e das migraes, as

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    referncias diversificam-se e pluralizam-se, as identidades se complexificam, tornando-se elas mesmas plurais, compsitos, mestias, variveis, incertas a favor de um trabalho permanente de construo simblica entre a criana e os outros no Mundo. Isso no concerne somente ao mundo adulto. Ao lado das figuras do prazer e das inocncias infantis, que do forma aos bolos de aniversrio tal como o Chapeuzinho vermelho, Pinquio ou hordas de piratas, outras figuras surgem e se impem graas s tcnicas mais modernas de modelagem de plstico e de fotocpia comestvel. A cultura infantil moderna, como vimos no castelo de Anne Hiversre, empresta esses heris e heronas tanto da cultura patrimonial quanto da cultura comercial, sejam ldicas, literrias, televisivas ou cinematogrficas. Os heris dos filmes e sries televisivas assim juntaram-se aos batalhes dos personagens de histrias em quadrinhos, refletindo os prazeres compartilhados das culturas de cada gerao.

    Roda das Barbies contra os torneios esportivos: identidades do gnero estereotipado

    A figura moderna da princesa dos contos fada se encarna agora sob a forma de uma boneca Barbie. Mais ou menos idntica de Shuzou a Dearborn, passando por Roma, Buenos-Aires, Rio de Janeiro, Durban ou Paris. Que estejam diretamente sob licena, ou de simples cpias da boneca original, estes bolos espetaculares, retomam a silhueta que tem se tornado familiar da boneca Barbie da qual mais de mil milhes foram vendidas pela firma Mattel em 140 pases. Contudo, nessa confeitaria americana de Dearborn, prxima a Detroit, uma pgina toda rosa do catlogo permite escolher, para um aniversrio de menina, entre uma White Barbie e uma African American Barbie. Politicamente correto talvez, mas uma identidade completamente estereotipada, assim construda, proposta e transmitida pelo mundo. Vinda da Alemanha, fabricada na China, difundida nos EUA por um marketing que se dirige pela primeira vez diretamente criana, a boneca viajante em suas mltiplas metamorfoses agora transformada de top model a modelo de bolo, pois o figurino permite uma apario em volume particularmente espetacular.

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    Teria se tornado bonita de comer? Essa moda chega tambm Frana. No mbito de um concurso, lanado junto aos seus leitores pela revista mensal Famille, em 2006, o primeiro prmio do mais bonito bolo de aniversrio foi concedido a um bolo princesa, construdo em redor da mesma silhueta da boneca Barbie. O pequeno porco rosa s ganhou o segundo prmio e o monstro de chocolate o terceiro. Retomando o slogan do jornal feminino Elle Elle escreve o mundo, esta imprensa destinada aos pais prope e reflete normas contemporneas de uma paternidade tornada incerta e de uma felicidade infantil que se tornou obrigatria. Modernidade que no exclui os modelos identificadores mais utilizados.

    Da mesma maneira, retomando os centros de interesse e os lazeres dos meninos, numerosas temticas esportivas so propostas. Se a raquete de tnis parece bastante neutra, outros temas dirigem-se especificamente s meninas ou aos meninos. A explorao dos sites de bolos de aniversrio, por um lado, construda imediatamente ao redor dessa bipartio entre sexos, da mesma maneira que a estruturao de gndolas em certas redes de lojas de brinquedos. Para elas, sapatilhas de dana, para eles, automveis esportivos, motos ou quadras de esportes. O campo de esporte coletivo, parece ter se tornado um dos temas favoritos13, pois sua realizao prtica to simples, assim como conta a herona deste livro de criana: Esta manh, mame emprestou Os Bolos da vida para a mame de minha outra melhor amiga, um livro com bolos para todos os grandes acontecimentos: campos de futebol para um aniversrio de menino (tingir a coco ralado de verde para a grama e traar as linhas brancas com acar de confeiteiro), de Barbie para um aniversrio de menina (montar uma pirmide de Marshmallows rosa e branco para a saia), e mesmo piscina para festejar a chegada do vero (ornar uma paliada de Fingers ao redor de uma bacia cheia de gelia verde ou azul).

    Mas na expresso esportiva da virilidade misturam-se tambm outros elementos, porque no so os mesmos esportes que so propostos de acordo com os catlogos: Futebol na Frana, Hockey no Canad, Base Ball ou Futebol americano nos Estados Unidos, Rugby e Cricket na frica do Sul ou na Austrlia. Encarnando as novas paixes esportivas, estas representaes convenientemente andinas tornam-se tambm os elementos da construo de um imaginrio nacional.

    Um bolo estandarte, guerra e paz atravs da inocncia de um ritual

    A transmisso dessa identidade nacional est s vezes to diretamente em jogo, flertando mesmo bem de perto com o

    13 Neuf bougies dun coup de Dominique Souchon, publicado por Lcole des loisirs.(Nove velas

    de uma vez)

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    compromisso poltico. Os desafios esto longe de permanecer insignificantes em contextos particularmente tensos e sensveis, bem afastados da aparncia clssica da inocncia da infncia.

    Quando se analisa o catlogo americano que prope na Internet o conjunto do que necessrio para festejar dignamente um aniversrio Birthday Express, pode-se encontrar entre as temticas propostas atualmente, em plena guerra do Iraque, o tema Special forces. Dois tipos de bolos so propostos, um na forma de capacete militar recoberto de um glac que imita uma camuflagem, o outro de um bolo quadrado mais clssico ornado com um jipe militar e dois soldados, um fazendo a vigia com os seus binculos, o outro apontando sua metralhadora. O conjunto acompanhado de uma multido de dispositivos militares para disfarar-se ou decorar e animar a festa. Os comentrios (que foram enviados realmente por clientes ou redigidos pelo servio marketing) sobre o sucesso desta temtica junto aos clientes esto sem ambiguidade.

    "Meu filho decidiu que queria a bandeira dos Estados Unidos em seu bolo de aniversrio, qual tema melhor poderamos encontrar? O tema foi um enorme sucesso, e mesmo com as meninas! Acrescentei pequenos avies militares para os meninos e estojos de maquiagem Barbie para as meninas nas suas caixas de surpresa Special Forces. Tnhamos recuperado tambm pequenas quinquilharias do escritrio de recrutamento militar. Um produto excelente! De grande qualidade!

    Encontra-se aqui o hbito americano, para celebrar a naturalizao de um novo imigrante, de oferecer um bolo decorado com um glac multicolorido representando a bandeira estrelada enquanto que a festa segue a cerimnia oficial. O mesmo ocorre para a festa nacional do 4 de Julho, durante a qual vendem-se bolos das cores nacionais.

    Meu filho decidiu-se este ano pelo aniversrio Special Forces sobretudo para uma festa ao redor da piscina; foi um grande sucesso. Pedimos s crianas que viessem vestidas em verde ou kaki, e as maquiamos de camuflagem em sua chegada. O meu marido tambm disfarou-se e desempenhou o papel do sargento instrutor. Tanto ns nos divertimos com as brincadeiras, que mal tivemos tempo de realizar o resto do que estava previsto para a festa. Ainda no tnhamos comido nem o bolo quando os pais comearam a chegar para procurar seus filhos. Nosso filho no quis retirar as suas pinturas de guerra, e o seu capacete at que fosse para a cama. No saberia dizer o suficiente sobre este conjunto e quanto tornou-se completamente especial este aniversrio de meu filho .

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    Se a etimologia do termo colega (copain) Co-pane significa compartilhar o seu po, isso quer dizer tambm compartilhar valores. Poder-se-ia considerar como muito andinos ou extravagantes esse inventrio e esta ateno dispensada a esse objeto efmero desse dia extraordinrio que o aniversrio da criana, mas assim que se insere s vezes no mais profundo de ns mesmos, por meio de sabores e odores bem caractersticos das identidades:

    Mas no momento mesmo no qual a bebida misturada s migalhas do bolo tocou o meu palato, eu tremi, atento ao que se passava de extraordinrio em mim. Um prazer delicioso tinha me invadido, isolado, noo de sua causa. (). E muito de repente a lembrana apareceu-me. Esse gosto era o do pequeno pedao de Madeleine que de domingo de manh em Combray, quando ia lhe dizer bom-dia em seu quarto, minha tia Lonie me oferecia aps te-lo mergulhado num lquido na sua infuso de ch ou de tlia. A vista da pequena Madeleine nada me tinha recordado antes que eu a houvesse provado () mas, quando de um passado antigo nada subsiste, aps a morte dos seres, aps a destruio das coisas, nicas, mais frgeis, mas mais vivas, mais imateriais, mais persistentes, mais fiis, o cheiro e o sabor permanecem ainda muito tempo, como almas, a se recordar, a esperar, esperar, sobre a runa de todo o resto, a levar sem dobrar, sobre a sua gotinha quase impalpvel, o edifcio imenso da lembrana (...) assim o nosso passado. pena que procurvamos evoc-lo, todos os esforos da nossa inteligncia so inteis. Est escondido fora do seu domnio e do seu alcance, em algum objeto material (na sensao que daramos este objeto material) que no suspeitamos Marcel Proust, No caminho de Swann.

    Por meio da decifrao das regras do ritual e mais precisamente desse pequeno objeto que o bolo de aniversrio, pode se ler em quantos de

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    nossos dias, a construo da identidade da criana produz-se por meio de um verdadeiro quebra-cabea de valores em um n de tenses entre as quais ter ela mesma que construir a sua prpria identidade, como indivduo moderno.

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    Enviado em: 06/11/2008.

    Aceito em: 10/11/2008.