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    8 . VICMY,[v \OOf\ E f\ULMERE5

    A consolidacao do Estado frances pretendia uma reorganizacao total

    do pais: os fundamentos da sociedade deviam ser repensados de acor-

    do com os verdadeiros valores que outrora teriam feito a grandeza da

    patria, como 0 respeito ao trabalho, a patria e a familia. Valores brada-dos, segundo 0 regime de Vichy, pela Terceira Republica. Na obra de

    "soerguimento intelectual e moral" a que 0 Marechal convidava 0 povo

    frances, a revolucao nacional' atacava as raizes do mal- 0 principio de

    prazer -, e censurava sobretudo 'aquelas que acusava de negligenciar

    seu dever de mulher por frivolidade ou egoismo. Com isso se desenhava

    urn novo retrato de mulher, miie e esposa.' Colocado sob 0 signa da

    recuperacao e do sacrificio, exigia uma mudanca de comportamento.

    Enquanto no entreguerras 0 discurso misogino fazia das mulhe-

    res criancas caprichosas, Vichy pretendia que a Franca se povoasse de

    mulheres sensatas, serias e dispostas a todos os sacrificios. Dai urn

    novo ideal de beleza ferninina, percebido facilmente atraves dos veto-

    res privilegiados que sao os jornais e as cronicas de moda.

    Nos primeiros tempos, de acordo com a atmosfera ambiente,

    os autores buscam compreender as causas da desordem. Apontam

    incessantemente 0 relaxamento dos costumes e a indiferenca moral,

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    VICHY. / ,\OD /\ E /,\ULHERES209

    que se fazem acompanhar pe1a negligencia indurnentaria. "Nosso pais

    escorregava para todo tipo de decadencia", eis a constatacao gera1 que

    se aplica ao conjunto da sociedade. E censura-se a moda, responsa-vel por certas correntes abusivas. A costureira Maggy Rouff - cuja

    cliente1a elitista nao parti1ha tais pontos de vista - fustiga "0 terrivel

    desmazelo do pre-guerra", apontando como causas principais a "de-

    cadencia dos costumes" e "a liberacao da mu1her". Outros censores

    menos conhecidos 1he seguem os passos. Em virtu de de uma atitude

    julgada frivola, as mulheres teriam contribuido para a derrota. Dai a

    ideia de que a imagem de uma coquete sofisticada nao e compativel

    com 0 renascimento da nacao, e que e preciso mudar.

    Sensivel ao contexto, Lucien Francois escreve: "Atravessamos 0 pe-

    dodo mais profundamente revolucionario que a Franca ja conheceu.

    A derrota de nossas armas abriu os olhos para a fraqueza a que nosso

    pais foi reduzido por longos anos de urn regime desorientado e de cos-

    tumes faceis. Se quisermos sobreviver, e preciso mudar tudo, limpar

    tudo, expurgar tudo. A caracteristica dessa revolucao nao esta em ser

    apenas politica e social, mas tambem e sobretudo moral. E e aqui queo papel de voces, mu1heres, pode ser imenso.'? E1enao hesita em prefa-

    ciar uma revista feminina de luxo intitu1ada La Plus Belle Femme du M on-

    de' em que a maternidade e incensada atraves dos estereotipos mais

    batidos. Assim, 0 redator-chefe de Votre Beaute e "os grandes experts

    parisienses em estetica feminina" nao param de "co1aborar com sua

    voz para 0 programa da Revolucao naciona1". Pois tudo 0 que sobressai

    de uma mudanca de costumes pertence primordialmente ao dominio

    feminino. E portanto as maes e as esposas que cabe mostrar 0 caminhoe fazer urn serio exame de consciencia: "Como e possivel, numa Franca

    cortada em duas, diante de urn futuro que 0 prolongamento da guerra

    torna cada vez mais sombrio, que as francesas insistam em seguir uma

    moda que nao respeita nem a decencia nem a correcaor'"Assim, nos discursos petainistas, a mulher que pretende seguir

    a moda ve-se diante de urn di1ema julgado coritrario a sua nature-

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    de maneira vulgar, adotando uma moda duvidosa; ou entao, como

    verdadeiro rapaz frustrado, "macaqueia 0 homem em seus tiques,

    inclusive no cigarro",s corta os cabelos, usa vestidos curtos demais,

    sem talhe, priva-se de aderecos,

    o Comissariado Geral para a Familia recrimina as mulheres queprivilegiam a vaidade em detrimento de seu papel de mae, e mobiliza

    a opiniao publica atraves da imprensa feminina, que constitui no caso

    urn porta-voz significativo. Em novembro de 1941, nao menos de 825

    peri6dicos sao atingidos pela propaganda governamental, que nao ali-

    via em suas recomendacoes. Panfletos e cartazes do tipo "Amulher vai-

    dosa sem filhos nao tern lugar na cidade, e inutil" sao espalhados "nasrevistas de novidades, de calcados, nos setores da moda e chapelaria,

    junto as trabalhadoras e a clientela ferninina".?

    Eis em que termos a imprensa feminina coloca 0 problema das

    mulheres e da moda antes de destilar conselhos de circunstancia: "A

    Franca nao e mais esse idolo ataviado que exige dancas, mas umagrande ferida que reclama cuidados a to do instance."?

    A se acreditar nas revistas de moda, esses apelos lancados em

    prol de uma mudanca nao ficam totalmente sem eco. A naturalidadepouco a pouco bota a futilidade para correr. Observa-se 0 abandono

    progressivo de certas praticas prezadas pela juventude de entao, e que

    e repelida por alguns moralistas: "Nao veremos mais saias e shorts taocurtos que beiram a nudez, tampouco blusas agressivamente abertas

    e de tal modo cavadas que nao dissimulam mais nada. A moda e

    dessa vez bern francesa e nao busca imitar 0 genero do outro lado do

    Arlantico. Tanto melhor, pois e extremamente bela e redescobre sua

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    ULHERES VESTINDO

    CALt;:AS COMPRIDAS,DEZEMBRO DE 1943

    "Mais uma vez, auestso do usa da calcaomprida pelas mulhe-e objeto de polemica,s atraoes dessa moda

    que sepretende e umarma de emancipacdo

    feminina."

    (Foto LAPI/Roger-Viollet)

    VICI1Y. /,, \OD/ \ E / ,,\ULI1ERE5211

    forma de emancipacao feminina. Muitos a apontam como

    responsavel por uma possivel inclinacao para a igualdade dos

    sexos: a mulher tende a se masculinizar e copiar 0 homem em

    varies dominios e a esquecer seu papel "natural". Tolerado

    no selim de uma bicicleta ou nos trabalhos agricolas, esse

    traje e por outro lado fortemente desaconselhavel em locaispublicos. A fim de mostrar melhor aos interessados 0 que

    tal atitude tern de despropositado, conta-se com a opiniao

    esclarecida de uma atriz em voga e com a de uma costurei-

    ra cujos conselhos sao calculadamente disseminados: "A

    mulher com recursos para adquirir botas e casacos nao tern

    desculpa para adotar a calca comprida. Nao choca ninguem

    e essa falta de dignidade nao passa de prova de mau gosto."9

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    reiros nunca irao apresentar calcas compridas. Prezamos demais a

    elegancia da mulher francesa"," vai mais longe Marcelle Dormoy.

    Na pratica, como vimos, a calca comprida continua a se difundir.

    Acontece inclusive com frequencia de as esposas dos prisioneiros de

    guerra pegarem no armario do marido ausente calcas compridas para

    se vestirem, nao se preocupando em nada com os comentarios alheios.

    "Essas mulheres promovidas a chefes de familia, explica 0 historiador

    da moda Bruno du Roselle, obedecem conscientemente a urn reflexo desimplicidade e de capacidade de improviso, mas inconscientemente a

    urn reflexo de ernancipacao. Uma vez que as circunstancias lhes impoern

    urn papel de responsabilidade, elas exprimem, ao adotarem a calca com-

    prida, 0 novo papel de chefe de familia que faz dela igual do homern."!'

    Por conseguinte, Vichy nao abandona a luta contra esse plagio do

    guarda-roupa masculino e a moda nao escapa a seu vigilante controle.

    Progressivamente vao surgindo novas normas, e a mulher se afasta da

    "masculinizacao dos costumes femininos", cobicada antes da guerra

    pela adocao dos cabelos curtos ou do cigarro. Escapando a esse "peri-

    go" por uma atitude julgada mais saudavel, ela "redescobre, na socie-

    dade ideal que0

    Marechal quer construir, seu lugar no lar, seu papelde mae. Seu corpo se adapta a essa funcao natural redescoberta ... Os

    seios, os quadris se 'ajustarn', a cintura se afina."12E a moda continua.

    "E de fato uma alegria para mim nao vestir mais rapazes frus-trados. Atualmente a vida intima ressuscita ... 0 retorno ao lar nao

    e mais apenas uma exigencia politica, declara a costureira Germaine

    Lecomte, e uma realidade" que se traduz no vestuario. 0 tempo das ex-centricidades esta oficialmente encerrado, chegou a hora de se voltar

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    VICHY, J 'iOD /\ E J 'iULHERE5213

    importante nao desvia-la dessa tarefa e, particularmente, proscrever as

    historias irrealistas que vemos nos filmes ou lemos em publicacoes de

    moda equivocadas que estimulam na juventude 0 gosto pelas toaletes

    e por seus corpos. As mocas sao convidadas a refletir sobre seu futuro

    papel de mae ease preparar para a maternidade, evitando tudo que as

    desvie disso. Uma campanha oficial de propaganda cujo tema principal

    e a natalidade e lancada em maio de 1941. Esforca-se para lutar, atraves

    de exemplos, contra os argumentos apresentados no sentido de se evi-

    tar filhos, que eram, 0 trabalho das mulheres, urn desejo de liberdade,

    bern como 0 temor das consequencias ffsicas da gravidez. Finalmente, e

    isso e inedito, as publicacoes femininas ampliam 0 espayo concedido amoda destinada a s futuras mamaes.

    A propaganda insiste na influencia perniciosa do cinema ame-

    ricano, acusado de ter extraviado toda uma parcela da juventude fe-

    minina. Antes da guerra, constata-se, 0 comportamento das estrelas

    americanas tinha influenciado no penteado ou na maquiagem das

    mulheres francesas, desviando-as de sua missao principal. Atual-

    mente, grayas ao advento da revolucao nacional, esboca-se uma

    reacao. "Perrnanecam francesas! Nada de maquiagens exageradas,

    cabelos platinados. Sejam simples", a palavra de ordem esta lancada,

    Algumas revistas vao arras. Por exemplo: "Andree B. lembrava nao sei

    que rascunho malfeito que pretendia evocar uma estrela americana.

    Parecia tao segura de seu efeito, tao convencida de sua semelhanca

    que tive pena dela e decidi the devolver sua verdadeira personalida-

    de, recriar 0 que e1anunca deixou de ser: nao a estre1a multicopiada,

    mas a simples e graciosa rapariga de Franca."!'

    De todos os lados critica-se a mulher "objeto de arte" que 0 cos-

    tureiro, 0 chape1eiro, 0 maquiador se divertiam ate entao em criar.

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    cinema americano. Essa moda violentamente arbitraria precisa ser

    complementada para brilhar mais, dai os vestidos e joias exagerada-

    mente vistosos. Quanto ao outro cliche, 0 maquiador Fernand Aubry

    despojou essa mulher de seu aspecro sofisticado demais. Ela aparece

    com suas caracteristicas pr6prias, 0 desenho dos labios e natural e as

    faces discretamente maquiadas. Atraves desses dois exemplos, trans-

    parece a renovacao da Franca. "Urn novo estilo nasceu em mulheres

    brejeiras, levemente maquiadas e de urn born gosto natural. Verdadei-ras mulheres, enfim!" exclama Marcel Rochas. A maquiagem respeita

    os desenhos das sobrancelhas. E minuciosa mas tao leve, tao transpa-rente "que as multiplas expressoes da vida da alma se inscrevem no

    semblante". "Cornecavarnos a nos enfastiar desses rostos parecidos

    demais, dessas falsas Garbos, dessas Marlenes com defeito. Elas ja ti-

    veram sua epoca.''" Nem manequim, nem estatua, a mulher da Franca

    voltou a ser autentica, encontrando-se inclusive no seu apogeu.

    Vichy traca 0 retrato da jovem francesa ideal. E mostrada despre-zando as influencias externas: assim, a toalete e as roupas caras nao

    sao mais seu unico objetivo. "Nossas filhas devem ser como belos

    frutos saudaveis e apetitosos: nao permitamos que ali se introduza

    o menor verme, sob risco de deterioracao.t'" Abaixo as publicacoes

    de moda perigosamente sedutoras e com suas paginas em cores, sua

    apresentacao moderna em que a fotografia e soberana," que tentama mulher e the inspiram 0 gosto pelo luxo. Com bastante frequencia,

    a leitora, impregnada dos "conselhos" de sua revista, escorrega na

    ladeira das tenracoes. As notas referentes as estrelas de cinema, a vida

    cotidiana dos artistas, 0 relato do inicio de suas carreiras, a exibicao

    de sua riqueza tudo isso ilude 0 juizo Inumeras sao as mocas que a

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    "Vemos atualmente nessa fase da revolucao nacional despontar

    urn novo tipo no horizonte feminino. Basta olhar a saida dos colegiostoda uma juventude divertindo-se nas ruas e avenidas para se dar

    conta da situacao, e a situacao e totalmente diferente de como era ha

    dez anos... As meias estao suprimidas em prol das soquetes, calcados

    resistentes, urn vestido simples, proporcionando ao corpo toda a liber-

    dade de que precisa. Cabelos soltos, rosto franco, respirando saude e

    dando a nitida impressao de uma vontade jovial."!" Deixemos ao autorda cronica a inteira responsabilidade por seu entusiasmo lembrando

    que "soquetes" e "calcados resistentes" em geral eram resultado de

    uma obrigacao, e nao uma livre escolha por parte dos interessados!

    Na cidade como no campo, 0 traje das mulheres e das maes de fami-

    lia reflete 0 abalo das condicoes de vida. A simplicidade do vestuario se

    torna aos olhos dos cronistas a traducao da reconstrucao do pais.

    Pois sao numerosas as que assumem as novas responsabilidades.

    Alern de chefe de familia, substituem 0 marido prisioneiro a frentedo comercio. Concretamente, como vimos com 0 uso da calca com-

    prida, suas roupas se harmonizam com suas funcoes: tornaram-se

    mais s6brias e praticas. 0 armario dessa nova Eva encarna 0 oposto

    do 6cio e da vaidade. No campo, a silhueta esportiva simbolizada

    pela jovem fazendeira e mostrada como exemplo de traje - botas,

    saia curta, cabelos presos num lenco vistoso, busto modelado num

    sueter - que e simbolo de uma vida laboriosa, diferente e bern ocu-

    pada. Na cidade, 0 tailleur estrito e 0 companheiro indispensavel da-

    quelas que se dividem entre os filhos, as filas e 0 trabalho. "Seu papel

    de 'devotamento' comb ina perfeitamente com esse traje discreto que

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    que se recusa energicamente a ser "a revista das mulheres frivolas", e

    pretende ajudar as "verdadeiras frances as" a nao se deixar arras tar. Se

    e normal que estejam serias e tristes, nao devem, enfatiza, renunciar abeleza autentica, a que consiste em se manter em seu peso e forma.

    Os cuidados esteticos tern sua importancia, com a condicao de

    serem razoaveis. A doutrina de Votre Beaute equivale a uma doutrina

    de vida: a beleza " e moral no sentido mais elevado do termo, poisten de a melhorar a humanidade pela perfeicao da saude ... Todo ser

    harmoniosamente equilibrado esta mais apto a enfrentar os ataques

    agressivos de uma epoca cruel.i'" E 0 redator-chefe explica que a vida

    atual impoe as mulheres mil razoes para se aguerrirem, que podem ser

    proveitosas para sua saude se forem bern compreendidas.

    "Ser bela tambern e resistir: e se preparar para sofrer 0 minimo de

    privacoes, para suportar as filas diante das lojas de alimentacao, parafazer os services dornesticos, para passar sem dificuldade urn inverno

    rigoroso nos apartamentos insuficientemente aquecidos.?" Esta bele-

    za nao se compra, e obtida com uma luta incessante.Em outros termos, existe uma vaidade permitida que consiste em

    se valorizar sem exagera de artificio. Que as adolescentes se preocu-

    pem com seus chapeus, suas roupas e "todos os infimos detalhes que

    fazem 0 charme feminino, e, mesmo permanecendo simples e distintas,

    tratem de se valorizar; em suma, que atraiam os olhares e as simpatias

    masculinas. Esta e uma lei da natureza.v" Os moralistas, mesmo osmais bem-intencionados, nao escapam da contradicao.

    E 0 fim das extravagancias e do genera exibicionista. Os vestidos denoite ficam sem usa para a maioria das mulheres. Asjoias so reluzem no

    fundo dos cofres. Diante da gravidade dos acontecimentos para a maio-

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    V IC tly' 1 "\0 0 /\ E I"\UL tlERE5217

    ideia de uma decadencia fisica da sociedade francesa, quer desenvolver

    uma verdadeira politica do esporte. A maioria das revistas femininas

    esta de acordo num ponto. Uma das causas da degeneracao francesa

    vern do esquecimento e desprezo do corpo. A"revolucao" nacional" deve

    ser concluida pelo "renascimento do corpo dos franceses", 0 da cultura

    fisica e nao da afetacao estetica, 0 esforco deve ser levado adiante.

    De julho de 1940 a abril de 1942, Jean Borotra, alto comissario

    para os esportes, nao para de repetir que 0 esporte e faror indispensavelpara uma vida harmoniosa: "Eis 0 meu desejo: formar, gra

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    uma beleza maneirista e rococo", pois alia ao mesmo tempo saude e na-

    turalidade, sem que the falte gra

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    Os desenhos estampados seguem de perto a atualidade em que 0 bas-

    tao, 0 machado e 0 quepe dao lugar a adaptacoes fantasiosas. Do mesmo

    modo,0

    "retorno a terra", exaltando as virtudes de uma nacao campone-sa e abundantemente preconizado nos discursos do Marechal, faz uma

    grande entrada em 1941-43 com 0 estilo "Nouvelle France" apresentado

    no Palais de Tokio. Resulta de uma colaboracao entre as modelistas pa-

    risienses que forneceram os desenhos e a tecnica lionesa que os execu-

    tou. Honra, patria e amor pelo pais formam uma trilogia inseparavel,

    Ja Bianchini-Ferier estampa, num fundo azul-marinho, a cabana

    rustica e seu jardinzinho, que traduzem 0 refugio em valores rurais

    tradicionais. Os tecidos regurgitam de flores, como nos jardins ou nos

    prados, e as galinhas e aves ali esvoacam, como no campo. Observa-

    se tambem em Colcombet, urn dos sucessos da estacao, urn "Viva a

    Franca" datilografado em tres cores sobre urn ligeiro veu suave. Assim

    tambem,o tecido dactylo. Trata-se de urn crepe-da-china tricolor onde

    estao escritas a maquina frases do genero: "Viva a Franca", "Amor sa-

    grado pela patria". Schiaparelli utiliza urn crepe estampado de Jean

    Martin, onde e estampada em filigrana La Marseillese,de Rude. *

    Urn tema e abundantemente explorado e encontrado nas echarpes e

    lencos: as gl6rias francesas. Todas as personalidades ilustres que a Fran-

    ca viu nascer estao ali presentes com suas proezas. Joana d'Arc, Jean

    Bart, Duguay-Trouin, Bayard, Luis XN, Duguesclin, Henrique IV,Fran-

    cisco I aparecem com seus bras6es e divisas, "unindo esses pensamentos

    de gloria a nossas vidas cotidianas", esclarece uma cronica de moda."

    Para os figurinos, rudo 0 que vern do campo e visto como saudavel e

    muito apreciado. "E de born augurio que a costura volte a se ocupar coma moda rural tao injustamente abandonada hi tantos anos", le-sena Mode

    d Jo r 27 que consagra urn numero inteiro a vida no campo Sob titulo

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    o primeiro e facil de fazer: basta um grande chapeu de palha cujas

    abas reviramos para tras, a fim de dar a nota camponesa. Acompanhaum sueter genero lobo-do-mar usado sobre uma saia de raiom. Nos

    pes, alpercatas.

    Num quadrado de algodao de 20cm, nada mais facil que confec-

    cionar um chapeu imitando toucados antigos. Urn vestido de creto-

    ne florido com uma faixa de tecido colorido e tamancos completam

    o segundo conjunto.

    o terceiro traje se dirige de preferencia aquelas que, de ferias, aju-dam no trabalho com 0 feno. Um grande lenco camp ones na cabeca,

    uma blusa bern larga sobre uma saia curta em raiorn, alpercatas, e ei-

    las protegidas contra 0 sol.

    Um vestido-tablier em algodao de Vichy forma 0 essencial do ulti-

    mo modelo sugerido as leitoras. Aconselha-se ser usado com taman-

    cos ou sandalias de trice. "Com uma pequena toalha basca quadricu-

    lada em azul e amarelo, voce fara esse encantador vestido campones,

    o corselete alto em algodao marrom dara 0 efeito cintura-de-vespa.t'"

    Os trajes regionais das provincias francesas as vezes inspiram rou-pas de veraneio: dos vinhateiros da Borgonha, pegam os chapeus de

    palha; dos alsacianos, os aventais plissados.

    Os costureiros de renome nao tern a menor dificuldade de se

    adaptar ao outro publico, 0 que se veste sob medida. Na primavera de

    1941, tudo 0 que apresentarn tem um encanto buc6lico, e os nomes

    dos figurinos, essencialmente dos vestidos de jardim, sao evocadores.

    C t d t id Z fi l d d Vi h l d

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    VICMY, J '\OD fI E J '\ULMERES221

    podem costurar num casaco ou sueter, Urn lenco de linho branco,

    bordado com urn coracao e uma cabana, e a ultima palavra da moda1941. Quanto as joias, nunca se inspiraram tanto na atualidade: ele-

    gantes camponesas com regadores de esmeralda sao urn ornamento

    apreciado, bastante caro aos grandes joalheiros parisienses. Ja urn cer-

    to broche, barato, se pretende urn simbolo duplo, 0 do pais vencido e

    o do prisioneiro retido longe do lar. Alem disso, toma a forma de urn

    mapa da Franca no qual esta desenhado urn coracao onde se pode ler:

    "Tudo para ele e para ela." "Jeanne Toussaint cria para Cartier a j6ia-

    simbolo da Ocupacao, 0 passa ro n a gaio/a,preso na lapela do tailleur das

    patriotas, e cuja gaiola se abrira para a Libertacao.t'"

    Em que medida essa moda, encorajada pelo governo, se impos

    junto ao publico? A homenagem a uma beleza que se pretendia 0

    oposto do artificialismo foi realmente seguida de efeitos? Inumeras

    perguntas para as quais nao e facil encontrar uma resposta segura,

    tanto se misturam elementos contradit6rios.

    Assim, de 1940 a 1944, a yoga dos tecidos campestres e das saias

    curtas camponesas e uma realidade. No verao, as mulheres adotam

    esse estilo por raz6es utilirarias evidentes: a bicideta lhes dita essetraje pratico, a falta de tecidos as obriga tanto a encurtar as bainhas

    como a cortar urn vestido numa colcha de cama ou num par de corti-

    nas floridas etc.

    Para a maio ria dos franceses, nesses tempos de guerra a moda nao

    e sinonimo de palavra de ordem, associando-se mais a realidade da

    escassez. Comprar dois lencos de pesco

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    Na costura sob medida, alguns grandes costureiros tambem ce-

    deram a moda da vida campestre e deram prioridade aos tecidos flori-

    dos. Quando tentam, como Lanvin, Schiaparelli ou Gres, casar as rres

    cores nacionais, sera 0 patriotismo, 0 desejo de se manifestar frances

    ou 0 retorno a terra pretendido por Vichy que prevalece? A se acreditarnum topico pincado do jornal de resistencia nao-gaullista France de 3

    de maio de 1941, diario publicado em Londres, uma certa provocacao

    nao estaria ausente de tal atitude. Alguns adotaram conscientementeessa moda tricolor, a ponto de chocar os alernaes indignados.

    Provocador tambem e 0 comportamento de alguns jovens que osten-tam seu fastio no auge da revolucao nacional. No verao de 1941, uma

    parcela da juventude citadina manifesta, a sua maneira, sua revoltadiante do absurdo da guerra e do ranee de respeitabilidade que se

    abate sobre 0 pais. Aparecem entao os swings e zazous" - "swing" ou

    "zazou", duas palavras de origem norte-americana ligadas ao ritmo do

    jazz que teriam atravessado 0 Atlantico, sendo encontradas estreita-

    mente associadas na cancao de] ohnny Hess, [e suis swing, que data de

    1939 e toma conta da Franca, De todo modo, os zazous sao reconhe-

    cidos em primeiro lugar e sobretudo por sua aparencia indumentaria

    excentrica.F No masculino, isso da 0 seguinte retrato: "Cabelo esco-

    vinha alto, cabeca baixa, olhar vago, bigodinho fino, labios transbor-

    dantes e urnidos, pernas compridas, passadas largas, peito estufado.

    Isso, quanto ao fisico. Chapen mole, marrom e minuscule, colarinho

    da camisa listrado ... Gravata vistosa com laco ultra-apertado ... Casaco

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    e porque fazem dela um sirnbolo de

    cumplicidade para desafiar 0 presente,

    uma especie de recrutamento. Menos

    disseminada, a zazou fernea existe e nao

    fica arras em materia de excentricidade,

    como mostra essa descricao pincada em

    LJllustration: "Elas escondem sob peles de

    animal um pulover de gola rule e uma

    saia plissada bem curta. Seus ombros exa-

    geradamenre aquadradados contrastam

    com os dos homens, que os tern caidos,

    Cabelos compridos descem em cachos

    ate 0 pesco

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    224 1 '\001\ & G UERRI\

    Os zazous nao seguem nenhum regulamento em vigor (cartao de

    vestuario ou de calcados), experimentando inclusive urn prazer per-

    verso em transgredi-los, dispostos a recorrer ao mercado paralelo para

    complementar sua pan6plia indumentaria, Exibem-se resolutamente

    contra essa concepcao dvica do vestuario que poupa tecido barga-

    nhando cada centirnetro.

    o cabelo e igualmente urn dos elementos essenciais de sua apa-

    rencia: "0 zazou tern os cabelos frisados e ericados para a frente,compridos no pesco

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    VICI1Y, /,\OD /\ E /,\UL I1ERES225

    Mas nao sao so suas roupas que sao condenadas. As distracoes

    dos zazous nao ficam arras. 0 fato de dancarern ao som da musica de

    jazz causa escandalo, pois isso denota urn estado de espirito que 0

    novo regime nao cessa de combater: americanismo, negligencia, ocio.

    Finalmente, 0 jovem zazou tern recursos, uma vez que aparentemente

    se veste sem olhar para as despesas e frequenta cafes e outros dancings.

    Por isso mesmo, opoe-se a obra de renovacao empreendida pelo gover-

    no, fundada no trabalho de todos. Eis por que a imprensa colabora-

    cionista 0 apresenta como um representante dos gaullistas, um judeu

    e um adepto do mercado negro. Alvo privilegiado da propaganda go-

    vernamental, as vezes 0 zazou e fisicamente atacado. Alguns partidos

    colaboracionistas, partidarios dos alemaes, organizam perseguicoes em

    seu encalco e, quando por acaso agarram um deles, nao hesitam em lhe

    cortar os cabelos como licao, e ate em machuca-los.Fenomeno marginal - nao pertence a uma classe social determina-

    da, vinculando-se essencialmente a uma faixa espedfica da populacao

    entre 17-18 anos -, 0 zazou traduz umafome deviver com e contra tudo,

    e recorre ao improviso e a todos os recursos da imaginacao para se vestir.

    Rebeliao contra a ordem estabelecida, e tarnbem uma piscada de olho

    da juventude para a sociedade, com a recusa de ser como todo mundo

    e 0 desejo de ostenta-lo. Como observa Farid Chenoune, a moda zazou

    operou uma pequena revolucao na moda masculina sob a influencia da-

    queles que ja sao chamados de "os jovens" para alem da compartimenta-

    lizacao das classes. "As coordenadas classicas da elegancia, que ate entao

    uniformizavam e hierarquizavam as aparencias, serao de agora em diante

    ameacadas por referencias proprias da juventude." Existe uma moda

    jovem? perguma a proposito 0 periodico Adam em setembro de 1945. 39

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    226 /,,\OD/\& GUERR/\

    CABELO ESCOVINHA,

    11~IW\ilijllj~(SE POSSfVEL ONDULADO

    I I ; ; OMBROS AMPLOS,

    r ! PO REM CAfDOS

    l O PV ALFINETE DE

    /1 GRAVATA

    PALETOCOMPRIDO

    RETO

    No 14 de julho, dia da festa nacional, dizem as testemunhas

    que as tres cores proibidas floresceram espontaneamente. "Al-

    gumas mulheres aparecem enroladas em bandeiras. Louisette

    em seu vestido quadriculado em branco e vermelho e com seu

    lenco azul partiu de Belleville como uma Republica ... Todas

    querem conhecer as invencoes das outras. Que esforcos ridicu-

    los. Os sapatos azuis, as meias brancas, 0 vestido vermelho

    de uma. 0 vestido vermelho, a bolsa azul, as luvas brancas da

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    V ICHY, / ,\OD /\ E MULHERE 5227

    Desejo inconsciente de provocar 0 ocupante, e isso que leva al-

    gumas adolescentes ou jovens, no dia seguinte a derrota, a adotar 0escoces; agir assim e para algumas uma maneira alusiva de exibir SUaS

    preferencias pela Inglaterra, a evocacao direta de urn pais em guerra

    contra os alernaes. Michele Bood tern vaga consciencia disso ao pegar

    emprestada do irmao sua camisa caqui de escoteiro para usa-la sobre

    urn ~ilt.Jo Cardin em 1940 usa urn gorro escoces,

    Quanto aos que se engajam mais a fundo na Resistencia, sua preocupa-

    cao primordial e sobretudo nao se fazer no tar. Uma atitude excentrica

    demais pode lhes causar aborrecimentos, ate mesmo ser fatal. A sabe-

    doria consiste emse fundir com a massa, e a roupa nao deve comportarnenhum sinal distintivo capaz de destacar quem a veste. A roupa, 0 pen-

    teado e a maquiagem seguem as recomendacoes das revistas em yoga.

    As vezes, a seducao feminina se torna uma arma. Chegando na es-

    tacao de Lyon-Perrache, Monique A., uma bela rnoca, encarregada do

    transporte de jornais da Resistencia, percebe que para sair deve atraves-

    sar uma barreira policial. Ora, sua mala esta cheia de textos comprome-

    tedores. Como fazer a nao ser aceitar as propostas de urn oficial alemao

    que carrega a mencionada mala em troca de urn encontro ao qual a bela,

    vale ressaltar, nunca ira? Encontrar-se com altos responsaveis alemaes

    faz parte da encenacao imaginada por Lucie Aubrac para salvar seu

    marido, Raymond, entao na cadeia;0

    desafio e tamanho que a jovemmulher imagina urn roteiro no qual seu figurino desempenha urn papel:

    l h d d d d b f l d

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    228 M .OD I \& GU E R R I \

    mas uma camuflagem indispensavel. Quanto aos homens, deixam 0

    bigode crescer, usam oculos.

    Uma jovem agente de ligayao lionesa, submetida como todo mun-

    do ao sistema do cartao de vestuario, lembra que, como nao conseguia

    renovar 0 guarda-roupa, trocava de casaco com sua camarada, 0 que a

    tornava, pensava, menos facilmente vulneravel.f

    Nesses tempos de escassez, qualquer sobra de tecido ou similar era

    uma dadiva, Quando Londres despejava armas ou municoes para gru-

    pos de resistencia, recuperar 0 pano do para-quedas era uma tentacao

    muito forte para aqueles que recebiam as cargas. Apesar do perigo que

    is so representava, muitas mulheres nao hesitavam em pegar urn peda-

    co para nele cortar uma blusa. As vesperas do desernbarque, isso chega

    inclusive a se tornar uma moda bastante propagada nos drculos pr6-

    ximos da Resistencia. A vaidade prevalecia sobre a prudencia. Quanto

    as meias de nailon que os resistentes traziam de Londres, represen-

    tavam urn risco para aquelas que as usavam (do mesmo modo que

    os cigarros ingleses para os furnantes), pois assinalavam de maneiraevidente lacos com os ingleses ou os gaullistas.

    o estilo que Vichy tentou impor durante esses anos negros constituiumais urn parentese na hist6ria da moda no seculo XX que uma verda-

    deira revolucao. Como os cosmeticos eram rarose as restricoes ditavam

    a lei, as mulheres tiveram que abandonar a artificialidade simbolizada

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    V ICHY. / ,\OD I\ E /,\ULHERES229

    Decerto 0 classico pretinho acompanhado de acessorios ou 0 tail-

    eur fazem parte da panoplia indumentaria feminina, assim como osrajes esporte. Mas aproxima-se a epoca em que a saia curta camponesa

    e as solas compensadas darao lugar a urn vestido mais longo e a saltos-

    agulha, simbolo de uma feminilidade redescoberta que Vichy contri-

    buiu para valorizar. Com a Libertacao, 0 ex-manequim e fotografo Lee

    Miller se mostra subjugado pelas mulheres com quem encontra: "Por

    oda a parte nas ruas, veern-se mocas soberbas, de bicicleta ou empo-

    eiradas em tanques. Sua silhueta me pareceu estranha e fascinante, a

    mim que vinha da Inglaterra utilitaria e austera. Saias largas e bufan-

    es, cinturas apertadas. A aparencia da francesa mudou.'* Com isso, a

    excentricidade ou a provocacao manifestadas por alguns e algumas e

    ao decantadas pelos chantres do regime deviam fazer escola. Mesmo

    na moda, os anos negros foram mais uma guinada que uma ruptura.