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2 A finitude humana - humanitasvivens.com.br · relações com o mundo, com os outros e com a própria finitude. Nesse contexto, a questão da morte não é o ponto central do pensamento

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2 A finitude humana...

A FINITUDE HUMANA NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

(1889-1976)

4 A finitude humana...

IMAGEM DA CAPA: http://www.filosofia.com.br/figuras/resenha_classic/17.jpg

Arnin Rommel Pinheiro Braga José Francisco de Assis Dias

A FINITUDE HUMANA NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

(1889-1976)

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Toledo – PR

2016

6 A finitude humana...

Copyright 2016 by

Arnin Rommel Pinheiro Braga José Francisco de Assis Dias

EDITORA: Daniela Valentini

CONSELHO EDITORIAL: Prof. Ademir Menin - UNIOESTE

Prof. José Beluci Caporalini - UEM Prof. Leomar Antonio Montagna – PUCPR

Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Editora Vivens Ltda Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

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Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Braga, Arnin Rommel Pinheiro.

B813f A finitude humana no pensamento de

Martin Heidegger (1889-1976). / Arnin Rommel

Pinheiro Braga, José Francisco de Assis

Dias. - 1. ed. ebook - Toledo,PR : Vivens,

2016.

142 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN 978-85-92670-17-7

1. Filosofia alemã. 2. Ser e Tempo. 3.

Ontologia. 4. Heidegger, Martin (1889-1976).

I. Título.

CDD 22.ed.193

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO......................................................

INTRODUÇÃO............................................................ I = HEIDEGGER E O SÉCULO XX............................. 1.1 Contextualização histórica

do pensamento de Heidegger.......................... 1.2 Influências teóricas recebidas:

construindo um pensamento............................ 1.3 Críticas de Heidegger à ontologia clássica:

desconstruindo a tradição metafísica................ II = A ONTOLOGIA DE HEIDEGGER

EM “SER E TEMPO”....................................... 2.1 A questão do Ser................................................... 2.2 A analítica existencial do “SER-AÍ”........................ 2.3 O mundo e os outros como

constitutivos ontológicos do DASEIN............... 2.4 O cuidado como componente ontológico

do “SER-AÍ”......................................................

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8 A finitude humana...

III = O HOMEM ENTENDIDO COMO “SER-PARA-A-MORTE”.....................

3.1 O impessoal e a inautenticidade........................... 3.2 A questão da finitude em Heidegger:

o existencial “SER-PARA-A-MORTE”............... 3.3 A angústia como constitutivo ontológico

para a existência autêntica............................... IV = A MORTE COMO PRESSUPOSTO

PARA A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA E IMPLICAÇÕES ÉTICAS...............................

4.1 A existência autêntica do “SER-AÍ”

e sua liberdade.................................................. 4.2 Possíveis implicações éticas a partir

da analítica existencial de Heidegger................

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................ REFERÊNCIAS...........................................................

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APRESENTAÇÃO A nossa pesquisa se propõe a discutir o

problema da morte em Martin Heidegger. Podemos dizer que é no contexto das discussões em torno da finitude humana que nossa pesquisa tem o seu fundamento. Dessa maneira, o problema que pretendemos investigar pode ser formulado da seguinte maneira: a reflexão sobre a morte poderia servir como fundamento para uma existência autêntica?

Vimos, no decorrer desse estudo, que as ideias de Heidegger em Ser e Tempo sobre esse assunto nos possibilitam uma resposta positiva para essa questão. Assim, a efetivação desse objetivo principal foi orientada por objetivos menores, tais como: a) identificar os conceitos utilizados pelo autor para explicitar os principais constitutivos ontológicos da existência (“ser-aí”, “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”); b) apresentar e compreender a noção heideggeriana de “ser-para-a-morte”; c) refletir como essa condição de finitude, trazida pela perspectiva de “ser-para-o-fim”, desvencilha o homem da inautenticidade, apresentando-lhe o caminho para a existência autêntica e, d) investigar possíveis implicações éticas a partir da análise da condição humana proposta por Heidegger.

A partir disso, a nossa pesquisa nos fez perceber que o ser humano se caracteriza como “Ser-aí” devido ao fato de sempre estar-lançado a uma situação, a várias possibilidades de existência, revelando-se, também, como um “ser-no-mundo” e

10 A finitude humana...

como “ser-com-os-outros”. Isso lhe coloca em íntima relação com as coisas e com as outras pessoas. Entretanto, dentre as várias possibilidades disponíveis para o “ser-aí”, existe uma da qual ele não pode se esquivar: a realidade da morte.

Desse modo, reconhecendo-se como um ser finito e confrontando-se com essa situação limite por meio da angústia, o homem ingressa na existência autêntica e busca existir de maneira intensa; dando novo vigor aos projetos e as possibilidades que surgem no seu itinerário existencial. Nesse sentido, podemos sustentar que não seria nenhum absurdo extrair do pensamento de Heidegger algumas implicações éticas.

Sendo assim, as reflexões desse pensador sobre a morte como constitutivo da existência humana são relevantes porque possibilitam ao homem encará-la como uma realidade que deve ser cuidada e que é parte integrante da estrutura ontológica do seu ser.

Boa leitura!

Referências da segunda parte 11

“Era a primeira vez que eu via morrer alguém.

Conhecia a morte de outiva; quando muito, tinha-a

visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que

acompanhei ao cemitério [...]. Mas esse duelo do ser

e do não ser, a morte em ação, dolorida, contraída,

convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte

de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a

pude encarar”.

(Machado de Assis, 1978, p. 75)

“Com ‘cheguei a um acordo com a vida’ quero dizer:

a realidade da morte tornou-se uma parte definida de

minha vida; minha vida, por assim dizer, foi

prolongada pela morte, pelo fato de encarar a morte

de frente e aceitá-la, por entender a destruição como

parte da vida e não mais desperdiçar minhas energias

com o medo da morte e a recusa de aceitar sua

inevitabilidade. Parece paradoxal: excluindo a morte

de nossa vida, não podemos viver uma vida plena, e

admitindo a morte em nossa vida, nós a ampliamos e

enriquecemos. Essa foi minha primeira confrontação

com a morte; antes eu nunca soubera o que pensar

dela.”

(Etty Hillesum, 1981, p. 158)

12 A finitude humana...

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como pretensão

fundamental desenvolver uma reflexão sistemática sobre a finitude em Heidegger. Ao longo da história do pensamento, o problema da finitude humana sempre se mostrou como um assunto intrigante e, ao mesmo tempo, desconcertante para o homem. Encarada como o fim da existência, a reflexão sobre a morte sempre causou diferentes reações nos indivíduos. Para alguns, ela é a passagem para o além, para uma realidade extraterrena. Outros já a encaram como um salto para o nada. Porém, há um ponto em comum entre os que se ocupam dessa problemática: tomar consciência da questão da morte leva o homem a pensar sobre o sentido de sua existência.

Portanto, é no contexto das discussões em torno da finitude humana que nossa pesquisa tem o seu fundamento. Dessa maneira, o problema que visamos investigar pode ser caracterizado da seguinte maneira: poderia a reflexão sobre a morte servir como fundamento para uma existência autêntica? Para elucidarmos essa questão, este trabalho terá como apoio o pensamento de Martin Heidegger, uma vez que a análise sobre a condição humana ocupa uma parcela significativa da sua filosofia. Desse modo, a nossa investigação será orientada marcadamente pela sua principal obra, Ser e Tempo, na qual o filósofo, preocupado com a questão do sentido do ser, realiza uma análise existencial do homem, o único ente no qual o ser se

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desvela, entendido pelo autor como Dasein ou “ser-aí”.

Heidegger é um filósofo que se ocupa incessantemente com a problemática do ser. Seu principal objetivo é mostrar como o ser se desvela na realidade. Segundo ele, esse desvelamento só seria possível de ser analisado caso o ponto de partida das reflexões ontológicas fosse à questão do sentido. Entretanto, o filósofo percebe que o problema do significado do ser ficou esquecido durante a história do pensamento filosófico.

Por isso, ele propõe em seus estudos a retomada dessa questão. Seguindo esse itinerário, o filósofo constata que só se poderá fazer uma análise bem-sucedida do ser se antes ocorrer uma análise correta do Dasein, o campo privilegiado de manifestação do ser. Por isso, as reflexões desse filósofo passam obrigatoriamente por uma análise existencial do homem, entendido como “ser-aí”.

É nesse sentido que ele se propõe pensar a problemática do humano e, consequentemente, suas relações com o mundo, com os outros e com a própria finitude. Nesse contexto, a questão da morte não é o ponto central do pensamento de Heidegger, entretanto, ela ocupa um lugar extremamente importante em suas reflexões sobre o Dasein, visto que esse filósofo fundamenta a existência humana na própria finitude e temporalidade. Para esse pensador, a reflexão sobre a morte é o principal caminho que leva a pessoa humana a assumir uma existência autêntica.

Tendo em vista isso, estabelecemos como objetivo principal da nossa pesquisa compreender como a reflexão sobre a morte a partir de Heidegger

Introdução 15

pode apresentar um caminho para a existência autêntica e dar um sentido para a vida humana. Para dar cabo a esse objetivo, deveremos passar por alguns objetivos menores, tais como: identificar os conceitos que o autor utiliza para explicitar alguns constitutivos ontológicos do homem, principalmente os termos “ser-aí”, “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”; apresentar e compreender o conceito heideggeriano de “ser-para-a-morte” e, por fim, refletir como a condição de finitude, trazida pela perspectiva de “ser-para-o-fim”, desvencilha o Dasein da inautenticidade, apresentando-lhe o caminho para a existência autêntica e trazendo algumas implicações éticas para o seu agir.

Do ponto de vista metodológico, organizamos o nosso estudo em torno de quatro capítulos, sobre os quais faremos uma alusão rapidamente. O primeiro capítulo da nossa pesquisa visa mostrar o contexto histórico, a partir do qual o pensamento heideggeriano se formou e se desenvolveu. Apontaremos os principais acontecimentos do século XX, mostrando a estrita ligação que Heidegger teve com tais fatos históricos.

Revelaremos o contexto das ideias que eram fomentadas no campo da filosofia, na época desse autor. Nesse sentido, apresentaremos, ainda que de maneira sucinta, as influências que esse pensador recebeu da filosofia de Aristóteles e do método fenomenológico de seu amigo e mestre, Husserl. Por fim, esta primeira etapa de nosso trabalho identificará os principais pontos da crítica de Heidegger à ontologia tradicional, revelando os principais preconceitos nos quais ela se fundamentou e

16 A finitude humana...

mostrando como a questão do sentido do ser ficou esquecida no campo da metafísica.

No segundo capítulo, nossa preocupação é abordar a análise feita pelo autor sobre a questão do ser, que, obrigatoriamente, deve passar por uma reflexão sobre as estruturas ontológicas do homem, entendido por Heidegger como Dasein. A partir disso, a nossa proposta consiste em explicitar os principais pontos percorridos pelo filósofo em sua analítica existencial, mostrando como o homem se caracteriza como “ser-aí”, devido ao fato de sempre estar-lançado a uma situação, a várias possibilidades de existência. Revelando também como o Dasein, em sua própria constituição ontológica, caracteriza-se como um “ser-no-mundo” e como “ser-com-os-outros”, visto que ele está em íntima relação com as coisas e com as outras pessoas. Faremos alusão também àquilo que o filósofo denomina de “cuidado”, caracterizado como a forma de relacionamento do “ser-aí”.

Dessa maneira, o itinerário traçado neste capítulo mostra-se como uma preparação para as reflexões sobre a temática central da nossa pesquisa: o problema da finitude e o existencial “ser-para-a-morte”. Sem a compreensão dos existenciais acima citados, fica comprometido o correto entendimento da análise ontológica sobre a morte em Heidegger.

O terceiro capítulo constitui-se como o alvo principal da nossa pesquisa. Nele refletiremos sobre como o autor entende a questão da morte. Em outras palavras, de que maneira o “ser-aí” se comporta frente a essa situação limite. Nesse sentido, apresentaremos duas formas de comportamentos assumidas pelo ser humano frente a sua própria

Introdução 17

finitude. A primeira é a inautenticidade que, influenciada pelo que Heidegger denomina de “impessoal”, faz com que o Dasein fuja constantemente da morte, encarando-a como um evento distante ou tendo medo da sua existência.

O segundo comportamento é a postura do “ser-para-a-morte”, que, por meio da angústia, assume sua condição limite e caminha para a existência autêntica. Sendo assim, esse capítulo tem como propósito promover uma análise em relação a esses comportamentos manifestos pela existência humana perante a morte. Veremos, também, como essa condição trágica abre caminho para a existência autêntica e a fundamenta na questão da finitude.

O último capítulo deste trabalho possui um caráter conclusivo. Nele refletiremos sobre em que consiste a existência autêntica para Heidegger e quais as implicações éticas possíveis quanto às suas discussões sobre o “ser-aí”. Direcionamos nossos esforços para demonstrar que o conceito de existência autêntica elaborado pelo autor é muito diferente da visão corrente do senso comum.

Nesse sentido, para o pensador, a vida autêntica nada tem a ver com a figura de um indivíduo autossuficiente e extremamente independente do mundo e dos outros. Pelo contrário, segundo ele, existir autenticamente é justamente reconhecer-se como um ser finito e projetar suas possibilidades de existência tendo em vista essa condição. É a partir disso que podemos hipotetizar algumas implicações éticas no pensamento de Martin Heidegger.

Implicações, estas, que não se ligam a uma ética baseada nos moldes tradicionais, mas que se fundamentam na própria finitude da pessoa humana.

18 A finitude humana...

Em outras palavras, a consciência da morte força o homem a definir a forma como vai assumir suas possibilidades, entregando-se àquelas que mais apresentam sentido a ele; visto que o tempo é curto e a sua existência é breve.

Enfim, acreditamos que a importância da nossa pesquisa se mostra na leitura que podemos fazer da análise existencial a partir do pensamento de Heidegger, tendo em vista a questão da finitude humana. Mesmo não tendo como objetivo principal formular uma ética, o pensamento do autor apresenta implicações que podem orientar a forma como o “ser-aí” se comporta no mundo, com os outros e consigo mesmo.

Atualmente, a questão da morte se revela como um tema paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que se mostra como algo real e muito próximo das pessoas, apresenta-se também como uma realidade distante e misteriosa. A sociedade atual presencia a banalização da morte. Ouve-se falar dela o tempo todo, como um fato banal, no qual o jornalista relata, o médico constata, o biólogo analisa, o policial investiga etc. Toda essa banalização aproxima, cada vez mais, a questão da finitude ao cotidiano das pessoas; no entanto, as afasta de seu sentido mais profundo e impede que estas possam reconhecer que a morte é um evento ímpar, intransponível, incomensurável, o qual todos terão que experimentar, e de maneira singular.

= I =

HEIDEGGER E O SÉCULO XX Este primeiro capítulo visa demonstrar o

contexto histórico no qual Martin Heidegger1 estava

1 Martin Heidegger nasceu em Messkirch, em Baden, no sul da Alemanha, em 26 de setembro de 1889. Fez os seus primeiros estudos com os jesuítas, onde obteve uma vasta cultura clássica. O incidente que despertou nele a vocação filosófica foi o contato que teve com o livro de Franz Brentano, Sobre os Diversos Sentidos do Ente segundo Aristóteles, presenteado a ele por Konrad Grüber, vigário de Konstanz e futuro arcebispo de Freiburg-im-Breisgau, a quem Heidegger evoca como amigo paternal e conterrâneo. Portanto, o primeiro contato do jovem Heidegger com a Filosofia foi por um estudo sobre o Estagirita, o companheiro mais assíduo e mais familiar ao longo do seu caminhar filosófico. Depois de concluídos os seus estudos humanísticos nos ginásios de Konstanz e Freiburg-im-Breisgau, Heidegger matricula-se na Faculdade de Teologia da Universidade de Freiburg. Desde essa mesma época Heidegger procura perscrutar o conteúdo das Investigações Lógicas de Husserl. Em 1915, Heidegger é nomeado livre-docente em Freiburg e, no ano seguinte, publica a tese de habilitação: A Teoria das Categorias e das Significações em Duns Escoto. De 1917 a 1919 Heidegger presta serviço militar na frente de combate e toma contato direto com a Primeira Guerra Mundial. Em 1923, Heidegger é nomeado catedrático na Universidade de Marburg, onde dedica a maioria das aulas a seminários à história da ontologia. Em 1927, o autor em questão lança sua obra principal Ser e Tempo: Primeira Metade. Em 1933 é nomeado reitor da Universidade de Freiburg. Demite-se do cargo em 1935, mas continua como professor até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando é temporariamente licenciado por supostas simpatias com o regime nazista. Heidegger falece em 26 de maio de 1976, em Messkirch. GILES, Thomas R. História do

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situado, pois a compreensão dos acontecimentos que marcaram o início do século XX mostra-se importante para a apreensão do pensamento desse autor. Apontaremos também as principais influências filosóficas que esse pensador alemão sofreu, além das principais críticas que ele lança às teorias sobre o ser elaboradas pelos filósofos gregos antigos.

1.1 Contextualização histórica do pensamento de Heidegger

Heidegger viveu em um período conturbado da

história da humanidade: o breve século XX. Nos primeiros anos de vida desse pensador, o mundo europeu ainda vivia o brilho do século XIX. Nesse sentido, Eric Hobsbawm2 afirma que a sociedade daquela época se caracterizava pelos seguintes pontos:

Tratava-se de uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado [...].

Existencialismo e da Fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989. pp. 83-84. 2 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Traduzido por Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 16.

Heidegger e o século XX 21

No entanto, esse auge cultural e econômico no qual a sociedade europeia se encontrava no início do século XX, viu seu colapso com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esse conflito armado, que durou quatro sangrentos anos, colocou os grandes impérios europeus uns contra os outros. De um lado, os poderes centrais (Alemanha, império Austro-Húngaro e império Otomano) formavam a Tríplice Aliança; e de outro, a Inglaterra, França, Rússia e, mais tarde, os Estados Unidos, formavam a Tríplice Entente.

Nessa guerra, o padrão civilizatório da geração do século XIX, juntamente com seu “fascínio iluminista”3 pela tecnologia, foi duramente abalado. O homem do início do século XX – que acreditava no ideal positivista de que a ciência e a tecnologia levariam a humanidade ao progresso e que era influenciado pela crença iluminista de que a luz da ciência produziria homens cada vez melhores e mais sábios – viu, durante quatro anos de combates, a racionalidade tecnológica produzir a mais devastadora guerra da história da humanidade. Assim, o progresso tecnológico capacitou os combatentes a se exterminarem com uma eficiência sem precedentes. Segundo Flávio de Campos4:

A Europa se converteu num matadouro: cerca de 17 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. Armas químicas, aviões bombardeiros e submarinos inauguraram a era do massacre.

3 CAMPOS, Flávio; MIRANDA, Renan G. A escrita da História. São Paulo: Escala Educacional, 2005, p. 439. 4 Id.

22 A finitude humana...

As ideias de progresso e de padrão civilizatório do homem do século XIX começavam a ser questionadas.

Para Hobsbawm: “A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial”5. O homem daquela época perguntava se após a Primeira Guerra, ainda seria possível acreditar na racionalidade iluminista: “As Luzes se apagam em toda a Europa”6, disse o secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha na noite em que a Inglaterra e a Alemanha entraram em guerra. Para Jonathan Rée7, esse contexto de crise também influenciou o pensamento filosófico da época:

O que se debatia na filosofia da época era a relação entre verdade e história. A fé iluminista na ciência e no progresso havia sido destruída pela guerra de 1914-1918, deixando o campo aberto ao corrosivo ‘relativismo’. Parecia que as crenças dependiam dos caprichos da história, não de alguma verdade absoluta transcendentemente confiável.

Dessa forma, as ideias de progresso trazidas

pelo positivismo no início do século XIX, não encontravam mais espaço no início do século XX. Nesse sentido, Thomas Giles afirma: “Onde o século XIX via clareza, simplicidade e facilidade, o século XX

5 HOBSBAWM, op. cit., 1995, p. 30. 6 Id. 7 RÉE, Jonathan. Heidegger: história e verdade em Ser e Tempo. Trad. Oscar Marques e Karen Volobuef. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 8.

Heidegger e o século XX 23

só vê enigma e escuridão. O mundo do século XX parece ser um mundo artificial onde tudo é absurdo”8.

Em meio a essa situação, Edmund Husserl, fundador da fenomenologia e mestre de Heidegger, lança uma crítica a essas ideias em sua obra A Crise da Ciência Européia e a Fenomenologia Transcendental. Vejamos o que ele diz a esse respeito:

A exclusividade com que, na segunda metade do século XIX, a visão do mundo complexiva do homem moderno aceitou ser determinada pelas ciências positivas e com as quais se deixou fascinar pela ‘prosperitu’ que daí derivava, significou um afastamento daqueles problemas que são decisivos para uma humanidade autêntica. As meras ciências de fatos criam meros homens de fato. [...] Na miséria de nossa vida [...] esta ciência não tem nada a dizer-nos. Ela exclui de princípio justamente aqueles problemas que são os mais prementes do homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se entregue ao sabor do destino: os problemas do sentido ou do não-sentido da existência humana em seu conjunto. 9

Nesse contexto devastador da Primeira Guerra

Mundial e da crise econômica e cultural que abalaram a Europa após esse conflito, uma nova linha de pensamento começa a se configurar no campo filosófico: o existencialismo10. Esta corrente filosófica 8 GILES, op. cit.,1989, p. 1. 9 HUSSERL apud REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Nietzsche à escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2005, p. 198, v. VI. 10 Segundo Nicola Abaggnano: “Deve-se entender por existencialismo qualquer filosofia que seja concebida e se

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reflete a situação histórica de uma Europa dilacerada física e moralmente por duas guerras; de uma humanidade europeia que, entre a Primeira e a Segunda Guerra mundiais, experimenta em várias regiões a perda da liberdade devido ao surgimento de regimes totalitários, como o fascismo italiano e o nazismo alemão. É nesse sentido que a condição humana, com todas as suas implicações, será tematizada sob a análise profunda da filosofia. Segundo Giovanni Reale e Dário Antiseri11:

A época do existencialismo é a época de crise: a crise do otimismo romântico que, durante todo o século XIX e a primeira década do século XX, ‘garantia’ o sentido da história em nome da razão, do absoluto, da idéia ou da humanidade, ‘fundamentava’ valores estáveis e ‘assegurava’ um progresso certo e irreprimível.

Sendo assim, o existencialismo considera o

homem como um ser finito, jogado na existência e continuamente dilacerado por situações problemáticas, como a angústia, a morte, o desespero e o sentido da existência. Após terem contemplado a miséria da humanidade nos horrores

exerça como análise da existência, desde que por “existência” se entenda o modo de ser do homem no mundo. O existencialismo é assim caracterizado, em primeiro lugar, pelo facto de questionar o modo de ser do homem; e dado que entende este modo de ser como modo de ser no mundo, caracteriza-se em segundo lugar pelo fato de questionar o próprio “mundo”. [...] A relação homem-mundo constitui assim o tema único de toda a filosofia existencialista”. ABAGGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 45. v. XII. 11 REALE; ANTISERI, op. cit., 2005, p. 256.

Heidegger e o século XX 25

da Primeira e da Segunda Guerra mundiais, os pensadores existencialistas valorizam temas como a historicidade, temporalidade e finitude, como pressupostos para se conhecer a existência humana no mundo. Portanto, o existencialismo se interessa precisamente pelo ser humano, isto é, o homem em sua singularidade.

É nessa conjuntura que, em 1927, na Alemanha, Martin Heidegger lança a sua obra mais importante: Ser e Tempo: Primeira Parte. Essa obra tinha por objetivo trazer à tona uma questão filosófica que, por muito tempo, ficara no esquecimento: o significado do ser. Segundo o autor, esse problema ficou esquecido, pois foi pouco refletido pela filosofia. Ao conceituar o ser, a ontologia tradicional considerou a questão do sentido como um problema já resolvido. Mas, para o filósofo alemão, fazia-se necessário retomar essa problemática; era preciso encontrar o significado do ser, pois, como afirma Jean-Louis Dumas:

[...] esse trágico esquecimento do ser é responsável pelo devir histórico da Europa e por todas as calamidades que se abateram sobre o mundo contemporâneo. Heidegger viu-se, portanto, obrigado a nos restituir um autêntico pensamento do ser.12

Desse modo, para se desvelar o sentido do

ser, fazia-se necessário, antes, descobrir em que ente esse ser se revela. O filósofo então percebe que esse

12 DUMAS apud HUISMAM, Denis. História do existencialismo. Traduzido por Maria Leonor Loureiro. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 95.

26 A finitude humana...

ente exemplar é o homem, pois este é único ente que é capaz de se fazer a pergunta sobre o sentido do ser. Nesse sentido, Reale e Antiseri afirmam:

O objetivo declarado de Ser e Tempo é o de uma ontologia capaz de determinar adequadamente o sentido de ser. Mas, para alcançar esse objetivo, é preciso analisar quem se propõe a pergunta sobre o sentido do ser.13

Assim, a ontologia proposta por Heidegger

deveria, obrigatoriamente, passar por uma análise da existência humana, ou seja, das condições em que o homem estava jogado em sua existência no mundo. A partir desse estudo da condição humana, podemos afirmar que o pensamento desse filósofo alemão se aproxima do existencialismo, apesar de o mesmo não se considerar participante dessa linha de pensamento14.

Na verdade, a questão trazida por esse pensador mostrava-se como um assunto inovador e ao mesmo tempo desafiante, pois, no período em que o autor aqui tratado publicou a obra Ser e Tempo, o problema do ser e o da ontologia foram desacreditados desde os trabalhos de Kant, no século XVIII, e substituídos pela ciência empírica. E, após a

13 REALE; ANTISERI, op. cit., 2005, p. 203. 14 De acordo com o comentador Thomas Giles: “Embora tenha por objeto uma análise da existência do Ser-aí, a leitura heideggeriana pretende ser uma leitura do significado do Ser. Heidegger insiste com determinada ênfase em que o seu pensamento não é existencialista, pois o seu interesse é o problema do Ser, e não a existência pessoal e os seus interesses éticos, ou seja, a condição humana como tal”. GILES, op. cit., 1989, p. 110.

Heidegger e o século XX 27

teoria da relatividade restrita, formulada por Albert Einstein, em 1905, o conceito de tempo dizia respeito agora à física e não à filosofia. Mas, como afirma Jonathan Rée15 :

Filósofos muitas vezes escrevem com um engenhoso sentido de paradoxo, e terminam por fazer de tolos os que descuidadamente se aferram a certezas das quais estão ausentes tanto a clareza como o senso de ironia.

Heidegger estava ciente da condição em que a

questão do ser se encontrava na filosofia de seu tempo. Ele tinha consciência de que essa problemática era vista como antiquada desde a Modernidade e que a ideia de tempo agora pertencia à física. Mas ele concebia essas noções como consequências do esquecimento no qual o problema do significado do ser havia caído ao longo da história do pensamento ocidental. A discussão sobre o sentido do ser estava sendo trivializada, e ele sabia disso. Nesse sentido, o filósofo afirma:

Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a ‘metafísica’, a questão aqui evocada caiu no esquecimento [...]. A questão referida não é, na verdade, uma questão qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que ambos conquistaram manteve-se, em muitas distorções e ‘recauchutagens’, até a lógica de Hegel. E o que outrora se arrancou, num supremo esforço de pensamento, ainda que de modo fragmentado e

15 RÉE, op. cit., 2000, p. 9.

28 A finitude humana...

tateante aos fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado.16

Portanto, é a partir desse contexto conturbado

do século XX que Heidegger elabora as suas importantes considerações sobre o ser e a existência humana. É notável, então, que esse momento histórico influenciasse demasiadamente o seu pensamento. Vimos, até aqui, os elementos contextuais que influenciaram o pensamento heideggeriano. Mas há outra questão a que precisamos responder: quais foram as influências teóricas que serviram de ponto de partida para a construção da filosofia desse pensador? O nosso projeto no próximo tópico é apresentar uma resposta a essa questão. 1.2 Influências teóricas recebidas: construindo um pensamento

O primeiro contato de Heidegger com a

filosofia ocorreu em sua juventude. Na ocasião, seu amigo e conterrâneo, Konrad Grüber, vigário de Konstanz, presenteou-o com um livro de Franz Brentano, intitulado “Sobre os Diversos Sentidos do Ente segundo Aristóteles”.

A partir desse acontecimento, o autor desenvolveria um profundo interesse pela ontologia dos clássicos gregos, principalmente os pré-socráticos e Aristóteles. Os primeiros, por serem os iniciadores da questão sobre o ser, com o intuito de encontrar a arché, ou seja, a origem de todas as

16 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Traduzido por Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, p. 37.

Heidegger e o século XX 29

coisas existentes no mundo; e o segundo, por se caracterizar como o formulador da teoria geral do ser enquanto ser. Mas é, sobretudo, Edmund Husserl que o leva, de fato, ao campo da Filosofia.

Em 1919, Heidegger torna-se assistente de Husserl e, na ocasião, acaba por ministrar aulas sobre várias questões de fenomenologia, além de comentar semanalmente as Investigações Lógicas de Husserl. Esse fato faz com que ele sofra profunda influência desse pensador, principalmente no âmbito do método fenomenológico.

O filósofo alemão analisa o problema do sentido do ser partindo, primeiramente, da análise fenomenológica iniciada por seu mestre, para, depois, elaborar a sua própria metodologia de investigação. Devido a isso, mostra-se importante nesta pesquisa esclarecer em que consiste o método fenomenológico de Husserl, pois, como o próprio Heidegger testemunha, ele foi levado para o caminho da reflexão sobre a questão fundamental, isto é, a questão sobre o ser, iluminado pela atitude fenomenológica.

Husserl é considerado o inventor do método fenomenológico. Segundo ele, fenomenologia

[...] designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e acima de tudo, ‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente filosófico.17

17 HUSSERL, Edmund. A ideia de fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 46.

30 A finitude humana...

Essa linha de pensamento fundada por ele caracteriza-se por possuir uma análise metódica, por buscar um rigor científico e clareza nas exposições. A fenomenologia, como aponta Thomas Giles,

[...] ensinava a tomar pé numa época de dissolução interna e externa de tudo o que era estável, obrigando a evitar toda a linguagem grandiloqüente, a provar cada conceito na intuição dos fenômenos, pois a fenomenologia é precisamente a arte de desvelar aquilo que, no comportamento quotidiano, ocultamos de nós mesmos.18

Mas qual a inquietação fundamental de

Husserl com a fenomenologia? A sua principal preocupação era fundamentar a filosofia como ciência rigorosa, no entanto, esse pensador acreditava que isso só poderia ocorrer caso a filosofia se fundamentasse na própria ideia de ciência e não nas configurações contingentes da mesma. Portanto, para o inventor da fenomenologia, a filosofia deveria analisar a intencionalidade da consciência:

A palavra intencionalidade não significa nada mais que essa particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si mesma.19

18 GILES, op. cit., 1989, p. 91. 19 HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Traduzido por Frank de Oliveira. São Paulo: Editora Madras, 2001, p. 51.

Heidegger e o século XX 31

Husserl afirmava que a consciência é sempre consciência de alguma coisa e o objeto é sempre para uma consciência. Sem essa relação consciência-objeto não haveria nem consciência nem objeto. Entretanto, como aponta Thomas Giles: “[...] quem dizia ‘análise da consciência’ em 1900, se colocava quase que automaticamente no plano da psicologia”20.

Devido a isso, o mestre de Heidegger inicia uma crítica ao psicologismo. A indagação sobre a consciência trazida por Husserl é muito diferenciada da psicologia, que é reconhecida como ciência natural. A psicologia considera os eventos psíquicos como pertencentes às consciências humanas, conferindo, assim, um caráter natural a esses eventos. A partir disso, o autor afirma que a psicologia não pode atingir a “essência” da consciência nem os modos como os objetos reais e possíveis são dados a ela. Como afirma Abaggnano:

Diferentemente da psicologia, a fenomenologia pura não é uma ciência de factos, mas de essência (é uma essência eidética) e os fenómenos de que se ocupa não são reais, mas sim irreais.21

Com a fenomenologia, o objetivo de Husserl

era fazer uma análise da consciência que fosse além da análise feita pela psicologia. O problema a que esse autor pretende responder é profundamente epistemológico, pois ele buscava o fundamento absoluto da lógica e da ciência. Para dar cabo deste objetivo, o inventor da fenomenologia elabora o

20 GILES, op. cit., 1989, p. 58 21 ABAGGNANO, op. cit., 2001, p. 12

32 A finitude humana...

método fenomenológico (que mais tarde influenciaria Heidegger). Segundo esse método, o pensador deveria realizar uma mudança radical de atitude frente aos fenômenos, isto é, ele deveria evitar a afirmação ou o reconhecimento da realidade – que está muito ligada a interesses práticos – e assumir a atitude de “espectador”, interessado apenas em alcançar a essência dos fatos percebidos pela consciência.

Conforme Husserl: O que acontece aqui pode também ser descrito da seguinte maneira: Se dizemos do eu que percebe o ‘mundo’, e aí vive de forma totalmente natural, que ele está interessado nele, então teremos, na atitude fenomenologicamente modificada, um desdobramento do eu; acima do eu ingenuamente interessado no mundo estabelecer-se-á como espectador desinteressado o eu fenomenológico. Esse desdobramento do eu está por sua vez sujeito a uma nova reflexão, reflexão que, por ser transcendental, exigirá uma vez mais a atitude ‘desinteressada do espectador’, preocupado somente em ver e descrever de maneira adequada.22

Husserl denomina essa mudança de atitude

como epoché23 fenomenológica. Com o princípio da epoché, ele buscou fundamentar a fenomenologia como ciência voltada para as próprias coisas, as

22 HUSSERL, op. cit., 2001, p. 52-53. 23 “Termo grego que quer dizer suspensão do consentimento: suspensão do consentimento ou do juízo típica da atitude do ceticismo antigo e, particularmente, de Pirro”. REALE; ANTISERI, op. cit., 2005, p. 183.

Heidegger e o século XX 33

coisas reais, com o intuito de encontrar pontos sólidos e dados tão claros que pudessem resistir à dúvida e fundamentar uma concepção filosófica consistente. Sendo assim, o mestre de Heidegger ressalta que:

Pela epoché fenomenológica, reduzo meu eu humano natural e minha vida psíquica – domínio de minha experiência psicológica interna – a meu eu transcendental e fenomenológico, domínio da experiência interna transcendental e fenomenológica.24

Com isso, o autor coloca entre parênteses

todas as concepções científicas ou filosóficas, além das crenças do senso comum, que não resistem à dúvida. Essas convicções são colocadas entre parênteses, pois ele queria demonstrar que uma filosofia rigorosa não pode basear-se nelas. Como o próprio pensador afirma:

Não utilizamos a tese genérica que pertence à essência da atitude natural, colocando entre parêntesis tudo o que ela contém sob o seu aspecto ôntico, isto é, todo o mundo natural que está constantemente ao nosso alcance e que continuará a ser uma realidade para a consciência mesmo que o coloquemos entre parêntesis. Assim fazendo, eu não nego este mundo, como um sofista, nem ponho em dúvida a sua existência, como se fosse um céptico; limito-me a realizar a epoché fenomenológica que me impede de considerar como existente o mundo que se encontra perante mim, contrariamente àquilo que

24 HUSSERL, op. cit., 2001, p. 43.

34 A finitude humana...

faço na vida prática ou àquilo que se faz nas ciências positivas.25

A partir desse seu método, Husserl chega à

conclusão de que todas as doutrinas filosóficas e crenças não devem fundamentar o conhecimento, pois elas oferecem aberturas que podem ser postas entre parênteses. Somente a consciência ou subjetividade resiste à epoché, isto é, resiste às dúvidas e não pode ser colocada entre parênteses, pois, segundo o autor, a consciência é a realidade mais evidente e absoluta que fundamenta toda a realidade.

O fato é que Heidegger sofrerá influência direta desse método fenomenológico. Em sua obra Ser e Tempo, o autor define como se deve entender a fenomenologia:

A expressão ‘fenomenologia’ significa, antes de tudo, um conceito de método [...]. A palavra ‘fenomenologia’ exprime uma máxima que se pode formular na expressão: ‘para as coisas elas mesmas!’ – por oposição às construções soltas no ar, às descobertas acidentais, à admissão de conceitos só aparentemente verificados, por oposição às pseudoquestões que se apresentam, muitas vezes, como ‘problemas’, ao longo de muitas gerações.26

A partir disso, pode-se perceber que ele

compreende a fenomenologia como: “Fazer ver a

25 HUSSERL apud ABAGGNANO, op. cit., 2001, p.13. 26 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 66.

Heidegger e o século XX 35

partir de si mesmo aquilo que se manifesta efetivamente”27.

Por isso, segundo ele, a fenomenologia fundamenta-se na máxima: voltar às próprias coisas. Nesse sentido, Heidegger percebe que o método fenomenológico (a epoché husserliana) oferece as possibilidades de um caminho para o ser, pois o ser é aquilo que se esconde naquilo que se manifesta e, entretanto, compõe o fundamento de tudo o que se manifesta. No seu entender, a fenomenologia deve se ajustar ao modo de manifestação do ser, isto é, o conceito fenomenológico de fenômeno deve visar o ser do ente, enquanto aquilo que aparece realmente, ou seja, suas modificações e derivações.

Nesse ponto, o filósofo se utiliza do método fenomenológico para chegar à questão do significado do ser, contudo, o problema do sentido não havia sido abordado pela ontologia clássica, mas a fenomenologia trouxe para o campo da filosofia a questão do significado das coisas. Por isso, Heidegger faz uso da análise fenomenológica, pois esta apresenta um caminho para o desvelamento do sentido do ser; no entanto, desde o início da época em que começa a colaborar com Husserl, o filósofo alemão já demonstra ter sua própria posição e não se mostra disposto a seguir fielmente as ideias de seu mestre.

Para Husserl, o método fenomenológico baseia-se na consciência; e, esta, relaciona-se com o mundo sem fazer parte deste; e o mundo, por sua vez, não faz parte da consciência. Com esse pressuposto, ele aproxima a fenomenologia do idealismo

27 GILES, op. cit., 1989, p. 94.

36 A finitude humana...

transcendental das Ideias. Como já foi discutido, o criador da fenomenologia afirma que a consciência tem o primado no método fenomenológico, pois resiste às dúvidas da epoché. Mas, para Heidegger, esse primado da consciência não existe.

O problema que o autor de Ser e Tempo se propõe a refletir é a questão do significado do ser, e, para dar cabo a essa tarefa, ele percebe que antes deve esclarecer as estruturas ontológicas do único ente que se propõe a pergunta sobre o ser: o homem, que, entendido em seu modo de ser, é “ser-aí” (Dasein28).

Assim, Heidegger tentará entender o modo de ser do homem no mundo, analisando os fatos do cotidiano, com o intuito de esclarecer como as estruturas do mundo condicionam e são condicionadas pelo “ser-aí”. Para ele, esse aspecto não foi tratado por Husserl:

Mesmo a interpretação fenomenológica da personalidade, em princípio mais radical e lúcida, não alcança a dimensão do ser da presença. Malgrado todas as diferenças no questionamento, na condução e orientação da concepção de mundo, as interpretações da personalidade elaboradas por Husserl [...] já não colocam a questão sobre o ser da pessoa em si mesmo.29

Dessa forma, o filósofo alemão se distancia do

pensamento de seu mestre, pois a problemática do “ser-aí” se liga à relação que este tem com o mundo

28 Este conceito de Heidegger será explicitado de forma mais detalhada no próximo capítulo desta pesquisa. 29 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 91.

Heidegger e o século XX 37

e não com a consciência – como afirma a fenomenologia. Para ele, não existe um “eu isolado” ou uma “consciência” separada do mundo, pelo contrário, o homem existe como um ser ligado ao mundo, como o próprio autor afirma: “No dizer-eu, a presença se pronuncia como ser no mundo”30.

Segundo João Ribeiro Júnior31:

Para Heidegger, a consciência é a revelação da existência (para Husserl, a consciência revela uma objetividade eidética, das essências). A existência do sujeito é existir-no-mundo. Daí sua fenomenologia ser denominada existencial.

Enquanto que, para Husserl, o pensador deve

se colocar frente à realidade, como um “espectador” que analisa os fatos para descobrir suas essências como elas se dão à consciência; para Heidegger, o pensador deve analisar o cotidiano, a facticidade do mundo. Partindo desses pressupostos, o autor vai se desvinculando das ideias de seu mestre. Como Thomas Giles afirma:

[...] um dos passos mais importantes na guinada que Heidegger dará à fenomenologia será a sua desvinculação do idealismo das Idéias, caracterizadas pelas intenções transcendentais, para partir da vida real. [...] Todavia, Heidegger não adotará a fenomenologia como movimento, como Filosofia existente, real e, sim, como possibilidade metodológica. Ela não caracteriza o “quê” dos objetos da pesquisa filosófica e, sim, o “como”

30 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 405. 31 JUNIOR, João Ribeiro. Introdução ao Existencialismo. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 46.

38 A finitude humana...

daquela pesquisa fundamentada na maneira pela qual entramos em contato com as próprias coisas.32

Ainda, em relação ao distanciamento entre

Heidegger e seu mestre: Dentro da perspectiva da ontologia fenomenológica, a novidade essencial do transcendentalismo de Heidegger, em relação ao seu mestre Husserl, é ter tentado resolver o problema do fundamento sem recorrer à consciência, mesmo transcendental, o que seria sem dúvida idealista demais, mesmo subjetivista, pois Heidegger recusa partir de intuições, mas parte da compreensão da vida concreta. Do contrário, passamos ao lado da vida na sua realidade e no complexo dos significados do mundo. Em lugar da consciência pura, do Eu transcendental, Heidegger parte da vida na sua facticidade no mundo, da vida que é, em última análise histórica e se compreende historicamente.33

Enfim, ao analisarmos as aproximações e

distanciamentos entre Heidegger e Husserl, podemos perceber que o primeiro colocou entre parênteses o homem concreto, assim como o segundo colocou entre parênteses a consciência. Ao compararmos Husserl com Heidegger, notamos que aquele tende para o idealismo, e concebe a filosofia como ciência rigorosa; este, no entanto, é um filósofo preocupado

32 GILES, op. cit., 1989, p. 91. 33 Ibid., p. 94.

Heidegger e o século XX 39

com a questão do significado do ser, que o leva a relacioná-la com a existência humana.

Uma vez apontadas as principais influências teóricas recebidas por Heidegger na construção de seu pensamento, mostra-nos necessário apresentar as principais críticas feitas por ele à ontologia dos filósofos gregos clássicos. Em que consiste sua crítica à ontologia antiga? Como o autor caracteriza o pensamento dos filósofos gregos? Em que sentido a problemática do ser foi mal interpretada pela filosofia? Essas são questões que serão abordadas e respondidas, no próximo tópico desta pesquisa.

1.3 Críticas de Heidegger à ontologia clássica: desconstruindo a tradição metafísica

Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger propõe

a tarefa de “desconstrução da história da ontologia”, pois, segundo ele, esta levou ao esquecimento a questão do significado do ser:

[...] é necessário, então, que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia, legado pela tradição. Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão do ser até chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações de ser que, desde então, tornaram-se decisivas.34

34 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 60-61.

40 A finitude humana...

Segundo o filósofo, a ontologia deve ser descontruída até as suas origens, isto é, até as reflexões dos pensadores gregos, pois é no mundo grego antigo que a questão do ser é tomada pela primeira vez. Com sua proposta de desconstrução da ontologia antiga, ele não pretende destruir as teorias sobre o ser elaboradas pelos filósofos gregos e colocar outra ontologia no lugar, mas pretende desconstruir a história da ontologia para mostrar o modo como esta foi concebida. Nesse sentido, Heidegger afirma em sua obra Heráclito: a Origem do Pensamento Ocidental:

Nossa reflexão sobre a origem do pensamento ocidental não pretende determinar quando e onde surgiu a “filosofia”. Para nós é suficiente a tentativa de – a distância – fazer a experiência do fundamento do “começo” da “filosofia”, isto é, da metafísica numa dimensão própria. Chamamos de pensadores originários àqueles que pensam no âmbito da origem. Numericamente são três. Seus nomes são Anaximandro, Parmênides e Heráclito.35

Para o autor, o problema do significado do ser

é o ponto chave de todo o pensamento filosófico. Devido a isso, ele faz uma análise da filosofia pré-socrática, pois segundo ele, filósofos como

35 HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica: a doutrina heraclítica do “logos”. Traduzido por Márcia de Sá Cavalcante Shuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 18.

Heidegger e o século XX 41

Anaximandro36, Heráclito37 e Parmênides38 foram os primeiros a pensar, mesmo que de forma primitiva, sobre o ser. Esses pensadores entendiam-no como Phýsis39, isto é, “natureza”. Eles tomavam o ser em termos de mundo-tempo, ou seja, quer como mundo quer como tempo. Em outras palavras, para esses filósofos antigos o ser estava incluso no mundo, na

36 Anaximandro (VII a.C. a VI a.C.) é o primeiro pensador a se aprofundar na questão do ser. Segundo ele, o princípio de tudo é o á-peiron, isto é, aquilo que está “privado de limites”, que é infinito. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Filosofia pagã e antiga, vol. I. São Paulo: Paulus, 2005, p.19. 37 Heráclito de Éfeso (VI a.C. a V a.C.) baseia seus pensamentos na questão do dinamismo universal. Este pensador fala do vir-a-ser, do fluxo das coisas. “Descemos e não descemos os mesmos rios: somos e não somos” (HERÁCLITO apud NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 215.). Para este pensador, o vir-a-ser é uma característica estrutural de toda realidade, no entanto, este vir-a-ser não é caótico, pelo contrário, trata-se de uma dinâmica ordenada de um contrário ao outro: tudo se revela na unidade dos contrastes. “Todas as coisas são um”. HERÁCLITO apud NUNES, 1986, p. 215. 38 Parmênides (VI a.C. a V a.C.), por sua vez, percorre um caminho diferente de Heráclito ao afirmar que o ser “possui, com efeito, uma estrutura inteira inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é no instante presente, todo inteiro, uno e contínuo” (PARMÊNIDES apud NUNES, op. cit., 1986, p. 215.). Para ele, o ser é e não pode não-ser; o não-ser não é e não pode ser de modo nenhum. O pensamento deste autor mostra-se como inovador e radical. Com Parmênides, as reflexões sobre o ser dos filósofos antigos caminharam para uma primitiva ontologia, isto é, uma teoria do ser. 39 Segundo Benedito Nunes, a Phisis é “o vigor imperante que surge. Em oposição ao vir-a-ser, mostra-se como consistência, a presença constante. Em oposição à aparência, se firma como o aparecer, como presença manifesta”. NUNES, op. cit.,1986, p. 215.

42 A finitude humana...

existência, na mundanidade. Dessa maneira, Anaximandro, Heráclito e Parmênides representam o começo da tradição ontológica.

Conforme Heidegger, são precisamente Platão e Aristóteles os responsáveis pelo primeiro movimento para se pensar o ser como presença, pensamento este que foi aceito pela maioria dos filósofos posteriores, sem questionamentos.

Para o autor de Ser e Tempo, Platão e Aristóteles chegaram ao ser, mas não se ocuparam com o desvelamento do seu significado. Ele pondera que, durante a história da tradição metafísica, a questão do sentido do ser ficou esquecida, ou seja, os filósofos antigos não deram a devida atenção a ela. Ao tentarem desvelar o sentido, esses filósofos cometeram um grave erro: conceituaram o ser, afastando-se do verdadeiro significado deste.

Na ótica de Heidegger, é impossível compreender a totalidade do ser, conceituando-o, pois, ao conceberem o ser como algo estático, possuidor de uma essência, os filósofos antigos ocultaram o seu sentido. Dessa forma, segundo ele, a totalidade do ser e, consequentemente, seu sentido, não se encontram em uma essência. Para o filósofo, o ser é possibilidade, é constante vir-a-ser.

Somente na possibilidade ele se mostra em sua totalidade. É somente na existência que o seu sentido se desvela. Ao fazer essa análise, Heidegger chega à conclusão de que esses pensadores possuem um papel ambíguo na questão da desconstrução da ontologia e no problema do esquecimento do ser. Entendê-los se mostra como

Heidegger e o século XX 43

um passo essencial para a fundamentação de uma nova ontologia, pois, segundo John Caputo40:

Como começo dos problemas, eles são importantes para a sua solução. É com eles que termina a tentativa de chegar ao fundo da confusão – pois eles são o ponto onde ela começa. O regresso destruidor é, pois, um exercício de eliminação de problemas.

Fica claro, então, que a história da ontologia

tradicional é incapaz de responder à questão do significado do ser, pois ela está mergulhada em preconceitos que foram se formando ao longo do tempo. Esses preconceitos, como afirma Heidegger, “encontram suas raízes na própria ontologia antiga”41. Logo, somente será possível interpretar a ontologia de maneira adequada quando esses preconceitos forem esclarecidos e a questão do ser estiver clarificada, respondida e tomada como ponto de partida.

É por esse motivo que o pensador alemão, em seus estudos, remonta à ontologia dos antigos gregos, pois, ao regressar a eles, ele pretende descobrir não só a forma como a tradição conseguiu lançar-se aos preconceitos, mas também o que foi mal interpretado para que o restante dos pensadores não discutisse a ontologia da maneira como realmente ela deveria ser analisada. Pois a má compreensão sobre o problema do sentido do ser

40 CAPUTO, John D. Desmistificando Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993, p. 32. 41 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 38.

44 A finitude humana...

existente na tradição, tem sua origem na filosofia grega.

Partindo desses elementos, Heidegger inicia então uma discussão sobre esses preconceitos, que, segundo ele, são os responsáveis pelo esquecimento do problema do significado do ser. Para o filósofo alemão:

[...] a questão sobre o sentido de ser não somente não foi resolvida ou mesmo colocada de modo suficiente, como também caiu no esquecimento, apesar de todo o interesse pela ‘metafísica’.42

A partir dessa posição de Heidegger, Jonathan

Rée faz a seguinte reflexão: Se a questão foi esquecida, entretanto, não é porque tenha sido censurada e suprimida, mas porque foi exibida em público de forma tão despudorada que perdeu sua pungência original. Como um poema ou uma prece que aprendemos de cor na infância, a questão sobre o significado de ser soa tão embotada e familiar que nunca nos damos conta de que ignoramos esse significado: ‘aquilo que, enquanto algo oculto, levou os antigos filósofos à inquietude e nela os manteve’, diz Heidegger, decaiu em ‘luminosa auto-evidência’.43

O pensador alemão aponta três dos muitos

preconceitos responsáveis pelo esquecimento da problemática do significado do ser. O primeiro

42 Ibid., p. 60. 43 RÉE, op. cit., 2000, p. 11.

Heidegger e o século XX 45

repousa sobre a expressão: “O ser é o conceito mais universal”44.

Essa expressão subentende que o ser é um conceito que não necessita de explicação ou de um estudo aprofundado, pois, por ser o mais universal, ele se mostra de forma muito clara. Mas, segundo Heidegger:

[...] isso não pode significar que o conceito de ser seja o mais claro e que não necessite de qualquer discussão ulterior. Ao contrário, o conceito de ‘ser’ é o mais obscuro.45

O segundo preconceito se baseia na máxima:

“O conceito de ser é indefinível”. A partir dessa expressão, o autor afirma que “[...] não se pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir de conceitos superiores e nem o explicar através de conceitos inferiores”46.

Mas essa afirmação leva a um questionamento: se o ser é indefinível, ele então não se mostra mais como um problema? De forma alguma, afirmará Heidegger. Da premissa de que o ser é indefinível, a única resposta que se pode encontrar é que ele não é um ente. Devido a isso, a questão sobre o significado do ser torna-se necessária e não poderá ser abordada da mesma maneira que questões ônticas (questões sobre entidades particulares). Como ressalta o pensador alemão: “A indefinibilidade de ser não dispensa a

44 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 38. 45 Ibidem, p. 39. 46 Ibidem.

46 A finitude humana...

questão de seu sentido; ao contrário, justamente por isso a exige”.47

O terceiro preconceito se encontra na antecipada compreensão que todos têm sobre o “ser”: “O ser é o conceito evidente por si mesmo”48. Todos compreendem: “O céu é azul”, “Eu sou feliz” e coisas semelhantes. Mas esse modo comum de compreensão demonstra apenas obscuridade. Todos usam a expressão “ser” ou “é”, no entanto, ninguém a compreende de fato.

Segundo Heidegger, essa situação só demonstra “[...] a necessidade [...] de se retomar a questão sobre o sentido de ‘ser’”.49

Ao analisar esses preconceitos, o autor chega à conclusão de que a análise sobre o sentido do ser se mostra sem resposta e obscura. Ele então se propõe a recapitular, de maneira adequada, a própria formulação dessa questão:

Assim, o exame dos preconceitos tornou ao mesmo tempo claro que não somente falta resposta à questão do ser, mas que a própria questão é obscura e sem direção. Retomar a questão do ser significa, pois, elaborar primeiro, de maneira suficiente, a colocação da questão.50

Por isso que, em Ser e Tempo, o filósofo

alemão deseja fazer com que o ser apareça, desvele-se, torne-se tema de pesquisa metódica. Ele afirma que, para se efetivar esse objetivo, precisa-se,

47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 Ibidem, p. 38. 50 Ibidem, p. 40.

Heidegger e o século XX 47

primeiramente, ter à disposição pelo menos uma compreensão vaga da palavra “é”, que ajudará na colocação da questão. Depois, ele se utilizará da análise fenomenológica que deverá auxiliar na explicação desse significado, fazendo surgir aos poucos as estruturas e os modos de ser, para fazer ver aquilo que era de início velado e obscuro.

Após termos apresentado o contexto histórico do pensamento de Heidegger, bem como as influências que este autor recebeu, além das suas críticas à ontologia tradicional, procuraremos apontar, no próximo capítulo, como o autor entende a questão do ser; quais os principais pontos de sua ontologia; e em que consiste a análise existencial do homem feita por ele na obra Ser e Tempo. Qual o significado dos termos “ser-aí”, “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”? Que relação eles têm com a ontologia de Heidegger? Nosso objetivo, no próximo capítulo, será responder a essas perguntas.

48 A finitude humana...

= II =

A ONTOLOGIA DE HEIDEGGER EM “SER E TEMPO”

Este capítulo tem por objetivo apresentar os

principais pontos da ontologia de Heidegger, tendo como ponto de partida a sua obra Ser e Tempo. Demonstraremos o itinerário percorrido pelo autor para discutir o sentido do ser, bem como o significado dos conceitos criados por ele. Em suma, este capítulo se aprofundará na análise existencial que esse pensador alemão faz sobre o homem, entendido, em seu modo de ser, como “ser-aí”, “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”. 2.1 A questão do Ser

Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger ocupa-

se com a problemática do ser. Um erro frequentemente cometido por aqueles que se propõem a ler essa importante obra é esquecer que a temática principal é, precisamente, a questão do significado do ser. Geralmente, prefere-se dar uma atenção maior à análise da existência humana que nela se desenvolve. Portanto, este primeiro tópico tem por objetivo demonstrar o porquê de a ontologia desse filósofo direcionar-se para uma análise existencial do homem, entendido como Dasein ou “ser-aí”. Desse modo, ao esclarecer essa questão, a presente pesquisa visa não cometer o erro de tomar a ontologia do autor alemão como uma antropologia

50 A finitude humana...

e busca esclarecer o papel que o “ser-aí” possui dentro do esclarecimento da problemática do significado do ser.

Conforme já foi dito anteriormente, para Heidegger, a questão do sentido do ser, o fundamento da Metafísica, permaneceu velado, obscuro, esquecido pelos pensadores desde Platão até o seu tempo. Se a questão foi esquecida, entretanto, não é porque tenha sido criticada e deixada de lado, mas porque foi exibida em público de forma tão descarada e insuficiente que perdeu sua significação e importância originais. Devido a isso, o objetivo de Ser e Tempo é o de constituir uma ontologia que possa alcançar uma determinação plena e completa do significado do ser. Para isso, essa problemática deve partir de uma compreensão que permita pelo menos compreender o ser e interrogá-lo. Como aponta Thomas Giles:

Ser e Tempo é a elaboração da questão de saber como o tempo pertence ao sentido do Ser, a tentativa de alcançar, mediante o pensamento, aquilo que permaneceu impensado, o fundamento esquecido da Metafísica, sobre o qual tudo que ela concebe se fundamenta.1

Sendo assim, mostra-se necessário formular a

questão do sentido do ser de forma clara e explícita, pois, se ela é o problema fundamental da ontologia, então, deve ser tomada de forma adequada com o intuito de torná-la transparente. Devido a isso, Heidegger procura fazer uma análise geral da estrutura do questionar, para, depois, mostrar a forma

1 GILES, op. cit., 1989, p. 96.

A ontologia de Heidegger... 51

correta de se colocar o problema sobre o significado do ser. Segundo o autor:

Deve-se colocar a questão do sentido de ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida transparência. Daí a necessidade de se discutir brevemente o que pertence a uma questão para, a partir daí, poder-se mostrar a questão do ser como uma questão privilegiada.2

Em suma, com sua análise geral do questionar,

o filósofo tenta responder às seguintes perguntas: O que se está fazendo quando se investiga a questão do sentido do ser? O que significa o simples ato de se levantar questões? Para isso, ele dá uma resposta sucinta:

Todo o questionar é um buscar. Toda busca retira do que se busca a sua direção prévia. [...] O questionar enquanto ‘questionar acerca de alguma coisa’, possui um questionado. Todo o questionar acerca de... é, de algum modo, um interrogar sobre... Além do questionado, pertence ao questionar um interrogado. [...] No questionado, reside, pois, o perguntado, enquanto propriamente se intenciona, aquilo em que o questionamento alcança sua meta.3

2 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 40. 3 Ibidem.

52 A finitude humana...

Essas palavras de Heidegger parecem confusas e obscuras, mas isso se deve à tradução4, pois o que o autor quis afirmar com essa análise geral do questionar é que, de todo perguntar, podem-se distinguir três coisas diferentes: o que se pergunta; aquele a quem se pergunta ou que é interrogado; e aquele que pergunta. Dessa forma, ao analisar a elaboração do perguntar realizada pelo filósofo, Urbano Zilles aponta que: “em toda a verdadeira pergunta há, pois, alguém que pergunta a alguém sobre alguma coisa”5.

Partindo dessas considerações, o autor de Ser e Tempo afirma que toda a verdadeira pergunta possui um não-saber e um pré-saber. O não-saber consiste naquilo que ainda não é conhecido por aquele que pergunta, no entanto, como aponta Zilles:

O não-saber, é um não-saber não totalmente desconhecido, pois trata-se de um não-saber ciente, ao qual aquilo que se pergunta já é

4 Segundo Jonathan Rée: “Na verdade, nenhuma tradução poderia fazer justiça ao vigoroso estilo de Ser e Tempo, que constantemente lança mão de recursos peculiares à língua alemã, para a formação de palavras. No presente caso, Heidegger está detalhando como todo Fragen, ou todo ato de perguntar, compreende não apenas (a) uma noção preliminar ‘do que é buscado’, mas também (b) um Gefragtes, que é ‘sobre que se pergunta’, (c) um Befragtes, que é ‘interrogado’, e (d) um Erfragtes, que deve ‘ser descoberto’. Parte da poesia da análise de Heidegger pode ser reproduzida dizendo-se que todo perguntar compreende (a) sua orientação inicial, (b) seu perguntando-sobre, (c) seu perguntando-a e (d) seu perguntando-para – ainda que isso soe ridículo aqui, em alemão o efeito é simples, até mesmo belo”. RÉE, op. cit., 2000, p. 14. 5 ZILLES, Urbano. Teoria do Conhecimento. Rio Grande do Sul: Edipucrs, 1994, p. 26.

A ontologia de Heidegger... 53

conhecido de forma geral e indeterminada, mas ainda não em forma específica e determinada.6

Dessa forma, surge na estrutura do questionar

o pré-saber que implica um conhecimento prévio e atemático que o perguntador possui sobre aquilo que ele deseja interrogar. Dessa maneira, Heidegger chega à conclusão de que um pré-saber sobre aquilo que é questionado sempre se faz necessário no ato de questionar, pois sem este pré-conhecimento a pergunta ficaria sem meta, sem direção.

Uma vez esclarecida a estrutura do questionar, o filósofo alemão a aplica na questão do significado do ser. A partir disso, ele conclui que aquele a quem se pergunta, isto é, o interrogado, é o ser. O que se pergunta é o seu significado, o sentido do ser. E aquele que pergunta é o ente exemplar. Frente a essa análise, Heidegger percebe que o significado do ser se desvela em um ente especial. Mas essa descoberta lhe traz uma dúvida:

Em qual dos entes deve-se ler o sentido do ser? De que ente deve partir a abertura para o ser? O ponto de partida é arbitrário, ou será que um determinado ente possui o primado na elaboração da questão? Qual é este ente exemplar e em que sentido possui ele um primado?7

Para responder a essas questões, o filósofo

alemão retoma a análise feita anteriormente sobre a estrutura do questionar e percebe que todo aquele que faz uma pergunta possui certo não-saber a

6 Ibidem, p. 26. 7 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 42.

54 A finitude humana...

respeito do perguntado e possui também um pré-saber sobre o que se pergunta. Ele compreende também que, no mundo, o homem, entendido como “ser-aí”, é o único ente que tem a capacidade de questionar e é o único que se faz a pergunta sobre o sentido do ser. Sendo assim, o filósofo alemão conclui que a pessoa humana, em seu ato de perguntar sobre o significado do ser, possui implicitamente um pré-saber sobre a questão.

Em outras palavras, Heidegger nota que o sentido do ser já se mostra acessível a nós, de alguma maneira. Vejamos o que ele afirma a respeito:

[...] o sentido de ser já nos deve estar, de alguma maneira, à disposição. [...] sempre nos movemos numa compreensão de ser. [...] Não sabemos o que diz ‘ser’. Mas já quando perguntamos o que é ‘ser’, mantemo-nos numa compreensão do ‘é’, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa ‘é’.8

A partir disso, Heidegger pondera que o ente

exemplar no qual o ser se desvela é o homem, entendido como Dasein, pois este é o único ente que tem a capacidade de questionar-se sobre o sentido do ser. Perguntar é uma peculiaridade do ente que é o “ser-aí”. Nesse sentido, Zilles ressalta:

Entre todos os entes conhecidos de forma direta pelo homem, só o próprio homem faz perguntas, pois só ele sabe e não sabe ao mesmo tempo. Nele saber e não-saber fecundam-se mutuamente, pois, o homem sempre transcende a situação presente.9

8 Ibidem, p. 41. 9 ZILLES, op. cit., 1994, p. 28.

A ontologia de Heidegger... 55

Logo, esse ente que possui a primazia na questão do significado do ser é o Dasein, pois como afirma o filósofo alemão:

visualizar, compreender, escolher, aceder a são atitudes constitutivas do questionar e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos.10

Dessa maneira, uma vez descoberto o ente no

qual o significado do ser desvela, o autor afirma que, para se entender o sentido do ser, deve-se também conhecer o ser desse ente que questiona, isto é, deve-se torná-lo transparente. Como aponta Heidegger: “Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona – em seu ser”.11

Somente tornando transparente o ser do Dasein (este ente exemplar que se questiona) é que a compreensão do sentido do ser se tornará clara. Sendo assim, o “ser-aí” revela-se como o único ente que possui uma abertura constitutiva à compreensão do significado do ser, que fundamentará todos os outros entes e a ele próprio, pois “[...] em toda e qualquer pergunta exercemos, ao menos implicitamente, atematicamente, uma pré-compreensão do Ser e dos entes e do seu sentido”.12

Ao afirmar que, para se desvelar o significado do ser, é preciso antes tornar transparente o ser do ente que se questiona, Heidegger desloca sua

10 HEIDEGGER., op. cit. 2008, p. 42. 11 Ibidem. 12 ZILLES, op. cit., 1994, p. 33.

56 A finitude humana...

ontologia para uma análise existencial da pessoa humana. Mas seu objetivo principal continua sendo a questão do sentido do ser.

A investigação que o autor faz sobre a condição existencial do “ser-aí” não permite mais que o homem possa aderir a qualquer transcendência superior, pois é nele que se encontra o significado do ser. Como afirma Huismam:

É o homem que faz advir o ser. Assim, o estudo do ser necessita de um estudo prévio do próprio homem, em que o homem não é mais a parte de um sistema, mas aquilo a partir do quê um sistema pode estabelecer-se.13

Sendo assim, o autor de Ser e Tempo não

propõe uma antropologia. Seu objetivo é conhecer as estruturas ontológicas do Dasein como pressuposto para o entendimento claro e correto do sentido do ser. Desse modo, ele se distingue dos existencialistas no sentido estrito do termo, pois estes últimos consideram o homem como um ser, cuja existência precede a essência. Mas, para Heidegger, o homem não é um ser, ele é o ente que interroga o ser, que possui o privilégio da faculdade de questionar. Nesse sentido, Huismam aponta que

Confundir o próprio ato do questionamento com aquilo que é questionado, tomar o questionante pelo questionado é o erro fatal que teriam cometido todos os predecessores de Heidegger.14

13 HUISMAM, Denis. História do Existencialismo. Traduzido por Maria Loureiro. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 102-103. 14 HUISMAM, op. cit., 2001, p. 100.

A ontologia de Heidegger... 57

É importante ter em mente que o filósofo alemão evita usar os termos “homem”, “ser humano” etc., pois esses poderiam dar uma conotação tradicional ao problema ontológico, isto é, poderiam aproximar seu pensamento da tradição metafísica dos filósofos antigos, na qual ele é totalmente contrário. Devido a isso, Heidegger entende o homem em seu modo de ser como Dasein15, “ser-aí” ou “presença”16.

Nesse propósito, o autor revela: “designamos com o termo presença esse ente que cada um de nós mesmos sempre somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade de questionar”17. A

15 “Heidegger escolhe a mais comum das palavras alemãs: Dasein. Pode-se freqüentemente traduzi-la por ‘existência’, mas em Ser e tempo este último termo é necessário para expressar o conceito de Existenz, de modo que a única solução viável é criar uma nova palavra em nossa língua para servir como equivalente: ‘Dasein’ (escrita em itálico; plural: ‘Daseins’). Na prática, podemos muitas vezes parafraseá-las usando ‘nós’ em lugar, mas nem sempre. Se nos sentirmos desconfortáveis diante desse estrangeirismo, devemos simplesmente nos lembrar de que a palavra alemã Dasein é absolutamente coloquial. Não é um termo técnico, e como Daseins somos simplesmente entidades com atitudes ontológicas”. RÉE, op. cit., 2000, p. 15-16. 16 Na tradução para o português, o termo alemão Dasein geralmente equivale aos termos “ser-aí” ou “presença”. A tradução de Ser e Tempo da qual esta pesquisa se utiliza, usa com frequência o termo “presença”. No entanto, devido ao fato do termo “ser-aí” caracterizar-se como o mais utilizado e conhecido, esta pesquisa o empregará para representar o termo alemão Dasein. Durante este trabalho, alternaremos entre estes dois termos: “ser-aí” e Dasein, que possuem o mesmo significado, ou seja, representam o homem entendido em seu modo de ser. 17 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 42-43.

58 A finitude humana...

partir dessa descoberta, esse pensador propõe-se a analisar as estruturas ontológicas do “ser-aí”, o ente que possui a capacidade de questionar-se sobre o sentido do ser. Ele afirma: “A colocação explícita e transparente da questão sobre o sentido do ser requer uma explicação prévia e adequada de um ente (a presença) no tocante a seu ser”18. A partir dessa consideração, o autor de Ser e Tempo dá início a sua analítica existencial do “ser-aí”.

Analisamos até aqui o problema da questão do ser abordada por Heidegger, isto é, esclarecemos como essa investigação, que visa o desvelamento do ser, ocupa um lugar central no pensamento desse autor. Apontamos também como o filósofo alemão fundamenta sua ontologia em uma análise existencial da pessoa humana. Entretanto, mostra-nos necessário explicitar em que consiste essa análise, explicando o significado do termo “ser-aí” utilizado pelo autor. Compreender o significado dessa categoria existencial será o objetivo do tópico seguinte. 2.2 A analítica existencial do “SER-AÍ”

Em sua ontologia, Heidegger entende o ser

como a raiz fundamental e fonte de todas as coisas, por isso, faz-se necessário desvelar seu significado. Por muito tempo, a separação entre essência e existência proposta pelos antigos, fez com que a ontologia assimilasse o ser à eternidade, à permanência, à duração; características estas que se confrontavam com a realidade contingente,

18 Ibidem, p. 43.

A ontologia de Heidegger... 59

passageira e efêmera do mundo. Mas, para Heidegger, o ser deve ser desvelado na esfera da temporalidade; e cabe ao homem, entendido em seu modo de ser como “ser-aí”, dar cabo a essa tarefa.

Devido ao fato de o ser não poder ser compreendido fora de uma realidade temporal, o Dasein passa a ser o campo de manifestação do ser, o espaço de desenvolvimento próprio, pois como afirma Huismam: “Não pode haver compreensão do ser senão em pleno desenvolvimento, ou seja, em ato”19.

Dessa maneira, a compreensão do ser é, em si mesma, um elemento do ser da existência do “ser-aí”, é sua característica fundamental que o distingue dos demais entes. Em outras palavras, a sua existência é denominada ontológica, ao passo que os demais entes são denominados ônticos20.

Sendo assim, uma das principais características do Dasein é o fato de sua essência consistir em sua própria existência. “A ‘essência’ da presença está em sua existência”21, afirma Heidegger. Nesse ponto, é importante fazermos uma observação: para o filósofo, o termo “existência”

19 HUISMAM, op. cit., 2001, p. 103. 20 É importante ressaltar que em sua obra Ser e Tempo, Heidegger faz uma distinção entre existência ontológica e existência ôntica. Segundo o autor a existência ontológica se refere ao ser enquanto ser, ao passo que existência ôntica refere-se aos entes. Como o próprio filosófo afirma: “chamamos de ente muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, no ser simplesmente dado, no teor e recurso, no valor e na validade, na presença, no há”. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. 21 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 85.

60 A finitude humana...

possui outro significado. Segundo ele, deve-se evitar confundir “existência”, que é a essência do “ser-aí”, com o termo existentia, utilizado pela ontologia tradicional.

Para o autor, existentia é Vorhandenheit22, isto é, simples-existência. Nesse sentido, Heidegger ressalta:

Para a ontologia tradicional, ‘existentia’ designa o mesmo que ‘ser simplesmente dado’, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de presença.23

Esse conceito não pode ser atribuído ao “ser-

aí”, pois este possui um caráter de possibilidade, de ser possível, de existência ativa no mundo. Jamais a pessoa humana será simples-existência, pois ela é precisamente aquele ente para o qual as coisas estão presentes. A essas estruturas de possibilidade e existência ativa no mundo do Dasein, que constituem sua essência, é que Heidegger denomina de “existência”:

Chamamos ‘existência’ ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se dessa ou daquela maneira, com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira.24

22 “Vorhandenheit é um substantivo formado do substantivo Hand (= mão) e da preposição Vor (= diante de, no sentido espacial e antes, no sentido temporal). Designa o modo de ser da coisa enquanto o que é assumido ‘ingenuamente’ como substancia de ser”. Ibid., p. 563. 23 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 85. 24 Ibidem, p. 48.

A ontologia de Heidegger... 61

Segundo o filósofo alemão, uma das características do “ser-aí” é ser Geworfenheit25, isto é, estar-lançado. Isso implica afirmar que ele está sempre lançado a uma situação, está sempre se relacionando de forma ativa com ela. O Dasein é sempre possibilidade. Para Vattimo, essa afirmação designa que “[...] o caráter mais geral e específico do homem, a sua ‘natureza’ ou ‘essência’, é existir”26.

Desse modo, o “ser-aí” sempre está jogado a uma situação, na qual é provocado a atuar e escolher, podendo se conquistar ou perder-se. Nesse âmbito, Heidegger afirma:

A presença é sempre sua possibilidade. Ela não ‘tem’ a possibilidade apenas como uma propriedade simplesmente dada. E porque a presença é sempre essencialmente sua possibilidade ela pode, em seu ser, isto é, sendo, ‘escolher-se’, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se ‘aparentemente’. A presença só pode perder-se ou ainda não se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma.27

Portanto, o caráter de possibilidade é uma das

estruturas fundamentais do “ser-aí”. É ela que faz com que a sua essência seja sua existência. Todas as

25 É o termo utilizado por Heidegger para “designar um existencial constitutivo da presença, relacionado com a necessidade de inserir-se numa variedade de conjuntos: histórico, ôntico, fatual, relacional, etc”. Ibid., p. 574. 26 VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 24. 27 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 86.

62 A finitude humana...

possíveis “essências” do Dasein nada mais são do que seus modos de existir. Como aponta Giles:

É pelo fato de a sua essência consistir na existência que Heidegger designa o homem pelo termo “ser-aí” e não pelo termo ente-aí. A forma verbal exprime o fato de cada elemento da essência do homem ser um modo de existir, de se encontrar aí.28

Por isso, sem a compreensão dessa condição

do modo de ser da pessoa humana, torna-se dificultoso o entendimento da analítica existencial de Heidegger.

Outro ponto importante, analisado pelo autor, é o caráter singular do “ser-aí”. A existência é sempre individuada e particular. O filósofo alemão evita falar da existência em um âmbito universal, como se o Dasein fosse uma simples-presença geral. Para o autor, a existência é sempre pessoal.

O ser, que está em jogo no ser deste ente, é sempre meu. Neste sentido, a presença nunca poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar de um gênero de entes simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente dados, o seu ‘ser’ é indiferente ou, mais precisamente, eles são de tal maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não indiferente. Dizendo-se a presença, deve-se também pronunciar sempre o pronome pessoal, devido a seu caráter de ser sempre minha: ‘eu sou’, ‘tu és’.29

28 GILES, op. cit., 1989, p. 99-100. 29 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 86.

A ontologia de Heidegger... 63

Nesse sentido, Heidegger procura compreender a existência do “ser-aí” analisando a existência cotidiana, banal e não uma suposta existência idealizada que só seria alcançada por meio da aplicação de métodos complexos. Assim, o autor também designa o Dasein e sua existência, como um “estar-aí”, pois a existência cotidiana é sempre um estar no mundo e com os outros. Dessa forma, entender o Dasein como um “estar-aí” é compreendê-lo como um ser que sempre está lançado a uma situação, possuidor de uma atitude ativa frente a ela.

A existência, segundo o filósofo, é poder ser. Isto implica dizer que o “ser-aí” não pode ser considerado um simples objeto, ou seja, uma simples existência. Portanto, Heidegger afirma que a essência do “ser-aí” consiste em sua existência. Nesse propósito, Giles afirma que no Dasein,

[...] sua existência é a própria existência humana que defronta suas tarefas, que transcende seu passado e se projeta para o futuro; que transforma e recria as estruturas sociais, culturais, factuais.30

Com isso, a existência do homem pode ser

entendida como um constante projetar-se, denominando essa característica como transcendência.

Dessa maneira, para o autor, a existência é essencialmente transcendência, isto é, superação contínua. Isso significa que a transcendência não é somente mais um comportamento dentre os vários assumidos pelo “ser-aí”, mas trata-se de sua

30 GILES, op. cit., 1989, p. 101.

64 A finitude humana...

constituição fundamental, ou seja, sua subjetividade essencial. Segundo Zilles:

O homem é transcendência e direção ao seu fundamento que é o ser, tem uma abertura para o ser; ou seja, tem acesso ao ser. Mais ainda, o homem é o lugar onde o ser dos entes se revela.31

Sendo assim, é a partir da transcendência que

as coisas do mundo assumem uma razão de ser, pois, ao entender o Dasein como um projeto, elas assumem o caráter de utensílios em função desse projetar humano. Devido a isso, o autor de Ser e Tempo não só entende o modo de ser do homem como “ser-aí”, mas também o concebe como um “ser-no-mundo”32.

Por meio da transcendência, Heidegger entende a pessoa humana como um projeto; e tudo que o rodeia no mundo faz parte do caminho pelo qual ela deve percorrer para poder obter a sua existência autêntica. Isso significa que o Dasein é um “ser-no-mundo” e que, com o seu projetar, utiliza-se dos instrumentos como conjuntos de utensílios para viver ativamente e não só numa profunda contemplação.

Uma vez explicitado o que consiste o conceito de “ser-aí” utilizado pelo filósofo alemão, bem como suas implicações para a ontologia, como a questão da essência e existência, as possibilidades, o projetar e a transcendência; nossa pesquisa, no próximo tópico, abordará, de maneira clara, como Heidegger entende o Dasein como “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros” (das Mit-sein). Essa discussão se mostra importante,

31 ZILLES, op. cit., 1994, p. 33. 32 O ser-no-mundo é a tradução da expressão In-der-Welt-sein.

A ontologia de Heidegger... 65

pois é requisito obrigatório para o entendimento de outro conceito heideggeriano que se mostrará como o ponto central deste trabalho: o conceito de “ser-para-a-morte” (Sein-zum-Tode).

2.3 O mundo e os outros como constitutivos ontológicos do DASEIN

Em Ser e Tempo, Heidegger ressalta: “A

presença é sempre sua possibilidade”33. Ao fazer essa afirmação, ele quis dizer que todas as estruturas ontológicas do Dasein são reais. No entanto, o autor também afirma que essas estruturas só podem ser possíveis para um ente que já está lançado no mundo, ou seja, para um ente cuja essência consiste em estar além de si. Sendo assim, o “ser-aí” só pode realizar-se na medida em que esteja inserido em um mundo. A partir disso, o filósofo também denomina o Dasein com o existencial34 “ser-no-mundo”: “A expressão composta ‘ser-no-mundo’, já na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenômeno de unidade”35.

Dessa maneira, o “ser-aí” está, em sua constituição ontológica, ligado ao mundo, unido a ele. Nesse propósito, Heidegger afirma que um erro frequente cometido pela ontologia tradicional é o de eliminar o conceito de mundo, como se o homem fosse primeiramente uma realidade abstrata (separada do mundo) para depois entrar em relação

33 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 86. 34 “Expressão utilizada por Heidegger que remete às estruturas que compõe o ser do homem a partir da existência em seus desdobramentos advindos da presença”. Ibid., p. 563. 35 Ibidem, p. 98.

66 A finitude humana...

com este mundo. Ao entender a pessoa humana como “ser-no-mundo”, o autor pretende demonstrar a “espacialidade existencial”36 do Dasein, ou seja, seu campo de atuação, os limites de suas possibilidades, sua facticidade37. Ele pretende demonstrar que o “ser-aí” precisa estar lançado em um mundo para se realizar. E o mundo, por sua vez, tem sua importância enquanto instrumento para a realização das possibilidades do “ser-aí”. Vejamos o que filósofo diz a respeito:

A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença é que possibilita a visão da espacialidade existencial da presença. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas ‘metafisicamente’, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se ‘em’ um espaço.38

Portanto, para se entender o caráter de

unidade entre o mundo e o “ser-aí” que caracteriza o

36 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 102. 37 Termo utilizado por Heidegger para designar a característica do “ser-aí” de estar imediatamente inserido em um mundo em que o pré-existe, no qual ele tem que operar e que deve analisar. Sobre este conceito, o autor nos fala: “chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença em que, como tal, cada presença sempre é. [...] O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente ‘intramundano’, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu ‘destino’, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo”. HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 102. 38 Ibidem.

A ontologia de Heidegger... 67

“ser-no-mundo”, antes é preciso esclarecer um conceito que Heidegger denomina de mundanidade39 do mundo. Falar da mundanidade é explicitar como o conceito de mundo deve ser compreendido. Segundo o autor, “[...] ‘mundo’ não é determinação de um ente que a presença em sua essência não é. ‘Mundo’ é um caráter da própria presença”40.

O mundo não deve ser entendido como uma realidade separada do “ser-aí”, como existindo de forma independente, mas deve ser visto como uma realidade da qual o Dasein poderá utilizar-se para realizar suas possibilidades. Em suma, a relação que o “ser-aí” estabelece com o mundo não pode ser passiva, isto é, não se trata de uma contemplação ou uma relação de dois seres no espaço.

O Dasein se relaciona com o mundo de forma ativa, ele está no mundo sempre como ente referido às suas próprias possibilidades, ou seja, assumindo-as em sentido amplo, como instrumentos. Nesse propósito, Vattimo afirma:

A filosofia e a mentalidade comum pensam, desde há séculos, que a verdadeira realidade das coisas é a que se apreende ‘objectivamente’ com um olhar desinteressado que é, por excelência, o olhar da ciência e das suas mediações matemáticas.41

Esse comentador também aponta que,

partindo da perspectiva heideggeriana na qual os objetos são considerados instrumentos disponíveis

39 É um conceito ontológico criado por Heidegger, para designar a estrutura de um momento constitutivo do “ser-no-mundo”. 40 Ibidem, p. 112. 41 VATTIMO, op. cit., 1996, p. 28-29.

68 A finitude humana...

ao “ser-aí”, ao invés de realidades independentes de nós, “[...] fica aberto o caminho para reconhecerem a própria objectividade das coisas como um modo particular de a instrumentalidade se determinar”42.

Por isso, o mundo no qual o Dasein está inserido é o mundo das coisas. Estas, por sua vez, estão ligadas a ele de maneira constitutiva e real. Segundo Heidegger, elas têm por função serem utilizáveis ao “ser-aí”, servir de instrumentos a ele, meios a partir dos quais ele possa realizar suas possibilidades. No entanto, o mundo não é constituído somente de objetos, há também outros seres semelhantes ao “ser-aí”, existem outros “eus”. Assim como o Dasein está em um mundo, relacionando-se de forma ativa com ele e com suas coisas, seu modo de ser também possui uma característica de “ser-com” as outras pessoas, outros “seres-aí”. Essa estrutura ontológica do “ser-aí”, Heidegger denomina com o existencial “ser-com-os-outros”.

Enquanto “ser-no-mundo”, o Dasein já existe junto às coisas e está sempre com os outros. Sendo assim, ele não é propriamente um “eu” separado, que primeiro existe de forma abstrata para depois estabelecer relações com os demais “seres-aí”. O Dasein é necessariamente um “ser-com-os-outros”, isso implica dizer que, uma vez inserido no mundo, o ele já está em relação com os outros. Nesse sentido, Heidegger afirma que

[...] o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença é ‘mundo compartilhado’. O ser-em é ‘ser-com’ os outros. O

42 VATTIMO, op. cit., 1996, p. 29.

A ontologia de Heidegger... 69

ser-em-si intramundano desses outros é ‘co-presença’.43

Dessa maneira, o “ser-aí” nunca é um ser

isolado. Todo ser é sempre “ser-com”, mesmo na solidão e no isolamento. O autor aponta que: “Mesmo o estar-aí da presença é ser-com no mundo. Somente ‘num’ ser-com e ‘para’ um ser-com é que o outro pode ‘faltar’. O estar só é um modo deficiente de ser-com, e sua possibilidade é a prova disso.”44

Para o filósofo alemão, afirmar que o Dasein está em constante relação com os outros significa dizer que o ele só é quando possui essa estrutura de “ser-com”, ou seja, enquanto co-presença que vem ao encontro dos outros. Assim, os outros não podem ser entendidos como: “Todo o resto dos demais além de mim”45, do qual o “eu” se isolaria. Os outros devem ser encarados como aqueles que, na maioria das vezes, não se consegue diferenciar, isto é, que não são opostos a nós, mas são outros como nós e que estão conosco. Eles são aqueles com os quais o Dasein está se relacionando. Portanto, o outro não é algo simplesmente dado.

Dessa forma, Heidegger ressalta: “Mesmo quando vemos o outro ‘meramente em volta de nós’, ele nunca é apreendido como coisa-homem simplesmente dada”46. Para o autor, o “ser-aí” sempre está em relação com outros “eus”. Como ele próprio afirma:

43 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 175. 44 Ibidem, p. 177. 45 Ibidem., p. 174. 46 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 176.

70 A finitude humana...

De acordo com a análise aqui desenvolvida, o ser com os outros pertence ao ser da presença que, sendo, põe em jogo seu próprio ser. Enquanto ser-com, a presença ‘é’, essencialmente, em virtude dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como um enunciado existencial. Mesmo quando cada presença fática não se volta para os outros, quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com. No ser-com, enquanto o existencial de ser em virtude dos outros, os outros já estão abertos em sua presença. [...] Na estrutura da mundanidade do mundo, os outros não são, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu ser-no-mundo, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está à mão.47

Ao analisarmos estes dois existenciais

formulados por Heidegger – “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros” – no qual o Dasein possui, em sua própria constituição ontológica, uma estrutura de abertura48 e relação com as coisas do mundo e com os outros, surgem então as seguintes questões: de que forma ocorre essa relação entre o “ser-aí” com o mundo e com os outros “seres-aí”? Quais são as condições que o autor apresenta para que ocorram essas relações? Procuraremos responder a essas

47 Ibidem, p. 180. 48 Termo criado por Heidegger para designar a tendência da presença de realizar-se em descobrindo. “O modo de abertura próprio da presença distingue-se da descoberta na medida em que ela se revela para si mesma, exercendo o papel de revelador. A descoberta dos entes não dotados do caráter de presença se faz como ser-descobridor da presença numa abertura”. Ibidem, p. 568.

A ontologia de Heidegger... 71

perguntas no próximo tópico que terá como objetivo esclarecer o conceito heideggeriano de “cuidado”. Nele se encontram os fundamentos das relações que o Dasein estabelece, servindo de base para compreensão do conceito de homem como “ser-para-a-morte” e seus pressupostos para uma existência autêntica.

2.4 O cuidado como componente ontológico do “SER-AÍ”

Uma vez lançado na existência, o Dasein está

em íntima relação com as coisas do mundo e com os outros. E, como já explicitamos, essa relação não se dá de forma passiva, como se ele fosse uma simples-existência (Vorhandenheit), mas se dá de forma ativa, pois o “ser-aí” possui em sua estrutura ontológica a característica fundamental de ser projeto, ou seja, a transcendência. Desse modo, ele sempre está lançado a uma situação e confrontando-se com uma série de possibilidades.

Nesse propósito, Heidegger denomina a forma como ocorre esse relacionamento ativo com o mundo e com os outros com o termo alemão Sorge49, que pode ser traduzido como cura ou cuidado50. Assim, o “ser-aí” entendido como “ser-no-mundo”, caracteriza-

49 Termo utilizado por Heidegger para designar a dinâmica própria da presença de relacionar-se. Sorge é a expressão utilizada [...] para acompanhar o movimento e as relações da presença”. HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 564. 50 A tradução da obra aqui analisada decidiu utilizar o radical latino cura para designar Sorge. No entanto, esta pesquisa irá denominar este termo de Heidegger com a palavra cuidado, visto que este é o termo mais utilizado e conhecido pelos estudiosos de Heidegger.

72 A finitude humana...

se pelo “cuidado” com as coisas, enquanto que, entendido como “ser-com-os-outros”, ele caracteriza-se pelo seu “cuidado” com os outros. No entanto, essas relações se mostram distintas uma da outra, como revela o filósofo:

O ser relativo aos outros sem dúvida é, sob o ponto de vista ontológico, distinto do ser relativo às coisas. O ‘outro’ ente tem ele mesmo a forma de ser do ser-aí. No ser-com e relativo aos outros há, pois, uma relação de ser do ser-aí ao ser-aí. Mas esta relação, cabe dizer, é constitutiva do ser-aí peculiar em cada caso, que tem uma compreensão do seu peculiar e se conduz assim relativamente ao ser-aí. O ser-relativo a si mesmo torna-se então ‘projeção’ do particular ser relativo a si mesmo em outro. O outro é uma ‘doublette’ de si mesmo.51

O autor utiliza-se da expressão Besorgen52

para designar o “cuidado” com as coisas do mundo. Essa expressão pode ser traduzida pelo termo ocupação. O Dasein, enquanto “ser-no-mundo”, relaciona-se com os objetos existentes e, por meio deles, busca realizar suas possibilidades de existências. Nesse sentido, as coisas do mundo são utensílios, coisas a utilizar, que estão à mão. Elas estão para o “ser-aí” e vêm ao encontro dele.

51 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Traduzido por Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 141. 52 Expressão utilizada por Heidegger para designar a característica ontológica do “ser-aí” de relacionar-se com as coisas do mundo. A tradução da obra aqui analisada decidiu utilizar a palavra ocupação para designar Besorgen.

A ontologia de Heidegger... 73

A partir disso, Heidegger denomina essas coisas do mundo como instrumentos53: “Designamos o ente que vem ao encontro na ocupação com o termo ‘instrumento’”54. Dessa forma, entendendo as coisas do mundo como instrumentos, o autor de Ser e Tempo quer demonstrar que os objetos existentes no mundo não são coisas simplesmente dadas que devem ser apenas contempladas objetivamente pelo “ser-aí”, mas são objetos que estão no mundo para servirem de utensílios a ele.

Por meio desses objetos o Dasein deve realizar suas possibilidades. Por isso, ele não deve apenas contemplar os instrumentos, mas deve ocupar-se deles. Nesses instrumentos ele assume uma multiplicidade de modos de ser-em:

Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar-se perder alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar... Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação.55

Portanto, em sua relação com as coisas do

mundo, o Dasein deve ter o “cuidado” com elas, pois é por meio desses instrumentos que ele pode se

53 Em alemão Zeug. Heidegger utiliza esta expressão para mostrar que “as coisas do mundo são mais objetos à mão, que tem sua utilidade ao homem, do que coisas a se contemplar”. HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 565. 54 Ibidem, p. 116. 55 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 103.

74 A finitude humana...

realizar. Caso o “ser-aí” não estabeleça essa relação de “cuidado” com as coisas, ele não poderá realizar de forma autêntica as possibilidades assumidas; e isso o levará a uma “existência inautêntica”.56

Quando se trata do “cuidado” para com os outros, Heidegger denomina essa característica do Dasein de Fürsorge57, palavra esta que pode ser traduzida por preocupação. Sendo assim, os outros “seres-aí” não podem ser tratados como objetos, eles não estão no mundo para servirem de utensílios e nunca podem ser caracterizados como existências simplesmente dadas. Os outros estão em íntima relação com o “ser-aí”, graças a sua característica de “ser-com”.

Por causa disso, a relação que se estabelece com eles não é a de “ocupação” e sim de “preocupação”. Como Heidegger afirma:

O ente, com o qual a presença se relaciona enquanto ser-com, também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele mesmo é presença. Desse ente não se ocupa, com ele se ‘preocupa’.58

Por isso, o “ser-aí” deve estabelecer uma

relação de “preocupação” para com os outros “seres-aí”. Segundo o autor:

56 Este termo será melhor explicitado no próximo capítulo desta pesquisa. 57 Termo utilizado por Heidegger para designar a característica ontológica do “ser-aí” de relacionar-se com os outros “seres-aí”. A tradução da obra aqui analisada decidiu utilizar a palavra preocupação para designar Fürsorge. 58 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 177.

A ontologia de Heidegger... 75

O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não se sentir tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação.59 Todavia, o cuidado para com os outros pode

culminar em duas possibilidades extremas ou duas atitudes distintas. Na primeira possibilidade, a preocupação concorre para uma anulação do outro, ou seja, para a perda de sua preocupação e sua liberdade, anulando-se, assim, sua existência. Nesse sentido, Heidegger afirma:

Ela pode, por assim dizer, retirar o ‘cuidado’ do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, saltando para seu lugar. Essa preocupação assume a ocupação que o outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se, para posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e já pronto, ou então dispensar-se totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode torna-se dependente e dominado, mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado. Esta preocupação substitutiva, que retira do outro o ‘cuidado’, determina a convivência recíproca em larga escala [...].60

A segunda possibilidade de preocupação para

com o outro repousa em uma atitude de se fazer solidário com este. Nesse sentido, assume-se uma preocupação de ajudá-lo a conquistar sua própria liberdade, fazendo com que ele assuma seus cuidados e suas possibilidades, em outras palavras,

59 Ibidem, p. 178. 60 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 178.

76 A finitude humana...

sua existência. Observemos o que o autor diz a respeito:

[...] subsiste ainda a possibilidade de uma preocupação que não tanto substitui o outro, mas que salta antecipando-se a ele em sua possibilidade existenciária de ser, não para lhe retirar o ‘cuidado’ e sim para devolvê-lo como tal. Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou seja, à existência do outro e não de uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela.61

Sendo assim, podemos concluir que, uma vez

sendo “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”, o Dasein está intimamente ligado a essas duas realidades graças ao “cuidado”, seja por meio da “ocupação” ou da “preocupação”. Como Heidegger aponta:

A preocupação se comprova, pois, como uma constituição de ser da presença que, segundo suas diferentes possibilidades, está imbricada tanto com o seu ser para o mundo da ocupação quanto com o ser para consigo mesmo.62

Desse modo, uma vez assumindo essas duas

constituições ontológicas, o “ser-aí” toma uma postura autêntica frente à existência. Ele é tomado por um sentimento (sensibilidade) que o faz tomar consciência de que é um ser inserido no mundo em meio a tantos outros “seres-aí”. Essa sensibilidade faz

61 Ibidem, p. 178-179. 62 Ibidem., p. 179.

A ontologia de Heidegger... 77

com que o Dasein indague o mais íntimo de sua consciência com o intuito de tomar uma postura frente ao desconhecido.

Portanto, assumindo-se como um “ser-no-mundo” e como um “ser-com-os-outros”, o homem adquire a própria existência e, mesmo tendo sido lançado de forma passiva no mundo, ele passa a assumi-la de forma ativa, buscando descobrir o sentido de sua existência e orientando suas ações para essa possibilidade. Com isso, o “ser-aí” vai descobrindo o seu “dever-ser”, que consiste em sua obrigatoriedade de realizar-se como pessoa.

Enfim, fazer uma análise existencial do “ser-aí” é descobrir que a existência é um contínuo estar-lançado às possibilidades que se apresentam. Possibilidades estas que sempre se renovam, fazendo com que o Dasein possa tanto acertar-se quanto perder-se. No entanto, dentre essas diversas possibilidades, existe uma com a qual ele se encontra fatalmente destinado a se deparar, dela não podendo escapar: a morte.

Chegamos, então, ao momento mais elevado da nossa pesquisa. É a partir dessa possibilidade que Heidegger expressa o conceito de “ser-para-a-morte” e inicia sua reflexão sobre a existência inautêntica e a existência autêntica. Sendo assim, partindo desse conceito, tratado no capítulo seguinte, que esta pesquisa visará demonstrar como a consciência da finitude e temporalidade pode se apresentar como um pressuposto para uma existência autêntica, ou seja, que revela um sentido para a vida.

78 A finitude humana...

= III =

O HOMEM ENTENDIDO COMO “SER-PARA-A-MORTE”

A nossa pretensão neste capítulo consiste em

refletir sobre o conceito de “ser-para-a-morte”, elaborado por Heidegger. Para isso, primeiramente apresentaremos a análise que o autor faz da decadência do “ser-aí”, isto é, sua queda no “impessoal” e na inautenticidade.

Em seguida, mostraremos em que sentido o filósofo entende o Dasein como um “ser-para-a-morte”, além de demonstrar como o “impessoal” interfere na visão cotidiana sobre esse fenômeno. Depois, buscaremos esclarecer o conceito de “angústia”, a fim de mostrar como esse constitutivo do “ser-aí” apresenta-se como um caminho para a saída da inautenticidade e assumir uma existência autêntica.

3.1 O impessoal e a inautenticidade

No capítulo anterior, mostramos que

Heidegger entende a pessoa humana como um constante “estar-lançado” (Geworfenheit), isto é, como um ser que está confrontando-se com várias possibilidades de existência, inserido num contexto, lançado a uma situação, podendo ganhar-se ou perder-se. A essa constituição fundamental do “ser-aí”, o autor denomina de projeto ou transcendência. Por meio da transcendência, o filósofo entende o

80 A finitude humana...

Dasein como um ser que se relaciona, de maneira direta e ativa, com as coisas do mundo e com os outros, caracterizando-o com os existenciais “ser-no-mundo” e “ser-com-os-outros”. Essas relações se dão por meio do “cuidado”. Segundo Huismam:

O cuidado em Heidegger visa, enquanto desprendimento da relação ‘utilitária’ que temos com o mundo [...], trazer à luz uma realidade que fugimos: nossa tendência a nos deixar absorver em nossa relação com os objetos, a nos identificarmos com eles ou com sua função [...].1

Toda vez que o Dasein se deixa levar por essa

tendência, seus autênticos “ser-com-os-outros” e “ser-no-mundo” se degeneram em um “ser-entre-outros” e um “ser-entre-as-coisas”. Assim, ele cai na inautenticidade.

No âmbito do “ser-no-mundo”, a inautenticidade ocorre quando o “ser-aí” assume uma postura de não possuir a si mesmo, ou seja, ele renuncia sua característica principal, a de se relacionar de forma ativa com o mundo, de ser responsável pelas coisas por meio da “ocupação” e assume uma atitude passiva frente à realidade. Desse modo, quando o Dasein vive de forma inautêntica, ele passa a ser considerado “[...] apenas mais uma das entidades à-mão ou simples existências com que deparamos no curso de nossa experiência”2.

1 HUISMAM, op. cit., 2001, p. 113. 2 RÉE, op. cit., 2000, p. 31.

O homem entendido como ser-para-a-morte 81

Nesse sentido,

[...] a inautenticidade parece caracterizar-se essencialmente pela incapacidade de alcançar uma verdadeira abertura em direcção das coisas, uma verdadeira compreensão, já que em vez de encontrar a própria coisa nos mantemos nas opiniões comuns.3

Na característica de “ser-com-os-outros”, a

inautenticidade passa a enquadrar as atitudes do “ser-aí” quando este assume o comportamento de comparar o seu modo existencial com o dos outros “seres-aí”. Heidegger caracteriza essa atitude com a expressão Abständigkeit4, que pode ser traduzida pelo termo afastamento. Dessa forma, o Dasein fica tomado pelo comportamento de querer estar sempre à frente ou atrás dos outros, de se considerar mais importante ou mais insignificante do que os outros “seres-aí”.

Assim,

Nas ocupações do que faz com, contra ou a favor dos outros, sempre se cuida de uma diferença com os outros, seja apenas para nivelar as diferenças, seja para a presença, estando aquém dos outros, esforça-se por chegar até eles, seja ainda para a presença, na precedência sobre os outros, querer subjugá-los. Embora sem o perceber, a

3 VATTIMO, op. cit., 1996, p. 45. 4 Expressão utilizada por Heidegger para designar uma ação de “[...] abrir intervalo, criar espaço, tomando distância, afastando-se. Essa ação é constitutiva da estrutura existencial da convivência, enquanto projeção para fora”. HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 572.

82 A finitude humana...

convivência é inquietada pelo cuidado em estabelecer esse intervalo. Em termos existenciais, a presença possui um caráter de afastamento. Quanto mais este modo de ser não causar surpresa a própria presença cotidiana, mais persistente e originária será sua ação e influência.5

Desse modo, nessa tentativa de se afastar e

distinguir-se dos outros, o “ser-aí” fica dependente deles. Conforme o filósofo:

Neste afastamento constitutivo do ser-com reside, porém: a presença, enquanto convivência cotidiana, está sob a tutela dos outros. Não é ela mesma que é, os outros lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe sobre suas possibilidades cotidianas de ser da presença.6

Entretanto, Heidegger revela que, na

inautenticidade, o “ser-aí” não fica dependente de alguém em particular, mas do outro em geral ou daquilo que ele denomina de Das Man7, termo alemão que pode ser traduzido pela palavra impessoal. Sendo assim, na inautenticidade Dasein é absorvido pela opinião e pelas atitudes do geral, do “impessoal”.

Vejamos o que o pensador alemão afirma a respeito:

5 Ibidem, p. 183. 6 Ibidem. 7 Termo usado por Heidegger “para indicar a ação impessoal de um verbo. [...] O Man exprime [...] uma impessoalidade indiferenciada, pois diz que ocorreu uma despersonalização de pessoas. Corresponde ao português ‘a gente’. A tradução optou por impessoal, por motivo de construções gramaticais portuguesas, usando quando possível também o ‘se’”. Ibid., p. 571.

O homem entendido como ser-para-a-morte 83

Mas os outros não estão determinados. Ao contrário, qualquer outro pode representá-los. O decisivo é apenas o domínio dos outros que, sem surpresa, é assumido sem que a presença, enquanto ser-com, disso se dê conta. O impessoal pertence aos outros e consolida seu poder. ‘Os outros’, assim chamados para encobrir que se pertence essencialmente a eles, são que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, são ‘co-presentes’ na convivência cotidiana. O quem não é este ou aquele, nem o si mesmo do impessoal, nem alguns e muito menos a soma de todos. O ‘quem’ é o neutro, o impessoal.8

Dessa forma, as ações do “impessoal” nunca

são decisões de alguém, pelo contrário, elas se destacam por serem apenas um suporte, onde todos se baseiam, mas ninguém se responsabiliza:

O impessoal sempre ‘foi’ quem... e, no entanto, pode-se dizer que não foi ‘ninguém’. Na cotidianidade da presença, a maioria das coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém.9

Nessa condição, o “ser-aí” acaba degenerando

sua característica de “ser-com” para uma postura de “ser-entre-outros”. Heidegger destaca que no “impessoal” a convivência com os outros “seres-aí” se perde na medianidade10, isto é, tudo o que é novo e

8 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 183. 9 Ibidem, p. 185. 10 Segundo Heidegger: “Este é um caráter existencial do impessoal”. Ibid., p. 184.

84 A finitude humana...

originário torna-se mediano e é considerado algo de há muito conhecido. Portanto, as ações do Dasein tornam-se comuns e o convívio com os outros se transforma em algo massificado.

Sendo assim, o autor afirma: Este conviver dissolve inteiramente a própria presença no modo de ser dos ‘outros’, e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão. O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de surpresa e de possibilidade de constatação. Assim, nos divertimos e entretemos como impessoalmente se faz; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e arte como impessoalmente se vê e julga; também nos retiramos das ‘grandes multidões’ como impessoalmente se retira; achamos ‘revoltante’ o que impessoalmente se considera revoltante. O impessoal, que não é nada determinado, mas que todos são, embora não como soma, prescreve o modo de ser da cotidianidade.11

Nessa ditadura do “impessoal”, a

“medianidade” decide previamente o que se deve admitir como valor ou sem valor, o que se pode ou deve ousar. Ela vigia e controla toda e qualquer exceção que venha a impor-se. Nesse sentido, o filósofo afirma que:

Toda a primazia é silenciosamente esmagada. Tudo o que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que

11 Ibidem.

O homem entendido como ser-para-a-morte 85

se conquista com muita luta torna-se banal. Todo o segredo perde sua força.12

Dessa forma, o autor sustenta que a

“medianidade” leva a uma outra característica do impessoal: o nivelamento. Este é tudo aquilo que conhecemos como público, ou seja, um conhecimento no qual é do saber de todos. Para Heidegger: “O público obscurece tudo, tomando o que assim se encobre por conhecido e a todos acessível”13.

Assim, todo o conhecimento e o questionar tornam-se algo nivelado e banal, ao qual todos têm acesso e que não precisa ser aprofundado. No “impessoal”, as relações com o mundo e com os outros se tornam algo nivelado, mediano, banal. Desse modo, as coisas e os outros não se apresentam na sua verdadeira natureza de possibilidades, mas apenas como objetos e simples-existências.

Outra característica importante do “impessoal” apresentada pelo pensador é a questão de que essa condição retira do “ser-aí” sua responsabilidade. O “impessoal” impede o Dasein de assumir como seus as decisões e os julgamentos que precisa fazer. Observemos o que Heidegger nos fala sobre essa questão:

[...] o impessoal retira a responsabilidade de cada presença. O impessoal pode, por assim dizer, permitir que se apóie impessoalmente nele. Pode assumir tudo com a maior facilidade e responder

12 Ibidem. 13 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 185.

86 A finitude humana...

por tudo, já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma coisa. [...] O impessoal tira o encargo de cada presença em sua cotidianidade. [...] Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à pergunta quem da presença cotidiana, é ninguém, a quem a presença já se entregou na convivência de um com o outro.14

Apesar de colocar o Dasein em um estado de

inautenticidade, o “impessoal” não é um defeito ou uma debilidade na qual o “ser-aí” acaba por se perder. Segundo o autor: “O impessoal é um existencial e, enquanto fenômeno originário, pertence à constituição positiva da presença”15.

Isso significa que o “impessoal” não é uma espécie de sujeito universal que está acima de todos os outros, mas faz parte da constituição ontológica do “ser-aí”. O “impessoal” é o modo de ser que o leva para a inautenticidade e para uma atitude de não assumir a si mesmo. Para Heidegger: “Esse modo de ser não significa uma diminuição ou degradação da facticidade da presença, da mesma forma que o impessoal, enquanto ninguém, não é um nada”16.

Portanto, o “impessoal” é uma estrutura necessária da existência do Dasein. Entretanto, esse modo de ser não pode ser visto como uma realidade negativa, mas deve ser considerado como uma forma de interpretação das estruturas ontológicas do “ser-aí” não apropriada, uma tendência que leva a uma análise errônea da existência cotidiana, local onde o

14 Ibidem. 15 Ibidem, p. 186. 16 Ibidem, p. 185.

O homem entendido como ser-para-a-morte 87

sentido do ser se desvela. Podemos afirmar então, que no “impessoal”, o Dasein não se relaciona de forma correta e autêntica com as suas possibilidades de existência.

Vimos até agora como as características de “cuidado”, “ser-no-mundo” e de “ser-com-os-outros” do “ser-aí” podem degenerar-se na inautenticidade e no “impessoal”. Analisamos também como o “impessoal” pode levar o Dasein a uma atitude não apropriada frente ao mundo e aos outros. Nesse sentido, ele coloca-se de forma incorreta frente as suas possibilidades de existência. Mas, dentre todas essas possibilidades que o “ser-aí” pode assumir, existe uma da qual ele não pode escapar e que encerra com todas as outras: a morte.

É o confrontamento com essa possibilidade de existência que faz com que ele saia da inautenticidade e caminhe para uma vida autêntica. Devido a isso, esta pesquisa visará demonstrar no tópico seguinte qual relação essa possibilidade mais certa tem com a análise que Heidegger faz das estruturas ontológicas do Dasein.

Em que consiste o conceito de “ser-para-a-morte” elaborado pelo autor? Que importância a morte tem na busca por uma existência autêntica? Como o “impessoal” interfere na confrontação com a morte? Essas são as questões que serão abordadas a seguir.

88 A finitude humana...

3.2 A questão da finitude em Heidegger: o existencial “SER-PARA-A-MORTE”

A morte é um tema que perpassa toda a

história da humanidade. Analisando as diferentes culturas que se formaram ao longo da História, podemos notar que, desde os tempos mais primórdios, o homem se confronta com essa questão e luta contra ela. Impulsionado pelo desejo de ser imortal, o homem procurou deixar vestígios de sua existência na Terra.

No entanto, à medida que este se reconhece como um ser mortal e finito e percebe que a morte é um evento inevitável, ele toma diferentes posturas frente a essa condição. A tradição, por muito tempo, fez da morte ou uma passagem para o além, para um mundo transcendente, ou um salto para o nada. Nesse sentido, Heidegger, em sua obra Prolegómenos, coloca fora de questão qualquer posição a respeito dessa problemática sobre se existe uma vida após a morte ou não. Ele afirma que na fenomenologia da morte

[...] não há nenhuma decisão sobre a questão de saber se há qualquer coisa diferente depois da morte ou qualquer coisa em geral, ou se nada se sucede.17

Mas então surge a pergunta: o que leva o autor

a tratar o problema da morte em sua análise existencial do “ser-aí”? A resposta está na questão da totalidade. Em outras palavras, é somente

17 HEIDEGGER apud HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p. 33.

O homem entendido como ser-para-a-morte 89

compreendendo o Dasein em um todo de suas estruturas, que poderemos entender como ele alcança a autenticidade de sua existência.

Segundo Heidegger, toda a análise existencial do “ser-aí” não conseguiu estabelecer a totalidade de suas estruturas ontológicas. Essa análise baseou-se apenas em uma observação prévia e provisória da cotidianidade do homem e se fundou na falta de autenticidade e no “impessoal” sem alcançar, portanto, a totalidade do Dasein. Dessa maneira, o autor ressalta que

[...] a análise existencial da presença, até aqui realizada, não pode pretender originariedade. Na posição prévia, sempre se encontrou apenas o ser impróprio da presença como o que não é total.18

A dificuldade encontrada pelo filósofo alemão

em determinar a totalidade das estruturas ontológicas da pessoa humana reside no fato de que o “ser-aí”, por possuir a característica de estar-lançado em várias possibilidades, nunca pode encontrar-se em um todo. Nele, sempre existe algo que Heidegger denomina de Ausstand 19, termo alemão que pode ser traduzido pela palavra pendente. Desse modo, nas estruturas do Dasein, sempre existe algo “pendente”, ou seja, “[...] que ainda não se tornou ‘real’. Como um

18 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 306. 19 Segundo a tradução utilizada por esta pesquisa, Ausstand significa “[...] o que está de fora, devendo ou podendo inserir-se e dar-se. Considerando que a língua portuguesa exprime em várias situações esta experiência com o termo pendente, a tradução por ele se decidiu”. Ibidem, p. 578.

90 A finitude humana...

poder-ser de si mesma”20. Como o próprio Heidegger afirma:

Na essência da constituição fundamental da presença reside, portanto, uma insistente inconclusão. A não-totalidade significa uma pendência no poder-ser.21

Uma vez existindo, o “ser-aí” já possui essa

característica de pendência, de projeto inacabado. Caso essa constituição seja retirada, o seu ser é aniquilado, pois ele perderá sua característica de ser possibilidade e se assemelhará aos objetos simplesmente dados, que já possuem uma essência pré-definida. O Dasein, justamente por ser “pendente”, é um constante estar-lançado e não um ente com essência determinada. Nesse sentido, o filósofo aponta:

enquanto a presença é um ente, ela jamais alcançou seus ‘todos’. Caso chegue a conquistá-los, o ganho se converterá pura e simplesmente em perda do ser-no-mundo. Assim, nunca mais se poderá fazer sua experiência como um ente.22

Portanto, ao considerar o “ser-aí” como um

todo em suas estruturas ontológicas e em sua característica de estar-lançado, a análise existencial se encontrará, obrigatoriamente, na postura imprópria do impessoal e acabará por considerar o Dasein como simples-existência e não um ser que está lançado a muitas possibilidades. Frente a essa

20 Ibidem, p. 310. 21 Ibidem. 22 Ibidem.

O homem entendido como ser-para-a-morte 91

característica de pendência do “ser-aí”, Heidegger se confronta com o seguinte problema:

não será, então, a leitura da totalidade ontológica do ser da presença uma empresa impossível? [...] Esgotaram-se, de fato, todas as possibilidades de a presença tornar-se acessível em sua totalidade?23

São essas perguntas que o autor se propõe a

esclarecer ao discutir o tema da morte. Ele se dá conta de que somente poderá responder a essas questões se fizer uma reflexão sobre esse fenômeno, pois qualquer tentativa para considerar a existência como um todo leva à morte como cessação da existência. Dessa forma, Heidegger afirma que suas considerações sobre essa temática não devem se fundamentar nas postulações das ciências ônticas, isto é, na visão da biologia, da teologia ou da metafísica, pois estas não consideram a morte uma possibilidade, mas a caracterizam como um fato do cotidiano, um objeto simplesmente dado. Nesse sentido, o filósofo não discutirá a morte como fenômeno biológico, muito menos tentará estabelecer um fundamento para uma vida após a morte. Seu objetivo é fazer uma análise ontológica dessa condição. Nesse sentido o autor afirma:

A interpretação existencial da morte precede toda biologia ou ontologia da vida. É ela que fundamenta qualquer investigação histórico-biográfica e psico-etnológica da morte. [...] A análise ontológica do ser-para-o-fim, por outro lado, não concebe

23 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 310.

92 A finitude humana...

previamente nenhum posicionamento existenciário frente à morte. Caso se determine como ‘fim’ da presença, isto é, do ser-no-mundo, ainda não se poderá decidir onticamente se, ‘depois da morte’ um outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a presença ‘continua vivendo’ ou ainda se ela é ‘imortal’, sobrevivendo a si mesma. [...] Interpretando-se o fenômeno meramente como algo que se instala na presença enquanto possibilidade ontológica de cada presença singular, a análise da morte permanecerá inteiramente ‘neste mundo’. [...] A interpretação ontológica da morte ligada a este mundo precede toda especulação ôntica [...].24

Desse modo, delimitando o seu objetivo, o

autor inicia suas observações ontológicas sobre o tema. A primeira característica que ele encontra para esse fenômeno é o seu caráter singular na vida da pessoa humana. Segundo Heidegger, é somente assumindo a condição de finitude que se pode chegar à totalidade do “ser-aí”. Nesse intento, muitos creem que, fazendo uma analogia com a morte dos outros, pode-se alcançar a completude da existência, ou seja, acredita-se que, observando-se a morte dos outros, pode-se retirar o que se aprendeu e aplicar à sua própria existência.

No entanto, essa atitude é inapropriada:

A morte dos outros é o fim do mundo deles, não do seu; ela ocorre no interior de seu mundo, não do mundo dos que morreram, e será lamentada por você e não por eles.25

24 Ibidem, p. 322-323. 25 RÉE, op. cit., 2000, p. 48.

O homem entendido como ser-para-a-morte 93

Nesse sentido, podemos afirmar que Heidegger pondera que a morte deve ser entendida como uma possibilidade pessoal e singular do Dasein. Isso significa que ninguém pode viver a morte do outro. Mesmo que se morra pelo outro, o “ser-aí” não retira da outra pessoa o caráter de sua própria morte, pois esse fenômeno ocorre no interior de cada um. A morte é uma possibilidade singular e única na qual cada “ser-aí” deve viver de forma pessoal. Vejamos o que autor nos diz a respeito:

Ninguém pode retirar do outro sua morte. Decerto, pode-se ‘morrer por outrem’. No entanto isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro ‘numa coisa e causa determinada’. Esse morrer por... no entanto, jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada. Cada presença deve, ela mesma e cada vez, assumir a sua própria morte. Na medida em que ‘é’, a morte é, essencialmente e cada vez, minha.26

Dessa maneira, é reconhecendo a morte como

uma possibilidade pessoal e intransferível que o Dasein poderá considerá-la também a possibilidade mais certa, da qual ninguém pode escapar. Nesse sentido, Heidegger aponta que outro aspecto da análise ontológica da morte é o fato de que esse fenômeno se apresenta como uma possibilidade insuperável. Isso não só implica dizer que o “ser-aí” não pode escapar dela, como também revela que, perante essa possibilidade, todas as outras perdem o sentido.

26 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 314.

94 A finitude humana...

Após a morte, nada mais é possível para o homem como “ser-no-mundo”. Esse fenômeno se mostra como a impossibilidade de qualquer outra possibilidade. Assim, a morte é a possibilidade mais adequada do Dasein. É nesse sentido que o autor de Ser e Tempo afirma:

A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença sempre tem de assumir. [...] Nessa possibilidade, o que está em jogo para a presença é pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder não mais ser presença. [...] Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo tempo, a mais extrema. Enquanto poder-ser, a presença não é capaz de superar a possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples da presença. Desse modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável.27

Portanto, quando o “ser-aí” toma consciência

de que a morte é a possibilidade mais própria e insuperável de seu modo de ser, ele começa a analisar suas estruturas ontológicas dentro de uma totalidade e, com isso, caminha para a autenticidade, visto que:

A morte é, pois, possibilidade autêntica e autêntica possibilidade: nesta base revela-se a função que a morte tem em constituir o Dasein como um todo, no único sentido que o Dasein pode ser um todo.28

27 Ibidem, p. 326. 28 VATTIMO, op. cit., 1996, p. 53.

O homem entendido como ser-para-a-morte 95

Com efeito, quando a morte é considerada como a impossibilidade de qualquer possibilidade, ela não elimina o caráter de estar-lançado da pessoa humana e muito menos o seu aspecto de ser “pendente”. Pelo contrário, esse fenômeno apresenta ao “ser-aí” suas possibilidades de maneira mais autêntica. Desse modo, o Dasein deve considerar a morte como a possibilidade mais autêntica. Mas ele só conseguirá dar cabo desse objetivo graças à característica de “antecipação” da morte. Essa qualidade do “ser-aí” não consiste em um pensar na morte, no sentido de ter presente que deveremos morrer, e muito menos se trata de uma tentativa de suicídio, mas, “[...] equivale antes à aceitação de todas as outras possibilidades na sua natureza de puras possibilidades”29.

Graças à capacidade de “antecipação” da morte, o “ser-aí” consegue confrontar-se com esse fenômeno de maneira realista. Ele passa a viver com a certeza de que a morte é soberana em sua existência. Nada pode escapar dela. Dessa maneira, o Dasein toma consciência de que, frente a essa possibilidade, tudo é fugaz e temporal e, então, começa a elaborar e viver suas próprias possibilidades, não como um ser simplesmente dado em meio a outros, mas como uma existência singular e única. Portanto, é na perspectiva da “antecipação” da morte que Heidegger caracterizará o “ser-aí” como “ser-para-a-morte”30.

Isso fica explícito na seguinte passagem:

29 Ibidem. 30 O ser-para-a-morte é a tradução da expressão Sein-Zum-Tode

96 A finitude humana...

Ser-para-a-morte é antecipar o poder-ser de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, o antecipar. Ao desvelar numa antecipação esse poder-ser, a presença abre-se para si mesma, no tocante à sua possibilidade mais extrema. Projetar-se para o seu poder-ser mais próprio significa, contudo: poder compreender-se no ser de um ente assim desvelado: existir. A antecipação comprova-se como possibilidade de compreender seu poder-ser mais próprio e mais extremo, ou seja, enquanto possibilidade de existir em sentido próprio.31

Desse modo, é considerando o Dasein um

“ser-para-a-morte” que o filósofo conseguirá alcançar a totalidade das estruturas ontológicas do “ser-aí” e apontará o caminho para a existência autêntica. No entanto, não é uma tarefa simples conceber a questão da morte dentro das perspectivas da “antecipação” e da compreensão de um “ser-para-a-morte”.

Segundo Heidegger, no cotidiano, geralmente as pessoas têm uma visão errônea desse fenômeno. Elas o encaram não como uma possibilidade certa e insuperável, mas como mais um fato em meio aos outros. Essa visão inapropriada se manifesta graças à ação do “impessoal”. Ao identificar isso, o autor se depara com a seguinte questão: “Como o impessoal se relaciona na compreensão com essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável da presença?”32

Refletindo sobre essa questão, uma das primeiras constatações que Heidegger faz a respeito da ação do “impessoal” na visão cotidiana das 31 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 339-340. 32 Ibidem, p. 328.

O homem entendido como ser-para-a-morte 97

pessoas sobre a morte é a identificação desse fenômeno como o fim de uma jornada. O “impessoal” insiste em pensar na morte como o fim de um itinerário e imagina sempre que há ainda muita coisa para viver, que muito tempo ainda lhe resta. Ele considera a morte como o término de uma carreira bem-sucedida, o ponto final depois de um longo caminho, à maneira de um fruto que cresce até a madura perfeição e depois cai subitamente no chão. Nesse sentido, o autor afirma que essa comparação proposta pelo “impessoal” é uma interpretação errônea sobre o fenômeno da morte, pois, conforme a sua visão:

Com o amadurecimento, o fruto se completa. Será que a morte, que chega a presença, é também completude nesse sentido? Sem dúvida, com a morte, a presença “completou seu curso”. Mas terá ela com isso necessariamente esgotado suas possibilidades específicas? Não lhe terão sido justamente retiradas estas possibilidades? Mesmo a presença “incompleta” finda. Por outro lado, a presença tem tão pouco necessidade da morte para chegar à maturidade que ela pode ultrapassá-la antes do fim. Na maior parte das vezes, ela finda na incompletude ou na decrepitude e desgaste.33

Desse modo, a morte não pode ser entendida

como algo distante que só chegará na velhice, depois que o “ser-aí” já tiver se realizado plenamente. Para Heidegger, entender o homem como um “ser-para-a-morte” não é caracterizá-lo como um ser que existe por certo número de anos e depois para, como um

33 Ibidem, p. 319.

98 A finitude humana...

motor que se mantém em funcionamento até ficar sem combustível. Pelo contrário, entender o Dasein como um “ser-para-a-morte” é compreendê-lo como um ser que a cada momento de sua existência é afetado por essa condição.

Nessa perspectiva, a morte não deve ser entendida como um evento distante e bem conhecido, mas deve ser considerada uma certeza indefinida e iminente. Entretanto, não é fácil confrontar-se com ela dentro dessa perspectiva. Nesse sentido, o “impessoal” interfere mais uma vez na visão cotidiana sobre a morte para fazer com que o “ser-aí” fuja dessa realidade iminente e a tome como mais um fato comum do dia a dia. Assim, Heidegger sustenta que, no cotidiano, geralmente as pessoas consideram a morte um fato, uma ocorrência quase banal sobre a qual o jornalista relata, o médico constata, o biólogo analisa, o policial investiga etc. Essa posição pode ser verificada na seguinte passagem:

O teor público da convivência cotidiana ‘conhece’ a morte como uma ocorrência que sempre vem ao encontro, ou seja, como ‘casos de morte’. Esse ou aquele, próximo ou distante, ‘morre’. Desconhecidos ‘morrem’ todo o dia, toda a hora. A ‘morte’ vem ao encontro como um acontecimento conhecido, que ocorre dentro do mundo.34

Dessa maneira, a morte vai se transformando

em um acontecimento público e anônimo. O “impessoal” faz com que esse fenômeno seja adiado do cotidiano das pessoas, isto é, ele o apresenta como algo que acontece a todos, sem definir, no

34 Ibidem, p. 328.

O homem entendido como ser-para-a-morte 99

entanto, a quem. Devido a isso, a morte não acontece a ninguém. Esse modo errôneo de se conceber essa condição afasta o Dasein da correta compreensão de que o fim da existência é algo único, intransferível, singular, pelo qual todos devem passar.

Desse modo, o “impessoal” faz com que a possibilidade mais certa do “ser-aí” seja entendida como algo distante e, para isso, ele se utiliza de algumas expressões que afastam o Dasein cotidiano do confrontamento com sua finitude iminente. Vejamos o que Heidegger nos escreve a respeito:

A interpretação pública da presença diz: ‘morre-se’ porque, com isso, qualquer um outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém. A ‘morte’ nivela-se a uma ocorrência que, embora atinja a presença, não pertence propriamente a ninguém. [...] A morte que é sempre minha, de forma essencial e insubstituível, converte-se num acontecimento público que vem ao encontro do impessoal. A fala assim caracterizada refere-se à morte como um ‘caso’ que permanentemente ocorre. Ele propaga a morte como algo sempre ‘real’, mas encobre-lhe o caráter de possibilidade e os momentos que lhe pertencem de irremissibilidade e insuperabilidade. [...] O impessoal dá razão e incentiva a tentação de encobrir para si o ser-para-a-morte mais próprio.35

Ao fazer essas constatações, o autor chega à

conclusão de que o “impessoal” impede o “ser-aí” de reconhecer sua estrutura ontológica de “ser-para-a-morte”. Dessa forma, ele não consegue viver a

35 Ibidem, p. 329.

100 A finitude humana...

“antecipação” de seu fim, isto é, não toma consciência de que a morte é a possibilidade mais própria e insuperável de seu modo de ser. No “impessoal” o Dasein fica impossibilitado de analisar suas estruturas ontológicas dentro de uma totalidade e, com isso, decai na inautenticidade que o tranquiliza e o aliena, fazendo com que ele se perca nos fatos e nas circunstâncias, repetindo os comportamentos de todo mundo nos atos do cotidiano.

Frente a essa análise, Heidegger se depara com a seguinte problemática: “Como se haverá de caracterizar ‘objetivamente’ a possibilidade ontológica de um ser-para-a-morte em sentido próprio?”36 Como o “ser-aí” pode escapar das influências do “impessoal” e ter uma reta compreensão de seu caráter de “ser-para-a-morte”? A resposta encontrada pelo autor está na disposição ontológica que ele denomina de angústia (Angst). Essa estrutura do Dasein o leva a deparar-se de maneira realista com a possibilidade da morte e o liberta das interpretações do “impessoal” presentes no cotidiano. Sendo assim, o próximo tópico deste capítulo terá como objetivo esclarecer o que significa o conceito de “angústia” no pensamento de Heidegger e como ele proporciona ao “ser-aí” uma correta compreensão de sua característica de “ser-para-a-morte”. Em suma, o tópico seguinte apontará como a disposição da “angústia” se apresenta como um pressuposto para a existência autêntica.

36 Ibidem, p. 336.

O homem entendido como ser-para-a-morte 101

3.3 A angústia como constitutivo ontológico para a existência autêntica

Vimos, anteriormente, que é na perspectiva do

“ser-para-a-morte” que o “ser-aí” pode alcançar a totalidade de sua existência, pois, apesar de se caracterizar como um projeto inacabado, ou seja, um ser “pendente”, o Dasein vive, por meio da “antecipação” da morte, aquilo que ele ainda não é. É pela “antecipação” que ele reconhece que o fim de sua existência é um evento iminente, uma possibilidade irremissível e insuperável, pela qual todos devem passar de forma singular.

Dessa maneira, caracterizando-se como um “ser-para-a-morte”, o “ser-aí” encontra sua totalidade existencial e percebe que a finitude representa a nulidade de todo e qualquer projeto, mas, ao antecipá-la, ele assume as suas possibilidades próprias, ao invés de se perder no geral, na opinião do público. No entanto, o “impessoal” age no cotidiano das pessoas e deturpa essa visão, fazendo com que se acredite que o fim da existência é um evento distante que um dia afetará a todos, mas, por hora, não afeta ninguém. O Dasein cotidiano se encontra, geralmente, imerso nessa perspectiva do “impessoal” e não consegue se reconhecer como um “ser-para-a-morte” em sentido próprio.

Segundo Heidegger, existe uma disposição emotiva que leva o “ser-aí” a se desvencilhar da inautenticidade e da opinião do “impessoal” e o faz caminhar para uma correta visão da finitude: a “angústia”. Mas o que caracteriza essa estrutura ontológica do “ser-aí”? Para o autor, a “angústia” é uma espécie de mal-estar ontológico que se apodera

102 A finitude humana...

do Dasein sempre que ele está próximo de compreender a instabilidade de sua existência. No entanto, ela não deve ser confundida com o medo (Furcht).

Por causa disso, o autor faz uma distinção entre essas duas disposições emocionais. O “medo”, argumenta o filósofo, refere-se sempre a algum objeto determinado, sempre se tem medo de alguma coisa.

Nesse sentido, ele afirma:

[...] aquilo que se tem medo é sempre um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo.37

A “angústia”, pelo contrário, é algo difícil de se

definir, pois a nada se refere. Como o próprio Heidegger sugere: “O com quê da angústia é inteiramente indeterminado”.38 Para ele, essa disposição do “ser-aí” não possui um objeto com o qual possa se angustiar. Portanto, a “angústia” não sabe com o que ela se angustia. Dessa forma, o filósofo ressalta:

[...] a angústia se angustia com o mundo como tal. A total insignificância que se anuncia no nada e em lugar nenhum não significa ausência de mundo. Significa que o ente intramundano em si mesmo tem tão pouca importância que, em razão dessa insignificância do intramundano, somente o mundo se impõe em sua mundanidade.39

37 Ibidem, p. 252. 38 Ibidem. 39 Ibidem, p. 253.

O homem entendido como ser-para-a-morte 103

Frente à “angústia”, a pessoa humana reconhece que está se angustiando com o nada. Em outras palavras, com algo indeterminado, com o mundo da maneira como ele se apresenta. Essa disposição ontológica faz com que o Dasein se confronte com o nada, com a nulidade de sentido. É nesse vazio que ele consegue libertar-se da influência do “impessoal”, pois na disposição da angústia o mundo não é mais capaz de oferecer coisa alguma, nem se quer a presença dos outros.

Com isso, o “ser-aí” deixa de se perder na opinião do geral e do público e começa a olhar para sua própria singularidade, sua existência pessoal, seu próprio “ser-no-mundo”. A partir disso, Heidegger afirma:

A angústia retira, pois, da presença a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesma a partir do ‘mundo’ e da interpretação pública. Ela remete a presença para aquilo que a angústia se angustia, para o seu próprio poder-ser-no-mundo. A angústia singulariza a presença em seu próprio ser-no-mundo que, em compreendendo, se projeta essencialmente para possibilidades. Naquilo por que se angustia, a angústia abre a presença como ser-possível e, na verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na singularidade.40

Entretanto, vale ressaltar que, quando o autor

de Ser e Tempo sustenta que a “angústia” singulariza o Dasein e o faz olhar para si mesmo, ele não está se referindo a um sentido psicológico e metafísico do

40 Ibidem, p. 255.

104 A finitude humana...

termo, ou, como se o angustiar-se levasse a uma interioridade espiritual ou a uma análise psicológica do próprio “eu”. Pelo contrário, com a “angústia”, Heidegger afirma que o “ser-aí” se encontra novamente com sua característica de “ser-no-mundo” que é deturpada em um mero “ser-entre-as-coisas” pelo “impessoal” e pela inautenticidade. Sendo assim, é a partir dessa disposição ontológica do angustiar-se que o Dasein se liberta da opinião do geral e do público e retorna à sua posição de “ser-no-mundo”. Em relação a isso, o autor ressalta:

A angústia singulariza e abre a presença como ‘solus ipse’. Esse ‘solipsismo’ existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença justamente um sentido extremo em que é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si mesma.41

Portanto, a partir dessas considerações,

Heidegger concebe a “angústia” como algo que se apresenta à pessoa humana de maneira estranha. Ela é totalmente sem determinação, mas ao mesmo tempo se apresenta de forma tão presente e familiar que causa transtornos no “ser-aí”. O autor também a define como a situação emotiva que deixa o Dasein frente ao nada, que proporciona a compreensão realista de sua finitude, já que esta só se apresenta como algo acessível se estiver na disposição do nada. No entanto, esse nada não é a negação do mundo, mas é justamente o que leva o “ser-aí” a encontrar-se

41 Ibidem, p. 255.

O homem entendido como ser-para-a-morte 105

no mundo, a perceber-se como um “ser-no-mundo” e não como uma simples-existência.

Como o próprio filósofo aponta: Na angústia, se está ‘estranho’. Com isso se exprime, antes de qualquer coisa, a indeterminação característica em que se encontra a presença na angústia: o nada e o ‘em lugar nenhum’. [...] A angústia, [...] retira a presença de seu empenho decadente no ‘mundo’. Rompe-se a familiaridade cotidiana. A presença singulariza, mas como ser-no-mundo.42

Mas como a “angústia” pode proporcionar uma

correta compreensão da estrutura ontológica do “ser-para-a-morte”? Segundo o autor, quando o “ser-aí” se confronta com a questão da morte, ele se angustia. No entanto, não se pode confundir essa disposição emocional com o medo de morrer. Fazer esse tipo de interpretação seria cair na opinião do “impessoal” e na inautenticidade, pois, no entender de Heidegger: “O impessoal não permite a coragem de se assumir a angústia com a morte”43.

Dessa maneira, o cotidiano se vê dominado por uma opinião geral que define as posturas que se devem assumir frente à finitude. Essas atitudes são a tranquilização e a alienação. No dia a dia, o “ser-aí” cotidiano busca alcançar certa tranquilidade frente ao fato de que se morre. Graças ao “impessoal”, o Dasein toma duas posturas errôneas frente ao fim da existência que o fazem cair na inautenticidade: ele sente medo da morte, pois não a reconhece como

42 Ibidem. 43 Ibidem, p. 330.

106 A finitude humana...

uma possibilidade iminente e sim como um fato que ainda está por vir, distante; ou assume ares de superioridade frente a esse fenômeno, sentindo-se indiferente e tranquilo, confortando-se a si mesmo dizendo: “É certo que se morre, mas por hora, ainda não morri”.

Devido a isso, no cotidiano e na visão do público, a “angústia” é vista como fraqueza, como revela Heidegger:

O impessoal ocupa-se em reverter a angústia num medo frente a um acontecimento que advém. Ademais, considera-se a angústia [...] uma fraqueza que a presença segura de si mesma deve desconhecer.44

Entretanto, para se ter uma correta

compreensão da morte, que proporciona a compreensão da existência do “ser-aí” como um todo, deve-se entender a “angústia” não como uma fraqueza, mas como uma postura assumida pelo Dasein que o leva a reconhecer sua finitude. Dessa maneira, Heidegger entende a “angústia” com a morte como uma confrontação com o nada, o reconhecimento de que a morte é a impossibilidade de todas as possibilidades. Desse modo, na disposição da “angústia”, o “ser-aí” se reconhece como um “ser-para-a-morte” em sentido próprio.

Observemos o que o filósofo afirma a respeito:

É na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desvela para a presença no seu modo mais originário e penetrante. A angústia com a

44 Ibidem, p. 330.

O homem entendido como ser-para-a-morte 107

morte é angústia ‘com’ o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. O próprio ser-no-mundo é aquilo com que ela se angustia. O porquê dessa angústia é o puro e simples poder-ser da presença. Não se deve confundir a angústia com a morte e o medo de deixar de viver. Enquanto disposição fundamental da presença, a angústia não é um humor ‘fraco’, arbitrário e casual de um indivíduo singular e sim uma abertura de que, como ser-lançado, a presença existe para seu fim. Assim, esclarece-se o conceito existencial da morte como ser-lançado para o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. 45

Portanto, é na disposição da “angústia” que o

“ser-aí” poderá sair da inautenticidade e desvencilhar-se das opiniões do “impessoal”. Isso implica dizer que é a partir dessa tonalidade emocional que ele conseguirá sair de uma opinião geral do cotidiano que geralmente foge da morte, ou a caracteriza como algo distante e poderá percebê-la como uma possibilidade iminente, certa, irremissível e insuperável. Com a “angústia” o Dasein vive a “antecipação” da morte, podendo realizar suas possibilidades mais próprias e entender-se dentro de uma totalidade, sem perder sua característica existencial de ser “pendente”. Como ressalta o autor: “O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia”46.

A partir disso, o Dasein começa a caminhar para uma existência autêntica na qual ele se depara de maneira realista com suas possibilidades, entendendo sua finitude e sua posição no mundo. Reconhecendo-se como um “ser-para-a-morte” por

45 Ibidem., p. 326-327. 46 Ibidem, p. 343.

108 A finitude humana...

meio da “angústia” e da “antecipação”, o “ser-aí” sai da vida inautêntica e se vê inserido em uma autenticidade. Mas em que consiste essa “existência autêntica” para Heidegger? É possível retirar implicações éticas desse modo de existir? Se esse é o caso, quais? Esses são os questionamentos que procuraremos esclarecer e discutir no próximo capítulo.

= IV =

A MORTE COMO PRESSUPOSTO PARA A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA E

IMPLICAÇÕES ÉTICAS Este último capítulo pretende fazer um

fechamento deste estudo, demonstrando em que consiste a existência autêntica para Heidegger. Mostraremos a estrita relação que o problema da morte tem com a autenticidade do “ser-aí”, além de apontar como o conceito de “ser-para-a-morte” proporciona a liberdade do Dasein.

Por fim, a título de encerramento, responderemos à questão sobre uma possível implicação ética no pensamento do filósofo em sua obra Ser e Tempo. Em outras palavras, investigaremos se a existência autêntica baseada na perspectiva da morte pode trazer mudanças para a vida cotidiana do “ser-aí” ou não. 4.1 A existência autêntica do “SER-AÍ” e sua liberdade

Como já afirmamos, no capítulo anterior,

segundo Heidegger, é a disposição da “angústia” que leva o Dasein a desvencilhar-se das garras do “impessoal” e da inautenticidade e o faz caminhar para uma existência autêntica. Isso ocorre pelo fato de a “angústia” despertar no “ser-aí” a confrontação com suas reais possibilidades, principalmente, com a possibilidade da morte. Essa “angústia”, entretanto,

110 A finitude humana...

nunca poderá deprimi-lo se ele se colocar, de forma verdadeira, diante da morte, encarando-a como a sua possibilidade mais pessoal e intransponível.

A morte, pondera o filósofo alemão, não é outra coisa senão a possível impossibilidade da existência. O Dasein existe porque morre. Enquanto não compreender isso, o “ser-aí” não se compreende a si mesmo. Nesse sentido:

A interpretação existencial da realidade humana como ser-para-a-morte é a única que permite ao Dasein conformar-se com a existência autêntica, e por consequência, com a ipsidade da existência pessoal, uma vez que a morte se apresenta sempre necessariamente como minha morte.1

Sendo assim, o “ser-aí”, que se caracteriza

como um ser “pendente”, isto é, incompleto e inacabado, pode, a partir do momento que toma consciência da possibilidade irremissível da morte, angustiar-se e perceber-se dentro de uma totalidade. Dessa maneira, a “angústia” se mostra como a disposição que o leva à existência autêntica. Mas em que consiste esta autenticidade? Como Heidegger a entende?

Geralmente, quando pensamos em “existência autêntica”, a imagem que logo se apresenta é a figura de um indivíduo ideal e desafiador, exemplo de moral, que não se deixa moldar pelas convenções ou ser arrastado juntamente com a multidão. Essa visão, segundo o autor, não passa de uma interpretação

1 JOLIVET, Regis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Livraria Tavares Martins, 1961, p. 129.

A morte como pressuposto... 111

errônea e influenciada pela ação do “impessoal”. Essa forma de ver a autenticidade se baseia no mito do “eu isolado” ou do “sujeito absoluto idealizado”, isto é, um modelo de homem perfeito e moralmente correto. Para o filósofo alemão, essa visão de autenticidade é consequência de resíduos da Teologia Cristã que ainda influenciam o pensamento filosófico, como o próprio autor aponta:

Afirmar ‘verdades eternas’ e confundir a ‘idealidade’ da presença, fundada nos fenômenos, com um sujeito absoluto e idealizado pertencem aos restos da teologia cristã no seio da problemática filosófica, que de há muito não foram radicalmente eliminados.2

Para compreendermos em que consiste a

existência autêntica para Heidegger, não podemos perder de foco a questão da morte. Como foi ressaltado nos capítulos anteriores, o “ser-aí” é sempre “pendente”, incompleto e inacabado, em outras palavras, ele se caracteriza como uma fuga contínua para suas possibilidades. Nesse sentido, o Dasein é “[...] por essência, o ser que jamais pode atingir a própria perfeição, realizar-se”3.

Logo, a morte não se apresenta como uma realização e muito menos como uma cessação, mas se caracteriza como a possibilidade mais autêntica. Desse modo, Heidegger sustenta que a existência autêntica surge quando o Dasein se reconhece como sendo propriamente um “ser-para-a-morte” e se

2 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 301. 3 GIORDANI, Mário Curtis. O existencialismo à luz da filosofia cristã. São Paulo: Idéias e Letras, 2009, p. 126.

112 A finitude humana...

mantém nesse existencial. Reconhecendo-se como um ser finito, ele não passa a desejar o fim de sua vida, mas passa a ter outro olhar sobre a morte.

Como afirma Haar, o “ser-aí” passa a

[...] não querer a morte, mas querer abrir-se até o limite extremo, até a perda de si, até o abismo da ‘liberdade’, da transcendência que se transcende. Não querer a morte, mas ‘ter por verdadeira a morte’, aceitá-la no seu próprio jogo, fazer-lhe frente, batê-la no seu próprio terreno.4

Sendo assim, a autenticidade está sempre

colocada diante da morte, assumindo-a como possibilidade certa e insuperável. Nesse contexto, o Dasein passa a se encontrar em condições de poder compreender a nulidade de qualquer projeto e o nada de tudo o que pode ser tomado como real. Com isso, ele vai se desvencilhando de qualquer limite e se percebe envolto em um universo de várias possibilidades. Consequentemente,

[...] o Dasein consente na morte como a suprema e mais pessoal possibilidade do seu próprio existir, possibilidade inelutável e sem apelo. Torna-se livre diante dela, ao sentir o nada de todo o ser.5

Em sentido prático, na existência autêntica, o

“ser-aí” se vê livre para realizar suas próprias possibilidades. Sendo assim, na autenticidade, ele encontra sua verdadeira liberdade, pois não se deixa influenciar pela maneira como os outros entendem a

4 HAAR, op. cit., 1990, p. 40. 5 JOLIVET, op. cit., 1961, p. 130-131.

A morte como pressuposto... 113

existência, tampouco busca obrigá-los a adotar sua forma de ver a realidade. Na existência autêntica: “O Dasein admite que os outros sejam o que quiserem ser”6.

Nisso consiste a liberdade diante da morte, ou seja, cada um pode fazer de seu “poder-ser” aquilo que entender. Mas isso não significa uma liberdade de indiferença, como se a pessoa, confrontando-se com suas possibilidades, tivesse que escolher uma dentre elas, como se escolhe uma roupa qualquer para se vestir ou uma ferramenta para se usar. Na verdade, a liberdade existente na autenticidade deriva justamente da estrutura ontológica do Dasein de ser projeto, de ser transcendência, ou seja, de estar sempre em frente a várias possibilidades de existência.

Dessa maneira, o “ser-aí” é aquele que pode tanto perder-se e desconhecer-se quanto reencontrar-se. Ele é livre, mas dentro dos estritos limites de cada possibilidade, o que equivale dizer que são as suas próprias escolhas que construirão o seu ser. Em outras palavras, ao se reconhecer como projeto, isto é, um ente que está constantemente lançado a várias possibilidades, inclusive, à possibilidade da morte, a pessoa humana percebe que isso não é algo que surge em determinado momento de sua vida, mas é uma característica que pertence a sua estrutura e o acompanha desde sempre.

A partir disso, ele encara sua existência como um “poder-ser” e assume o encargo e a responsabilidade de escolher livremente suas

6 JOLIVET, op. cit., 1961, p. 131.

114 A finitude humana...

possibilidades. No entanto, o “ser-aí” percebe que essa liberdade não é absoluta, pois, por um lado ele se caracteriza como um ser “pendente” e inacabado; por outro lado, as possibilidades que se apresentam na sua existência são limitadas, ou seja, ele só realiza umas, excluindo outras; escolher é renunciar. Devido a essa condição, o Dasein percebe que nunca poderá ser senhor absoluto da sua própria existência.

Observemos o que Heidegger nos diz a respeito:

Existindo, a presença é seu fundamento, ou seja, é de tal modo que ela se compreende a partir de possibilidades e, assim se compreendendo, é o ente lançado. Isso implica, no entanto, que: podendo-ser, ela está sempre numa ou noutra possibilidade, ela constantemente não é uma ou outra e, no projeto existenciário, recusa um nada de ser-fundamento. Enquanto projeto, ele é em si mesmo essencialmente um nada. Todavia, essa determinação não significa, de modo algum, a qualidade ôntica do que não tem ‘sucesso’ ou ‘valor’, mas um constitutivo existencial da estrutura ontológica do projetar-se. O nada mencionado pertence à presença enquanto ser-livre para as suas possibilidades existenciárias. A liberdade, porém, apenas se dá na escolha de uma possibilidade, ou seja, implica suportar não ter escolhido e não poder escolher outras. 7

Sendo assim, essa noção de liberdade ignora

a noção de uma natureza fixa. Para o filósofo alemão, a existência cria a essência e esta, por sua vez,

7 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 365.

A morte como pressuposto... 115

implica a liberdade, que é essencial a qualquer existência autêntica. Segundo Giles:

Heidegger não se preocupa em dar argumentação para demonstrar que o livre-arbítrio existe. Pressupõe a liberdade como parte do dado fenomenológico que é o Ser-aí, algo que encontramos imediatamente quando descobrimos que o Ser-aí deve ser definido por suas possibilidades.8

Uma vez entendido esses pressupostos,

podemos perceber que o filósofo alemão caracteriza a existência autêntica como um reconhecimento da realidade mais própria e insuperável do “ser-aí”: a morte. Uma vez reconhecida essa possibilidade fundamental, o Dasein passa a encarar sua existência de maneira realista: ele se reconhece como um ser lançado no mundo, que não escolheu existir. Assim, o sentimento de solidão e abandono o acompanha em sua existência, penetrando-o de tal forma que isso passa a caracterizar sua natureza.

Desse modo, ele sente que sua existência nesse mundo não será senão o fruto de uma conquista, uma luta que nunca acabará. Ele percebe que nenhuma possibilidade de existência se realizará por completo, pois todas serão interrompidas pela morte. Logo, ao contemplar esse vazio, esse nada da existência, o “ser-aí” percebe que é livre para optar por qualquer possibilidade e, dentro dessas suas escolhas, ele vai construindo sua essência. Portanto, o reconhecimento dessa condição é próprio do existir autêntico.

8 GILES, op. cit., 1989, p. 109.

116 A finitude humana...

Uma vez demonstrado em que consiste a existência autêntica para Heidegger, procuramos abordar no próximo tópico as seguintes questões: reconhecer-se como um “ser-para-a-morte”, assumir a própria liberdade e existir autenticamente pode trazer implicações éticas para a vida das pessoas? O que o autor diz a respeito?

4.2 Possíveis implicações éticas a partir da analítica existencial de Heidegger

Conforme dito anteriormente, a existência

autêntica é, na maioria das vezes, interpretada como um grau superior de vida. No cotidiano, as pessoas geralmente consideram um indivíduo autêntico aquele a quem nada atinge, que possui um autocontrole invejável e toma sempre atitudes corretas. Em suma, na visão geral das pessoas, existência autêntica é sempre entendida como um modo de vida no qual o homem transcende as suas misérias e sofrimentos, controla suas paixões e assemelha-se ao divino ou a um estereótipo de “eu ideal”.

O pensamento de Heidegger sobre a autenticidade é totalmente contrário a essa visão. Para ele, a vida autêntica não é jamais uma condição confortável, pois ela nos provoca a buscar entender nossa condição existencial e apropriarmo-nos desse entendimento. Essa não é uma tarefa fácil,

[...] isso implica aceitar que não somos mais que redes mutáveis de interpretações, sem nenhuma ‘essência’ interna que mantenha nossa existência

A morte como pressuposto... 117

coesa, e essa é uma perspectiva que pode não nos agradar.9

Portanto, alcançar a existência autêntica não é

tornar-se um “eu ideal”, mas é justamente encarar de maneira realista a condição de finitude do homem, isto é, a condição da morte. Dar cabo dessa tarefa não irá trazer sentimentos de realização e felicidade completa, pelo contrário, trará o confrontamento com a angústia. Somente deparando-se com ela e com a condição finita da própria existência é que o “ser-aí” poderá ser realmente livre, aberto para a escolha de qualquer possibilidade e avesso a qualquer tipo de determinação ou destino pré-definido sobre sua vida. A existência passa a se apresentar como possibilidade.

Um erro frequente em relação ao pensamento heideggeriano é considerar a sua analítica existencial do “ser-aí” como um itinerário moral, semelhante à queda bíblica do homem, narrada na tradição cristã. Nesse sentido, Rée irá discorrer da seguinte maneira:

[...] a explicação de Heidegger sobre a angústia e a inautenticidade presta-se aparentemente a ser vista como uma antiquada fábula moral: uma história de como o Dasein, quando jovem, não era senão uma abertura natural no mundo-compartilhado; de como foi, então, seduzido e corrompido pelas lisonjas da inautenticidade e de como sucumbiu pôr fim à angústia, arrependeu-se e retornou à autêntica individualidade. Mas uma fabulação desse tipo destrói o argumento de Heidegger [...].10

9 RÉE, op. cit., 2000, p. 45-46. 10 Ibidem, p. 39.

118 A finitude humana...

Desse modo, pensar a analítica existencial de Heidegger como um caminho moral ou como uma espécie de redenção da natureza humana é uma postura terrivelmente inapropriada para o correto entendimento do pensamento desse autor. Segundo o filósofo alemão, não podemos entender a inautenticidade e a existência autêntica como modos alternativos de vida. Uma não se opõe à outra, não há substituições. A inautenticidade nada mais é do que a existência autêntica mal compreendida; e a autenticidade é o entendimento da inautenticidade. Como o próprio Heidegger aponta:

[...] a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade.11

Sendo assim, a existência autêntica não pode

ser entendida como um modo superior de vida, na qual o “ser-aí” vai se realizar plenamente e alcançar a verdadeira felicidade. Pelo contrário, ela deve ser considerada uma interpretação realista que o Dasein faz sobre sua existência e sobre suas relações com o mundo e com os outros, que parte da análise sobre a morte e da tomada de consciência sobre a própria finitude, que surge a partir da angústia. Em suma, a autenticidade é uma maneira de se interpretar e viver a existência dentro de uma compreensão de “ser-para-a-morte”.

No entanto, essa postura autêntica que coloca tudo sob a perspectiva da morte está, segundo Heidegger, longe de poder ser considerada uma

11 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 245.

A morte como pressuposto... 119

realidade estática. Em outras palavras, ela não pode ser tomada como uma situação que, uma vez assumida pelo Dasein, torna-se algo permanente e sem possibilidades de retorno. Pelo contrário, o filósofo alemão afirma que a autenticidade corresponde a uma conquista permanente. Nesse sentido, a existência autêntica

[...] corresponde ainda, pelo próprio efeito das transformações incessantes da situação e das insidiosas tentações que elas originam, a uma vitória, que continuamente se renova, contra os sempre novos e constantes aliciamentos da inautenticidade.12

Analisando a forma como Heidegger entende a

existência autêntica e fazendo um contraponto com a visão geral sobre autenticidade, surgem então os seguintes questionamentos: de que forma a vida autêntica proporcionada pela perspectiva da morte interfere de maneira prática nos comportamentos e no modo de agir do homem? É possível falar de uma ética propriamente dita no pensamento desse autor?

É importante ressaltar que o referido autor, apesar de ter feito uma análise existencial do “ser-aí”, não teve por objetivo principal analisar a condição humana como tal, isto é, a existência pessoal e os seus interesses éticos. Em sua obra Ser e Tempo, o filósofo alemão busca se ocupar primordialmente com o problema do significado do ser. Desse modo, toda sua análise da existência autêntica e da finitude humana não podem ser consideradas como uma

12 JOLIVET, op. cit., 1961, p. 138.

120 A finitude humana...

ética propriamente dita. Em relação a isso, o filósofo afirma:

A análise ontológica do ser-para-o-fim, por outro lado, não concebe previamente nenhum posicionamento existenciário frente à morte. [...] Também nada se poderá decidir onticamente a respeito do ‘outro mundo’ e de sua possibilidade e nem tampouco sobre ‘este mundo’, no sentido de propor normas e regras ‘edificantes’ de comportamento frente à morte.13

Portanto, é impossível encontrar no

pensamento heideggeriano uma ética desenvolvida segundo os moldes tradicionais, que possua elementos teleológicos que sejam capazes de criar princípios e regras transcendentais infalíveis e que sirvam como moldes para o agir humano. Entretanto, ao analisarmos as condições em que se apresentam a existência autêntica e a própria questão da morte, é possível fazermos uma interpretação, uma releitura do pensamento de Heidegger, que traz consigo algumas implicações éticas que se baseiam na própria finitude e precariedade da existência humana.

O argumento que sustenta essa posição é o fato de que na existência autêntica nada se altera no conteúdo do mundo. O que se modifica profundamente é o aspecto sob o qual o mundo e outros serão percebidos. Em sentido prático, a autenticidade do “ser-aí” o leva a uma nova descoberta do mundo,

13 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 323.

A morte como pressuposto... 121

[...] o Dasein, permanecendo ser-no-mundo, passa a tolerar em absoluto os outros, sentindo que não pode modificar-lhes a consciência, e substitui as caprichosas e agitadas relações do interesse por um verdadeiro ser-em-comum.14

Desse modo, dentro do próprio pensamento do

filósofo alemão, podemos perceber que o Dasein nunca é um sujeito isolado. Por possuir em sua própria estrutura ontológica a característica de ser-com, ele sempre está em íntima relação com o mundo e com os outros. Essa relação, por sua vez, nunca é uma relação passiva, mas caracteriza-se como um relacionamento ativo, fundamentado no “cuidado”. Em sua atuação e “cuidado” com o mundo, o “ser-aí” deve se comportar segundo a “ocupação”, encarando os objetos como utensílios, ferramentas a serem utilizadas, e não como simples objetos. Ele deve cuidar do mundo, pois é por meio dos instrumentos existentes nessa realidade, que ele poderá realizar seus projetos e suas possibilidades.

Na sua relação e “cuidado” com os outros, o Dasein comporta-se a partir da “preocupação”, que o levará a incentivar as outras pessoas a assumir a própria autonomia e liberdade. Dessa maneira, ao assumir a sua própria autenticidade, o “ser-aí” concebe sua existência sempre como uma relação ativa com o mundo e, necessariamente com os outros. Nesse sentido, Heidegger ressalta:

Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser simplesmente dado ‘em conjunto’ dentro de um mundo. O ‘com’ é uma

14 JOLIVET, op. cit., 1961, p. 137.

122 A finitude humana...

determinação da presença. O ‘também’ significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. ‘Com’ e ‘também’ devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença.15

A partir disso, o Dasein, apesar de não ter

escolhido existir, passa a assumir a responsabilidade de sua própria vida. Ele toma consciência de que em seu ser não há uma essência pré-definida, que moldará seus comportamentos ou determinará suas escolhas. Tudo o que se apresenta à sua frente são as possibilidades e, dentre estas, uma se destaca de maneira especial: a morte. Esta, que é a possibilidade mais certa e insuperável, se apresenta a ele como a possibilidade do fim de todos os seus projetos.

Por isso, ao tomar consciência de sua finitude, o “ser-aí” percebe que nenhum de seus projetos o definirá por toda a sua vida. A morte destrói qualquer argumento sobre uma essência que possa anteceder a própria existência. Desse modo, ao reconhecer a morte como a possibilidade certa de sua vida, o “ser-aí” encontra sua liberdade, em outras palavras, sua livre escolha para optar por qualquer projeto e aceitar as limitações de cada um.

Enfim, podemos perceber que a partir da análise existencial de Heidegger, não há nenhuma proposta de mudança prática do mundo e dos outros.

15 HEIDEGGER, op. cit., 2008, p. 174-175.

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O Dasein, na existência autêntica, não será movido por um sentimento eufórico de querer mudar o mundo ao seu redor e as pessoas com que convive, a fim de libertá-los da inautenticidade e apontar caminhos edificantes de vida.

Na existência autêntica, o mundo e os outros não se modificam, o que se transforma é a maneira como vamos percebê-los, como eles se apresentarão a nós. Nessa perspectiva, a análise existencial, juntamente com suas reflexões sobre a morte, autenticidade, “ser-com-os-outros”, “ser-no-mundo” e a liberdade, apresenta mesmo que de forma indireta, implicações éticas para a existência do “ser-aí”.

A própria existência autêntica ancorada na finitude, por suscitar no indivíduo uma mudança de apreensão dos fenômenos cotidianos, pode ser considerada uma implicação ética do pensamento heideggeriano. É claro que esta implicação não pode ser incluída dentro dos moldes tradicionais de uma ética que transforma o agir do indivíduo dentro de normas universais e edificantes.

A implicação ética existente no pensamento de Heidegger fundamenta-se na própria finitude e precariedade da existência humana. Não há regras nem moldes para o agir humano. A existência autêntica se constrói somente no reconhecimento da própria finitude e isso mudará a forma como o Dasein apreende, em seu cotidiano, as suas relações com os outros, com o mundo, com suas escolhas e com sua própria liberdade.

124 A finitude humana...

CONSIDERAÇÕES FINAIS Abordar o pensamento filosófico de Heidegger

é tarefa para aqueles que estão dispostos a mergulhar em um pensador obscuro, enigmático e, ao mesmo tempo, original, profundo e preciso. Analisar sua principal obra, Ser e Tempo, é entrar em contato com uma intensa análise do ser, deparando-se com um vocabulário difícil, que, no entanto, expressa de maneira concisa o sentido dos termos e das ideias de Heidegger.

Tratar dessa importante obra é se defrontar com uma rica análise existenciária dos acontecimentos do cotidiano e, principalmente, encontrar-se com uma surpreendente análise ontológica das estruturas do homem, a qual o autor designará com o termo “ser-aí”.

Considerado por muitos como o pensador que levou à ruína a antiga concepção sobre o ser, a ontologia e, consequentemente, a Metafísica, Heidegger é, na verdade, o filósofo do ser. Como esta pesquisa mostrou, esse autor se ocupou profundamente de uma problemática metafísica extremamente pertinente, que por muito tempo ficou esquecida pela ontologia tradicional: o sentido do ser. Nesse sentido, o pensamento desse filósofo revela-se como um resgate da própria problemática do ser, a mesma que levou importantes filósofos, como Heráclito, Parmênides, Platão e Aristóteles, a realizarem importantes descobertas no campo da ontologia e, por conseguinte, na própria filosofia.

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Entretanto, o caminho que esse pensador percorre é totalmente diferente do dos clássicos. Heidegger não busca desvelar o ser fundamentando-o em realidades metafísicas ou conferindo a ele estruturas ligadas à eternidade, à permanência, à duração. Pelo contrário, iluminado pelo método fenomenológico de Husserl, esse pensador busca encontrar o sentido do ser na esfera da temporalidade, no domínio do cotidiano. É por esse motivo que sua principal obra se intitula Ser e Tempo. Em outras palavras, Heidegger tenta desvelar o sentido do ser no próprio tempo, isto é, na realidade temporal.

Dessa forma, o filósofo ressalta que só pode haver compreensão do sentido do ser em ato, ou seja, no campo da existência dos próprios entes. Entretanto, dentre todos esses entes, somente um possui a primazia de ter em sua própria constituição ontológica o lugar privilegiado de manifestação do ser: o homem, entendido como Dasein ou “ser-aí”. Este único ente, que tem a capacidade de se perguntar sobre o sentido do ser e que possui como estrutura principal a característica de estar-lançado, será o objeto do pensamento desenvolvido por Heidegger em sua obra Ser e Tempo. É no “ser-aí”, e somente nele, que o ser pode manifestar seu sentido e, por isso, é nele que nosso autor fundamentará sua analítica existencial.

É a partir dessa análise das estruturas existenciais do Dasein que esse autor se deparará com a reflexão sobre a seguinte situação limite que aflige a vida de todo homem: a morte. É justamente nesse tema que nossa pesquisa encontrou seu momento mais elevado, seu objeto central. Heidegger

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pondera que o Dasein, por ser um constante estar-lançado, defronta-se continuamente com várias possibilidades de existência. Isso confere à sua existência um caráter profundamente ativo, visto que, se existimos, já o fazemos para assumir alguma possibilidade de existência. Nunca somos passivos, sempre estamos vivendo uma possibilidade.

Entretanto, existe uma na qual ninguém pode escapar e que se caracteriza como a impossibilidade de qualquer possibilidade. Trata-se da morte. Heidegger percebe que é somente encarando essa possibilidade e assumindo-a como certa, que o “ser-aí” poderá assumir-se de maneira autêntica e total. Isso ocorre pelo fato de o Dasein possuir em sua estrutura ontológica a característica de antecipação. Por sermos transcendência, projetamo-nos no futuro e o antecipamos. Dessa maneira, somos capazes de antecipar a morte. Isso não quer dizer que devemos ficar obcecados por esse tema ou que precisamos cometer suicídio. Antecipar a morte é pensá-la justamente como uma realidade certa, insuperável, desconcertante, da qual ninguém pode escapar. Fazendo isso, o Dasein é capaz de projetar sua existência em possibilidades que realmente valem a pena ser vividas, visto que o tempo de existência é breve e pode acabar a qualquer momento. É por esse motivo que Heidegger caracteriza o homem como um “ser-para-a-morte”.

Sabemos que a realidade de nosso cotidiano nos aponta para outra visão sobre a morte. Já vimos como a estrutura que o filósofo denomina de “impessoal” deturpa nossa visão sobre a finitude e nos faz viver como se fôssemos eternos, fazendo com que não nos projetemos em nenhuma possibilidade

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realmente válida, por acreditar que ainda nos resta muito tempo de vida. Sendo assim, caímos naquilo que o autor denomina de inautenticidade.

Heidegger, com seu pensamento desconcertante, compreende que não é fácil para nós aceitarmos a morte como uma possibilidade certa, principalmente pelo fato de que essa situação nos traz à tona o sentimento de angústia. No entanto, ele nos apresentará um outro conceito de angústia, caracterizando-a não como medo da morte, mas como a disposição emocional que nos faz confrontar-nos com o nada da existência, a nulidade de todos os projetos. Deparando-se com isso, percebemos que a visão do “impessoal” não pode nos oferecer nenhuma segurança a respeito da morte, ela não poderá nos livrar dessa realidade. E assim, encarando o nada por meio da angústia, aceitamos nossa condição finita e assumimos a nossa existência de maneira ativa, sendo livres para viver qualquer possibilidade, dentro dos estritos limites de cada uma.

Por meio da antecipação e aceitação da morte e do confrontamento com a angústia, o “ser-aí” alcança a existência autêntica, pois a sua finitude elimina qualquer determinação ou projeto pré-definido em sua existência. Sendo assim, o Dasein vive de maneira livre e responsável todas as possibilidades de existência que ele assumir. Ao reconhecer-se como finito, ele pode reavaliar sua existência, fundamentando seus valores e escolhas em possibilidades que realmente tenham sentido para ele. Dessa maneira, Heidegger fundamenta o sentido da existência humana na problemática da morte, visto que, uma vez se confrontando com essa situação limite e aceitando-a, o “ser-aí” caminha para a

Considerações finais 129

autenticidade, em outras palavras, para a tomada de consciência da própria responsabilidade para com a sua existência.

É nesse contexto que esta pesquisa chegou à conclusão de que podemos tirar algumas implicações éticas a partir do pensamento de Heidegger sobre a morte. Mostramos que o autor nunca formulou nenhum tratado de ética tradicional, visto que esse não era seu objetivo. O foco principal de seu pensamento sempre foi a problemática do sentido do ser. Entretanto, podemos fazer uma leitura do pensamento desse filósofo e perceber que, subjacentes a ele, surgem algumas implicações éticas pertinentes, principalmente na questão do “cuidado” com o mundo e com os outros e na reflexão sobre a existência autêntica fundamentada na finitude. É claro que essas implicações (como relacionar-se com responsabilidade para com os outros, com as coisas e com a própria existência) não estão enquadradas dentro dos moldes de uma ética tradicional, mas possibilitam, no âmbito prático do homem, mudanças de percepção e comportamentos.

Na existência autêntica o mundo e os outros não mudam, o que muda é a percepção que temos deste mundo e dos outros, sendo assim, ocorrem transformações em nossos comportamentos para com esses outros além de nós. Passamos a ter cuidado com o mundo e com os outros ao invés de encararmos as pessoas como objetos, como instrumentos dos quais nos utilizamos para nos realizarmos. Na existência autêntica reconhecemos verdadeiramente a dignidade e importância dos outros “seres-aí”, que também devem assumir com

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responsabilidade a sua própria existência, cabendo a nós ajudá-los a tomar consciência disso.

Portanto, percebemos que nossa pesquisa pode contribuir para uma visão diferente sobre a morte em nosso cotidiano, que influencia na percepção que temos de nossa própria vida. Atualmente, podemos perceber que as pessoas manifestam uma postura de repulsa frente ao morrer humano, poucos são os que se confrontam de maneira realista com essa situação limite. No cotidiano, a morte é vista como uma perda.

Nos dias atuais, ela vem se tornando um tema a ser evitado. Essa situação limite representa, para o homem, o maior desafio. Ela o obriga a deparar-se com a própria fragilidade; força-o a defrontar-se com a própria finitude. Ao observarmos os tempos atuais, podemos perceber que essa interpretação errônea que as pessoas têm da morte se agrava, pois, na sociedade em que vivemos, que valoriza o lucro exacerbado e a produtividade a qualquer preço, que promove a competição e ao mesmo tempo a exclusão, o ser humano que está à beira da morte é considerado um fracassado.

Dessa forma, acreditamos que o modo como Heidegger entende a morte em sua análise existencial do “ser-aí” se caracteriza como um caminho muito pertinente para os dias atuais, que se contrapõe a essa visão cotidiana sobre o fim da existência. A partir do pensamento do autor, podemos perceber que o Dasein, tendo consciência da certeza da morte, passa a encarar a sua vida com mais intensidade. Ele assume, de fato, sua existência, encarando suas responsabilidades e limitações, possuindo um olhar mais realista do mundo e dos

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outros. Na existência autêntica fundamentada na finitude, o “ser-aí” percebe o mundo e os outros de uma maneira mais humana e sincera, encarando-os como realidades que devem ser cuidadas e que fazem parte integrante de sua própria estrutura ontológica.

Por fim, ao refletir sobre a morte dentro do pensamento de Heidegger, esta pesquisa defronta-se com a pergunta pelo sentido da existência, pois pensar que vamos morrer nos estimula a meditar sobre a contingência de nosso ser; pensar que vamos deixar de existir nos leva a ponderar que nem sempre existimos e que poderíamos nem ter existido. A reflexão sobre a finitude dá ao homem a plena consciência de sua existência, a qual não teria sentido algum se a morte não se enlaçasse perpetuamente à vida. Por isso, não é absurdo pensar que essa situação limite possa fazer com o que o ser humano se defronte com a questão do sentido para sua existência. De modo lento ou acelerado, com violência ou suavidade, a morte propõe ao homem o desafio de pensar a sua própria condição.

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OS AUTORES:

Arnin Rommel Pinheiro Braga (Belém do Pará,

1992) é Licenciado em Filosofia pela Pontifícia

Universidade Católica do Paraná – Campus Maringá

(onde recebeu o Prêmio Marcelino Champagnat de

Mérito Acadêmico – 2012) e Graduando em Teologia

pela “Facultad de Teología de Granada”, vinculada a

“Universidad de Granada”, Espanha.

Em seus estudos filosóficos, possui experiência nas

áreas de História da Filosofia, Fenomenologia e

Existencialismo. Enquanto na área teológica,

138 A finitude humana...

destaca-se em temas relacionados a Fenomenologia

da Religião, Filosofia da Religião e Teologia das

Religiões. Atualmente é membro do grupo de

pesquisa “Grupo de Filosofia Temática” (GFT), da

Universidade Federal do Pará (UFPA), onde contribui

na linha de “Filosofia da Tecnologia”. E-mail:

[email protected]

Referências 139

José Francisco de Assis Dias, é Professor Adjunto da UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR; pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão” e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE, CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino

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Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: [email protected]

Referências 141

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