88
18 VIII Concurso de Contos Petros

18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

18VIII Concurso de Contos Petros

Page 2: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

19VIII Concurso de Contos Petros

c o n t o s s e l e c i o n a d o s

Page 3: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

20VIII Concurso de Contos Petros

1º LugarRoberto Márcio Pimenta

Gralhas nos campos de trigo

Page 4: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

21VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Mineiro de Belo Horizonte, há quatro anos Roberto Márcio Pimenta escolheu o Espírito Santo para fi xar residência. Mora em frente ao mar de Jacaraípe, onde tem uma pousada e dedica boa parte do tempo à sua paixão: a literatura. É o segundo ano consecutivo que seu nome fi gura na antologia de Contos da Petros – desta vez, no topo da lista.

Aposentado desde 2004, ele trabalhava na Refi naria Gabriel Passos, na Área de Recursos Humanos. Gosta de escrever e admira autores como Gabriel García Márquez, Mario Arregui, Máximo Gogol, Dostoievski, Fernando Del Paso, Machado de Assis. Já ganhou mais de 20 prêmios literários, tendo textos publicados em 25 diferentes antologias.

Ex-professor de literatura, o autor considera o Concurso de Contos da Petros como um dos melhores do Brasil. Neste ano, ele conquistou algumas premiações como a participação na ‘Antologia Bom Tom’ e também na ‘Antologia Caminhoneiros’, patrocinada pela Mercedes Benz. Foi primeiro colocado no Concurso de Crônicas da cidade da Santa Lúcia, entre outras publicações. Trabalhou, em Belo Horizonte, paralelamente à Petrobras, como revisor de escritores e professor de literatura em cursinhos e faculdades.

Para Roberto, a premiação de Gralhas nos campos de trigo foi importante por ser um texto em que teve de deixar a sua ‘mineirice’ de lado para incorporar um personagem gaúcho. Para isto, pesquisou termos, costumes, todos os símbolos da cultura do Rio Grande do Sul. É casado com Sandra Scala e avô de Nicholas, de 1 ano. É também pai de Diego, 20 anos; Júnior, 25 e Roberta, 27 – os dois mais velhos moram nos Estados Unidos.

Page 5: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

22VIII Concurso de Contos Petros

Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para longe.

Longe? Sim, para um tempo que ninguém pôde apagar, lá nos campos de trigo. Lembro-me do meu pai, homem da terra, abrigando árvores, rasgando o chão, semeando o trigo e nos alimentando. Lembro-me da sua pele clara e dos cabelos louros, o seu jeito de ver o mundo em um grão e o céu em uma fl or silvestre.

Coloco meus olhos nesse passado tão distante e revejo a cena numa fresta:

– As gralhas voltaram! – gritou meu pai meneando o facão. Movendo a cabeça em direção à cumeeira, percebi pontos como

grãos de mostarda se locomovendo no céu. Eram as aves. Estavam chegando. O pai gritava pelos outros.

Chinocas fachudaças, de peitos de laranja, a china seiúda, a gurizada em desordem, avios de caça e o latir contrastante dos cuscos escandalizavam a tarde. Os homens tomaram posições.

Um tiro chumbeou para cima das gralhas. Seguiu-se o matraquear seco das carabinas, ecoando, mesclando-se aos gritos da gurizada, dos cães e dos pássaros caindo, manchando de vermelho o chão.

Momentos depois, as aves debandaram.À noite, churrascada. Duas mantas de carne chamuscadas,

fumarentas, ao espeto. O cheiro das carnes sangrentas, mal- passadas, impregnava o terreiro da casa quando o pai enrolou um cigarro crioulo e me chamou:

– Filho! Quando lavramos a terra e semeamos, elas não estavam aqui. Agora, na colheita, aparecem. É sempre assim. Os homens também agem dessa maneira.

Dias depois, terminada a colheita, ensacado e armazenado o trigo, o pai descansou. Eu, não. Ficava acordado, pensando em alguma coisa ruim que pudesse acontecer.

Gralhas nos campos de trigo

Page 6: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

23VIII Concurso de Contos Petros

Um dia eu o vi acordado, à noite, aguardando o amanhecer. Faltava muito para clarear. A nova luz ainda deveria percorrer bom tempo sobre coxilhas e repechos, passar sobre arroios que cortavam a noite às cegas, pastos, montes e casarios.

Abancado sobre um cepo, o pai mateava e fumava com gestos precisos. O cusco começou a latir e ele, que era da raça dos que batem, deu-lhe um pontapé nas costelas. O cão saiu ganindo.

Daí a pouco, apareceram os primeiros sinais de vida do dia que estava para chegar. Nascia um sol anêmico-amarelado.

– Há algo errado!... Os quero-queros acordaram mais cedo e debandaram para o sul em direção ao Uruguai! – disse o pai olhando o bando no horizonte.

Carecia de alguém que enxergasse melhor e eu me prestava a tal incumbência, pois estava acostumado a ver os olhos dos pássaros entre as ramagens, as formigas preguiçosas e, creiam, diziam, “que era capaz de distinguir o piolho da piolha”.

Meu pai chamou-me, sem saber que o vigiava por trás da veneziana.

Saí e subi no seu ombro e, só então percebi que nos ombros dos pais podemos ver mais longe... E me senti assim: um gigante. Depois eu disse:

– Pai! São pontos no chão. Vários! Parecem minúsculos cavalos.Imediatamente o pai soou o alarme. Ele sabia que, de longe, um

homem num cavalo é um cavalo.As gralhas voltaram. Outras gralhas, eu imaginei...Agora havia algo cruento em cada rosto. Era como o mio-mio, erva

tóxica, que crescia em reboleiras nos campos de plantação que gado e cavalos comem e morrem completamente inchados e sedentos.

Os homens se espalharam. Alguns, como os gatos, fi ncaram-se entre as quinchas das casas, atrás dos tabiques, sobre as árvores, além das pedras e nos buracos que lhes serviam de trincheiras. As mulheres e crianças foram colocadas no porão da casa. Quanto a mim, por ser um piazito magrelo, ossos largos na cara, prometendo um dia recordar meu pai, foi sugerido que fi casse dentro do poço.

Eu não queria. Desejava ver a vitória do pai. Mas ele não quis. Teimou e mandou. Obedeci. Chorei e fui para o lugar determinado.

Roberto Márcio Pimenta

Page 7: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

24VIII Concurso de Contos Petros

O poço? Sim. Tinha um bocal assimétrico, com pedras justapostas, encaixadas, com dois pilares até o centro de onde partia a entrada para uma pequena galeria, num traçado semelhante às minas de carvão, porém com galeria única de um metro e meio de altura por dois e vinte de comprimento, acomodando, deste modo, uma criança em pé ou um homem de joelhos. Sobre o bocal, uma viga de ferro apoiada em dois madeirames de onde desciam, por uma carretilha, a corda e a caçamba. No fundo havia uma água azulada, salobra, com um frescor constante que se renovava a cada retirada de balde. A bem da verdade, este poço existia somente como estratégia de esconderijo.

Enquanto descia ouvia os tiros, os latidos dos cuscos e os gritos. Acomodei-me no cubículo. Daquele lugar frio e úmido, conseguia escutar a voz do meu pai gritando e o imaginava combatendo.

Lembrei-me dele falando-me sobre a minha mãe: era a estampa de uma fêmea perfeita. Tinha algo de santa no olhar e... eram felizes. Um dia chegou um tropeiro, piscou para a mãe e deu-lhe anel de prata. Depois a levou junto com seus animais. E o pai disse que “Uma vaca a menos não ia fazer falta”...

Tempos depois, ele recebeu as roupas da mãe com uma carta dizendo que ela caíra no desfi ladeiro junto a um animal da tropa. O pai não acreditou e não deu trela. Sabia que um dia o ladrão-tropeiro voltaria para tomar a colheita.

Enquanto pensava, a temperatura caía. Horas depois o frio e a umidade começaram, aliados ao meu temor, a me provocar hipotermia. Precisava me aquecer. Além disso, o ar rarefeito do poço acelerava meu coração, provocando em mim um estado de embriaguez. A tontura expulsava de mim o homem que eu era. Os cães já não latiam ou eu não os ouvia. Tampouco ouvia a voz do meu pai. Os tiros rarearam até sumirem. Escutava somente os pingos da água caindo no fundo do poço, o assovio do vento na corda.

Minhas têmporas latejavam, sentia um gosto de cobre na boca, um estado febril e muita vontade de sair dali. Mas como?

Lentamente, enrolei a corda ao redor do meu corpo, pisei nas pedras de granito e, com parcimônia nos gestos, economizei cada centímetro da escalada. Aproveitava o movimento do corpo, batendo nas pedras para galgar alguns centímetros. Deste modo, nem sei

Gralhas nos campos de trigo

Page 8: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

25VIII Concurso de Contos Petros

quanto tempo levei para chegar ao topo onde havia a tampa do bocal. Com esforço sobre-humano consegui sentar-me no bocal, ofegando, pestanejando.

Dei alguns passos, cambaleei, olhei ao redor. O primeiro olhar nada me restituiu. Os únicos seres vivos que vi foram duas minhocas, galinhas ciscando o esterco deixado pelos cavalos, alguns pássaros grudados no azul. Pisquei os olhos, enchi o pulmão de ar e pude ver melhor. À minha frente moscas varejeiras sobre um corpo. Mais à frente outro, mais um, dois, três, quinze, vários corpos.

Extenuado, diante da horrível paisagem, procuro meu pai entre os mortos.

Encontrei-o no paiol com a cabeça esfacelada e o sangue sobre o trigo. Ao lado, outro cadáver – uma mulher parecida comigo, vestida de tropeiro. Olhei-a com ternura de fi lho ausente, toquei o rosto do pai e deixei o pranto romper...

Retorno ao tempo presente.No vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados

para longe...E num campo de trigo qualquer, as gralhas continuam atacando...

Roberto Márcio Pimenta

Page 9: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

26VIII Concurso de Contos Petros

2º LugarJoão Augusto Bastos de Mattos

Corazón partido

Page 10: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

27VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Casado, pai de dois filhos, o aposentado João Augusto Bastos de Mattos tem um apreço especial pelas manifestações culturais espanhola e hispano-americana. “Parece que são mais abertas para a expressão da paixão.” Para ele, a música talvez seja a forma em que essa característica fi ca mais evidente por intermédio do tango, o canto fl amenco e a música cubana. Preparou Corazón partido às vésperas do evento, e afi rma não escrever com a devida freqüência.

A inscrição no concurso da Petros marcou sua estréia em competições literárias. Desde o desligamento da companhia, em fevereiro deste ano, participou de uma ofi cina de teatro e de um curso literário. Em paralelo, está envolvido numa pesquisa documental sobre a imigração italiana para o Brasil. “No mais, aproveito o tempo livre para assistir a espetáculos musicais, passear no Jardim Botânico (RJ) e desfrutar da convivência com a família e com os amigos.”

Em sua avaliação, o mercado literário está em um momento favorável com os blogs, que fazem surgir novos talentos. Na prosa, ele admira Guimarães Rosa, Eça de Queirós, o italiano Antonio Tabucchi e o português Miguel Torga. Na poesia, Cecília Meireles, o espanhol García Lorca, o português Jorge de Sena. Seu livro de cabeceira é Grande sertão: veredas, “fascinante pela infi nidade de possibilidade de novas leituras e a riqueza do vocabulário”. Trabalhou na Petrobras de 1975 a 2008, nas áreas de informática, planejamento, gás e energia. Nos dois últimos anos de carreira foi cedido à Pesquisa.

Page 11: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

28VIII Concurso de Contos Petros

Preciso, ainda hoje, mandar preparar esta panacéia homeopática. Não faço muita fé nisso não. Não faço muita fé em nada, para falar a verdade. Mas em alguma coisa a gente tem de se apegar. Por isso vou mandar preparar, ainda hoje, esta panacéia homeopática. Se vou mesmo viajar na quinta-feira, tenho de me apressar com essas pequenas providências do cotidiano.

Alguém com senso um pouquinho mais prático apertaria três teclas de celular e teria, no dia seguinte, a poção mágica entregue em sua casa. Não sou essa pessoa. Vou de ônibus, vou de metrô, vou a pé, mas tenho de ir lá, eu mesmo, sem prepostos, entregar este papel nas mãos da atendente da farmácia de manipulação que fi ca naquela galeria perfumada da rua Sete de Setembro.

Elevador-nostalgia... Porta pantográfi ca: mantenha-se afastado. Minha médica parece querer manter o estilo contestador dos anos setenta. Consultório num edifício art déco, maltratado e descaracterizado, no meio da Benjamin Constant. Glórias passadas... Sempre penso nela morando num prediozinho de três andares, sem elevador, lá pras bandas do largo do França. Ou talvez na Equitativa.

Saindo da Benjamin Constant, preciso chegar ao Centro antes das seis da tarde. Tenho tempo para uma entrada rápida na Igreja Positivista. Uma rosa-dos-ventos apontando para Paris, nos azulejos do piso. Minha sina será mesmo a Europa? Entro no templo. Os santos da humanidade me amparam. Seis fi guras masculinas de um lado, sete do outro. Junto deles, a única mulher: Heloísa; onde está seu Abelardo? Permaneço cinco minutos imóvel, mirando aqueles vultos. Descartes, Arquimedes, Aristóteles, meus guardiães, poderiam vocês fazer de mim um ser mais racional? Santa Clotilde de Vaux, iluminai-me neste carrefour da vida: Marília ou Lisa? Voltar para a Catalunha? Ficar no Brasil? Mergulhar, cada vez mais, no dia-a-dia do meu Catete, naquele apartamento estreito mas confortável? Travessa Carlos de

Corazón partido

Page 12: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

29VIII Concurso de Contos Petros

Sá. Dona Conceição todas as manhãs. Bom dia, doutor Manfredo. Esta dengue que não vai embora... A obra da cobertura está no fi nal, doutor Manfredo. E o tiroteio na madrugada, o senhor não ouviu? Já de volta, doutor Manfredo? É, percebi que o senhor chegou mais tarde ontem à noite...

Com Marília por perto, a escolha era mais fácil. Brasil na cabeça. Marília enche de azul o domingo mais nublado. Mas Marília só aparece quando quer. Telefone? Não me disse. Endereço? Uma vez fi zemos amor em seu apartamento. Rua Carlos Sampaio, quase na Vinte de Abril, nas profundezas da velha Lapa. Mas o contrato de aluguel vencia na semana seguinte. Não renovou.

Passava meses sem me procurar. Eu já desistindo, vinha um telefonema: sr. Manfredo, gostaria de estar passando uma proposta de seu interesse. Desculpe, moça, mas não tenho tempo agora para televendas. Por favor, são apenas três minutos, vou estar apresentando um plano irrecusável. Eu tinha sido elogiado, de manhã, pelo meu desempenho como professor de espanhol, e minha tolerância estava alta naquele dia. Suportei cinco minutos de abundantes gerúndios sem propósito, até que ouvi a mensagem que não dava para recusar: uma pessoa muito querida vai estar esperando pelo senhor, amanhã ao meio-dia e quinze, no segundo banco da igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens.

Vamos ao aqui e agora: lá vem o ônibus Rodoviária, pode me deixar na Praça Tiradentes, de lá até a Sete de Setembro é um pulo.

Ônibus lotado, mas o que se pode esperar, às cinco e quinze de uma terça-feira? Relógio da Glória. A antiga amurada. O Pedro Nava morava numa linda rua, não há dúvida. Um belo esconderijo para “um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”.

Onde é que eu estava mesmo? Sim, Nossa Senhora Mãe dos Homens. No dia seguinte, lá estava eu, na rua da Alfândega, ao meio-dia em ponto. Suportei quinze minutos de uma cantilena carismática, até que ela apareceu. Bem vestida como uma beata dos anos cinqüenta: manga três-quartos, saia de lã no meio das canelas, sapatos discretos.

Começamos nesse dia duas semanas de lua-de-mel. Até que ela desapareceu. Não era o cometa Halley, não tinha prazo para reaparecer. Já estava habituado a esses sumiços, a esperar a volta de Marília quando lhe desse na telha.

João Augusto Bastos de Mattos

Page 13: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

30VIII Concurso de Contos Petros

Os expedientes para reaparecer eram os mais surpreendentes: intimação para regularizar minha situação junto à Receita Federal, em papel timbrado do Ministério da Fazenda. Trotes telefônicos às quatro horas da manhã, mensagens de correio eletrônico: acesse o endereço tal... A partir daí, passei a expor meu computador a todo tipo de vírus: encontrar Marília valia uma dezena de Cavalos de Tróia.

Praça Tiradentes: pára aí, moço, por favor. Quase deixo passar o ponto. Marília sempre me tira do sério. Com Lisa não era assim. Passeios românticos na Rambla Nova de Tarragona. Nada de excessos.

Uma vez, paramos para um sorvete, bem em frente ao monumento dos Castellers. Uma homenagem ao folclore catalão. Uma pirâmide humana, uma porção de pessoas formando a base, cinco ou seis compondo o segundo andar, três no terceiro, no último apenas um. Lisa me explicou os nomes: a base é a pinya, depois vêm os segonds, os terços, os quarts... no topo, a pom de dalt.

De mãos dadas, passeando no entardecer de Tarragona, ela me contou que, quando menina, costumava classifi car seus colegas de turma de acordo com o lugar que ocupavam no castell de seu coração: a maioria era da pinya, uns poucos eram segonds. Apenas um ocupava a pom de dalt.

Pedi naquele momento que ela me classifi casse. Com um sorriso misterioso, explicou que cabia a mim descobrir.

Rua da Carioca ou Sete de Setembro? Tanto faz, mas é sempre bom exercitar o direito de escolha nessas pequenas coisas, talvez fi que mais fácil nas decisões mais fundamentais. Tarragona, Rio de Janeiro. Marília, você tem até meia-noite para se materializar, caso contrário é Tarragona, não posso fi ca nessa dúvida até chegar ao Galeão na quinta-feira.

Rua da Carioca, Cine Ideal, galeria das plantas, um sebo cheio de poeira, tesouros intocados há mais de dez anos. Nos ouvidos, Omara Portuondo cantando com Bethânia:

Tal vezSi te hubiera besado otra vez

Ahora fueron las cosas distintasTendrías um recuerdo de mí.

Corazón partido

Page 14: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

31VIII Concurso de Contos Petros

Sabia das coisas do amor, esse tal de Juan Formel. Se ao me despedir de Marília... talvez!

Difícil andar por esta rua. Um camelô esfregando as pedras portuguesas, fazendo demonstração de produtos de limpeza. Bancas de ervas medicinais nos fundos da igreja de São Francisco de Paula. Um vendedor com voz estridente anuncia as últimas novidades, diretamente de Macau. Relógios, bambolês. Uma mocinha meio índia me passa, sorrindo, um daqueles papeizinhos: “Dinheiro na hora.” Ou seria: “Mãe Teresa, traz a pessoa amada em quarenta e oito horas”? Vai o papel amassado para o bolso esquerdo da calça, já desisti de procurar latas de lixo nestas ruas do Centro. Talvez a índia estivesse pensando nas belezas de sua terra, talvez se lembrasse da festa de sábado passado, o fato é que ela sorria feliz. Sorria para mim? Sorria de mim?

Raquetes mata-mosquitos, caixinhas de música, um magricela à frente de uma banca de paçoquinhas e balas, cuidando também da barraca de adesivos da amiga, que tinha ido apostar na Mega-Sena. Solidariedade. A índia ria de mim? Debochava de minha solidão? Talvez, cantava Omara. Quizás, quizás, ecoava Nat King Cole.

Não, Marília de fato não me procurou. Hoje, à meia-noite, é o prazo limite. Meu futuro é Lisa. Vida pacata. Ela na livraria esotérica, ao lado da Casa Castellarnau. Eu na Universidade Rovira i Virgili, aprendendo um pouquinho mais sobre literatura catalã. Lisa. Paz no coração.

O camelô é solidário com sua colega. Essa solidariedade cotidiana me prende ao Brasil? Talvez. Mas a índia debochava de mim... Bobagens, preciso parar de fi car atento aos indícios. Borra de café no fundo da xícara. Soma de algarismos de placas de carro. Bobagem achar que esses sinais me apontam para cá ou para lá.

Posso fechar tudo no Brasil até quinta-feira. Tenho amigos que podem se encarregar das providências fi nais. Encerrar o contrato de aluguel, dar um fi m a duas dezenas de livros que sobraram, despachar por navio os que quero levar. Esses já estão encaixotados. Se até a meia-noite de hoje Marília der o ar de sua graça (talvez...), devolvo todos eles para a estante, com muito prazer.

Esquina de Uruguaiana. A nova Cavé. Na volta passo aqui para um pastel de Santa Clara. Um mímico, com um chapéu de Carlitos, persegue os passantes. Há quantos anos ele mantém essa labuta diária!

João Augusto Bastos de Mattos

Page 15: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

32VIII Concurso de Contos Petros

Pode ser que Lisa me faça feliz. Na mensagem que trocamos na semana passada, ela me disse que faltava alguém no topo de seu castell, bem no alto, na pom de dalt.

Com Lisa, quem sabe, eu pudesse cantar a outra canção do disco de Omara, disco que não consigo parar de escutar nesses dias:

Para cantarle a mi amorTengo la luna y el aguaLas rosas de los rosales

Y las mariposas blancas.

Lisa pode me trazer seu amor de Oxum, águas calmas do riacho, borboletas amarelas nas margens, canto dos pássaros na mata. Marília, ao contrário, me presenteia com sua Iansã, energia febril, surpresas a cada momento, paixão desmesurada, explosões de ódio e de amor.

Finalmente, o prédio da farmácia de manipulação. Não era aqui a Casa Masson? A Casa Masson só vende o que é bom, era essa a propaganda? Ninguém mais se lembra disso, nem eu mesmo tenho certeza. Mas que era aqui que ela fi cava, disso sei muito bem.

Pronto. Resolvido o problema da receita homeopática. Volto a pé para casa. Preciso (ou não?) dar um balança na vida. Omara me persegue:

Tal vezSi al despedirte de mí

Tus manos tibiasHubieran tocado mis manos

Diciendome adiós

Pero tal vezSi tú hubieras hablado mi amor

Te tendría aquí a mi ladoY sería feliz.

Chego em casa daqui a pouco. Algo em Marília, uma intuição que possui, mais que qualquer outra mulher, vai dizer a ela que se aproxima o prazo fi nal. Ela vai dar algum sinal, antes que a cotovia cante.

Corazón partido

Page 16: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

33VIII Concurso de Contos Petros

Talvez.

O Galeão me dá sempre uma sensação de perda, de abandono. Vejo mulheres sozinhas ou acompanhadas de fi lhos pequenos, e penso sempre que estão desamparadas, ao deus-dará. Pode ser que situações como essas me tragam à memória a lembrança de minha mãe, carregando-me ao colo, ainda criança, puxando pela outra mão as malas e bagagens de uma família pequena, em nosso embarque para a Espanha, nos anos setenta. Ela ia em busca do marido que havia voltado para sua terra dois anos antes, depois de uma convivência conjugal que não tinha sido pacífi ca. A esperança era de que tudo se remediasse, após o reencontro, em Barajas. Não durou muito. Três anos depois, ela estava de volta, desiludida, e passei a dividir o resto de minha infância entre os dois países. Aqui eu me percebia espanhol, na Europa eu me sentia, cada vez mais, um brasileiro. Foi bom para mim? Talvez.

Fiz questão de vir sozinho ao aeroporto. A partir do momento em que tranquei pela última vez a porta do apartamento da Carlos de Sá, percebi um certo prazer amargo em curtir a sensação de solidão, de tristeza, de desencanto. Marília não deu notícias. Talvez eu ensaie derramar algumas lágrimas, depois de apertar o cinto, dentro do avião. Como o poeta português, estarei fi ngindo, completamente, a dor que deveras sinto.

Finalmente. Mala de mão colocada no bagageiro superior. Embaixo do banco, uma mochila com um bom livro, uma revista de quebra-cabeças, um caderninho de anotações. O cansaço desses últimos dias começa a mostrar sua presença. Como sempre, minha partida é meio atabalhoada, há sempre um bilhete a mais para deixar para um amigo, um telefonema que poderia ter sido dado ontem. Na última hora, me lembrei de resgatar, da lixeira embaixo do computador, aquela lista com os nomes dos personagens de Cortázar. Tanto tempo eu tinha perdido catalogando esses nomes, quem sabe poderia render um estudo acadêmico um dia desses.

Como sempre, os últimos minutos são caóticos, não sei que roupa vou vestir, que casaco vou levar para quando chegar a Madri. Acabei enfi ando às pressas a calça que estava em uso nos últimos dias, uma camisa social cuja cor não combinava muito, as meias quadriculadas

João Augusto Bastos de Mattos

Page 17: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

34VIII Concurso de Contos Petros

mais estranhas que tenho. Uma deselegância talvez proposital, para não atrair ninguém. Quero minha solidão. No máximo, a voz de Omara ressoando em meus ouvidos: Pero tal vez / Si tú hubieras hablado mi amor / Te tendría aquí a mi lado / Y sería feliz.

Como um filme rebobinado, os últimos dias passeiam pelos meus pensamentos: o Amarcord que assisti na retrospectiva do Cine Paissandu, o camelô que vendia paçoquinhas, a atendente da farmácia homeopática, a índia que distribuía papeizinhos e ria para mim, a rosa-dos-ventos positivista.

No bolso esquerdo da calça, tudo aquilo que esqueci de descartar, nesta cidade sem lixeiras nas ruas: papéis de jujuba, um bilhete rasgado de cinema, uma nota de compras do supermercado da rua do Catete, o papelzinho da índia, todo embolado: dinheiro na hora? Mãe Teresa? Não tenho mais o que fazer, vou desamassar e abrir:

“Acesse www.melodrama.com.br. Veja a sessão ‘quem sou eu’. Está lá meu novo endereço eletrônico. Te espero até amanhã. Caso contrário, embarco na quinta pela manhã para a Austrália. Mar. Ilha.”

Era ela. Teria dado certo? Talvez. Se tu houvesses falado antes, meu amor, eu te teria aqui ao meu lado. E seria feliz. Talvez.

Corazón partido

Page 18: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

35VIII Concurso de Contos Petros

João Augusto Bastos de Mattos

Page 19: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

36VIII Concurso de Contos Petros

3º LugarAbrão Aspis

Amizade

Page 20: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

37VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l O autor trabalhou na Petrobras de 1963 a 1994, nas áreas de engenharia, análise econômica e comunicação social. Foi relações públicas da Refap por 5 anos e realizou seis concursos literários. Entre os jurados, contou com nomes da envergadura de Lya Luft , Mario Quintana, Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar e Augusto Boal. Após a aposentadoria, continuou a organizar eventos culturais para outras entidades e ingressou defi nitivamente no ‘mundo dos escritores’ - já totaliza 10 livros publicados. Aspis foi presidente da Fundação Cultural do Sport Club Internacional, da Federação Gaúcha de Xadrez e da Associação Gaúcha de Escritores. Hoje, se divide morada entre as cidades de Porto Alegre e Gravatal, Santa Catarina. Lá, foi o fundador e primeiro presidente do conselho Municipal de Cultura e da Academia Gravatalense de Letras. A instituição foi a responsável pela biblioteca pública das termas (2.000 exemplares), além de participar de diversos eventos objetivando valorizar a leitura entre os estudantes.

Aos 72 anos, o autor é casado, tem um casal de fi lhos e um neto. Cultiva o hábito de ler no início da manhã ou à noite, quando perde o sono. Faz uma hora diária de esteira assistindo ao noticiário televisivo ou futebol (sua outra grande paixão). A partir daí, reserva ao menos duas horas para elaborar seus textos e responder aos e-mails. Seus autores preferidos já foram Voltaire, Truman Capote e Giovanni Papini. Hoje está mais inclinado à obra de Machado de Assis e Cíntia Moscovich. “Anotem: será a grande escritora brasileira”, ele opina.

Contabiliza algumas conquistas literárias, entre elas a 2ª colocação no concurso da Petros (2002), 1ª no Concurso Fellipe d’Oliveira, de Santa Maria (RS), menção honrosa no Concurso Guimarães Rosa da Radio France, de Paris, e 2º lugar no Concurso de Romance Rachel de Queiroz, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro.

Page 21: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

38VIII Concurso de Contos Petros

EvilásioA vida na estância de papai me entediava. Não sou de sentar numa

cadeira de balanço e fi car contemplando campos ao infi nito, sem nada fazer a não ser, como se diz na fronteira, “ver a grama crescer”.

Gosto de sentar num barzinho entre companheiros e beber, conversar, contar causos. Por isso, aos 16 anos, aproveitando direitos de herança, pedi que comprassem apartamento em Porto Alegre, e me despedi da monotonia. A mesada era sufi ciente e me permitia uma vida despreocupada. Estudava apenas o necessário para me manter ocupado e ter amigos todos os dias.

Aos 18 anos entrei na faculdade de Letras e passei a ser um universitário respeitável aos meus próprios olhos. O melhor da faculdade é juntar pessoas com pretensões iguais, e daí surgirem amizades interessantes. De dia, aulas longas, ensino teórico chato, pura perda de tempo. À noite, saída com colegas para festas de todos os tipos. Vez ou outra, escrevia artigos para jornais. Meu tema recorrente eram a corrupção e a incompetência endêmica dos governantes. Como sempre tive opiniões fortes, usava um linguajar irreverente e cáustico. Tornei-me líder da turma, objeto de admiração para uns, de inveja para outros.

No sexto semestre tive como colega Yolanda Neves Castro, uma senhora bonita e elegante, 35 anos, que simpatizou comigo. Rica e bem-casada, cumulava-me de gentilezas. Gostava de estudar comigo, comentar meus artigos, e freqüentemente se oferecia para sair à noite com a turma, mas eu evitava. “Não é lugar para mulher casada.” Então ela me convidava para almoçar ou jantar em sua casa, junto com o marido Valter e o fi lho Josué.

O que de melhor me aconteceu com a amizade dos Neves Castro foi conhecer Josué, de 16 anos, a quem, desde o início, me afeiçoei. Era tímido e discreto, e um dia o convidei para badalarmos à noite.

Amizade

Page 22: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

39VIII Concurso de Contos Petros

Seus pais fi caram felizes, pois eu contribuía para tirá-lo da casmurrice. A partir daí, sempre saíamos uma a duas vezes por semana, quando íamos a bares e, depois, ao meu apartamento.

Num fi m de semana fomos eu, Augusto, meu mais próximo colega de classe, e Yolanda participar da Jornada de Literatura de Passo Fundo. Na noite da chegada, depois de visitar bares com Augusto, ao voltar ao hotel, encontrei Yolanda sozinha no hall, aparentemente aborrecida por não ter saído em nossa companhia. Sentei com ela, falamos durante algum tempo e subimos aos nossos quartos. No elevador, ela disse que se me sentisse só, poderia procurá-la, pois deixaria a porta do apartamento destrancada.

Dormia pela madrugada, quando ouvi alguém bater à porta. Continuei deitado, e as batidas se repetiram. Não atendi.

No dia seguinte, durante as palestras, não se mencionou o episódio da noite, mas senti que a mulher estava magoada. Manteve-se calada todo o tempo.

Na volta a Porto Alegre, minha relação com a família Neves Castro se deteriorou. Yolanda abandonou a faculdade e nunca mais a vi. Josué, um dia, me telefonou e disse, chorando, que o pai o obrigara a viajar aos Estados Unidos.

Tenho constatado, desde então, um fato estranho: ao voltar de meus passeios à noite, percebo um Honda Civic, com um homem de chapéu, manter-se estacionado diante de meu edifício.

YolandaMatricular-me na faculdade de Letras foi uma das melhores coisas

que fi z, e também uma das mais funestas.Estava entediada. Casada havia 18 anos, compartilhava pouco

com o marido, que trabalhava muito, e com meu único fi lho, que se fechava no quarto com sua internet e discos. Eu sou de sair, me divertir, fazer compras, e, aos 35 anos, queria ter alguma atividade produtiva, intelectual, nobre. Então fui para a escola aprender o que se passava no mundo das letras, e talvez, no futuro, tornar-me escritora.

Meu melhor colega, e o mais brilhante, era o Evilásio, rapaz agradável e irreverente que escrevia artigos para jornais. Saía à noite com amigos e não me convidava. Então, para desfrutar de sua companhia, eu

Abrão Aspis

Page 23: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

40VIII Concurso de Contos Petros

o chamava para almoçar em casa. Tanto meu marido quanto meu fi lho Josué fi caram maravilhados com a inteligência do rapaz. Josué, até então um garoto introvertido e arredio, passou a ser amigo e companheiro de Evilásio em suas saídas noturnas.

No fi m do semestre, eu e alguns colegas fomos para um encontro literário no interior. Era a única mulher e fi quei meio isolada. À noite, amargurada com minha solidão, cheguei a me oferecer para Evilásio, mas ele recusou. Hoje, sei por quê.

Uma semana depois, meu marido desconfi ou de algo. Obrigou-me a abandonar a faculdade, impediu a entrada de Evilásio em casa e fez Josué viajar para o exterior.

JosuéTive uma infância infeliz. Apesar de ter pais ricos e bem conceituados,

vivia solitário em casa, sem procurar companhia. O pai me deu diversas bolas de futebol para me ver correndo nas ruas, mas não era o que eu queria. Preferia fi car fechado no quarto, vendo televisão ou pesquisando na internet. Sentia-me diferente, estava convicto disto, mas não sabia identifi car esta diferença.

Tinha 16 anos quando mamãe voltou a estudar. Um dia ela trouxe um colega para o almoço. Evilásio falava com tanta lógica, tanto conhecimento, tanta convicção que nos fascinou a todos. E quando ele me convidou para sair à noite, meus pais concordaram, e eu aceitei entusiasmado. Nesta primeira saída, percorremos alguns bares e depois fomos ao seu apartamento ouvir música. Aquela noite descobri o que desejava realmente da vida. Voltei eufórico. E a convivência em casa, com meus pais, melhorou sensivelmente.

Este estágio, porém, durou pouco. Papai passou a hostilizar Evilásio. Um dia voltou colérico; ofendeu a mim e à mãe, impediu que Evilásio entrasse em casa e me obrigou a ir para Nova York, onde tenho um tio.

Hoje moro em São Francisco, gosto da vida que levo, e não quero voltar ao Brasil. Nunca mais voltei a ver ou falar com meus pais.

ValterSou um homem de gostos comuns. Prezo valores como o trabalho,

Amizade

Page 24: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

41VIII Concurso de Contos Petros

a família, a honra. Não me deixo fascinar por prazeres fáceis e temporários. Entrei para o negócio da construção civil, e por meios honestos, tive sucesso. Hoje posso dizer que sou um homem rico. Casei com uma socialite bonita e elegante, a Yolanda, e construí uma grande mansão pensando em ter muitos fi lhos. O parto do primeiro, porém, foi doloroso, e Yolanda, traumatizada, não quis mais engravidar.

Eu e minha mulher temos temperamentos diferentes: ela é alegre, gosta de sair, ir a festas, fazer compras; eu sou discreto, contido, prefi ro fi car em casa resolvendo problemas de serviço e consertando o que for necessário.

Aos 35 anos, Yolanda resolveu cursar a faculdade de Letras. Voltava das aulas entusiasmada. Contava-me sobre escritores que passara a conhecer e dissertava sobre escolas literárias. Falava também de seus colegas brilhantes, um dos quais era fonte de sua admiração. Evilásio, além de ser espirituoso, escrevia em jornais da cidade crônicas sarcásticas e violentas, fustigando os políticos corruptos. Um dia, Yolanda convidou-o para almoçar em casa. Cativou-me com suas posições inteligentes e cultura acima da média. Josué também fi cou fascinado. E quando Evilásio se ofereceu para sair com Josué, eu e Yolanda concordamos. Vislumbrávamos que nosso fi lho poderia perder a timidez e conseguir ter, fi nalmente, um amigo. De fato, Josué se tornou outro, desde então. Passara a falar durante as refeições, tinha o semblante plácido e referia-se com admiração sobre o novo companheiro. A partir daí o universitário aparecia freqüentemente em casa, para refeições.

Houve um encontro de escritores em Passo Fundo, e minha mulher resolveu comparecer. Foi com alguns colegas, Evilásio entre eles. Quando retornou, noite de domingo, vi que estava abatida, mas nada perguntei.

Algum tempo depois, um cliente, professor da faculdade de Letras, com reservas, disse que ouvia murmúrios sobre o relacionamento de Yolanda com Evilásio. “Não sei ao certo, pode ser apenas coleguismo, ou é maledicência de...”

Não falei nada para Yolanda, mas passei a observá-la. Estava a ponto de contratar um detetive particular quando o professor retornou e disse que tinha algo a me falar sobre a conversa anterior.

– Não precisa se preocupar. Descobrimos quem é Evilásio. Apesar

Abrão Aspis

Page 25: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

42VIII Concurso de Contos Petros

de discreto, é gay. Deita-se com homens, não com mulheres.Em paz, abracei o amigo e fui ao armário pegar um Chivas 12

anos.– Então ele gosta de homem... – eu disse sorrindo. Mas, subitamente,

comecei a tremer. A garrafa foi ao chão.– Meu Deus! Josué!... – Meu problema não era mais com a esposa,

mas com o fi lho.Cheguei em casa atordoado. Sem nada explicar, aos gritos, proibi

Yolanda de freqüentar a faculdade. E determinei que Josué viajaria aos Estados Unidos para morar com meu irmão, um missionário. Bati a porta, fechei-me no quarto e me pus a pensar.

Às noites, saía a passear de automóvel e voltava altas horas. Uma noite voltei mais tarde.

Havia dado dois tiros em Evilásio.Um vigilante de rua identifi cou meu carro. Logo jornalistas e colegas

do estudante me acusaram, devido ao relacionamento do morto com minha mulher. A opinião pública fi cou contra mim. Contratei um bom advogado e fomos lutar nos tribunais. Recebi instruções precisas: devia sempre, em qualquer situação, me declarar inocente. E quando meu defensor comprovou que Evilásio era homossexual, e nunca se relacionara com uma mulher, os jurados consideraram que eu não tinha motivos para matar o rapaz.

Ninguém mencionou que Josué, meu fi lho, era amigo do falecido.Fui absolvido.

Amizade

Page 26: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

43VIII Concurso de Contos Petros

Abrão Aspis

Page 27: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

44VIII Concurso de Contos Petros

4º LugarSegisfredo Silva Wanderley

Os desaparecidos

Page 28: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

45VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Casado há 30 anos, quatro fi lhas, nasceu na cidade baiana de Ilhéus, onde, aos 12 anos, descobriu Jorge Amado. Tornou-se um ledor voraz. Na Petrobras (1974 a 1999), trabalhou no antigo Departamento de Exploração e Produção. Com a reestruturação das áreas, veio para o Rio de Janeiro exercer suas atividades profissionais no Departamento de Exploração. Encerrou a carreira no Centro de Pesquisa (Cenpes), como Técnico de Geologia.

Escreve regularmente e já conquistou a primeira colocação em um concurso de monografias. Está concluindo seu primeiro livro a ser publicado. E sonha escrever outro, reunindo ‘histórias da Petrobras’. A mulher, Áurea, e as filhas são suas principais incentivadoras. O texto Os desaparecidos foi elaborado sob encomenda para o concurso da Petros.

O quarto colocado desta edição lê, em média, dois livros por semana. Aprecia vários autores brasileiros, mas não esconde a predileção por Machado de Assis. Seu livro de cabeceira é a Bíblia. Segisfredo considera a literatura atividade séria e lamenta que a cultura brasileira seja ainda predominantemente oral. “Pensa melhor quem lê bem. Quem não aprende a ler não aprende a escrever. Por isso, em nosso mercado literário tão pequeno predominam as traduções”, afi rma. Na contramão do dito popular, para ele, “uma sentença vale mais que mil imagens”. Em sua avaliação, entender as questões de Shakespeare (‘Ser ou não ser?’ e ‘Seja tudo como for’) conduz o indivíduo a uma ação proposta pelo escritor Miguel de Cervantes: “Sei quem sou e quem posso ser.”

Page 29: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

46VIII Concurso de Contos Petros

“Sempre que leio nos jornais: “De casa de seus pais desapareceu...” Embora sejam outros os sinais, / Suponho sempre que sou eu.”

Carlos Queirós, poeta português.

IQuem visse agora aquele homem alto e magro, com cabelos escassos,

que embranqueciam, sentado placidamente naquela sala de paredes nuas e estantes vazias, nunca imaginaria o alvoroço intenso que em sua alma havia.

Hoje é quarta-feira. E há muito o horário regular de trabalho se encerrou. Aos poucos, o ruído da saída das pessoas foi se amainando... O antepenúltimo, o penúltimo, o último. Agora, salvo o rumor errático, no corredor ou no banheiro, de um ou outro que trabalha além das horas, o que prevalece é o silêncio. É quarta-feira. Mas, amanhã, este homem, embora lúcido e saudável, não vai precisar voltar. E não é folga nem férias.

A sala é um submarino. E, para quem não sabe, um submarino é um espaço de trabalho onde seu ocupante nunca pode responder prontamente à pergunta simples “Chove lá fora?”

Já anoiteceu. Mas o homem não tem pressa. Aos poucos vai se acalmando e aceitando a realidade da política de pessoal do mercado capitalista: o Output fi nal é Put out. Por quanto tempo, neste dia longo, ele refl etira no sentido das coisas! Levantando-se para sair, lembra ter lido em algum lugar “A realidade é fantástica e a fantasmagoria real e rotineira.”

IIQuarta-feira. O pátio do estacionamento está quase vazio de carros,

e, à exceção deste homem, deserto de pessoas. O enorme espaço aberto

Os desaparecidos

Page 30: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

47VIII Concurso de Contos Petros

deixa visível o carro dele a distância. Caminhando, pensa: Acabou. Não vou mais disputar aquela vaga sob a árvore. Aquela sombra doravante será de outros. De quem? Não importa a mim. Importará certamente ao Quincas. Que sujeito competitivo! Ele é de uma nova geração. Mais bem preparado do que eu quando comecei. Mas desenvolverá pela empresa esta mesma afeição radical que temos? Não sei... Quem sabe? Talvez nem tenha tempo para se enraizar aqui. Com essa história do fi m do emprego, quantos estarão aqui nos próximos 30 anos?... Trinta e dois anos! Quanto tempo! E ainda lembro o primeiro dia. Foi curto. Era Copa do Mundo. Jogo do Brasil. Mas lembro melhor da cor das paredes, da disposição das cadeiras na sala ampla, onde fui apresentado à equipe, e de um gringo sorvendo chá, do que das jogadas dos craques exibidas na tevê.

Caminha sem pressa, como se não quisesse sair nem pudesse fi car. Olhando as estrelas, olhando o chão, avançando lentamente em direção ao carro, ele retrocede rapidamente ao passado distante e tão próximo, ausente e tão presente, como se não fosse acabar: “Este é um novo colega. Acertou na loteria. Passou no último concurso. Completou o curso da nossa ‘academia’. Compete ao nosso setor o seu estágio probatório. Já lhe dei as boas-vindas em nome do setor. Ele vai participar da reunião e pode fazer perguntas. Assegurei a ele que o grupo é bom. Vamos começar.” Paramos às dez horas para um cafezinho. “Meu nome é Maria. Mas todos me chamam Preta. O senhor aceita um café?” O cafezinho não era bom. Não era ruim. Era útil.

Percebendo agora que empacou, e que o “polícia” da empresa o observa da cabina, retoma o passo. Mas o passado se impõe. Não desliga. Ele olha atrás no tempo: João era um pândego. No meu segundo dia, trazendo um dos olhos bem aberto, com ajuda de dois dedos, me pediu: “Vê aqui se tem algum cisco?”. Não tinha. “Sabe o que há cara?”, disse-me, olhando-me nos olhos. “Tô com o olho enum-viado.” Não tá não, o fi z saber, de cara fechada. Mas logo passou. Viemos a ser quase amigos. Ele era um moleque. Mas foi sempre mais confi ável que Pereira. Do que o Cardosinho nem se fala. Mas este não durou. Foi transferido para não sei lá onde... Não está no mapa do Brasil, só nas cartas e cartadas da Companhia. Baniram o crápula depois que ele foi levar um champanhe de presente para a mulher de um colega que viajara a serviço. Não foi recebido. E quase levou porrada da alagoana.

Segisfredo Silva Wanderley

Page 31: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

48VIII Concurso de Contos Petros

Mas havia gente boa. E cocadas da Preta, (ou era Pretinha?) As cocadas eram deliciosas. A Laura gostava muito. E todos gostavam da Laura. O Tião não fedia nem cheirava. Para mim. Para Ester, ele fedia. Esterzinha deu-lhe um dia uma bofetada na fi la do restaurante. Por quê? Ninguém soube. Soube? Não sei... Mas quando a Cíntia adoeceu de câncer, a solidariedade foi impressionante! Ficamos todos comovidos. Muitos se envolveram. Apoiaram-na na doença até o fi nal. Ao enterro, ninguém que eu lembre faltou. Na verdade, o câncer não gostava da nossa gente. Matou mais dois dos nossos. O diagnóstico de Aulino chegou junto com a ornamentação do Natal. E na noite do ano novo, ele estava morto. Fernanda precisou de quimioterapia; mas não a vi sem seus lindos cabelos. Perdemos outro colega, para a Aids. Foi penoso. A surpresa foi grande. O preconceito maior. Naqueles momentos vimos o pior do melhor de nós. Como éramos diferentes! E como éramos semelhantes! Profi ssionalmente, sérios. Tecnicamente, não poucos, eram brilhantes. Mas no dia-a-dia, todos éramos de terra.

O Vigilante está inquieto. “O que há com o cara?” O profi ssional de segurança está indeciso. Indeciso fi ca. Afi nal, olhar o chão ou o céu, andar devagar, parar. Às vezes quase correr; isso era um tanto estranho... Mas o sujeito era um veterano, não um novato do serviço terceirizado. Ele sabia que ali era normal ser um tanto anormal. Indiferente, meu anti-herói prossegue no seu túnel do tempo: Os banheiros eram limpos. O restaurante também. A comida era boa e farta. A autonomia no trabalho não era muita, mas era satisfatória. A iniciativa era incentivada e reconhecida. O ambiente era climatizado o ano inteiro. Raramente fi cava muito frio. Calor, jamais. À exceção de Manaus. Mas o Amazonas é longe. E já se espera que seja mesmo diferente. A rotina, em geral, era boa. As festas também. Café e cantina. Só raramente botinas. Lembro bem do “sargentão”. Contudo, o mais comum eram chefes civilizados. Tarefas defi nidas. Procedimentos assimiláveis. Treinamentos constantes. Nunca conheci nenhum presidente, mas, e daí? No dia-a-dia, que importava o presidente? Tínhamos função e meios adequados para desempenhá-la bem, e o salário nunca atrasou nem faltou. A capacidade do chefe para fazer bem ou mal era relativa. E sempre houvera espaço para exercícios de inteligência. Nem sempre, é verdade, em proveito da Companhia. E nisso se distinguia o chefe que dispunha da função, e não apenas da

Os desaparecidos

Page 32: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

49VIII Concurso de Contos Petros

posição. Conheci alguns que eram líderes. E os lembrarei sempre. Os outros... Quais outros? Não importa mais se tiveram importância, ou como alguém se comportara. Essa é vantagem das lembranças, elas podem ser seletivas. Mas podem ser distorcidas... O presidente, por exemplo, na verdade é importante. É dever dele escolher os dirigentes. E prover “chefes honestos, confi áveis e responsáveis”, já se disse, “é a mais exigente das tarefas humanas”.

− Portaria Dois para Central. Portaria Dois... − chama pelo rádio o segurança.

Não há resposta.− Portaria Dois...− Central na escuta, prossiga, câmbio.− Elemento com comportamento estranho no estacionamento.

Permissão para deixar a guarita.− Estranho como? Elemento desconhecido?− Negativo, chefi a. Ne-ga-ti-vo. Prata da casa.− Você o conhece, então?− Po-si-ti-vo. Elemento já estava na casa quando comecei a trabalhar

aqui. É prata “enferrujada”.− E o que há de estranho nele agora?− O sujeito fala sozinho. Não chega nunca ao carro que deve ser

o destino fi nal de todo indivíduo que se dirige ao estacionamento, certo, chefi a?

− Claro, claro...− Credo! Te esconjuro. O cara sentou na calçada. Tá bêbado? Mas

ele saiu do escritório agora mesmo! Vai conseguir dirigir?O fi m da rotina de um altera a rotina de outro. Sentando no meio-

fi o, ele relembra: As paralisações. As greves. Fiz todas as greves que o pessoal do sindicato chamaria de greves históricas. Seja lá o que isso seja. Brigamos com a Companhia pela Companhia. E por nós mesmos. Houve demissões. Punições. Ambigüidades, hipocrisias. Teve tudo. E resultou em nada. Reposições, plano de carreiras, gratifi cações de supervisão e participação nos lucros... Palavras ao vento. Tudo se converteu em clichês banais. Avanço houve. E haverá. Mas segue uma lógica própria do mercado. Os movimentos de massa dos trabalhadores têm de inovar. Nunca consegui infl uenciar a agenda de reivindicações,

Segisfredo Silva Wanderley

Page 33: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

50VIII Concurso de Contos Petros

priorizando aumento de autonomia e participação, a contribuição; relações dignas e respeitosas... Quando me atrevi a falar nisso, minha proposta foi considerada mambembe. Fiz o que pude. Não foi muito. Foi quase nada.

O Vigilante vem vindo. Vem displicente. No fundo, sabe que não há nada pior do que acomodação a uma rotina sem sentido. Foge dela ao menor estímulo. Não sabe o que vai dizer. Dirá o que lhe ocorrer, ao sujeito que devaneia, naquela noite de lua cheia.

Abrindo a porta do carro, ele coloca no banco vazio, ao lado do assento do condutor, a sacola com as fotos dos fi lhos e da mulher, as quais, durante anos, ornamentaram sua mesa de trabalho, e pensa: Estranha descoberta. Sempre fui só. E desconfio que somos todos solitários. Alguém disse que “a gente nunca está menos só do que quando só”. Tardia constatação: o que importava antes é o que importa agora, os relacionamentos. Minha geração foi focada nas tarefas. Concentrados e esgotados nisso, não construímos relacionamentos. Não tendo mais tarefa, não tenho nada. Acabou. É tolice voltar aqui, salvo premente necessidade. Mas posso começar ou retomar relações em outro lugar. Como a Lua ao amanhecer, desaparecer aqui para aparecer ali. Libertado das aparências, da obrigação de agradar quem vai me punir ou favorecer, deve ser mais fácil ser eu mesmo. Espero que os que se foram, os desaparecidos, estejam, como a lua, a brilhar em algum lugar.

O Vigilante fi nalmente o alcança. E se faz ouvir: − Boa noite, companheiro. Tudo bem com o senhor?” − Sim. Tudo bem. Obrigado.Liga o carro, engrena a marcha e sai sem a pressa de quem vai voltar

na manhã seguinte. Voltando o rosto, despede-se do ex-companheiro: “Boa noite.”

Ele olha a lua cheia, como sua festa de despedida, e sem que o Vigilante possa ouvir, diz para si mesmo, concernente aos fatos passados, e aos antigos processos: Adeus.

Quem visse agora, ao volante de seu carro, aquele homem alto e magro, com cabelos escassos, que embranqueciam, se surpreenderia ao perceber-lhe na voz e no olhar aquilo que só poderá fazer bem a ele mesmo e a todos que dependem de sua infl uência, lampejos de novas esperanças.

Os desaparecidos

Page 34: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

51VIII Concurso de Contos Petros

O Vigilante, olhando o carro que se afasta, confuso diante daquela serenidade inesperada, anota: “Amanhã...” Não, amanhã é minha folga... “Avisar sexta-feira ao companheiro que a lanterna esquerda do carro dele está com a lâmpada queimada.”

Segisfredo Silva Wanderley

Page 35: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

52VIII Concurso de Contos Petros

5º LugarJoão Paulo Vaz

Cristina e a revolução

Page 36: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

53VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Engenheiro eletrônico e mestre em ciência da computação, João Paulo Vaz trabalhou 26 anos na Petrobras, como analista de sistemas. Aposentado em 1999, fez pós-graduação lato sensu em fi losofi a contemporânea, na PUC-RJ.

Escreveu seu primeiro conto em 2000, para participar do primeiro Concurso da Petros. Não fi cou entre os fi nalistas, mas a experiência o levou a inscrever-se numa ofi cina de contos conduzida pelo escritor Jair Ferreira dos Santos. Desde então, como concorrente ou como jurado, participou de todos os concursos da Petros, tendo vencido o de 2002.

Atualmente dedica-se à literatura e acredita que o estímulo do Concurso da Petros teve influência decisiva nessa escolha. Publicou três livros de contos: Sete estações (editora 7Letras, Rio de Janeiro, 2003), A mão do chefe (editora Nova Prova, Porto Alegre, 2004) e Sexmaster 5 e outras histórias (editora Cais Pharoux, Rio de Janeiro, 2008); e um livro infantil, A lagartixa verde (ed. FUNCEB, Salvador, 2006).

Pelo livro A mão do chefe, recebeu o Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana, em 2004. Em 2005, venceu o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, da Universidade de Passo Fundo, com três contos depois publicados em Sexmaster 5 e outras histórias. O livro A lagartixa verde recebeu em 2006 o Prêmio Nacional de Literatura Infanto-juvenil, da Fundação Cultural do Estado da Bahia. João tem 59 anos, é casado com Sandra Mara Lopes, tem três fi lhas e cinco netos.

Page 37: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

54VIII Concurso de Contos Petros

– Ah, não. Isso não.Eu havia enfrentado suspensões de mesada, lágrimas de minha

mãe, brigas com meu pai. Dois anos de luta para conquistar aquela cabeleira. Estava disposto a arriscar a vida contra a ditadura, mas não a cortar o cabelo.

– Vai chamar a atenção da polícia – Graviola argumentava. – Então, empresta o carro e deixa que eu dirijo.

– Tá maluco? Você nem carteira tem. Meu pai me mata.Graviola era do Diretório Acadêmico. Lia uns livros que eu não

entendia e andava metido em política. Combatia a ditadura, o que – todos sabiam – era uma atividade secreta e perigosa no verão de 69.

No campus da PUC, deserto por causa das férias, ele me convocava para uma missão da maior importância. Um camarada que precisava sair da cidade.

– Quem?– Você não conhece. E quanto menos souber, melhor – falou

devagar, perscrutando as sombras entre as jaqueiras com um olhar sério e misterioso.

– Um dirigente do Partido – acrescentou tão baixo que mal ouvi.– Levar pra onde?– Você vai saber na hora. Passo amanhã na sua casa, às seis da tarde,

e a gente vai direto.O dia seguinte era sexta-feira. Eu havia combinado pegar minha

namorada, às oito, para uma festa.– E a festa?Graviola me olhou com uma mistura de desprezo e compaixão.– Tão prendendo, torturando, matando, e você tá preocupado com

festa?– É que eu combinei com a Cristina. Vou dizer o que pra ela?– Inventa qualquer coisa.

Cristina e a revolução

Page 38: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

55VIII Concurso de Contos Petros

A política, na época, pouco me interessava. E eu tinha difi culdade em acreditar nas histórias que corriam pela faculdade. Na minha visão de mundo, ainda não cabia a idéia de tortura e torturadores. Mas não gostava dos generais do Golpe. Os óculos escuros, as bocas retas, o ar de bandidos. Meu pai também era militar – coronel do exército, capaz de discursos exaltados sobre a “ameaça comunista”, mas, por mais rígido que fosse e por mais que brigássemos, nunca perdia um traço de ternura que aqueles generais não pareciam ter.

Acima de qualquer outra consideração, porém, havia o clima de aventura heróica, a Revolução. E, aos 19 anos, nada me fazia medo, exceto que meu pai descobrisse tudo.

Desisti da festa, aceitei a missão, só fi nquei pé na questão do cabelo.

Cristina tinha 17 anos, estudava para o vestibular de psicologia e morava na mesma rua que eu, no Grajaú. O namoro, antigo, avançava devagar. Minha entrada na faculdade e a liberação do fusca pelo coronel haviam inaugurado uma nova fase, mas ainda estávamos longe do que me contavam os colegas da Zona Sul. Não passávamos dos amassos no carro. Uma ou outra carícia mais íntima exigia horas de persistência.

Eu via a Revolução Sexual passar ao largo, pelas festas e bares de Ipanema.

A fantasia de um namoro liberado me perseguia, mas, além de gostar de Cristina, trocá-la por uma garota da Zona Sul me parecia dupla traição. E ela talvez pressentisse minhas fantasias. O fato é que andava desconfi ada e não engoliu fácil a história da ação clandestina. Quis detalhes.

– Não posso dizer. É uma questão de segurança. Inclusive a sua – respondi no mesmo tom misterioso e sério que Graviola usara comigo na véspera.

Sexta-feira, na hora marcada, descemos a Barão de Mesquita em direção à Tijuca. Graviola ia indicando o caminho sem muita conversa. Éramos amigos desde as peladas de rua, aos 11 ou 12 anos. O apelido vinha de um pé de graviola que os pais, vindos do Recife, plantaram no quintal deles. A meninada errava o nome da fruta e ele gostava de corrigir.

Entramos juntos na PUC, ele na faculdade de História, eu na de

João Paulo Vaz

Page 39: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

56VIII Concurso de Contos Petros

Engenharia. Passamos a freqüentar grupos diferentes, mas continuamos indo às mesmas festas no Grajaú, como teria sido o caso naquela noite, se não fosse pela missão.

Paramos num posto. Graviola mandou encher o tanque e pagou a conta. Só então, me ocorreu perguntar quanto rodaríamos.

– Uns 400 quilômetros.– O quê?– Ida e volta dá mais ou menos isso.– Pô, meu pai vai perceber.Fiz as contas: umas oito horas, sem contar as paradas. Passava das

seis. A gente ia voltar, no mínimo, lá pelas três da manhã. Imaginei o coronel me esperando na varanda.

Graviola não estava preocupado com meu pai, só com a hora do encontro.

– A gente tem de chegar na hora exata: 18h45. Nem antes nem depois.

Como estávamos adiantados, ele me fez dar umas voltas a mais. Na hora exata, estacionamos numa transversal da Conde de Bonfi m.

– Pode desligar.– Se meu pai descobrir, não me deixa nunca mais pegar o carro.– Isso é uma preocupação pequeno-burguesa típica.Cada vez que Graviola se referia a alguma coisa como pequeno-

burguesa típica, a gente acabava brigando. Mas engoli aquela calado. Não era o momento para discussões.

– Já são sete horas? – Da calçada, alguém perguntou a ele.– A hora é esta.Estranhei a resposta, só depois entendi que era uma contra-senha.Graviola saiu do carro, o sujeito abaixou o banco da frente, entrou,

disse um ‘boa-noite, camarada’ de passagem para o banco de trás e não tornou a abrir a boca. Sem apresentações, é claro. Mal vi seu rosto, mas, até pela lentidão de movimentos ao entrar no carro, via-se que não era jovem. Usava paletó, apesar do verão, e levava uma maleta de couro surrada. A aparência era bem menos heróica do que eu esperava.

Só fui saber nosso destino na avenida Brasil: Juiz de Fora. A noite caía fumarenta sobre os ônibus suburbanos lotados. Já estava escuro quando pegamos a Rio–Petrópolis. Os faróis iluminaram a reta de

Cristina e a revolução

Page 40: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

57VIII Concurso de Contos Petros

asfalto e as bordas do capinzal que se perdia na escuridão da Baixada. A umidade morna do mangue invadiu o carro.

Meia hora depois, começaram as curvas fechadas e o fusquinha resfolegou montanha acima. Desde criança, era ali que uma viagem começava de fato para mim – quando o frescor e o cheiro de mata molhada marcavam o início da serra.

A subida demorou uma eternidade. Só o ronco esforçado do motor quebrava o silêncio da noite. Pensei em Cristina, sozinha na festa e zangada comigo.

Contornamos Petrópolis, pegamos a União e Indústria em Itaipava. Dali a Juiz de Fora eram mais de cem quilômetros. Dei uma olhada no relógio – nove horas –, com sorte estaríamos de volta ao Rio lá pelas três da madrugada.

Itaipava fi cou atrás. A estrada seguiu as águas do Piabanha em direção ao Paraíba do Sul. Passamos por Pedro do Rio, Areal, Três Rios, entramos em Minas. Comecei a sentir sono.

De repente, cavaletes pintados de amarelo e preto estreitaram a passagem. Policiais mandavam diminuir a velocidade e iluminavam o interior dos carros com suas lanternas.

– Encosta aí.Todas as histórias sobre estudantes desaparecidos passaram ao

mesmo tempo na minha cabeça. Quando parei no acostamento, o controle das pernas era tão precário que soltei a embreagem antes de desengatar a marcha e o motor morreu com um tranco.

Um guarda focou a lanterna na minha cara.– Habilitação e documento do veículo.Vasculhei, nervoso, o porta-luvas e o bolso da calça. Entreguei minha

carteira e a licença do fusca. Ele examinou três vezes cada uma. Custou a se conformar com a decepção de encontrar tudo em ordem. Tornou a passear o foco da lanterna pelo interior do carro e pelas nossas caras. Com os documentos na mão, deu uma volta devagar em torno do fusca. Apareceu outra vez na minha janela com um ar de vitória.

– A lâmpada da placa traseira tá queimada.Saltei e fui olhar. Graviola também saiu do carro e começou uma

história comprida sobre alguém doente na família, em Barbacena. O guarda só fazia repetir a expressão “apreender o veículo” e Graviola

João Paulo Vaz

Page 41: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

58VIII Concurso de Contos Petros

voltava ao início da história. Aquela conversa parecia destinada a durar a noite inteira, até que ele deu a cartada:

– Então vamos ter que ligar para o coronel.– Que coronel?– O dono do carro, o pai dele – disse, me apontando.Imaginei meu pai sendo acordado àquela hora com a notícia de que

o carro dele estava sendo apreendido em Minas Gerais. Quis matar o Graviola.

– O pai dele é coronel? – o guarda me avaliava incrédulo.– Coronel do Exército. Da ativa. – Graviola falava com a segurança

de quem tem a verdade a seu lado. O guarda tamborilava a própria perna, consumido pela dúvida. Eu não tinha a menor cara de fi lho de coronel, mas, por outro lado, e se fosse mesmo?

Devolveu os documentos e nos mandou embora.Dali até Juiz de Fora, continuamos calados. Com o susto, meu sono

desaparecera. Entramos na cidade adormecida e nosso passageiro foi indicando o caminho. Numa rua arborizada, de casas pequenas e parecidas, separadas por muros baixos pintados de branco, ele me pediu que parasse.

– Sabe voltar até a estrada? – perguntou.Eu sabia.Ele agradeceu e saiu do carro. Na passagem, apoiou a mão esquerda

no meu ombro direito e fez uma pressão leve com os dedos. Já de pé na calçada, apertou a mão de Graviola e esperou que partíssemos. Pelo retrovisor, pude vê-lo por inteiro pela primeira vez. As pernas juntas, os braços colados ao corpo, a maleta. O paletó e a calça, um pouco largos demais, não pertenciam ao mesmo terno. O dirigente era um homem pequeno, de bigode grisalho e óculos grandes de aro preto. Parecia só e frágil na rua deserta.

Como um resíduo da presença dele no banco de trás, o silêncio continuou durante a viagem de volta. Na passagem por Três Rios, Graviola se queixou do meu cabelo, razão pela qual, segundo ele, havíamos sido parados. De resto, viajamos calados até Petrópolis.

Eu estava faminto e com pressa de chegar em casa.– Não sei no que ia dar se a gente tivesse acordado meu pai no meio

da noite para dizer que a polícia tinha me parado na estrada.

Cristina e a revolução

Page 42: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

59VIII Concurso de Contos Petros

– Você é alienado mesmo. Se eles descobrissem quem estava no carro, ninguém ia acordar o coronel hora nenhuma. A gente ia era desaparecer do mapa, tomar porrada até desmaiar, choque no saco e no cu. Pendurado em pau-de-arara. Sabe o que é pau-de-arara?

A estrada descia a serra e Graviola descrevia a posição do torturado, nu, no pau-de-arara, as mãos amarradas uma na outra, os joelhos dobrados e enfi ados entre os braços, o corpo pendurado numa barra de ferro passada sob os joelhos. No balanço das curvas fechadas, comecei a enjoar imaginando a cena. Graviola explicava que fi car pendurado no pau-de-arara já era uma dor insuportável, mas eles também davam choques no pênis, no escroto, no ânus, na língua.

O enjôo e o medo cresceram além do limite do meu estômago. Encostei o carro, saí depressa e vomitei na beira da estrada.

O ar frio da madrugada me fez bem. Graviola também havia saltado e me olhava assustado.

– O que foi?– Essas curvas. E de estômago vazio – respondi. – Passa das três e

a gente nem jantou.Fizemos o resto da viagem em silêncio. Cheguei em casa depois das

quatro. Para meu alívio, as luzes estavam apagadas. Entrei sem fazer barulho e dormi até a hora do almoço.

À tarde, saí com Cristina. No carro, a caminho do cinema, contei a viagem noturna, com pequenos acréscimos – uma metralhadora na mão do guarda, um labirinto de ruas escuras em Juiz de Fora –, nada que alterasse demais a história. Não disse quem era o passageiro, mas dei a entender que eu sabia e que a viagem era parte de alguma coisa maior sobre a qual não podia falar. Quanto ao risco que eu havia corrido, repeti a descrição do pau-de-arara, omitindo a localização exata dos choques.

Depois do cinema, compramos sanduíches, entramos no carro e fomos até a praia.

Estacionei o fusca de frente para o mar.Anoitecia em Ipanema. Da Pedra do Arpoador à silhueta negra do

Dois Irmãos, a cor da água ia do azul-escuro ao vermelho-sangue. Nos carros estacionados, outros casais como nós esperavam escurecer.

Quando veio enfi m a noite e começamos a nos beijar, mergulhei

João Paulo Vaz

Page 43: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

60VIII Concurso de Contos Petros

numa região desconhecida de abandono e prazer. Eu tinha me arriscado na luta, escapado à tortura. Havia certo exagero naquilo – eu sabia, mas, de qualquer forma, a memória do medo tornava a sensação do meu corpo colado ao dela mais vibrante, mais consistente. E o corpo de Cristina já não era um território a ser conquistado, uma questão de onde ela ia me deixar ou não pôr a mão. Em vez disso, eu descobria outro corpo solidário; frágil e passível de ser torturado como o meu, mas também capaz de desafi ar a repressão e o medo com a força irresistível do desejo. E a vitória sobre a ditadura era tão natural e inevitável quanto a conjunção dos nossos corpos.

Cristina e a Revolução. Naquele sábado eu tive tudo. A sensação de plenitude fi cou gravada em mim até hoje. Quem vive isso, uma vez que seja, desaprende para sempre a esperar menos da vida.

E é claro que nenhum de nós dois, naquela noite, acreditaria que a ditadura mal começava e quinze anos dela ainda se arrastariam sobre nós.

Cristina e a revolução

Page 44: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

61VIII Concurso de Contos Petros

João Paulo Vaz

Page 45: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

62VIII Concurso de Contos Petros

6º LugarSérgio Carvalho Bandeira de Mello

A marca da marca do Zorro

Page 46: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

63VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Carioca, 53 anos, Sérgio Carvalho Bandeira de Mello é casado e tem um casal de fi lhos. Escreveu A marca da marca do Zorro para o concurso, sua estréia na Petros, com base em uma idéia de 2000. Escreve de segunda a sexta e reserva os fi nais de semana para revisar os textos. Lê compulsivamente, inclusive no trânsito. Como vive no circuito Barra-Edise, dá boas caronas aos autores.

Seu conto Seqüestro Relâmpago foi selecionado e publicado no livro Pequenos Milagres e Outras Histórias, em 2007. No Prata da Casa, onde também estreou em 2008, alcançou o primeiro lugar na categoria conto, Júri Popular, com Um conto de Natal na lei seca.

Romancista, em maio de 1998 lançou o policial O rabo do bookmaker, primeira aventura do comissário Amílcar. Em 2000, publicou Assassinato sem memória; em 2006, Amores Isósceles e, em 2008, Um júri suspeito, todas do mesmo personagem. Em 2002, lançou Ouro e Estrelas, obra de fi cção ambientada no Brasil-Colônia, editada em Portugal em 2007. Considera o mercado brasileiro difícil, justifi cando que a grande maioria da população não tem o hábito da leitura. “Como as tiragens são magras, os livros fi cam caros. Com raras exceções dos autores que dispõem de espaço para divulgar suas obras, nossas maiores editoras preferem apostar em best sellers importados. Meus autores preferidos são Eça de Queiroz, Érico Veríssimo e Vargas Llosa, mas minha cabeceira anda ocupada pelas cartas de Flaubert, conjunto de correspondências a vários autores e editores, que retrata a vida de um perfeccionista que levou 5 anos para moldar a sua Madame Bovary.” Sérgio é engenheiro civil, pós-graduado em produção de petróleo e marketing. Está na Petrobras desde 1980, tendo trabalhado inicialmente na Produção (sede e Bacia de Campos). Em 1995, trocou a engenharia pela comunicação, área que comandou na BR por 5 anos.

Page 47: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

64VIII Concurso de Contos Petros

Depois de quatro anos de estudos em Barcelona, Toledo e Madri, Don Diego de la Vega, avesso às badalações oficiais de seu pai, Alejandro, porém bastante chegado a um baile de máscaras, desembarcou em um pequeno ancoradouro no fundo da baía de San Francisco, bem longe do mais movimentado porto do oeste mexicano. Ficaria na cidade por uma semana antes de tomar o rumo sul e, assim, atingir seu destino final, Los Angeles.

O herdeiro mais cobiçado de toda a América espanhola teve a intuição de que o anonimato naquela hora seria fundamental ao ambicioso projeto que traçara a partir do final da difícil travessia do canal natural situado no sul do Chile. A borrasca atingiu o galeão Nossa Senhora de Macarena no ponto médio da ligação do oceano Atlântico ao Pacífico, exatamente no coração do Estreito de Magalhães.

Por experiência própria, Diego recusara a repetição da rota empreendida em sua ida para o Velho Mundo, pelo norte da Colômbia. Se, por um lado, o percurso híbrido mar–terra–mar adiantava por vários dias o tempo total de viagem entre a Espanha e Los Angeles, por outro era capaz de dizimar as caravanas mais seguras e organizadas. Aqueles que se aventuravam pela densa floresta que se erguia a menos de duas léguas de Puerto Colón não deviam temer apenas o calor infernal, os assaltantes, as feras e os répteis, mas as febres, com seus delírios e eternas seqüelas.

Diego não era supersticioso, mas fizera uma promessa de que caso conseguisse vencer a terrível tormenta e rever o seu povo, faria muito mais pelos pobres do que dar esmolas ao final da missa de domingo. O jovem voltara de uma Espanha tradicional e católica disposto a defender os fracos e oprimidos de sempre, mas, além desses, outros perseguidos então menos cotados.

Depois de curar a primeira ressaca em terra firme, a primeira

A marca da marca do Zorro

Page 48: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

65VIII Concurso de Contos Petros

providência do candidato a herói nacional ao desembarcar no México foi a de procurar o maior marqueteiro em atividade na Califórnia, na época território oficial e oficiosamente mexicano. Entretanto, infortunadamente, o indicado havia acabado de emigrar para o promissor país do norte, ao conseguir emprego de condutor de diligências entre terras comanches e apaches. Todavia, por lá permanecera seu diretor de criação, Paco Hernandez y Rodriguez, Paquito para os mais íntimos, profissional de criação de mãos cheias e bolsos vazios. Desolado por ter sido abandonado pelo chefe, Paquito vagava sem jobs ou esperança pelo sobe-e- desce da linda cidade portuária. Foi nesse estado lastimável que Paquito, estupefato, recebeu aquele herdeiro idealista, de ótima aparência que, em vez de procurar as tavernas e as dançarinas para gastar a fortuna acumulada pelo pai, o famoso Don Alejandro, desejava pagar o seu altíssimo salário para trazer justiça ao povo da provinciana Los Angeles.

Paquito não acreditou na história, absurda por demais, mas como seria contratado a peso de ouro, resolveu acompanhá-lo na empreitada política. Segundo o briefing, Don Diego, além da bela estampa, montava muito bem; inclusive de lado, conseguia o prodígio de se atirar de uma altura de cinco jardas com as pernas abertas em cima de um cavalo sem sela ou qualquer estofamento e, cúmulo da cascata, tornara-se ótimo espadachim em Toledo, cidade espanhola que abrigava a Real Academia de Esgrima, segundo os especialistas de então, a melhor em todo o mundo. Dizia o fanfarrão endinheirado que era capaz de derrotar pelotões inteiros da guarda real só com a mão direita. Com a outra, podia balançar uma capa, manusear um chicote, tirar o chapéu para cumprimentar dama ou cavalheiro, o que Paquito escolhesse como mais impactante na ocasião.

Considerando que seu cliente seria encarado pelo governo local como um fora-da-lei, relacionou os itens da indumentária, certamente preta para facilitar o trabalho noturno. Para não assustar o populacho ignorante, seu público-alvo – não alvo de tiros ou estocadas, naturalmente –, dado a crendices de todos os gêneros, desenhou uma máscara que cobriria apenas parte

Sérgio Carvalho Bandeira de Mello

Page 49: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

66VIII Concurso de Contos Petros

do rosto, conservando as principais características humanas, principalmente um ridículo bigodinho fino. A capa de seda preta e o chapéu de abas curtas para uma região de sombreiros completariam o figurino do futuro herói popular. Porém, faltava o principal, uma marca, simples e forte, para completar sua identidade visual.

Buscou então na tequila, e em outras aguardentes menos ingênuas, a inspiração profissional. Bebendo na taverna Puerto Hermoso, Paquito tentou “El Angel de Los Angeles”, muito longo e pretensioso segundo Don Diego. Arriscou um “El Vingador del Pueblo”, por demais populista e demagógico na opinião do exigente cliente. Por sorte, havia um marinheiro baiano, falante, que a toda hora se referia a uma tal zorra. A retórica do curioso homem do mar atraiu a atenção de Don Diego que, cliente intuitivo e criativo, acabou por definir o nome, Zorro, por uma questão de gênero e mera estética. A logomarca, esta a cargo de Paquito, foi concebida em um Z estilizado, sobrando um pouco nas arestas, que facilitaria a assinatura, a ser obtida com três certeiros golpes de espada.

Enquanto Don Diego rumava para o cartório de marcas e patentes, Paquito seguiu traçando a estratégia de atuação do herói, que se revelaria muito cruel para Don Alejandro. Este, ao receber o primogênito de volta à fazenda depois de longa jornada, passou, com o decorrer dos dias, a desconfiar da masculinidade do herdeiro varão.

Os padrões da época não permitiam que Diego apreciasse a boa música, a dança, a pintura e o teatro, paixões declaradas do recém-chegado, em detrimento de armas, cavalos, touros, bebida e, principalmente, dançarinas de taverna.

Paco transformou-se em Bernardo, um fiel criado espanhol que, por um desses acasos oportuníssimos divulgados em release à imprensa local, tornou-se oficialmente surdo-mudo, por sinal – e por sinais –, uma das minorias a ser defendida pela nova marca do mercado. Uma conveniente lesão temporária nas cordas vocais, provocada pela poeira da viagem, conferiu-lhe o salvo-conduto necessário à participação em todas as conversas e confidências do

A marca da marca do Zorro

Page 50: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

67VIII Concurso de Contos Petros

poder local. El Grampo, como Zorro o chamava na intimidade, era bem mais importante na organização do que o próprio defensor dos pobres, oprimidos e minorias. Tornado, o belíssimo cavalo que suportava estoicamente os acrobáticos e inacreditáveis saltos do cliente, só faltava falar, assim como ele próprio em sociedade.

Como filho de um influente fazendeiro, Don Diego e Paquito, sempre ostentando o codinome Bernardo, logo foram apresentados a todos os militares que serviam na região. Por sugestão do surdo-mudo, evidentemente não externada durante o encontro, solicitou a ficha funcional do sargento Garcia, cuja barriga parecia ser particularmente propensa a uma corrupção alimentar. Assim, vislumbrando maior comodidade nas futuras investidas, Zorro, através do pistolão paterno, apressou-se em conseguir para o obeso militar a nomeação de titular das patrulhas contra os malfeitores e bandoleiros que atormentavam a cidade de Los Angeles. Com essa atitude estava configurado o alicerce do futuro sucesso da marca, pois marketing, espionagem e impunidade eram os três traços que compunham o Z do Zorro.

Conforme inúmeras pesquisas qualitativas e quantitativas realizadas desde então, Zorro tornou-se rapidamente um mito e conservou-se uma lenda viva. O povo o adorava. Paco, como Bernardo, ficara riquíssimo, assumindo, pela guarda do segredo, parte significativa da fortuna de Don Diego. Este, considerado um maricón em todo o México, país de hombres, tinha a pior das famas. Se a população um dia desconfiasse da identidade secreta de Zorro, ambos, Diego e Zorro, criador e criatura, estariam perdidos e mal pagos. Seu trunfo e seu silêncio eram perfeitos, mas Paco não entendia o motivo de Zorro não reclamar a cada vez que lhe extorquia uns pesos.

Poucos anos depois, quando a Califórnia passou a fazer parte do território americano, Paco obteve a resposta. A única marca consolidada em todo o antigo México era a do Zorro, uma autêntica mina de ouro para os ianques. Surgiram milhares de ofertas para a compra da marca, e, como Paco não foi ao cartório em São Francisco, preferindo traçar estratégias, compreendeu que Zorro atacara outra vez.

Sérgio Carvalho Bandeira de Mello

Page 51: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

68VIII Concurso de Contos Petros

Don Diego se mudou para San Francisco, cidade bem mais cosmopolita, onde conseguiu, sem maiores problemas e com o apoio de algumas minorias, assumir a sua verdadeira identidade.

A marca da marca do Zorro

Page 52: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

69VIII Concurso de Contos Petros

Sérgio Carvalho Bandeira de Mello

Page 53: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

70VIII Concurso de Contos Petros

7º LugarLuis Fernando de Oliveira Gutman

Café com Ave-Maria

Page 54: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

71VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Aos 57 anos, o petroleiro Luis Fernando de Oliveira Gutman se prepara para lançar seu primeiro livro em janeiro de 2009. A obra é fruto da sua experiência de três anos com utilização de técnicas de teatro na reabilitação de defi cientes visuais do Instituto Benjamin Constant. Em sua avaliação, o mercado editorial brasileiro está demasiadamente voltado para os livros de auto-ajuda, além de ter preços proibitivos para uma parcela potencial da população. Para ele, faltam bibliotecas que incentivem a leitura, assim como livros que estimulem o pensamento crítico do público.

O autor, que tem 10 contos escritos, revela que os textos se baseiam em fatos verídicos, aos quais ele invariavelmente agrega uma boa pitada de ficção. “Gosto de encerrar o texto com algo inesperado para causar impacto no leitor.” Seus escritores prediletos são o queniano Richard Dawkins, o romeno Jacob Levy Moreno e os norte-americanos Stephen Jay Gould e Carl Sagan, este último autor de seu livro de cabeceira – O mundo assombrado pelos demônios. Essa é sua terceira participação em eventos literários. As anteriores foram no Prata da Casa da Petrobras e no concurso Contos do Rio, organizado pelo jornal O Globo.

Pai de Luis Felipe (30 anos) e Isabela (28 anos), ele ingressou na Petrobras em 1975, tendo trabalhado no setor de abastecimento (antigo Depin), na Replan e no Cenpes. Atualmente é gerente da Usina Termelétrica Barbosa Lima Sobrinho, no Rio de Janeiro.

Page 55: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

72VIII Concurso de Contos Petros

Café com Ave-Maria

A novela acabou. Cadê Carlos Frederico? Sempre chega cedo. Mas agora tem 18 anos, tenho de me acostumar. Todas as mães fi cam nervosas, é normal. É melhor ver um fi lme. Mas é sobre seqüestro de crianças. Mudo de canal. Notícias sobre guerras. Fico afl ita. Por que Carlos Frederico não liga? Se alguma coisa acontecer a ele, o Fred não vai me perdoar. Desde que nos separamos, acha que sou a culpada de tudo, desde um simples resfriado até as notas baixas. Um pneu furado pode causar uma grande capotagem; um copo de cerveja diminui em trinta por cento os refl exos; um pouco de óleo na pista pode causar derrapagem; uma pequena discussão no trânsito pode chegar a uma grande tragédia. Minha cabeça está latejando; como parar de pensar nisso tudo? Nem preciso de um café para fi car acordada. Café pode viciar, me faz lembrar do cigarro. E não estou com sono mesmo. Carlos Frederico foi uma criança travessa. Todas as férias tinha de levá-lo ao ortopedista: foram 11 fraturas. Meia-noite, o relógio que recebi no Dia das Mães me lembra a cada 15 minutos de que o amanhecer vai demorar. Tomo café ou não? O coração está acelerado, um café vai fazê-lo disparar. Toca o telefone. É a mãe da Pâmela, namorada do Carlos Frederico. Está nervosa. Saíram para ir ao cinema às seis da tarde e ainda não voltaram. É de praxe voltarem para jantar. Culpa-me pelo desaparecimento da fi lha. Vou procurar em hospitais? Só essa idéia me arrepia. Já estive em emergências, macas no corredor, acidentados gritando por ajuda. Os celulares não atendem. Já deixei recados. Uma da manhã. Vou para o computador e leio as notícias em tempo real. Quem sabe aparece alguma coisa? A vontade de tomar um café e fumar aumenta. Mas não quero retornar ao vício. Nada de café. Duas horas. Odeio as badaladas desse relógio. Ligo ou não para o Fred? A mãe da Pâmela me liga de novo, desabafa em cima de mim, chama Carlos Frederico de irresponsável e de culpado por tudo que possa acontecer com sua fi lha. Parece que o mundo todo está contra mim e desabando.

Page 56: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

73VIII Concurso de Contos Petros

Desespero-me. Uma sirene ensurdecedora de ambulância. Um aviso? Algum acidente, com certeza. Não quero chorar, mas começo a entrar em pânico. Cadê o Lexotan? Quero um cigarro, mas o café vai fazer minha pressão subir mais ainda. Lembro de quando Carlos Frederico conheceu Pâmela. A primeira vez que se viram foi numa festa infantil, brincando numa piscina de bolas, pulando e rindo muito. Quando duas pessoas se conhecem em momento de forte alegria há tendência de aparecer uma relação de amizade muito grande. No caso deles, e só tinham 8 anos, nunca mais se separaram. Agora já se passaram 10 anos. Quatro da manhã. Maldito relógio. Chove. As ruas devem estar muito perigosas. Motoristas embriagados, bandidos, pivetes, gangs de jovens de classe média. Chego a sentir cheiro de café, mas é só pela vontade de fumar. O telefone toca. Quase levo um tombo na pressa de atender. Era engano. Ligo para os hospitais, mas nenhuma notícia de acidente com casal de jovens. Seqüestro? Cinco horas. Sol nascendo. Jornais chegando. Já nem choro mais. Tenho certeza de que algo de ruim aconteceu. Preciso de forças para enfrentar a realidade. Já nem ouço o relógio. Meus sentidos estão enfraquecidos. Preciso de café. Antes leio todos os jornais. Nenhuma notícia sobre os dois. Os vizinhos acordam, nunca tinha ouvido tantos despertadores, vão trabalhar. Mas para quê, penso eu? Dar o melhor para os fi lhos e eles, de repente, desaparecem. É como se nada na minha vida tivesse feito sentido. De nada adiantou colocar Carlos Frederico nas melhores escolas e depois perdê-lo. Por que a juventude é tão irresponsável? Eles não têm o direito de nos fazer sofrer. Essa espera me enlouquece. São 6h da manhã, hora da Ave-Maria. Faço uma oração, pedindo já nem sei direito o quê, deixo para a mãe de Jesus decidir como isso tudo vai acabar. Relaxo um pouco, incrível como a religião funciona para nos confortar. O sono chega, mas prefi ro tomar um café. O lado esquerdo do meu cérebro me avisa que tenho de ir ao IML, por pior que isso seja. Vou até a cozinha. O que é esse bilhete colado na garrafa térmica? Um bilhete do Carlos Frederico, meu Carlito, meu Fredinho, meu Júnior. Mãe, boa noite, vou sair com a Pâmela, ela também fez 18 anos, agora é “de maior”, ele sabia que eu odiava quando falava assim, mas como me soou lindo esse “de maior”. Vamos para um motel, primeira noite juntos fora de casa, estou nervoso, mas vou caprichar,

Luis Fernando de Oliveira Gutman

Page 57: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

74VIII Concurso de Contos Petros

mãe. Fica tranqüila, chego só de manhã. A mãe dela não sabe, não diz nada, preferimos não criar constrangimentos com minha sogrinha. Mas você, mãe, sei que pode fi car nervosa se eu não chegar cedo e aí deixo esse bilhete, com todo meu amor, aqui no café, que você toma todas as noites. Um beijo do fi lho que te ama. Durma com os anjos. Não se esqueça de rezar uma Ave-Maria antes de dormir, não é o que você sempre me diz?

Café com Ave-Maria

Page 58: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

75VIII Concurso de Contos Petros

Luis Fernando de Oliveira Gutman

Page 59: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

76VIII Concurso de Contos Petros

8º LugarRenato Benito Felippe Júnior

O contista de Nordkapp

Page 60: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

77VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l O paulista Renato Felippe se autodenomina um escritor intermitente e passional. Embora não esconda o desejo de estrear no mercado editorial, ainda não tem nenhum livro publicado. “Minha incipiente produção literária resume-se a um tantinho de contos, poesias e peças teatrais.” Sua participação em concursos literários é recente, embora o autor tenha escrito O Contista de Nordkapp há uma década – naquela ocasião como lição de casa de um curso comunitário de literatura. A elaboração de Maldito Boldo Chileno, conto premiado na edição 2006 do Prata da Casa Petrobras data deste mesmo período. “Considero a fase de lapidar incansavelmente o texto como a mais prazerosa, e talvez isso explique a demora em fi nalizá-los.”

Ele diz dedicar pouco tempo à literatura e não ter um livro de cabeceira. Este ano obrigou-se a começar a leitura de alguns clássicos da literatura mundial, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri. “Para o desespero das editoras, esses clássicos também são encontrados em sebos, longe da epidemia de livros de auto-ajuda que dizimou as livrarias.” Entre os autores de sua predileção está o contista russo Gogol, pelo estilo literário. Muito embora, segundo ele, Machado de Assis e Fernando Pessoa o façam levitar. “É um prazer poder participar pela primeira vez do concurso de contos da Petros, além da satisfação em ser um dos fi nalistas deste ano.”

O autor petroleiro tem 43 anos e é casado com Maria. Os dois estão esperando o nascimento de Luan, primeiro fi lho do casal. É geógrafo, trabalha na Petrobras faz três anos, hoje como engenheiro de meio ambiente da Recap. Antes, atuou dois anos na Diretoria de Gás e Energia.

Page 61: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

78VIII Concurso de Contos Petros

“INGMAR VOLTAR URGENTE SUA OBRA GRANDE VENCEDORA CONCURSO PARABÉNS”

Essa era a mensagem telegráfi ca que o contínuo do hotel havia deixado ao lado do café forte e do guaraná, na mesa de Ingmar.

– Pelas barbas de Th or, isso é impossível! – exclamou ao ler o telegrama, em um português arrastado. Após o desabafo, olhou timidamente para os demais hóspedes, como quem pede desculpas.

Para quem não conhece a vida de Ingmar Norwanson, explico que seu espanto diante de tal telegrama é plenamente justifi cável. Seria Ingmar um escritor emergente que, após muita tinta e papel, fi nalmente alcançava a consagração do seu trabalho com, quem sabe, o Prêmio Nobel de Literatura? Nada disso. O modesto Ingmar é tão-somente o segundo fi lho de um pescador de bacalhau do norte da Noruega, mais precisamente do povoado de Nordkapp, a segunda localidade mais setentrional do planeta, onde podemos admirar o segundo carvalho mais antigo da Europa e onde também foi pescado o segundo maior bacalhau do Mar do Norte.

Insatisfeitos com tantas vice-lideranças, há cinco décadas os nordkappenses resolveram apoiar o então – e ainda hoje – prefeito Warsl Horsterston em sua brilhante iniciativa: tornar o povoado o primeiro lugar em alguma coisa, qualquer que fosse. Como o prefeito entendia-se por exímio escritor, criou o Concurso Anual de Contos Fantásticos de Nordkapp. Você sabe, o conto fantástico é aquele em que há histórias surreais, fantasiosas ou de fi cção científi ca. Posteriormente, devido à incipiente produção literária do povoado, o concurso passou a ser bienal e fi nalmente qüinqüenal. Deste modo, a pequenina Nordkapp ficou conhecida, ao menos pelos nordkappenses, como a maior produtora de contos fantásticos do condado de Finnmark, Noruega.

E agora, em sua décima edição, os curadores da qüinqüenal

O contista de Nordkapp

Page 62: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

79VIII Concurso de Contos Petros

anunciaram o grande vencedor: Ingmar Norwanson. E seu espanto só não foi maior que o de seus conterrâneos, afi nal, todos conhecem Ingmar – apesar de todos se conhecerem em Nordkapp – e sabem de seu potencial, de sua destreza em salgar bacalhau. Sim, Ingmar sabe salgar um bacalhau como poucos, mas sua imaginação é das mais infecundas. Pois bem, mas quem diria? O senhor Ingmar Norwanson agora receberia das mãos do prefeito o troféu Bacalhau de Ouro da Academia Nordkappense de Letras, além de uma cadeira permanente na mesma, prêmios concedidos ao vencedor.

Mas o que Ingmar não entendia era como teria deixado para trás concorrentes já premiados, como madame Trondheim com seu “O Bacalhau Voador” ou mesmo seu primo, o prefeito Horsterston, consagrado heptacampeão do concurso com o conto fantástico-existencialista sobre o bacalhau que, ao acordar, percebeu haver se transformado em minhoca no anzol.

Outra pergunta não saía de sua cabeça: como teria faturado o concurso se não havia sequer inscrito um conto? E nem poderia, porque Ingmar, pasmem, nunca escreveu um único conto em toda a sua vida, motivo pelo qual sempre foi ridicularizado pelas alvas e belas nordkappenses.

Suas poucas aventuras na escrita estão relacionadas aos apontamentos acerca da quantidade de bacalhaus pescados, o valor da venda, o lucro do mês, enfi m, Ingmar era um contador, e não um contista. No máximo, um comtista com “m” de Maria, um seguidor de Auguste Comte, por ser tão objetivo e pragmático. Por conta disso, nem eu nem Ingmar encontramos uma razão para essa misteriosa premiação.

De qualquer modo, para não passar em branco, traduzo e transcrevo abaixo, sem a permissão do autor e com meus poucos conhecimentos do idioma norueguês, a carta enviada por Ingmar ao seu pai, pouco depois de chegar ao Brasil com a missão de buscar um novo mercado consumidor. Por ser o único registro escrito no qual Ingmar passou da terceira linha, vale a pena ser lido:

“Meu prezado pai,Leia para todos durante a ceia e tente entender, para depois me

explicar. Desculpe-me por não saber escrever direito, mas é a forma que escolhi para conter minha ansiedade e aplacar a solidão.

Renato Benito Felippe Júnior

Page 63: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

80VIII Concurso de Contos Petros

Sabe, pai, o Brasil é bem diferente do que eu poderia imaginar, embora a imaginação nunca tenha sido um ponto forte em mim. Cheguei ao aeroporto na sexta-feira pela manhã. Tomei um táxi e, depois de cinco horas de trânsito numa velocidade inferior a de um bacalhau manco fora da água, cheguei ao hotel. Havia chovido muito e pelo caminho pude ver, debaixo de viadutos e um pouco acima do nível da água, cabeças e braços equilibrando colchões, fogões, tevês, crianças e cachorros. Ninguém ajudou aquelas pessoas.

Ao parar em um dos muitos semáforos, percebi que uma criança de uns cinco anos havia retirado sutilmente meu relógio de pulso. Ela afastou-se sem cerimônia e misturou-se entre outros de sua idade, todos enrolados em cobertores imundos e sorvendo certa substância em uma lata.

Ao sair do táxi, na porta do hotel, um homem desprovido de pernas e deslocando-se sobre um skate pediu-me um trocado. Dei-lhe algum, e passo e meio depois um leproso também pediu algo. Vieram então a mim um cego, um surdo-mudo, dois tetraplégicos e um mutilado e meio, todos implorando por ajuda. Fiz o que pude, mas percebi que daquele jeito daria tudo o que tinha em menos de quinze minutos.

Nesse instante, tocaram sirenes e um político inaugurou uma estátua em uma praça defronte ao hotel. O homenageado, em tamanho natural e de corpo inteiro em bronze, trajava um elegante terno e empunhava uma vassoura. Todos em volta aplaudiram e a comitiva saiu rapidamente, ignorando o farol vermelho e atropelando um ancião sobre a faixa de pedestres. Enquanto formava-se um círculo de curiosos em torno do corpo, uma criança deste tamanho tentou furtar a carteira de um desatento. Sem sucesso, foi agarrada e espancada ali mesmo. Indiferente aos acontecimentos, um senhor muito magro revirava sacos de lixo pretos, do mesmo modelo que ele usava como vestuário, recolhendo latas de alumínio e restos de comida.

Tudo isso aconteceu em apenas dezoito minutos. Corri para o hotel e aqui estou faz três dias, sem coragem de sair e tentando resolver as coisas pelo telefone, valendo-me de meu sofrido português aprendido em nossos contatos comerciais com os bacalhoeiros de Lisboa.

Quanto aos negócios, não são boas as notícias. O comerciante de bacalhau que o senhor indicou, o tal Abelardo Chacrinha Barbosa, já é falecido há tempos e penso que tenha sido na miséria. Explico: por

O contista de Nordkapp

Page 64: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

81VIII Concurso de Contos Petros

aqui só se come bacalhau uma ou duas vezes ao ano, acredite. Fiquei decepcionado, mas só voltarei quando estiverem esgotadas todas as possibilidades comerciais.

Mande abraços a todos.Saudades,Seu fi lho Ingmar”

Renato Benito Felippe Júnior

Page 65: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

82VIII Concurso de Contos Petros

9º LugarSérgio Viana Villa

A queda

Page 66: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

83VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l O autor de A queda ingressou no Sistema Petrobras em 1980 para trabalhar na Refi naria Landulpho Alves. Em 2001 foi para a Fábrica de Fertilizantes, onde permaneceu até meados de 2005. Atualmente, está lotado na Bacia de Campos e exerce o cargo de Técnico de Inspeção de Equipamentos e Instalações.

Sérgio tem a escrita como instrumento de expressão estética e não esconde sua predileção pela poesia. Entre os autores que mais admira cita, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Huberto Rohden, Allan Kardec e Rubem Alves. A idéia central da trama de A queda, premiada no concurso da Petros, começou a ser elaborada num vôo Salvador-Rio de Janeiro antes de um embarque para a plataforma de PNA-2. Sérgio gosta de escrever com freqüência, embora essa seja sua estréia no universo contista.

Aos 48 anos, tem 4 filhos – dois do primeiro casamento e dois do segundo – e um sobrinho a quem considera o quinto ‘herdeiro’. É graduado em pedagogia e pós-graduado em educação básica de jovens e adultos, pela Universidade do Estado da Bahia; e graduando em Filosofi a pela Faculdade São Bento.

Enxerga o mercado literário brasileiro com otimismo. “Percebo um crescimento da sociedade brasileira em todos os sentidos, inclusive no da produção e consumo literários, que cresce juntamente com ela.” O autor tem dois livros no prelo: um de poesia (Nó Crítico) e outro de natureza religiosa (Considerações Espíritas); e material para outras duas obras de poesia. Já conquistou o segundo e terceiro lugares em concurso de poesias da RLAM; e, no ano seguinte, primeiro lugar num outro evento de poesias, na mesma refi naria.

Page 67: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

84VIII Concurso de Contos Petros

O aeroporto estava lotado. Ele trazia apenas uma bagagem de mão, sua pasta 007 (viagem de negócios). Estava incomodado em seu traje executivo: Terno e gravata, camisa, calça, cinto e sapatos sociais. O incômodo era mais de natureza moral, ideológica, do que física e estética; a roupa era confortável e o vestia muito bem. O mais novo de nove irmãos (todos homens) de uma família abastada de comerciantes, dividida em três grupos: os que assumiram os negócios após a morte do pai (os três mais velhos), os que se tornaram bem-sucedidos profi ssionais liberais (dois médicos, dois advogados e um engenheiro) e ele (o caçula).

Seus valores chocavam-se com os da família. Aluno brilhante dos cursos de teatro e de artes plásticas, não concluiu nenhuma universidade. Adorava pintar, esculpir e representar, mas detestava método, ordem, obrigações; tinha tara por música e tocava um violão como ninguém... O irmão mais velho, que assumira o papel do pai falecido, o enquadrara, o obrigara a assumir uma responsabilidade nos negócios da família, e hoje ele é diretor de marketing da empresa. Cercado de assessores competentes, ele avalia as estratégias de propaganda e de imagem da companhia; uma tarefa que de certa forma ele gosta; odeia apenas as reuniões sérias, os trajes formais e os horários rígidos. A reunião seria ainda pela manhã, à tarde já estaria de volta, e folgando...

Todos os irmãos estavam casados, alguns até já tinham fi lhos, seus sobrinhos, que ele adorava e que o adoravam, incondicionalmente. Chegava a ter choro quando ele tinha de parar as brincadeiras por algum motivo (geralmente um irmão mais velho ralhando). E quando voltava de alguma viagem, era ansiosamente esperado por todos, pois sempre lhes trazia presentes... Bem lembrado, ele tinha de achar uma horinha para armar a molecada (expressão que no seu idioleto signifi cava comprar presentes para os sobrinhos e para os fi lhos dos empregados). Todos moravam na mansão (exigência da mãe) e os empregados, de certa forma, também

A queda

Page 68: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

85VIII Concurso de Contos Petros

eram integrados ao clã. Moravam, também, uns tios fracassados e umas tias solteironas, mas descrever o universo humano daquela casa é complicar demais a história.

Ele era solteiro, nunca namorara fi rme, nunca pensara em casar, mas desejava, desejava encontrar alguém que o amasse e que ele amasse, como seus pais se amaram. Décadas de uma união sem máculas, sem hipocrisias, sem decepções. Um amor que ainda contamina toda a família e faz com que a fé cristã (católica) daquela casa não seja só de aparências. Devotos de Santo Antônio, seus pais construíram na mansão uma capela consagrada a esse santo, e várias vezes ele se fl agrara discutindo com a bela imagem do Santo de Pádua, que orna a capela, sobre a futilidade de papéis ou atos exteriores para se garantir uma união conjugal. Várias vezes ele desafi ara o santo dizendo que jamais se casaria, mas que encontraria alguém a quem amaria de toda alma, de todo o coração, de todo o entendimento; por quem, também, assim seria amado; que seriam fi éis um ao outro e, é claro, felizes para sempre.

O barulho do aeroporto o incomodava. Estava tentando se distrair com uma revista (um mangá qualquer escondido dentro de um exemplar da revista Exame) quando seus olhos pararam nela: tinha a sua idade, um ar quase adulto, mas predominantemente adolescente, cabelos normais, olhos normais, corpo normal, jeito bobo normal, riso normal, traje esporte, simples. Estava no máximo iniciando uma universidade... Mas, mas, mas... Era a mulher mais linda, mais encantadora, mais fantástica, mais tudo que ele jamais conhecera. Ela tinha ido levar o pai ao aeroporto, o avião dele já havia decolado, e por alguma razão, ou antes, sem razão alguma, fi cara por ali, passeando... Ela falava fl uente, contando sorridente tudo isso, enquanto tomava o sorvete que ele lhe oferecera; e ele só conseguia fi car olhando para ela, coração a mil, embasbacado, sentindo-se e comportando-se de fato como o mais completo idiota... Ela ria a valer das trapalhadas dele, da falta de jeito, das coisas derrubadas, da fala gaguejada, mas deixava claro no sorriso e no olhar que também se apaixonara...

À noite se encontrariam. Ela estava de férias, mas ele tinha de embarcar... Era uma reunião importante de redefi nição de umas ações da sua área em uma das fi liais... Ele tinha composto uma música, mas

Sérgio Viana Villa

Page 69: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

86VIII Concurso de Contos Petros

não tinha feito a letra, e como ela gostava de escrever, à noite poderiam tentar... Na hora da despedida, um beijo no rosto, mãos nas mãos, olhos nos olhos, algo sendo transferido de um para o outro, um segundo durando uma eternidade, e a eternidade durando um segundo...

A cozinheira deu um grito de pavor... Histérica, saiu berrando pela casa: – Caiu... O avião do nosso menino caiu (ouvira notícia no rádio)! Em pouco tempo a tragédia estava confi rmada. A causa ainda não fora determinada (erro mecânico, falha do piloto), não tinham achado a caixa preta... Que importa isso, era o avião dele, era o vôo dele, ele estava no maldito avião...

A mãe inconsolável, em estado de semichoque, encontrava-se prostrada num sofá da sala: era o único fi lho irresponsável, o único que dava trabalho, que a questionava, que fugia, que bagunçava, que não tinha hora de chegar em casa (quando chegava), o único que a preocupava, pois só mostrava vocação para ser vagabundo... E era o que ela mais amava... Assumidamente, confessadamente, declaradamente, descaradamente, era o fi lho que ela mais amava... Era o único que nunca esqueceu um aniversário dela, ou do pai, ou de qualquer um; nunca falhou em um dia das mães; beijava-a constantemente, em qualquer circunstância ou lugar, por qualquer motivo, ou sem motivo algum, até mesmo quando ela estava ralhando com ele, aliás, principalmente quando ela estava ralhando com ele...

O irmão mais velho estava inconsolável: – Matei meu irmão... Matei meu irmão... Matei meu irmão... – culpava-se. A casa estava em luto, quem não estava em choque ou gritando histericamente, chorava pelos cantos. Rádios e tevês ligadas para que, num exercício masoquista, acompanhassem todas as informações relativas ao acidente, sempre as mesmas informações que a mídia não cansava de repetir. Os advogados da família estavam fazendo os contatos com o aeroporto, a Anac, a companhia aérea, o IML, com as autoridades civis e militares (prefeito, governador, presidente, brigadeiros, supervisores, delegados, superintendentes), pressionando por informações, cobrando o corpo... Todos, menos um, antigo amigo do casal e padrinho do fi nado, este, apesar de estar passando bem, fora internado de urgência: enfartou assim que soube da notícia.

Quando tudo parecia defi nitivamente perdido, surge um raio de

A queda

Page 70: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

87VIII Concurso de Contos Petros

esperança: uma rádio anuncia que, apesar de gravemente feridos, havia sobreviventes... A mãe pula do sofá, ordena que coloquem a imagem de Santo Antônio no centro da sala, e começam as orações e súplicas para que, não importa como, o caçula fosse devolvido com vida à família. Sem questionamentos, a obedecem: tiram da capela e a instalam no centro da sala. Era uma bela e pesada imagem do poderoso e milagreiro Santo de Pádua; todos se põem a orar, não porque (com exceção da mãe) tivessem fé nesse milagre (apesar de acreditarem em Deus, achavam impossível alguém sobreviver àquela catástrofe), mas porque encontravam conforto na oração. O padre da paróquia, presente na casa desde que soube do infortúnio, dirigiu as orações.

As orações caminhavam pelo meio quando o celular do segundo irmão vibra (todos deixaram os seus assim, na expectativa de notícias). A voz do outro lado era inconfundível...

– Mano, quebra uma pra mim. – oh! Faça o favor de avisar ao Primeirão que não deu para pegar o avião... Passei mal, senti uma tontura... Tive de baixar hospital... Por sorte (olha que coincidência) encontrei um amigão que me acompanhou até o médico e me deixou descansar na casa dele... Oh! Avisa a mãe que já está tudo bem, pra ela não se preocupar. Não dá para falar mais porque o celular está descarregando e o meu amigo mora num lugar meio retirado, sem nenhum telefone... Logo, logo tô em casa.

Tomado de emoção, o segundo irmão não conseguia conter as lágrimas. Mal articula palavras. Dá graças a Deus por ele estar vivo, fala algo sobre um acidente de avião... Ele interrompe a conversa alegando que a bateria ia acabar e que parasse com essa história de agradecer a Deus pela vida dele, não foi nada de sério, esse papo só ia servir para deixar a mãe preocupada. Desliga o telefone e resmunga: – Ora, que drama o Segundão está fazendo. Só liguei pra ele porque sabia que o Primeirão não ia cair nessa história e ia me cobrir de esporro. Agora, o Segundão acredita tanto nessa mentira fajuta que soluça ao telefone e me vem com uma história de desastre de avião. Só espero que ele não deixe a mamãe assustada com esse negócio de que passei mal.

O caçula sai do sanitário, tinha ido até lá para fazer a ligação, porque temia acordá-la; e não queria acordá-la porque há mais de uma hora contemplava o seu sono. Um anjo sob diáfanos lençóis que revelavam,

Sérgio Viana Villa

Page 71: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

88VIII Concurso de Contos Petros

ainda que desfocadamente, a infi nita beleza daquele corpo nu. Ela era tão jovem e inexperiente, nunca tinha entrado em um motel, nunca tivera amado um homem, e ele jamais imaginara que fosse possível a um mortal sentir o que sentira enquanto faziam amor. Estava rendido, vencido, entregue e derrotado... Sua vida estava diante dele; com ela tudo fazia sentido, existir ganhava cor e razão. Sem ela... Quando tentava imaginar a vida sem ela, sentia um vazio, um vácuo infi nito e absoluto em seu interior, um mal-estar tão grande que não conseguia sequer continuar pensando nisso.

Ao se separarem, para irem até suas casas dar satisfações aos seus pela ausência, sentiram a força do amor que nutriam entre si. Era como se metade do corpo e da consciência de cada um estivesse sendo arrancada e levada para longe; mesmo que por poucas horas a separação era insuportável, causava-lhes uma grande dor, e só conseguiam pensar um no outro, na hora do reencontro.

Não se saberia dizer se o clima da casa estava melhor ou pior: a histeria da perda fora substituída pela histeria da redenção. Todos riam, choravam, se abraçavam, o impossível acontecera. Apenas a mãe permanecia contrita, sabia o porquê do acontecido e agradecia a Santo Antônio (abaixo de Deus e de Nossa Senhora) pela a graça alcançada. Levanta-se com os olhos lacrimejantes e pede algo para comer, sentia-se fraca e não havia mais motivos para mortifi cações naquele lar, só para comemorações.

Somente um naquela sala não tinha lágrimas nos olhos, mas um sorriso que ia de orelha a orelha. Quem tivesse olhos de ver era só dirigir o olhar para a imagem de Santo Antônio e perceberia a alegria do santo. Ele bem conhecia aquela família, sabia o quanto possuíam e o quanto sabiam ser gratos e generosos. De saída, ele ganharia um nicho na sala, não fi caria mais isolado naquela capela quase sempre vazia; seu orfanato conheceria melhores dias; e só de missa de ação de graças seriam rezadas mil na sua igreja. Na sua assistência àquela família, dessa vez ele se superara; e matara dois coelhos com a mesma cajadada, pois o melhor ainda estava por vir: avaliando a impaciência e o fogo daqueles dois (o motel não fora idéia sua; ele, na qualidade de púdico santo católico, nada tinha a ver com isso), logo, logo estaria ganhando mais uma nova família de devotos.

A queda

Page 72: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

89VIII Concurso de Contos Petros

O casamento foi um acontecimento. Os noivos, ambos de branco, estavam lindos. O branco e uma quantidade imensa de fl ores naturais dominavam a magnífi ca decoração. As famílias se entenderam às mil maravilhas, era como se fossem conhecidas de muito tempo, tais as identidades de gostos e de opiniões. A família dela era batista (ninguém é perfeito – pensava a mãe), mas de uma visão ecumênica, o que possibilitou ser o casamento celebrado por um padre e um pastor. E foi o próprio pai dela, pastor batista (positivamente nada nesse mundo é perfeito – concluía a mãe), quem ministrou o sacramento por sua igreja. Se o perfeito pudesse fi car melhor, se deveria ter dado um pouco mais de tempo na organização do casamento. Mas, infelizmente, ele teve de ser realizado com certa pressa, pois, como previra o santo, o mais novo membro dessas famílias já se encontrava a caminho. Menino, já tinha até nome: Antônio (escolhido por insistência da avó paterna).

Sérgio Viana Villa

Page 73: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

90VIII Concurso de Contos Petros

9º LugarJudith Martins de Souza

O amor nos tempos da febre amarela

Page 74: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

91VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Pelo quarto ano consecutivo seu nome fi gura na galeria dos dez contos escolhidos. Funcionária BR Distribuidora há dez anos, quando se aposentar, ainda esse ano, pretende dedicar-se mais à literatura, criando um estilo popular para conseguir ‘tocar’ a grande massa. Com o conto O amor nos tempos da febre amarela homenageia três artistas, para ela, imortais: o grande escritor colombiano Gabriel José García Márquez, pelo estilo literário único e inimitável e seu modo de ver o ser humano em seus estranhos e ricos habitats; o saudoso Ingmar Bergman, o mago do cinema, referência maior da Nouvelle Vague; e Burt Bacharach, compositor e maestro (ainda entre nós), “criador de músicas que fazem (e farão) parte de nossas vidas por muito tempo tais como Close to you, Raindrops keep falling on my head e Alfi e”. Seu grande sonho é começar a publicar livros de contos, crônicas e poemas.

Page 75: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

92VIII Concurso de Contos Petros

¨Não parecer, mas ser. Estar atenta em todos os momentos”(do fi lme Persona, de Ingmar Bergman)

O barulho da chinela era como um alerta. Marcava mais as horas do que o próprio tic-tac do relógio. Chlep...chlep...chlep. Então, as sombras no quarto tornaram reais os velhos móveis. O tempo e o espaço se fi zeram mais palpáveis. A silhueta na porta, envolvida por uma aura luminosa, tirou a respiração de Otávio:

– Fiz canja de galinha. Vou deixar aí. Se quiser, come. Vou acender a luz para não tropeçar na sua chinela.

Os olhos se fecharam reativos à claridade. Aos poucos foi abrindo as pálpebras. O vestido antigo de fl orzinhas, um pouco abaixo dos joelhos, cobria o corpo dela como um lençol cobrindo um móvel sem uso. Os cabelos loiros grisalhos deixavam cair alguns fi os do coque. A cara fechada com um ricto de tristeza baixando os cantos dos lábios. Onde aquela “garça” que dava risadas por qualquer bobagem? O que lhe fi zera de tão mal para odiá-lo tanto? Poderia falar alguma coisa. A voz não saía da garganta. Não tinha mais vontade de emitir nenhum som. Não tinha mais o que dizer.

– Acende o abajur se quiser comer.O barulho do interruptor desligando a luz foi como o fechar da cortina

após mais um ato daquela tragédia grega.Verônica desceu a escada devagar. Tinha medo de escorregar e cair. A

idade traz limitações. É preciso respeitá-las.Débora tomava seu leite morno na caneca de ágate. – Como ele está?– Acho que está bem. Sei lá. Ele continua sem falar. – Vou me deitar, minha irmã. Verônica despiu pelos pés o vestido de fl orzinhas e enfi ou pela cabeça a

confortável camisola. Ligou a televisão no canal Discovery, programou 120 minutos no timer e se deitou no sofá. Há muito abandonara a sua cama de

O amor nos tempos da febre amarela

Page 76: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

93VIII Concurso de Contos Petros

Judith Martins de Souza

casal. Falavam sobre Tutankamon no programa. Lembrou-se de Amenofi s IV e sua linda Nefertite. Sempre se lembrava de históricos casos de amor. Todos trágicos. Para que tanta beleza e no fi m terminar tudo daquele jeito? Abraçou o travesseiro sobressalente e dormiu.

O cheiro da canja adentrava o cérebro de Otávio e ele pedia ardentemente que os fi os transmissores não o levassem para o estômago vazio. Funcionou. Não sentia nenhuma necessidade de comer. Não, não se deixaria envenenar tão fácil assim. Quantos dias sobreviveria tomando só a água da torneira da pia do banheiro junto com o remédio que o Dr. Manuel lhe receitara? Comia também uns biscoitos por dia, daqueles que ele mesmo comprara e armazenara no armário. Não tinha fome nenhuma. O biscoito sabia a papelão. Ela não poria veneno na caixa d‘água. Aqueles olhos fugidios quando lhe levava a comida... Aquele andar vagaroso de gata velha espreitando um rato... Levantou-se trêmulo e se escorando, foi até o banheiro tomar a última pílula do dia. O sono viria logo.

Acordou com um movimento anormal na casa. Uma ambulância. Ouviu uma ambulância. Seria para ele ou para ela? O remédio que tomava devia ser forte. Apesar da curiosidade, o sono veio novamente.

Chlep...Chlep...ChlepNão, a ambulância não tinha sido para nenhum dos dois.Não quis olhá-la quando se abaixou para pegar a canja intocada. Pelo

rabo do olho notou que ela estava se vestindo para sair.– Débora foi para o hospital. Suspeita de febre amarela. Ela andou lá

pelos lados de Goiás. Vou tomar vacina. Peço para o Dr. Manuel vir aplicar em você.

Febre amarela por aqui? Não quis retrucar nada. Uma dormência embotou-lhe os sentimentos até em relação à cunhada. Virou-se para o outro lado e ela saiu, deixando o café com leite e o pão com manteiga que outrora lhe davam tanto gosto.

Já não sabia quanto tempo dormia ou quanto fi cava acordado. Seu viver condicionava-se ao barulho das chinelas como um alerta. “Acorda senão morres”.

Não ouviu o costumeiro “despertador” dessa vez. Acordou com a voz grave e sem entonação dela:

– Já tomei a vacina. Dr. Manuel acha melhor você não tomar, pois está muito debilitado.

Page 77: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

94VIII Concurso de Contos Petros

Dane-se. Como se importasse que morresse de febre amarela ou por suas próprias mãos.

Ouviu a campainha do telefone. Ela fala em voz baixa. Ele respira fundo e procura ouvir.

– ...já era para fazer efeito... falou que em vinte dias já faria algum efeito... está na mesma... precisamos resolver essa situação... quem sabe mudar a medicação

O coração de Otávio começou a bater por todo o corpo. Como um só pulsar. Limpou o suor frio das mãos no lençol. Então era isso. Ela e Dr. Manuel mancomunados. Quem sabe eram amantes? Nossa. Vai ver mataram a pobre da Débora para não servir de testemunha?

Quase se arrastou até o banheiro. O coração parecia explodir. As pernas não tinham força. O vidrinho de remédio apertado nas mãos suadas. Conseguiu abri-lo e despejar as pílulas manipuladas no vaso sanitário. Em seguida, a visão escureceu e ele caiu.

Acordou com uma certa dormência nos braços. Eles estavam para cima! Deus, estou amarrado em minha própria cama pelos pés e mãos! Quis gritar, mas a voz não saía. É um pesadelo. Graças a Deus, pois é isso que acontece num pesadelo. A gente tenta gritar e a voz não sai. Piscou várias vezes os olhos. Não, não. Estava acordado. Que terror é esse? Cadê as chinelas?

Ouviu o pisar de um salto grosso na escada. A boca seca dava-lhe cócegas na garganta. Tossiu e seu estômago recebeu uma fi sgada dolorida.

O vulto na porta e o barulho do interruptor. Assustou-se com o semblante colérico dela.

– Que m...! Você jogou o remédio fora e eu tive que comprar outro. Dessa vez não deu tempo de manipular e comprei na farmácia normal mesmo. Dr. Manuel forneceu nova receita. Agora vamos tomar o remédio e daqui a pouco volto com uma sopa. Já chega! Perdi a paciência. Você vai beber e comer à força.

Em seguida enfi ou-lhe a pílula na boca (que já estava aberta) e despejou meio copo de água. Engoliu engasgando e sentiu que poderia morrer naquela hora. Não morreu. Também, já não importava mais nada. Se era para morrer, que fosse logo.

Ela deu a sopa em colheradas generosas. Engoliu tudo e nada tinha gosto. Dormiu em seguida, pois sentiu a energia se esvair de repente.

Nas duas semanas seguintes, estabeleceu-se uma rotina:

O amor nos tempos da febre amarela

Page 78: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

95VIII Concurso de Contos Petros

Chlep... Chlep... Chlep... O dia começava com a higiene. Primeiro trocar o fraldão. A bacia

de plástico com água morna e sabonete líquido. A barba. Passava desajeitadamente o barbeador elétrico. Chegava a puxar alguns fi os. A dor era como algo que apenas o tocava de leve. Otávio continuava não emitindo nenhum som. O mesmo acontecia com a escova à pilha que lhe machucava as gengivas. Bochechava a água da canequinha e jogava no balde que ela colocava de jeito. Depois ela soltava uma das mãos dele e tirava parte do pijama. Lavava tudo com uma esponja molhada em água morna e sabonete e secava com a toalha macia. Em seguida, vestia a roupa limpa daquele lado. Amarrava de novo. O mesmo ocorria com o outro braço e ambas as pernas, uma de cada vez.

Depois as chinelas se afastavam, marcando aquele ritmo vital para Otávio e voltavam com uma tigela de sopa de café com leite, pão picado e manteiga a qual era dada na boca, como também a primeira pílula.

Dormia até o almoço que, geralmente, era uma canja ou uma sopa substanciosa. No lanche da tarde vinha uma salada de frutas ou uma vitamina rala e a segunda pílula. Finalmente o jantar, o mesmo do almoço e a última pílula. Depois de cada refeição ela trocava o fraldão, mesmo que estivesse seco e também soltava os braços e pernas, um de cada vez, para aliviar a pressão.

A mente de Otávio mergulhou num limbo entre a alma e o corpo e ali fi cou por aproximadamente uns doze dias. Não havia conjeturas, nem certezas. Apenas sensações agradáveis ou não, porém, distantes. Ele estava novamente dentro de um útero.

No décimo terceiro dia aconteceu o parto. Verônica, que nunca tinha sido mãe, revelava a sua paternidade. Otávio, que nunca tinha sido pai, paria-se. Não, não houve dores, nem estertores. Nada daquele sofrimento que todo apartar de mãe e fi lho provoca.

Otávio abriu os olhos, libertando-se para todas as sensações reais.O sol brilhando lá fora. O barulho da cidade despertada. O cantarolar na

cozinha: A house is not a home. Passos leves subiram a escada quase correndo.Uma “garça” abriu a porta. Trazia os cabelos loiros e lisos amarrados num

rabo de cavalo. Uma camisa azul comprida com os punhos dobrados até os cotovelos por cima dos jeans desbotados. As sapatilhas eram vermelhas.

Judith Martins de Souza

Page 79: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

96VIII Concurso de Contos Petros

Olharam-se nos olhos. Ela trazia as bochechas ruborizadas. Ele, um sorriso malicioso. O fraldão não a deixaria visualizar a ereção que provocara, mas que poderia imaginar.

– Vou soltar as amarras e você vai se levantar e fazer toda a sua higiene sozinho. As roupas estão limpas no armário. Escolha o que quiser vestir. Espero você lá embaixo para tomar café.

Quando estava saindo do quarto, voltou-se. Ele, sentado na cama, procurava centralizar-se devido a uma leve tontura.

– Débora está passando uma temporada na casa da praia. Foi apenas uma virose. Nada de febre amarela. Estamos sós.

Verônica permaneceu sentada à mesa da cozinha, esperando. Ouviu o barulho do chuveiro sendo ligado e desligado. O aparelho de barba. A escova de dentes. Depois, o silêncio. O tempo parecia parado. Será que ele estava em condições de andar? Quase duas semanas amarrado. Já estava se levantando para subir quando ouviu os passos vagarosos descendo a escada. Sentou-se novamente.

Pareceu uma eternidade até que o vulto surgisse à porta. Deus, como ele estava bonito apesar de tudo. Os cabelos grisalhos molhados e compridos penteados para trás das orelhas. Os olhos. Ah! Aqueles olhos negros e brilhantes como olhos de Johnny Deep.

Sentou-se à sua frente e ela o serviu. Café com leite, pão e manteiga. Ele comia vagarosamente e não tirava os olhos dos olhos dela. Ela, por sua vez, sustentava aquele olhar. Sabia que estava tudo bem.

Comunicavam-se de alguma forma, como se comunicaram nesse tempo todo. Comunicações telegráfi cas/telepáticas. Em algum lugar, de alguma forma ela o alcançava.

Otávio só via um mar verde, com algo fosforescente como o mar de Recife. Com suas marés altas e baixas. Seus tubarões e suas estrelas. Plácido, refl etindo a lua cheia. Levantou-se lentamente e, dando a volta à mesa, pegou-a suavemente pela mão. Ela levantou-se e ambos subiram a escada com ele se apoiando nos ombros dela.

Verônica prendeu a respiração ao abrir a porta do quarto. Um leve cheiro de alfazema substituía aquele de antes. A cama arrumada com roupas limpas. À beira da cama, ele disse aquelas primeiras palavras (depois de tanto tempo) que deu a ela a certeza de que ele voltara:

– Te amo pra ca...!

O amor nos tempos da febre amarela

Page 80: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

97VIII Concurso de Contos Petros

Abraçou-a forte como se quisesse que o corpo dela entrasse no dele e vice-versa. A “garça” soltou uma risada ao sentir todo o vigor que vinha do corpo dele.

Verônica não abria mão de dormir com a velha camisola. Agora abraçada, não ao travesseiro sobressalente, mas às costas do seu homem, sorria saciada. O surto de febre amarela foi providencial, pois permitiu a ausência de Débora e todo o desenrolar da história. Se alguém descobrisse que ela o amarrara, talvez fosse presa, talvez ele tivesse morrido.

Não há fi nais felizes. Dr. Manuel disse que é possível que a depressão severa dele venha mais vezes. A própria vida tem um fi nal triste. Mas existem os momentos felizes, que são mais felizes por causa da própria incerteza. O dia de amanhã é um outro dia. Agora porém...

Verônica entregou-se à mais perfeita das bigamia: nos braços aconchegantes de Morfeu.

Nota do autor:A música que Verônica estava cantando na cozinha antes de subir a escada

no dia D, era uma música de Burt Bacharach e Hal David, A house is not a home, cuja tradução transcrevo abaixo:

Uma casa não é um lar

Uma cadeira ainda é cadeiraMesmo quando não há ninguém sentadoMas uma cadeira não é uma casaE uma casa não é um larQuando não há ninguém lá para abraçá-laE não há ninguém lá para dar boa-noite

Um quarto é só um quartoMesmo quando não há nadaSó a escuridãoMas um quarto não é uma casaE uma casa não é um larQuando nós dois estamos separadosE um de nós tem o coração partido

Judith Martins de Souza

Page 81: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

98VIII Concurso de Contos Petros

Às vezes eu chamo seu nomeE de repente seu rosto apareceMas é só uma brincadeira loucaQuando acabaAcaba em lágrimas

Querido, tenha coraçãoNão deixe um erro nos separarNão fui feita Para viver sozinhaTransforme essa casa em um larQuando eu subir a escadaPor favor, esteja láAinda apaixonado por mim

O amor nos tempos da febre amarela

Page 82: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

99VIII Concurso de Contos Petros

Judith Martins de Souza

Page 83: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

100VIII Concurso de Contos Petros

10º LugarLucêmio Lopes da Anunciação

O dia do show

Page 84: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

101VIII Concurso de Contos Petros

Perfi

l Para o engenheiro de petróleo Lucêmio Lopes da Anunciação escrever não é apenas um prazer, mas uma necessidade. Em seu segundo livro publicado ele cunhou uma frase que resume bem essa sua estreita relação com a literatura. “Não sei se minh’alma nasceu para escrever, só sei que se não escrever, ela morre”. Desde 2002, o petroleiro tem participado regularmente do Prata da Casa da Petrobras e do Concurso de Contos da Petros. Em 2007, começou a participar também de diversos eventos relacionados à literatura. Entre outras premiações, conquistou menção honrosa nacional no 10º Prêmio Missões-Igaçaba Produções Culturais (categoria crônica), em 2007, e 2º lugar no concurso de contos da Universidade do Estado do Amazonas, em 2008. Concorrendo na categoria contos, obteve ainda primeiro e quarto lugares no Prata da Casa, em 2003 e 2005, respectivamente.

Publicou dois livros – Paisagens da vida I e II –, ambos coletâneas de poemas, crônicas e frases. Faz uso dos infi nitos recursos da internet para divulgar sua obra literária – é editor do site www.lucemio.com, no qual divulga os livros autorais e alguns contos. Apesar disso, considera o mercado editorial brasileiro muito fechado e com pouquíssimas oportunidades para quem não tem um “padrinho”. Os autores que mais admira são Erico Verissimo e Carlos Drummond de Andrade. Seu livro de cabeceira é a Bíblia. Casado, Lucêmio tem uma fi lha e ingressou na Petrobras em 1987, como operador de transferência e estocagem, em Suape-PE. Desde 2004, trabalha no Ativo de Produção do Alto do Rodrigues (RN).

Page 85: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

102VIII Concurso de Contos Petros

Naquela manhã dona Luzia acordou mais alegre que de costume. Estava leve, cheia de felicidade e com o mesmo sorriso doce de sempre. Seus olhos brilhavam como os de uma adolescente na plenitude de seus 15 anos, apesar de já ter mais de oitenta. Lamentava por nenhuma das companheiras de quarto ter acordado ainda, pois estava louca para falar com elas a respeito do show, logo mais na televisão. Sem ter ninguém para conversar, começou a folhear um velho álbum com fotografi as do tempo em que morava numa casa e tinha uma família ao seu redor. Apesar de não serem muito boas aquelas lembranças, mesmo assim olhava foto por foto, tentando fazer com que as horas passassem depressa.

Apesar de pobre, o asilo costumava manter limpas as suas dependências. Irmã Dora, a freira responsável pelo lugar, visitava diariamente todos os prédios da instituição a fi m de que nada saísse errado. Tratava as velhinhas com muito amor, tentando compensar o carinho que haviam perdido dos parentes que um dia “se livraram” delas.

Enquanto aguardava o despertar das amigas, dona Luzia continuava entretida com as imagens do passado. Cada fotografi a era motivo para uma longa viagem no tempo. Lembrava de como era feliz, apesar das imensas difi culdades fi nanceiras. Amava tanto seus três fi lhos e quatro fi lhas, que a alegria de viver com eles superava todo sofrimento. Seria capaz do maior sacrifício por qualquer um deles; morreria por eles, se necessário fosse. A fase mais difícil aconteceu quando o marido foi embora deixando sete bocas para ela alimentar sozinha. À custa de muito esforço, conseguiu superar os obstáculos, criando os fi lhos com dignidade.

No fi lme que passava diante de seus olhos também havia imagens de si própria; cenas de quando pela primeira vez ouvira as pessoas cochichando pelos cantos da casa com a idéia de interná-la numa

O dia do show

Page 86: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

103VIII Concurso de Contos Petros

instituição de caridade. A princípio achou que não era com ela. Sempre teve medo, pavor de passar o resto de seus dias num asilo, longe dos entes queridos. Por isso não queria admitir a idéia de ser abandonada num lugar daqueles. Também não acreditava que fossem capazes de um gesto tão desumano... mas foram.

Foi tudo muito bem tramado. Num dia de domingo, eles a chamaram para dar uma volta, dizendo que iriam visitar uma amiga num lugar bonito, cheio de árvores frondosas. Quando dona Luzia percebeu, já estava sozinha, internada. No começo sentiu-se um verdadeiro lixo, desprezada pela família que criou com tanto sacrifício. Pensou em se matar, acabar com sua vida insignifi cante. Mas a Irmã Dora, com seu coração enorme, conseguiu resgatá-la do fundo do poço. Com o passar do tempo, voltou a sorrir. Fez das pessoas ao redor sua nova família. Em menos de um ano já havia se adaptado perfeitamente ao ambiente.

Enquanto olhava o álbum, sua mente não parava de imaginar onde estariam aquelas pessoas. Depois do terrível dia em que foi internada, nunca mais voltou a vê-los. Sentia muita saudade de todos. Às vezes tinha vontade de odiá-los, mas preferia não cultivar esse tipo de sentimento por considerá-lo, além de inútil, extremamente destrutivo. Dona Luzia era admirada justamente por não odiar ninguém, apesar das muitas decepções na vida.

Após algum tempo perdida em recordações, fechou o álbum e foi buscar a foto autografada de Elizabete Linhares, uma famosa cantora gospel. Beijou várias vezes o papel já tão surrado, marcado por seus lábios e dedos. Carinhosamente levou a fotografi a até o peito, depois a guardou no bolso do vestido, de onde poderia tirá-la a qualquer instante para novos beijos.

As amigas de quarto foram acordando aos poucos.– Bom dia, Luzia! O show é hoje, não é? – perguntou Alzira, sua

melhor amiga, cheia de animação.– Sim, é hoje, às 20h. Será transmitido para todo o Brasil.Dona Luzia adorava as músicas de Elizabete Linhares. Sabia de cor

todas as letras, mesmo as que faziam parte do início da carreira da cantora. Acompanhou cada passo dela, desde antes do sucesso até o estrelato. Comovida com o amor dela pela artista, a freira coordenadora chegou a fazer contato com Elizabete, pedindo que ela visitasse o asilo.

Lucêmio Lopes da Anunciação

Page 87: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

104VIII Concurso de Contos Petros

Afi nal, era nele que vivia sua fã número um. Depois de inúmeras tentativas, o máximo que conseguiu da cantora foi o envio de uma foto sua para a velhinha.

As pessoas sabiam que aquele era um momento especial para dona Luzia. Por isso, aproveitaram a data do show para homenageá-la. Todo mundo queria fazer da velhinha mais simpática do mundo também a mais feliz do mundo naquele dia. Combinaram uma série de festividades em segredo. Para começar, as amigas fi zeram um círculo ao redor de dona Luzia. Umas faziam perguntas, outras simplesmente tiravam uma brincadeira qualquer. Pareciam um bando de adolescentes saindo da escola. Não demorou muito para que a Irmã Dora chegasse ao local de braços abertos à espera de um grande abraço.

– Então, amiga, quer dizer que o grande dia chegou? – perguntou a freira.

– É. Quase não dormi de ontem para hoje. O ruim é que ainda faltam dez horas para o início do show. Não sei o que fazer para que o tempo passe mais rápido...

– A senhora não sabe, mas nós sabemos – respondeu a Irmã Dora, levando pelo braço a homenageada até o prédio vizinho.

Logo dona Luzia percebeu que haviam preparado algo especial para ela. De repente apareceu um bolo em forma de coração, dentro do qual estava escrito: O MAIOR CORAÇÃO DO MUNDO. Cada uma das mulheres já tinha um discurso preparado para ela. Foram mais de trinta discursos; mais de trinta vezes em que ela se emocionou. De vez em quando retirava a foto autografada do bolso, beijava, depois voltava a guardá-la.

Escolheram para almoço o seu prato predileto: pernil de porco. As “peraltas” também conseguiram, depois de muitos pedidos, convencer a responsável pelo asilo a deixar que servissem, somente naquele dia, meia taça de vinho para cada uma das idosas. O ambiente, que já era descontraído, se transformou em festa completa.

Na parte da tarde fi zeram um sarau. Dentre as internas, três delas sabiam recitar poesias muito bem. Começaram com Carlos Drummond de Andrade, passaram por Fernando Pessoa, indo até Cecília Meireles, Augusto dos Anjos e muitos outros. Mais tarde, houve sessão de karaokê, dança, e a eleição da “miss asilo”. Passaram o resto da tarde cheias de empolgação.

O dia do show

Page 88: 18 VIII Concurso de Contos Petros - petros.com.br · 22 VIII Concurso de Contos Petros Vejo-me mateando solito, e, no vapor que sai da cuia, deixo meus pensamentos serem levados para

105VIII Concurso de Contos Petros

Quando faltava meia hora para o início do show, a sala de televisão já estava pronta. Tinham organizado as cadeiras em quatro fi las, e na frente delas – bem juntinho à televisão – colocaram o assento de dona Luzia. Mais uma vez ela tira a fotografi a do bolso para colocá-la junto ao peito. Após muita ansiedade, o relógio marca 20h. Com sua voz metálica o apresentador anuncia: “E agora, a maior cantora gospel do Brasil, Elizabete Linhares!” A platéia foi ao delírio.

O show só falava de paz, compaixão, solidariedade entre as pessoas. Havia um apelo emocionado para que os seres humanos amassem mais seus semelhantes, e a palavra “Deus” se fazia presente nas 16 músicas interpretadas pela artista. Lágrimas de emoção escorriam por entre os sulcos daquele rosto castigado pelo tempo. No fi nal, dona Luzia se encontrava radiante, como uma debutante a dançar no seu baile. Era felicidade demais para uma só pessoa. Impressionada com tanto entusiasmo, a coordenadora do asilo perguntou:

– Desde quando a senhora começou a gostar da cantora Elizabete Linhares?

– Desde quando eu a senti mexer pela primeira vez no meu ventre – respondeu a velhinha, com o mesmo sorriso doce de sempre.

Lucêmio Lopes da Anunciação