1984, 1992 e 2013. Sobre Ciclos de Protestos e Democracia No Brasil

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Luciana Tatagiba

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  • http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2014v13n28p35

    Poltica & Sociedade - Florianpolis - Vai. 13 - N 28 - Set./Dez. de 20 14

    1984, 1992 e 2013. Sobre ciclos de protestos e democracia no Brasil 1

    Luciana Tatagiba2

    Resumo Esse ensaio analisa o ciclo de protestos contra o aumento da tarifa do transporte pblico em 20 13 a partir da comparao com dois outros ciclos de protestos de nossa histria recente: as Diretas j, em 1984. e o Fora Collor. em 1992. O objetivo explorar a forma que a mobilizao assu-miu, o seu como, a partir de trs eixos de comparao: a construo simblica dos protestos. a infraestrutura de mobilizao e as performances confrontacionais. A anlise busca responder a duas questes centrais: quais as inovaes e continuidades dos protestos de 2013. em relao s campanhas de 1992 e 1984? E o que essas diferenas nos revelam sobre os avanos e os desafios da democracia brasileira hoje? Palavras-chave: Ciclo de protestos. Movimentos sociais. Democracia_

    Em 2013, a poltica brasileira foi sacudida por uma grande mobilizao de massa que teve como gatilho o aumento das tarifas do transporte coletivo. Os protestos de Junho de 2013 foram um daqueles momentos nos quais a ca-pacidade de interveno da sociedade sobre a poltica se amplia, varrendo para longe as frgeis certezas que balizam o jogo rotineiro da poltica institucio-nal. Ainda no sabemos com clareza quais so os saldos do ciclo de protestos contra o aumento da tarifa- quem ganhou, quem perdeu, quais os impactos sobre o imaginrio poltico, se a mobilizao popular conseguir impulsionar

    Verses preliminares desse texto foram apresentas no v Seminrio Nacional Movimentos Sociais e Participao no Brasil: Dilogos Transversais". realizado pelo Ncleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina (NPMSIUFSC). nos dias lO e li de abril de 2014: e no Seminrio MSociedade Civil. Democracia e Contestao, Escola de Altos Estudos/CAPES. realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). entre 24 e 27 de novembro. Agradeo aos organizadores a possibilidade do dilogo e ao pblico pelas questes que me foram dirigidas. Tambm agradeo ao parecerista annimo a leitura atenta e suas crticas primeira verso do texto.

    2 Professora do Departamento de Cincia Potftica. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). e coordenadora do Ncleo de Pesquisa em Participao. Movimentos Sociais e Ao Coletiva. NEPAC/UNICAMP. Email: [email protected].

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    reformas e qual ser a direo delas. O ciclo ainda segue em aberto e teve mais um lance empolgante nas eleies de outubro com direito a frio na barriga e suspense at o ltimo minuto. Como em 1989, a eleio presidencial de 2014 foi o momento que condensou a energia liberada pelo povo na rua com todo seu contraditrio e multifacetado "desejo de mudana''.

    Nesse texto, busco desenvolver uma reflexo sobre o ciclo de protestos de junho, sob a forma de um ensaio, a partir da comparao com dois outros ciclos de mobilizao de nossa histria recente: as Diretas J e o Movimento pela tica na Poltica3

    Entre novembro de 1983 e abril de 1984, no contexto da transio, mi-lhares de pessoas saram s ruas do pas exigindo do Congresso a aprovao da Emenda Dante de Oliveira, que permitiria eleies diretas para presidente da Repblica. No dia 26 de abril de 1984, a Emenda foi derrotada pelo plenrio da Cmara. Essa a campanha que ficou conhecida como as Diretas J. O segundo ciclo de protestos de nossa histria recente foi a Campanha pela tica na Poltica, ou Fora Collor, em 1992, quando milhares de brasileiros voltaram s ruas, em mobilizaes coletivas que se estenderam de maio a dezembro, para exigir a sada do primeiro presidente eleito aps o retorno da demo-cracia, Fernando Collor de Melo, envolvido em denncias de corrupo. O impeachment de Collor foi aprovado pelo plenrio da Cmara em 29/9/1992. Em junho de 2013, protestos contra o aumento da tarifa do transporte pbli-co, que at ento estavam restritos a algumas capitais, foram nacionalizados a partir da forte represso policial contra os manifestantes na cidade de So Paulo. Os protestos provocaram reduo das tarifas em vrias cidades e conti-nuaram nos meses seguintes, com protestos pontuais e pautas variadas.

    A comparao aqui proposta no ir explorar as relaes entre esses trs ciclos; os efeitos desses ciclos de protestos sobre o sistema poltico ou uma re-

    3 Os trs ciclos de protestos espalharam-se por vrias cidades brasileiras e tiveram caractersticas particulares a depender do contexto especfico das manifestaes. Contudo, a maior parte da bibliografia a que tiue acesso embora pretenda resgatar a dinmica nacional do conflito toma como base, principalmente, o desenrolar dos eventos em So Paulo e no Rio de janeiro. Esse um vis que tambm ser notado nesse ensaio. Tambm importante considerar que nesse texto debruo-me sobre os eventos no momento em que estes atingiram o seu pico da mobilizao. com os grandes e massivos protestos de rua. No caso da jornada de junho, isso significa que o perodo em tela concentra-se no ms de junho, embora seja sabido que o ciclo segue com manifestaes mais localizadas e de menor intensidade.

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    cuperao detida dos eventos que identifique os mecanismos que atuaram nos processos de mobilizao e desmobilizao intracidos. Essas so questes de pesquisa altamente provocativas, mas que fogem ao escopo necessariamente mais modesto desse ensaio.

    Meu objetivo ser explorar a fonna que a mobilizao assumiu, o seu como, a partir de trs eixos de anlise: i) a construo simblica dos protestos; ii) a infraestrutura de mobilizao; iii) e as performances confrontacionais. A anlise busca responder a duas questes centrais: quais as inovaes e conti-nuidades dos protestos de 2013, em relao s campanhas de 1992 e 1984? E o que essas diferenas nos revelam sobre os avanos e os desafios da democra-cia brasileira hoje?

    A agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais voltou a recuperar vigor na academia brasileira, principalmente a partir da segunda metade dos anos de 2000. A retomada do tema veio acompanhada de uma diversificao das vertentes tericas mobilizadas e uma renovao das agendas de pesquisa, com destaque para a importncia crescentemente assumida pela abordagem do confronto poltico (McADAM; TARROW; TILLY, 2001; TILLY, 2008; TARROW, 2011) e sua nfase sobre a relao entre poltica institucional e contestatria. Ao invs de um foco restrito sobre os movimentos sociais, a abordagem estimula e requer uma anlise cuidadosa da interao entre os di-ferentes atores que tomam parte na cena poltica contenciosa, em contextos marcados por oportunidades e ameaas ao coletiva. Sob esse enquadra-mento mais geral, vem ganhado destaque a anlise das relaes entre movi-mentos sociais e Estado e a complexidade dos repertrios mobilizados pelos atores no decurso da dinmica contenciosa4

    No que se refere especificamente anlise dos ciclos de protestos no Brasil, no identificamos o mesmo avano em termos de publicaes espe-cializadas. So ainda poucos os estudos disponveis sobre as campanhas de 1984 e 1992, e no caso das Jornadas de Junho de 2013 ainda no apareceram

    4 Conferir. entre outros: Abers e Otiueira (20 f 3): Abers e Tatagiba (no preto): Abers e Von Btow (20 I f): Abers. Serafim e Tatagiba (2014): Baiocchi. Hetler e Silua (201 1): Btikstad (2012): Dagnino e Tatagiba (2010): Dowbor (20 f 2): Leito (20 12): Situa e Ruskowskis (20 I O): Silua (20 J O; 20 li): Silua e Oliveira (20 li): Silua e Schmitt (2012): Dowbor e Szwako (2013): Tatagiba (2011): Tatagiba e Blikstad (2011): Tatagiba. Paterniani e Trindade (2012): Tirei/i (2013)_

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    publicaes de peso, certamente devido proximidade temporal do evento5 De certa forma, esse ensaio pretende contribuir para estimular novas pesquisas sobre o tema dos ciclos de protestos e sua relao com a democracia.

    O conceito de ciclo de protestos refere-se a uma fase de intensificao dos conflitos, no qual um conjunto diversificado de atores toma parte em manifestaes pblicas coletivas em ritmo e intensidade superiores ao verificado regularmente, difundindo-se rapidamente dos setores mais mobilizados para os menos mobilizados (TARROW, 2011). Ao envolver o conjunto da sociedade no conflito, a dinmica do ciclo exige uma resposta das autoridades, as quais tendem a combinar, em nveis variados, represso e incorporao das deman-das (TARROW, 2011). esse escopo territorialmente ampliado do conflito e a capacidade de mobilizar diferentes grupos que distinguem os ciclos de protestos de outros importantes eventos de confrontao poltica, como as campanhas promovidas por movimentos sociais singulares. A caracterstica-chave dos ciclos de protestos o efeito de difuso da ao coletiva dos setores mais mobiliza-dos (os "madrugadores", que iniciam o ciclo) para outros grupos e para seus antagonistas (TARROW, 2011, p. 195-215). Nessas ondas de confronto, os movimentos sociais e suas organizaes so um dentre vrios outros atores cuja ao e interao define a dinmica do ciclo, "Within such periods, or-ganizations and authorities, and movements and interest groups, members of the polity and challengers interact, conflict and cooperate. The dynamic of the cycle is the outcome of their interaction." (TARROW, 2011, p. 201).

    O vnculo entre mobilizao coletiva e poltica institucional a chave para a compreenso dos ciclos de protestos. As dinmicas dos ciclos so in-fluenciadas pelos padres de interao entre movimentos sociais e Estado, no decorrer do jogo poltico rotineiro no qual atores organizados buscam in-fluenciar as instituies. Ao mesmo tempo, as dinmicas de mobilizao e desmobilizao internas ao ciclo podem provocar mudanas nas relaes entre autoridades e desafiadores, abrindo espao para a expresso de novos atores e

    5 Foram utiliZadas as seguintes obras como fontes principais de consulta: Rodrigues (1993; 2000 e 2003): Kotscho(/984): Bertonceto(2009): Tatagiba (1998; 1994). Sobre a jornada de junho. tomei como referncia principal: judensnaider. E. et al. (20 13) e Maricato et ai. (20 13). alm de vrios artigos publicados na imprensa alternativa, que sero citados ao longo do texto.

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    discursos, com potenciais impactos sobre a poltica institucionalizada. Dito de outra forma, as mobilizaes coletivas so eventos que rompem o jogo poltico rotineiro. Mas, como sabemos, suas bases encontram-se na forma como ao longo do tempo se conformaram os padres de interao entre movimentos sociais e atores poltico-institucionais. Meu principal argumento nesse ensaio que embora a Jornada de Junho guarde semelhanas com os ciclos de pro-testos que a precedeu, h diferenas significativas que expressam uma nova configurao entre poltica institucional e contestatria forjada, por sua vez, no rastro de profundas mudanas nos padres de interao entre movimentos sociais, Estado e partidos ao longo desses ltimos 30 anos.

    O texto est dividido em duas partes. Na primeira, descrevo e comparo a anatomia dos protestos nos trs ciclos, a partir dos seguintes eixos: construo simblica dos protestos; infraestrutura de mobilizao e performances con-frontacionais. Na segunda parte, analiso as continuidades e rupturas verifica-das nas formas de mobilizao coletiva nos trs ciclos, tendo como perspectiva a relao entre ciclos de protestos e democracia.

    I A construo simblica dos protestos Um ponto comum nas anlises sobre os protestos de junho o reco-

    nhecimento da diversidade das reivindicaes, com suas mltiplas bandeiras e palavras de ordem. A organizao que chamou os protestos de 2013 foi o Movimento Passe Livre (MPL). A principal bandeira do MPL, como o nome diz, a tarifa zero no transporte pblico, primeiro reivindicada para os estu-dantes e, depois, ampliada como uma demanda universal (MPL, 2013). em referncia a esse horizonte mais amplo que se d a luta do movimento contra os aumentos das tarifas do transporte pblico, em vrias cidades brasileiras. A demanda pela tarifa zero est associada agenda da reforma urbana, na qual o item da mobilidade assume centralidade, principalmente em uma megalpole como So Paulo (MARICATO et al., 2013). A tarifa zero remete a um desejo de ocupao da cidade e de circulao pelos seus espaos pblicos, um direito tradicionalmente negado aos moradores das periferias (MARICATO et al., 2013; CARDOSO, 2013).

    Embora tivesse no horizonte essa agenda mais ampla, o MPL convo-cou os protestos a partir de um foco preciso e bem definido: a revogao do aumento da passagem de nibus que passou de R$ 3,00 para R$ 3,20.

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    Portanto, desde o comeo, foi sim uma luta por 0,20 centavos. Mas, o MPL no guiou os rumos dos protestos, tampouco desejou ou conseguiu controlar as pautas que os manifestantes levaram para as ruas. medida que se dava a mu-dana de escala do confronto, novos atores incorporavam-se s manifestaes ampliando e diversificando os cenrios institucionais implicados no confronto. Nesse processo de difuso, reduzia-se o poder de coordenao do MPL.

    A indignao expressa nas ruas teve muitas faces, e pelas peculiaridades da dinmica do ciclo no houve a conformao de um frame capaz de conferir unidade a essa diversidade para alm do estopim: contra o aumento da tarifa do transporte pblico.

    No que nas Diretas J e no Fora Collor no houvesse nas ruas grupos igualmente heterogneos, e vrios protestos em uma s mobilizao coletiva. Kotscho (1984) lembra que na campanha das Diretas o tema do "arrocho sa-larial", ao lado da crtica presena dos EUA na Amrica Latina e aos acordos com o FMI, compunha o leque de temas a partir dos quais os diferentes grupos buscavam afirmar a legitimidade dos protestos. E o reprter lembra como foi difcil conduzir o bloco de oposio ao regime, j fragmentado aps a anistia, a travar uma luta comum, "Claro, todo mundo era e a favor das eleies di-retas- com a exceo bvia dos defensores das trevas. [ ... ] Do desejo prtica, porm havia um insupervel abismo, que as tentativas de consenso, acordos de cpula, negociaes e todo aquele repertrio j conhecido de longa data no conseguiam resolver. Nunca se gastou tanto em DDD, almoos e jantares, papis e projetos polticos" (KOTSCHO, 1984, p. 16). Dessa articulao, consolidada em cada ato nos eventos suprapartidrios, afirmou-se acima das diferenas o mote "quero votar para presidente". Nessa mesma direo, vale lembrar tambm os diferentes significados que a "tica na poltica" assumiu no processo de luta pelo impeachment de Collor. Como discutido em Tatagiba (1998), algumas das principais organizaes representativas da sociedade civil no Movimento pela tica na Poltica (CNBB, CUT, PNBE e OAB) deram sentidos diversos ao slogan. Para a CNBB, a "tica na poltica'' significava a revelao da verdade, contra aquele que mentiu e roubou, numa particular as-sociao entre tica pblica e privada: quem no tem tica na vida privada no pode exercer o poder pblico. No por outro motivo, referncia bblica ''A ver-dade vos libertar' era frequentemente invocada nas comunicaes dirigidas igreja e ao congresso. J no discurso da OAB, a tica na poltica definiu-se

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    em referncia aos preceitos constitucionais, e a campanha pelo impeachment significava nesse caso uma vigilncia pela manuteno do estado democrtico de Direito. No caso dos empresrios reunidos em torno do PNBE, a "tica na poltica" aparece como condio para a estabilidade poltica, a qual, por sua vez, considerada indispensvel para o desenvolvimento econmico. o problema da governabilidade e suas implicaes sobre a ao dos agentes econmicos que conforma seu campo discursivo em torno do qual trabalham pela adeso de sua base ao protesto. J no caso da CUT, a "tica na poltica" teve como centro a crtica ao programa de reformas neoliberal introduzido pelo governo Collor. Nesse caso, a associao entre tica, democracia e justia social conforma os principais sentidos presentes nas publicaes da Central, "A tica na poltica vai se estender para a tica na economia. A gesto do p-blico ser cada vez mais transparente, doa a quem doer, porque a consolidao da democracia assim o exige" (CUT apud TATAGIBA, 1998, p. 159). Diante dos interesses diversos, e at mesmo conflitantes, o desafio da construo de um marco comum para o confronto - tanto no caso das Diretas J como na mobilizao pelo impeachment - mobilizou parte significativa da energia dos organizadores. Nos dois casos, o papel dos partidos polticos foi decisivo para essa costura. As "Diretas J'' e a "tica na Poltica'' foram frames construdos a partir de um forte trabalho de negociao e articulao polticas conduzido pelas principais lideranas partidrias da oposio (voltaremos a esse tema no prximo item).

    Em junho foi diferente. Se as massas nas ruas afirmam o desejo do exer-ccio da poltica sem mediaes institucionais, a lgica do "cada pessoa um cartaz" to presente nos protestos de junho, ratificava que - para alm da de-manda bsica, "a reduo da tarifa"- os sentidos dos atos poderiam ser tantos quantos aqueles dispostos a encarar a disputa pelo enquadramento do con-fronto. E nesse caldeiro, o desejo por mais participao e respeito aos direitos das minorias (como na pauta em favor da legalizao do aborto e dos direitos sexuais) vinha junto com propostas de militarizao, reduo da maioridade penal e contra avano dos direitos sociais. medida que o protesto se nacio-nalizava, o "desejo por mudana'' e "contra tudo o que est ai" se metamorfo-seava em diferentes e contraditrias bandeiras de luta que acabavam dividindo espao em um mesmo protesto.

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    Nos trs ciclos de protestos, os smbolos nacionais estiveram muito pre-sentes nas mobilizaes. Nas Diretas J, os relatos da poca, invariavelmente, lembram como soltar o "grito preso na garganta", para usar os termos de Ro-drigues (2003), vinha cercado de forte carga emocional e moral, sintetizado na ideia da festa cvica. O verde e amarelo, as cores das Diretas, e o hino na-cional, cantado invariavelmente ao final dos comcios pelos polticos nos pa-lanques e pelo pblico presente, expressavam um sentido de reapropriao do Brasil pelos brasileiros (MEYER; MONTES, 1985; KOTSCHO, 1984). Na sua leitura sobre a Campanha das Diretas J, Bertoncelo (2009) sugere que a reivindicao da "nao'' e seu "ncleo sagrado" nos protestos (bandeira, hino nacional e heris) tinha como contrapartida a profanao do centro do poder (nos enterros simblicos, nas encenaes teatrais que visavam ridicularizar os poderosos). Festa cvica e carnaval compondo as duas faces da ritualizao do poder nas ruas.

    Ao entoarem o hino nacional ao final das manifestaes, ao se vestirem com a indumentria das diretas, ao pintarem suas casas com as cores da campanha (o verde e o amarelo). ao trazerem heris nacionais (como Tiradentes), artistas, cantores, jogadores de futebol s ruas e praas, os participantes reivindicavam representar a "nao" e seu "centro sagrado" (que ali buscavam reinterpretar e reconstruir). Por outro lado, o centro poltico da sociedade foi "profanizado", com a criao de bonecos satirizando figuras polticas importantes como "Paulo Maluco", "Mario Dazzar" e "Aureliano Chavo", a malhao de outros, represen-tando Ministros de Estado, enterros simblicos do regime militar, do Colgio Eleitoral, do presidente Figueiredo etc. (BERTONCELO, 2009, p. 191 ).

    Tambm no impeachment, o "vers que um filho teu no foge lut' virou cartaz nas mos dos "caras pintadas" de verde e amarelo. Interessante lembrar o 7 de Setembro quando o governador Fleury distribui no desfile oficial o "kit pr-impeachmenl' (bandeira, bton e faixa para cabea) com os dizeres: "O verde-amarelo nosso, no delle" (RODRIGUES, 2000, p. 234). E, mesmo depois que o presidente Collor convocou a guerra das cores, o verde e amarelo continuaram imperando ao lado do preto (o luto) e do vermelho (a cor da luta).

    O ciclo de protestos de 2013, assim como os seus antecessores, no era monocromtico. Mas, dessa vez, causou particular estranheza a fora com que emergiu nas ruas o canto dos estdios "eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor", o hino nacional, a profuso de bandeiras verdes e amarelas,

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    e referncias como "o gigante acordou" e "vers que um filho teu no foge luta'', associados rejeio presena das bandeiras partidrias (vermelhas), em certa fase do conflito, como veremos. O fato que para uma juventude ainda pouco habituada s ruas, o hino dos estdios parecia oferecer tambm um grito de guerra para sua iniciao poltica, em um cenrio marcado por uma profunda desconfiana nas instituies polticas. Ao entrar na disputa pelo enquadramento do conflito, a mdia hegemnica tratou de pautar nos seus termos a guerra das cores: "vndalos" e "baderneiros" (os que trajam pre-to), "oportunistas" (com suas bandeiras vermelhas) e os brasileiros "ordeiros e pacficos" (com seus trajes verdes e amarelos).

    Para encerrar esse item, uma breve meno ao tema que aparece com cen-tralidade maior ou menor nos trs ciclos de protestos: a questo da corrupo. No caso dos protestos de junho, o tema alcanou maior fora a partir do mo-mento em que os protestos se massificaram, corno reao forte represso da polcia paulista contra os manifestantes, ocorrida em 13/6, evento que marca uma inflexo importante no rumo dos protestos. A partir desse foi ponto, foi comum a associao das mobilizaes a uma luta contra a corrupo, naquele momento encarnada nos gastos para a copa do mundo. Exemplificando esse esforo para associar os protestos de junho a urna luta contra a corrupo, Judensnaider et al. (2013) lembram a capa da Revista Veja, de 15/6, que trou-xe como ttulo "A revolta dos jovens- Depois do preo das passagens, a vez da corrupo e da criminalidade?".

    As redes sociais repercutiam a mudana discursiva dos protestos. Na sexta-feira, 14/06, a segunda publicao mais compartilhada traz um jovem que segura um cartaz com o seguinte contedo: "Copa FIFA = 33 bilhe$. Olimpada = 26 bilhe$. Corrupo = 50 bilhe$. Salrio Mn. = 678 reai$. E voc ainda acha que por 20 centavos?" QUDENSNAIDER et al., 2013). Na quinta posio, uma imagem traz os dizeres: "O povo acordou, o povo decidiu, ou para a roubalheira, ou paramos o Brasil!". QUDENSNAIDER et al., 2013). Os grupos esquerda, tambm utilizando principalmente as redes sociais, denunciaram a forma como o tema da corrupo estava sendo usado como argumento para uma guinada direita dos protestos.

    Mas, apesar das caractersticas conjunturais que explicam a entrada do tema do combate corrupo nos protestos de junho, gostaria aqui de lem-brar que a luta contra a corrupo tem sido bandeira frequente dos setores

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    organizados desde a transio, e que inclusive foi um dos fatores que justi-ficaram a criao de um novo partido poltico, o PT, cuja novidade estava justamente em encarnar uma "nova forma de fazer poltica''. Durante muito tempo, o PT buscou afirmar sua identidade como um partido que no se envolve em negociatas, conchavos, que no corrompe e no corrompido. A luta dos movimentos sociais nos anos 1970 politiwu o tema da corrupo. No estranha, portanto, que "ser honesto" tenha se tornado a principal exi-gncia dos eleitores na campanha presidencial de 1989. Mortiz (1996) mostra como o tema da moralidade pblica permeou, embora com enquadramentos distintos, o discurso de todos os candidatos presidncia em 1989. Rodri-gues tambm destaca esse ponto, "Foram as questes de ordem 'tica' as que mobilizaram a cidadania na mais disputada eleio da histria republicana'' (RODRIGUES, 2000, p. 343). Collor venceu as eleies como o "caador de marajs" e se viu, dois anos depois, no epicentro do conflito que colocava novamente no centro do debate a questo da "tica na poltic'. Em 2005, as denncias do "mensalo do PT" colocaram em risco o segundo mandato do presidente Lula. Em 2013, o tema reaparece como um dos principais temas das mobilizaes de rua e, em 20 14, denncias de corrupo envolvendo a Petrobras quase custam a reeleio da presidenta Dilma Rousseff. Ou seja, o frame do "combate corrupo'' encontra forte ressonncia popular, o que o tornou uma bandeira poderosa de mobilizao esquerda e direita ao longo desses 30 anos. E nas mobilizaes de junho no foi diferente.

    2 A infraestrutura do protesto H diferenas marcantes em termos da infraestrutura do protesto quando

    comparamos as mobilizaes de 2013, 1992 e 1984. As principais diferenas dizem respeito ao deslocamento da centralidade dos partidos e a importncia assumida pelas redes sociais como forma de mobilizao e recrutamento.

    No caso das Diretas J e do Fora Collor, a estrutura de mobilizao este-ve assentada na formao das frentes suprapanidrias que contavam tambm com a representao de diferentes organizaes de movimentos sociais, dentre os quais se destaca CUT, CNBB, OAB, UNE, entre outras. A formao dessas frentes foi considerada importante no apenas para garantir a legitimidade das demandas, afastando o risco de o movimento ser caracterizado como partid-rio, mas tambm levar adiante o difcil trabalho de mobilizao, o que inclua

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    garantir os recursos financeiros necessrios. Aos panidos cabia mobilizar as bases, oferecer apoio financeiro e material para a organizao dos eventos e fazer lobby no congresso pela aprovao da Emenda Dante de Oliveira e do pedido de admissibilidade do impeachment, respectivamente.

    Pelos partidos passava parte importante do recrutamento para os protes-tos, que consista, principalmente, na produo de material imprensa que era ento distribudo em ruas, fbricas, sindicatos, igrejas, comunidades eclesiais de base e movimentos de bairro, a partir do engajamento prvio dos militan-tes dessas organizaes. Falando sobre a preparao para o primeiro grande comcio em So Paulo, no final de 1983, Kotscho d uma ideia do que essa organizao envolvia:

    Quem chegasse ontem a So Paulo no teria ideia da mobilizao que est sendo feita para transformar o ato supra partidrio em favor das eleies diretas na maior manifestao de rua da cidade nos ltimos tempos- nenhuma faixa. nenhum cartaz. rarefeito noticirio nas rdios e nas televises. Os convites esto sendo feitos boca a boca ou por meio de folhetos. em pon-tos de nibus e portas de fbrica_ S o PT j havia distribudo mais de 1,2 milho at ontem, mobilizando mais de trs mil pessoas nesse trabalho. O PMDB enviou telegramas a todos os diretrios, convocando seus militantes para a festa-comcio. (KOTSCHO, 1984. p. 16).

    Todo esse intenso trabalho de mobilizao estava amparado nos "Comi-ts Pr-Diretas", formados por movimentos populares e partidos de oposio que funcionavam como espaos de canalizao das demandas sociais e mobi-lizao nos territrios.

    De fato, os comits, que reuniam os partidos de oposio, membros do grupo pr-diretas do PDS, alm de associaes e entidades sociais diversas, constituram-se em grande medi-da apropriando-se do aparato organizacional existente e transformando-o em estruturas de mobilizao. Esse foi um dos fatores que permitiu expandir a luta por eleies diretas pelo territrio nacional. (BERTONCELO. 2009. p. 6).

    Tambm no caso do impeachment PT, PMDB e PSDB decidiram for-malizar uma frente pr- impeachment, com participao da sociedade civil: "Nesse momento temos que ser uma frente, como foi aquela contra o regime militar. Temos que ter a conscincia de ir para as ruas juntos" (O. Qurcia, Folha de S. Paulo, 13/0811992). A prioridade dos dirigentes era conversar com os governadores e prefeitos sensibilizando-os a apoiarem os atos. Para evitar um carter eleitoral aos atos, os lderes oposicionistas propuseram que

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    apenas os presidentes dos partidos e de entidades discursassem, evitando a participao de candidatos a prefeitos ou vereadores. Tambm foi decido que os partidos da frente reservariam um espao em seus programas eleitorais para a campanha pr-impeachment (TATAGIBA, 1994).

    A presena dos partidos nas mobilizaes nunca foi uma questo simples. E a frente suprapartidria, repito, foi uma estratgia encontrada pelos atores para lidar com o problema da coordenao da ao. Mas, mesmo assim, isso no impediu a emergncia de conflitos de natureza variada. Em 1984, os par-tidos de oposio ainda contavam com uma forte legitimidade social, o que no impedia o risco de que as desavenas partidrias minassem o esforo de forjar uma unidade estratgica. sempre lembrado, nesse sentido, o evento de 25 de janeiro de 1984, na Praa da S, quando Lula impediu que o pblico vaiasse o governador Franco Montoro, com o qual dividia o palanque: "Se algum tiver que ser vaiado que seja eu. Vamos trabalhar de forma unitria. S assim vamos poder dizer: o povo na praa conquistou as eleies diretas para presidente da repblica" (KOTSCH O, 1984, p. 27). H tambm o relato dos preparativos para o grande comcio em Belo Horiwnte, no qual Tancredo Neves pessoalmente teria negociado com a 11 Diviso do Exrcito -que no colocasse homens de prontido; com o presidente do Banco Central- para que no fechasse as agncias bancrias no dia do comcio para no esvaziar os atos; e com o PCdoB- "para que as temidas bandeiras vermelhas no fossem ostensivamente apresentadas" (RODRIGUES, 2003, p. 55). De vermelho, segue Rodrigues, s foram vistas na praa as bandeiras do PT. Nos protestos pelo impeachment, os partidos tiveram posio de destaque, como dissemos, mas a partir da entrada dos "caras pintadas" cresceu a reao contra a presena das lideranas partidrias nos eventos. Sobre a grande passeata no Rio de Ja-neiro, em 21 de agosto, narra Rodrigues:

    No Rio de janeiro, novo recorde de pblico: uma multido de 25 mil pessoas (para a PM) e cem mil (segundo a UNE) reuniu-se no centro[ ... ] embora sem contar, mais uma vez, com a presena de nenhuma liderana nacional de expresso, predominaram no ato os estudan-tes. [ ... ] Representantes dos partidos e candidatos foram recebidos com frieza e hostilidade. (RODRIGUES, 2003, p. 222) .

    O mesmo se repetiu na manifestao de 15 de setembro no Rio:

    [ ... ] manifestao promovida pela UNE terminou em confuso e agresses fsicas ao prefeito. Marcelo Alencar. Houve ainda brigas e discusso entre militantes do PDT e da

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    Convergncia Socialista_ [O ato foi] marcado por forte reao dos estudantes presena de candidatos s eleies municipais. Nenhum dos candidatos pode subir ao carro de som e s com muita discrio alguns puderam distribuir panfletos. (RODRIGUES. 2003, p. 237).

    Nas Jornadas de Junho, no apenas a infraestrutura de mobilizao esteve assentada em outras bases, sem qualquer papel efetivo dos partidos no recrutamento e organizao das mobilizaes, como tambm cresceu de for-ma indita o nvel de hostilidade em relao presena dos partidos e dos militantes partidrios nos protestos.

    Nas Jornadas de Junho, a organizao que convocou os protestos foi o Movimento pelo Passe Livre, um movimento que atua em diversas capitais desde 20046 Autonomia e horiwntalidade so valores que conformam a identidade do movimento: "O MPL um movimento social, independente e horiwntal, o que significa que no temos presidentes, dirigentes, chefes ou secretrios, todos tm a mesma voz e poder de deciso dentro dos nossos espaos" (Site do MPL, Disponvel em: . Acesso em: 28 ago. 2014). A narrativa de criao do movimento remete mobilizao contra o aumento das passagens em Salvador, em 2003, intitulada como a "Revolta do Buzu" (MPL-SP, 20 13) e mostra a relao entre as estratgias do movimento e a construo de sua identidade:

    Durante as aulas. estudantes secundaristas pulavam os muros das escolas para bloquear ruas em diversos bairros, num processo descentralizado, organizado a partir de assembleias realizadas nos prprios bloqueios [ ... ]. A revolta do Buzu exigia. na prtica. nas ruas. um afastamento dos modelos hierarquizados; expunha outra maneira, ainda que embrionria de organizao. (MPL-SP. 2013, p. 14).

    Outras "revoltas" compem a memria do movimento, como a "Revol-ta da Catrac', em 2004, em Florianpolis, que teria servido de base para a

    6 "O MPL talvez seja o primeiro grande movimento social ps-Lula. ps-hegemonia do Partido dos Trabalhadores (PT). no campo da esquerda no pas. O MPL no filiado a nenhuma central de movimentos ou central sindical. Suas lideranas no tm razes no movimento social que ajudou a combater a ditadura militar, que participou da Constituinte, que lutou no Fora Collor ou que resistiu s privatizaes no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Embora tenha militantes ligados a partidos polticos de esquerda, sua forma de organizao est muito mais prxima das tradies do anarquismo libertrio. que pressupe horizontalidade nas decises e averso a espaos de negociao com o Estado_ filha de Seattle e Gnova. No entanto, no se exime de acolher indivduos militantes filiados a partidas polticos no movimento. So apartidrios, mas no antipartidrios (ROMO, 2013. p. I 1-12).

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    criao do MPL, em 2005; a "Revolta de Vitria", em 2006; a "Revolta de Teresina'', em 2011; a "Revolta de Aracaju", em 2012; a "Revolta de Natal", em 20 12; a "Revolta de Porto Alegre'', em 20 13; e a "Revolta de Goinia'', em 2013 (MPL-SP, 2013). Integram ainda a narrativa do movimento, aes lo-calizadas de resistncia cotidiana contra a pssima qualidade dos servios p-blicos. Como no "gesto cotidiano" de quem no paga a tarifa, pula a catraca, entra pela porta traseira ou desce pela frente "e implementa, assim na prtica, a tarifa zero" (MPL-SP, 20 13, p. 16-17), ou ainda na ao dos usurios que indignados depredam as estaes de nibus e metr (MPL-SP, 2013, p. 17). "Revolta'' e "indignao" so ideias muito presentes na narrativa do MPL e traz baila o sentido poltico das humilhaes cotidianas e o seu potencial para ativar a ao coletiva, muitas vezes violenta7

    Em 2 de junho de 2013, quando a CPTM aumentou a tarifa do trans-porte pblica de R$ 3,0 para R$ 3,20, o MPL se preparava para mais uma "revolta'', dessa vez em So Paulo. Mas, o conflito se nacionalizou e implicou diretamente os poderes constitudos, no mais importante ciclo de mobiliza-es desde o impeachment. A proporo que o protesto assumiu jogou luz sobre o MPL e exigiu deste grande capacidade de articulao e coordenao. Nesse processo, a estrutura organizacional do MPL e seus mtodos de luta foram colocados prova.

    O MPL se apresenta como grupo autnomo, vinculado esquerda e com uma estrutura organizacional horizontal. Segundo o MPL, no movimento todos teriam a mesma voz e poder de deciso. Como sugerem Judensnaider et al. (2013), a fora e a fraqueza do MPL esto diretamente associados ao perfil dos seus militantes: jovens que tm averso aos meios institucionais, como os partidos polticos e a disputa pelo poder do Estado QUDENSNAIDER et al., 2013, p. 14).

    As estratgias organizativas do passe livre envolvem atuao nas escolas secundrias, com debates sobre a questo dos transportes e bloqueio de vias locais como forma de recrutar estudantes (MPL-SP, 2013;JUDENSNAIDER et al., 2013). A ideia que a atuao focada no territrio fortalece a autono-mia de cada regio e, ao mesmo tempo, a capacidade dos ncleos locais do

    7 Para uma discusso do repertrio do MPL antes da jornada de junho. remeto a Monika Dowbor e Jos Szwako, 2013.

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    MPL de coordenar suas aes e cooperar em situaes de mobilizao mais amplas QUDENSNAIDER et al., 2013). Ainda segundo Judensnaider et al., no ciclo de Junho, em So Paulo, o MPL inovou sua estrutura de organiza-o com o objetivo de ampliar sua autonomia decisria em relao aos seus parceiros tradicionais, os partidos polticos e movimentos sociais de esquerda:

    Antes, as decises eram tomadas num foro ampliado, chamado de "frente de luta" ou "co-mit" contra o aumento. que contava com a participao de outros movimentos. sindicatos e partidos polticos. [ ... ]. No entanto. esse formato de organizao permitia que interes-ses polticos de outra ordem interferissem no planejamento das aes. comprometendo a autonomia do movimento e desviando as decises do foco das reivindicaes. Assim. em 2013, partidos polticos como o PSOL e o PSTU e movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Sindicato dos Metrovirios entraram como aliados nas manifestaes, mas sem poder de deciso sobre questes cruciais como as datas dos atos, os trajetos das passeatas e a orientao da interlocuo com o poder pblico. O MPL acreditava que com isso ganharia autonomia em relao s demandas de partidos e outros atores polticos, as quais nem sempre coincidiam com os objetivos da campanha e com as estratgias de ao direta. UUDENSNAIDER et ai., 2013, p. 27).

    O ciclo de mobilizaes contra o aumento da tarifa o primeiro, por-tanto, no qual os partidos no se envolveram diretamente na organizao e direo.

    Nas Jornadas de Junho os partidos de esquerda no apenas no encabe-aram os protestos, como, no caso de So Paulo, tiveram seus militantes hos-tilizados nas ruas. Quando os protestos se nacionalizaram e houve a diversifi-cao das pautas, a imprensa comeou a noticiar agresses entre os militantes por causa do uso das bandeiras partidrias. Nas redes sociais, militantes de movimentos sociais tambm relatavam agresses e um clima de tenso entre os diferentes grupos que compunham as manifestaes. O protesto marcado para comemorar a vitria do movimento, com a reduo da tarifa em So Paulo, foi marcado por um nvel de animosidade indito:

    Militantes de partidos polticos e do MPL (Movimento Passe Livre) foram expulsos ontem do ato marcado para comemorar a revogao do aumento da tarifa em So Paulo_ O ato l- --1 foi marcado por um forte confronto entre grupos que se diziam "anti partidos" e militantes do PT. PSTU. PSOL e PCO_ l---1 Bandeiras de partidos foram arrancadas de manifestantes e queimadas. [ ... ] Militantes do PSOL foram obrigados a tirar a camisa do partido e deixaram o ato chorando_ (FSP. 21/06/20 13 )_

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    Nas redes sociais, a disputa era acirrada entre os que defendiam que os manifestantes deveriam deixar suas bandeiras em casa e os que defendiam o direito de cada um levantar sua bandeira, fosse ela qual fosse. esquerda se buscava afirmar a natureza popular dos protestos e a legitimidade da presena dos militantes partidrios nas manifestaes. Logo o MPL tratou de afirmar sua trajetria de esquerda e a fazer a discusso pedaggica sobre a diferena en-tre ser apartidrio e contra os partidos. Os militantes dos movimentos sociais tambm buscaram marcar posio e afirmaram que se alguns vinham para a rua pela primeira vez, eles estiveram ocupando as ruas desde as lutas contra a ditadura. E, mais uma vez, os cartazes foram instrumentos para pautar posi-es. frase "O gigante acordou", os coletivos de jovens de esquerda atuantes na periferia respondiam: "A periferia nunca dormiu".

    Um dos alvos principais das hostilidades era os militantes petista.s, eviden-ciando uma forte associao entre antipartidarismo e antipetismo. O discurso do dio - e as imagens eram eloquentes com jovens queimando ou mordendo as bandeiras do PT- ficaria mais evidente na campanha presidencial de 2014.

    Na ausncia dos atores polticos tradicionais, com seus recursos e exper-tise na ativao da ao coletiva, o papel de mobilizao e recrutamento nos protestos contra o aumento da tarifa foram desempenhados principalmente pelas redes sociais. O ciclo de protestos de Junho no foi construdo nas redes sociais. Mas, sem dvida, a mobilizao nas redes foi um fator decisivo para a conformao de suas caractersticas. As redes sociais foram um espao es-sencial para a produo e difuso de informao alternativa s veiculadas pela mdia tradicional, principalmente a partir dos vdeos feitos pelo celular. Os debates realizados nas redes repercutiam o clima da rua; a mobilizao gerada na rede construa o desejo de ir para a rua. No livro "Vinte centavos", os au-tores exploram essa relao entre as redes e a rua:

    O evento agendado pelo Facebook, que no dia 13 contava com quase 30 mil confirmaes, passa a ter, na segunda-feira, cerca de 215 mil - ou seja, 7 vezes mais do que o ato da quinta-feira e quase 20 vezes mais do que o da tera-feira anterior. que contava com cerca de 12 mil confirmados. ampliao do apoio nas redes sociais corresponde o crescimento de manifestantes nas ruas- em uma semana. o movimento ganha uma adeso massiva que surpreende, inclusive, os organizadores. UUDENSNAIDER et ai ., 2013).

    Um pequeno texto chamado "Cartografia dos espaos hbridos", divulga-do nas redes sociais no calor dos acontecimentos, traz uma viso muito inte-ressante sobre o uso das redes sociais entre os dias 5 e 21 de junho, e conclui:

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    A mobilizao cidad nas ruas a partir das redes sociais criou um espao hbrido entre as redes e as ruas. Havia quem estivesse nas ruas relatando, pelas redes. o calor da mobilizao social. Havia quem estivesse nas redes. interagindo. compartilhando e se posicionando. aumentando a mobilizao e amplificando o engajamento social. para muito alm das ruas [ ... ]. A tendncia que emana desse momento hbrido que. cada vez mais. redes de opinio enfrentaro outras redes de opinio. (I NTERAGENTES. 2013 ).

    Obviamente no se trata de reduzir o recrutamento s interaes vinuais. As redes face a facee a infraestrutura tradicional de mobilizao por certo con-tinuaram operando. Trata-se, isso sim, de reconhecer a imponncia das redes sociais na convocao para os protestos, principalmente para um pblico ca-racterizado em sua maioria por jovens8

    3 As performances de confrontao Na campanha pelas Diretas J, as "festas-comcio" compunham a parte

    central do repenrio de confrontao. Elas eram realizadas, no geral, a partir de acordos entre os governadores, lideranas partidrias e organizaes de mo-vimentos e foram realizadas em vrias capitais. Eram grandes eventos pblicos, que duravam em torno de cinco horas, e que costumavam contar com a presen-a de anistas e cantores. Pagos pela direo dos panidos ou por governadores comprometidos com a causa, os megacomcios das Diretas J eram verdadei-ras festas cvicas, que recuperavam e recriavam os antigos comcios do passado, conferindo-lhes uma nova roupagem (RODRIGUES, 2003, p. 100).

    Em So Paulo foram quatro grandes eventos realizados entre novem-bro de 1983 e junho de 1984. O maior deles foi a festa-comcio no Vale do Anhangaba, em 16 de abril de 1984, que reuniu um milho e quinhentas mil pessoas. Rodrigues (2003, p. 80-83) conta que o evento foi planejado pelo comit paulista pr-Diretas, e que o esquema previa que passeatas sai-riam de pontos diferentes da cidade e se encontrariam na Praa da S. Antes de comporem a grande massa nas avenidas, as pessoas se organizavam em grupos, nas torcidas de clube de futebol, nas associaes de moradores, nos sindicatos, nos movimentos populares, reparties pblicas etc. Outras iam

    8 Pesquisa Datafolha divulgada em /B/6/20/3 informava que 84% dos manifestantes no tinham preferncia partidria. 71% participavam pela primeira vez de alguma manifestao. 81% se informaram pelo Facebook e 85% buscaram informaes pela internet (Datafolha. 18/612014)-

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    se somando como indivduos ao longo do percurso. De pontos variados, iam ento seguindo em passeata at a concentrao no Vale do Anhangaba, com uma comisso de frente formada por governadores, presidentes de partido, parlamentares e lideranas da sociedade civil.

    No palanque repetiram-se as cenas com as quais o pas j se acostumara: artistas enviando mensagens e cantando canes pelas Diretas. homenagens a Teotnio Vilela. o locutor Osmar Santos comandando o microfone, a cantora Faf de Belm soltando uma pomba branca etc. [ ... ] Terminados os discursos. as autoridades no palanque deram-se as mos e as ergueram. enfatizando a unidade do movimento, e entoaram o Hino Nacional com a Sinfnica [Orquestra Sinfnica de Campinas]. o maestro [Benito Juarez] e a multido. (RODRIGUES, 2003, p. 83).

    Ao lado do comcio, as estratgias de ao dos oposicionistas incluam tambm a realizao das "Caravanas das Diretas". A Caravana das Diretas tinha como objetivo levar a campanha das Diretas s cidades do interior do pas, nas regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e foram organizadas por Ulysses Guimares, Lula e Doutel de Andrade, presidentes do PMDB, PT e PDT (BARTONCELLO, 2009). A peregrinao inclua grandes lideranas nacionais, polticos locais, artistas e cantores regionais. Em cada cidade que chegava, a Caravana era recebida com uma festa-comcio, na praa central. O jornalista Ricardo Kotscho narrou nos seguintes termos a chegada da Carava-na em Macap:

    Com banda de msica, carnaval, faixas. rojes e um cortejo de carros e caminhes. a Ca-ravana das Diretas. agora s com Ulysses Guimares e Doutel de Andrade, chegou ontem tarde ao Amap [ ... ]. Macap [ ... ] nunca viu festa igual. Desde s 3 horas da tarde. o aeroporto internacional de Maca p j estava tomado por jovens que cantavam refres ten-do como tema as eleies diretas. Nas ruas onde o cortejo passava. ao longo de quatro quilmetros, at a sede do diretrio regional do PMDB, instalado numa pequena sala, as pessoas acenavam, gritavam. batiam palmas. frente do cortejo. seguia um caminho com aparelhagem de som e s tocava uma msica o tempo todo: "Caminhando". de Geraldo Vandr. cantada por Simone. E o povo seguia atrs. cantando junto [ ... ]. Nos intervalos para voltar a fita, o locutor convoca a populao para o comcio: "20 anos de ditadura o suficiente. Ningum agenta mais. (KOTSCHO. 1984. p. 39-40).

    A Caravana das Diretas completou 22 mil quilmetros de viagem por 15 estados, reunindo quase 1 milho de pessoas (RODRIGUES, 2003). Nas manifestaes pelas Diretas J, havia ainda enterro simblico de polticos da

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    ditadura, crticas presena da Rede Globo, com o conhecido "O povo no bobo, abaixo a Rede Globo!", e a mistura de grupos com estilos e palavras de ordem prprios. As msicas de Chico Buarque e Geraldo Vandr marcavam o ritmo dos protestos. Uma festa cvica que deixava no ar "um clima de carnaval misturado com copa do mundo". (KOTSCHO, p. 1984).

    Na campanha pelo impeachment de Collor, a descontrao tambm foi uma marca importante dos protestos. As primeiras manifestaes comearam em junho de 1992, quando os trabalhos da CPI mostravam certa paralisia. Foram realizados atos com a presena de partidos de oposio, entidades sin-dicais e movimentos sociais. Mas foi em agosto que as manifestaes come-aram a tomar corpo, principalmente a partir da participao dos estudantes. Se a marca das Diretas J foram as grandes festas-comcio, na campanha pelo impeachment do presidente destacavam-se os jovens e suas caras pintadas de verde e amarelo. Passeatas, seguidas de comcios, compunham as principais estratgias de confrontao. O estilo de Fernando Collor de Melo ofereceu os principais estmulos mobilizao, ditando os termos de sua encenao.

    Em 13 de agosto, em um discurso improvisado, o presidente pediu ao "povo brasileiro" que sasse s ruas, no domingo dia 16, vestido de verde e amarelo em defesa do seu mandato. No domingo, o pas se vestia de preto e encenava o enterro simblico do presidente. As carreatas foram comuns em vrias cidades e muitas vezes abriam o espao para as passeatas que lhe seguiam. Nos atos, tambm houve a presena de artistas e cantores animando a multido, em carros de som ou palanques montados em pontos estratgi-cos. Encenaes artstico-culturais compunham o cardpio do protesto. Assim como na campanha das Diretas, teve tambm Faf de Belm cantando o hino nacional. Para pressionar e acompanhar as votaes, houve "viglia cvica'', em frente ao Congresso Nacional, como nas Diretas, e inaugurao do "Painel da Indignao", em So Paulo, idealizado para colher manifestaes de protesto da populao e encaminh-las ao Congresso.

    Nos protestos de 2013, houve imagens semelhantes s duas outras cam-panhas: a massa nas ruas ocupando o centro do capitalismo no Brasil, em passeatas marcadas pela alegria e descontrao. Rostos jovens predominaram como no "Fora Collor", e bandeiras vermelhas se misturaram com o verde e amarelo de nossa bandeira.

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    Mas as semelhanas terminam aqui.

    Nas Jornadas de Junho, no houve comcio, carro de som e tampouco artistas para animar a plateia. No houve liderana partidria e nem apoio dos governadores ou prefeitos. Os espaos que demarcavam a temporalidade dos eventos tambm era outra. Nas Diretas J e no mpeachment, o poder das ruas visava influenciar diretamente o poder legislativo. Afinal, nos dois casos eram os deputados que poderiam atender as reivindicaes do povo na praa, aprovando a Emenda Dante de Oliveira, e o pedido de admissibilidade do im-peachment, respectivamente. Esse espao de canalizao dos conflitos marcou a dinmica interna dos ciclos de mobilizao. Nos dois casos, a presso das ruas visava influenciar a opinio e o voto dos deputados, ao mesmo tempo em que a definio e a preparao dos grandes comcios seguiam o timng previsto para a votao da Emenda no Congresso (TATAGIBA, 1998; RODRIGUES, 2003; RODRIGUES, 2003; KOTSCHO, 1984).

    Em junho, o timing do protesto seguia a deciso do MPL de "asfixiar o poder executivo" com manifestaes sucessivas em intervalos curtos. Segundo Judensnaider et al. (2013), a deciso foi resultado do aprendizado propiciado pelas lutas anteriores:

    A campanha de 20 li havia durado dois meses e [ ... ] ela no foi capaz de pressionar o poder pblico a revogar o aumento da tarifa. A avaliao do movimento foi a de que faltara mobilizao, os intervalos entre os atos haviam sido grandes demais e nem sempre as vias mais importantes tinham sido interditadas. [ ... ] A estratgia para 2013 era a de realizar atos grandes e de maior impacto, em vias mais centrais, e com curto intervalo de tempo entre eles. de maneira a asfixiar o poder pblico. fazendo jus ao lema do MPL: "Se a tarifa no baixar. a cidade vai parar!"_ UUDENSNAIDER et a L. 2013, p. 26 ).

    E a cidade efetivamente parou. Embora a ocupao de vias centrais fosse algo comum, em outras manifestaes no Brasil era a primeira vez que vias expressas e acessos essenciais a vrios pontos da cidade eram bloqueados, em horrio de pico, aumentando o caos no trnsito paulistano. E, ao final de cada manifestao, vinha a promessa, ou a ameaa, a depender do ouvinte: "Amanh vai ser maior" QUDENSNAIDER et al., 2013, p. 26), entoada pela multido nas ruas.

    Mas talvez a principal inovao nos protestos de junho, em relao aos ciclos anteriores, tenha sido a presena das estratgias violentas de confron-

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    tao. Desde os primeiros protestos, a esttica da violncia se destacou nas ruas e na cobertura da imprensa. Pneus e latas de lixo incendiados, fachadas de bancos destrudas, estaes de metr depredadas, carros de emissoras de televiso atacados, tentativa de invaso de sede dos governos e do legislativo, confronto aberto com a polcia. Nesse contexto, deu-se uma das mais belas imagens do protesto, a ocupao da fachada externa do Congresso N acionai, com a sombra dos manifestantes ampliando-se sobre um dos nossos principais smbolos do poder.

    Os jovens de preto, com suas mscaras, completam o espanto. Pela pri-meira vez, os brasileiros eram apresentados ttica black blocs, "novidade" dos protestos globais em Seatle. Tudo transmitido em tempo real, na internet, pelas mdias alternativas, como a Mdia Ninja, e depois nos noticirios tele-visivos que suspenderam sua programao para cobrir o conflito, utilizando metforas de guerra. Se o risco e a esttica da violncia so marcas da iden-tidade do MPL, e j se manifestaram em protestos anteriores (DOWBOR; SZWAKO, 2013), a ao desmedida e inconstitucional da polcia de So Pau-lo com o uso de bombas de concusso, gs lacrimogneo e tiros de bala de borracha ajudou a conflagrar ainda mais o clima nas ruas.

    O uso da violncia como estratgia um elemento que no se fizera pre-sente nos ciclos de protestos anteriores e que tambm no se notara, com essa extenso, nas aes diretas protagonizadas pelos movimentos do campo popular no perodo recente. A dimenso, o significado e o enquadramento do uso da violncia na ao coletiva so dados novos que emergem desse ciclo de protestos e que ainda requerem uma anlise mais cuidadosa. Ser interessante verificar se estamos diante de uma estratgia de confrontao que ser incor-porada por outros movimentos, ou se foi uma ao localizada motivada pela insensatez da polcia.

    4 Ciclos de protestos e democracia: algumas reflexes para iniciar o debate

    Afinal, o que podemos ento apreender da comparao entre os ciclos de protestos no que se refere relao entre poltica institucional e contestatria e os desafios da democracia brasileira nesse novo sculo?

    Como vimos, h interessantes continuidades das Jornadas de Junho em relao aos ciclos que a precederam, principalmente no que se refere

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    construo simblica dos protestos e s performances confrontacionais. Are-levncia do tema da corrupo, a evocao dos smbolos nacionais, a repetio de palavras de ordem como "O povo no bobo, fora Rede Globo!" presente desde as Diretas J, a marcha sobre vias imponantes das grandes capitais, a fes-ta e o humor como forma de luta poltica, o enterro simblico dos poderosos, entre outros. Continuidades que expressam a modularidade dos repertrios de confronto com a repetio de prticas presentes em outras mobilizaes pelo mundo.

    Mas nessas reflexes finais gostaria de me debruar sobre as rupturas e a inovao que a Jornada de Junho traz em relao aos ciclos anteriores. E, nesse sentido, uma das mudanas mais significativas diz respeito infraestrutura do protesto, em particular ao papel e lugar dos partidos polticos e dos movimen-tos sociais tradicionais na organizao e construo da mobilizao.

    Na Jornada de Junho, a lgica do "cada pessoa um cartaz" foi expresso eloquente da crise de representao das democracias contemporneas. Uma crise que tende a se agravar com a incapacidade das elites polticas em estabe-lecer novos e mais interativos canais de comunicao com a juventude. Mas foi tambm expresso do desejo dos jovens de traduzir e intervir no mundo. Nesse sentido, a crise de representao no se traduziu apenas em apatia ou negao da poltica, mas deu curso tambm a uma aposta na participao direta como forma de soluo dos problemas. Rodrigues, referindo-se Cam-panha das Diretas, dizia que "as pessoas saiam s ruas para ver a si prprias, para espantar-se com a prpria capacidade de indignao" (RODRIGUES, 2003). Em Junho, a essa realizao/contemplao do prprio poder, parecia se somar a imperiosa necessidade de marcar presena na cena pblica "nos seus prprios termos". Como vimos, as caractersticas do MPL reforavam esse

    . ' ~ convtte a autoexpressao.

    interessante verificar a incapacidade no apenas dos governos, mas tam-bm dos partidos polticos de construir pontes com essa nova gerao que foi s ruas em 2013. Breno Altman, em um artigo escrito no calor dos aconteci-mentos, referiu-se ao divrcio entre as esquerdas e as ruas, um divrcio que fora particularmente evidente no caso do PT (ALTMAN, 2013). A posio assumida pelo PT ao longo dos ltimos 30 anos teve significativo impacto na configurao interna dos ciclos. Em 1984, o PT era partido-movimento, e como tal integrou a campanha das Diretas J, com funes de organizao e

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    de atuao na base, a partir de sua extraordinria capacidade de mobilizao e recrutamento. No ano de 1992, o PT estava na condio de partido-na--oposio, e como tal integrou a frente suprapartidria pr-impeachment ainda com grande capacidade de mobilizao e recrutamento, principalmente de setores do funcionalismo pblico. Em 2013, o PT j estava h 11 anos frente da coalizo no plano federal, e em So Paulo era o comeo da gesto do petista Fernando Haddad, e a situao de partido-no-governo marcou o posicionamento distante e reticente do PT em relao aos protestos. Teixeira e Baiocchi (2013) lembram que tambm os movimentos sociais tradicionais tiveram dificuldade em encontrar o seu lugar junto aos coletivos presentes nas Jornadas de Junho. A histria comum forjada nas lutas contra a ditadura, os ganhos sociais inegveis obtidos nas gestes Lula e Dilma e o risco de que a direita capitalizasse em cima dos protestos levou parte desses movimentos sociais, principalmente os movimentos populares, a cerrar fileiras em defesa da presidenta e de seu programa e assumir uma postura no mnimo ambgua em relao aos protestos.

    No ciclo de protestos inaugurado nas lutas contra o estado ditatorial forjou-se essa aliana entre movimentos populares, sindicatos, partidos de es-querda e igreja catlica progressista que ofereceu o contraponto para os rumos da transio, forjando um sentido de democracia que teve profundos impac-tos na construo da institucionalidade democrtica nas dcadas de 1990 e 2000, assim como na conformao dos padres de relao entre movimentos sociais e estados ao longo de todo o perodo democrtico (TEIXEIRA, 2013).

    Os ciclos de protestos das Diretas J e do Fora Collor so expresses desse tipo particular de vnculo entre poltica institucional e contestatria. Parte sig-nificativa do setor de movimentos sociais apostou na democracia como proje-to poltico e na participao democrtica como forma de acesso e garantia de direitos. Como afirma Teixeira (2013), a democracia participativa conformou um imaginrio social que deu sentido s interaes entre movimentos sociais e estado e sedimentou um caminho prprio para as mudanas por dentro das regras do jogo. Foi essa aposta e a luta que ela engendrou que conferiu ao Brasil uma das mais inventivas e slidas arquiteturas participativas da Amrica Latina. O ponto alto desse processo de mudanas foi a eleio de Lula como presidente em 2002.

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    A impresso que o projeto de esquerda concebido em torno do PT perdeu o vigor e no aparece como uma alternativa para parte significativa dos jovens que tomaram as ruas do pas. As caractersticas dos protestos de junho permitem supor que entramos em uma nova fase de mudanas, na qual os movimentos sociais tradicionais e os partidos polticos de esquerda dispu-tam e/ou compartilham o protagonismo das lutas sociais com um leque mais diversificado de atores que emergem na cena pblica portando um conjunto variado de demandas e projetos polticos.

    O ciclo de protestos de junho interpelou os ganhos realizados por gera-es sucessivas de militantes que apostaram na chave das reformas por dentro do estado e atravs das regras do jogo democrtico. Os jovens que foram para a rua no fizeram parte desse acordo, e no se veem por ele constrangidos, como aponta de forma precisa Rebecca Abers:

    [ ... ] this invigorated younger generation of activists has few commitments to the institutional project that dominated the Brazilian Left of the 1990s. For several decades. a good part of institution building in this country has been done with the help of activists committed to an ideal of participatory democracy that they believed could be made real through the construction of new kinds of government institutions. lt is unclear whether a new generation will carry that project forward. Certainly, the organized groups involved in the June protests are much less optimistic than their predecessors about the possibility of building a more radical democracy from within the political system. (ABERS, 2013).

    Para alm da questo geracional, importante considerar tambm a com-plexidade do associativismo brasileiro forjado ao longo desses trinta anos. De um lado, anarquistas, harkers, grupos culturais da periferia, juventude negra, homossexuais, blogueiros ativistas, jovens feministas, comunidades autossus-tentveis- coletivos que encontraram grau variado de reconhecimento po-ltico ao longo dessa dcada de governo petista e que hoje emergem na cena pblica reivindicando o direito de ter sua voz ouvida e seus interesses conside-rados. Nessa mesma direo, destacam-se os impactos dos avanos nas polti-cas sociais, associados militncia submersa de grupos polticos e culturais da periferia, que colocaram no centro do debate as polticas redistributivas, com fortes conotaes de classe e raa. Ouso dizer que, no bojo desse contraditrio processo, os pobres tm encontrado brechas para emergir na cena pblica com rosto e voz prprios, embora muitas vezes o que seja ouvido sejam fragmentos de discurso. Sua principal expresso hoje a luta das comunidades perifricas

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    contra o extermnio da juventude negra, a violncia policial e por polticas permanentes de acesso e permanncia cidade. Alguns eventos tiveram fora expressiva na comunicao desses conflitos, como o alvoroo criado em torno dos "rolezinhos", a campanha "Cad Amarildo", o "churrasco da gente dife-renciada", a luta contra a revista vexatria nas prises, entre outros. Ao mesmo tempo, assistimos ao espraiamento das doutrinas religiosas neopentecostais, principalmente junto s classes C e D, que reforam discursos conservadores que esto contramo dos rduos avanos conquistados nas ltimas dcadas em torno da garantia e defesa dos direitos das minorias, como a agenda de reduo da maioridade penal e as mobilizaes contra o reconhecimento da liberdade sexual e reprodutiva.

    O associativismo brasileiro hoje muito mais diverso e o ator coletivo que saiu s ruas em junho uma mistura de tudo isso, com uma relao de aproximao e tenso com uma nova direita poltica. Como os movimentos sociais dos anos de 1970, eles querem mudana. Diferentemente desses atores, no parecem dispostos a investir muitas fichas no dilogo institucional. O estopim para a luta foi o aumento da passagem dos nibus, uma pauta radical na sua potncia para denunciar o distanciamento dos pobres ao acesso aos direitos mais elementares. O horizonte das lutas parece, contudo, ainda mais amplo. O jogo est sendo jogado e a atual incapacidade das elites polticas e dos partidos polticos de esquerda de dialogar com esse novo e complexo ator coletivo e buscar encaminhar suas demandas por dentro das instituies sugere que a radicalizao, a polarizao e o uso da violncia como estratgia podem ter vindo para ficar.

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    Recebido em 16.09.2014 Aprovado em 29.01.2015

    1984, 1992 and 2013. On protest cycles and democracy in Brasil

    Abstract This essay analyses the protest cycle against public transport fare increase. in june. 2013. The analytical strategy consists in comparing and contrasting the main characteristics of that cycle to other recent cycles in recent Brazilian history: the Diretas j, in 1984. and Fora Collor. in 1992. lt compares the three mobilization cycles in terms of: frames. infrastructure of the protests and confrontational performances. The essay attempts to respond two questions: which are innovations and continuities among cycles? And, what those differences and similarities tell us about the challenges of Brazilian democracy today?

    l(eywords: Protest cycle. Social movements. Democracy.

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