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2.
Globalização, Governança Global e a Formação de uma
Classe Capitalista Transnacional
O Século XX chegou ao fim celebrando uma grande articulação entre a
Organização das Nações Unidas e o capital transnacional. A finalidade do
presente estudo é entender o significado dessa articulação em um contexto
histórico mundial marcado pela globalização do capital. Temas usualmente
restritos à esfera de responsabilidade dos Estados ou do sistema de Estados foram
apropriados pela agenda do capital: segurança coletiva, direitos humanos,
desenvolvimento, meio-ambiente, entre outros. Uma colaboração cada vez mais
estreita entre as esferas do público e do privado busca garantir os pilares da
construção de um mundo “melhor administrado”. Trata-se do processo chamado
de governança global. As demandas por aprofundamento e engajamento de atores
diversos na governança global resultam da intensa expansão da integração global
em vários níveis, sobretudo nas esferas da produção, do comércio e do consumo,
nas últimas décadas, e os respectivos impactos de aumento da pobreza e perda de
parte da autonomia e da cidadania por parte de indivíduos e grupos em todas as
partes do mundo.
Ainda que possam ser analisadas de forma fragmentada em seus aspectos
políticos, econômicos, sociais, culturais, entre outros, as transformações pelas
quais o mundo passou e segue passando são mais bem apreendidas tomando-as
em sua totalidade. Também precisam ser situadas em chave histórica, já que
derivam de desdobramentos de crises anteriormente observadas. Há que se
verificar, contudo, não apenas as mudanças no decorrer da história, mas também
os agentes propulsores dessas mudanças, discutindo as estratégias utilizadas por
atores políticos e econômicos que se encontravam em posição privilegiada para
promover e engendrar transformações que lhes garantissem superar crises, além
de manter e ampliar o poder. Quer-se discutir, portanto, o caráter da atuação de
entes que buscaram constantemente adaptar o mundo a seus interesses,
23
particularmente no que se refere à utilização de discursos com função
essencialmente legitimadora da manutenção do status quo, mesmo que por vezes
esses discursos aparentem apresentar soluções para as contradições geradas no e
pelo sistema.
Quem são os agentes que participaram dessas transformações? Que
processos e estruturas entraram em crise e precisaram ser modificados? Como e
porque essas transformações produziram o surgimento de novas organizações e a
adaptação de outras que atuam em âmbito mundial? Até que ponto as análises de
diferentes teóricos conseguiram acompanhar e explicar essas transformações? É
através de análises que tentem responder a tais indagações que se pode melhor
entender os imperativos de legitimação de uma emergente classe capitalista
transnacional como característica essencial da política no Século XXI. Para tanto,
torna-se necessário resgatar os processos históricos que possibilitaram o
surgimento e a articulação dessa classe, assim como as abordagens teórico-
conceituais que buscam definir a classe capitalista transnacional como ator de
influência central tanto nas recentes transformações de impacto mundial quanto
nas análises mainstream sobre essas transformações.
O presente capítulo busca cumprir com três objetivos centrais: (a) resgatar
o caráter histórico da globalização da economia e da política, a partir da década de
1970, nas bases de uma doutrina do neoliberalismo cujo impacto se estende das
técnicas de governo ao modo de vida das pessoas; (b) verificar chaves
interpretativas dessas transformações da ordem mundial, desde descrições sobre o
processo de globalização até as diferentes demandas (ou diferentes discursos) por
um maior aprofundamento da governança global, apresentando então os principais
componentes teóricos da teoria crítica e dos estudos críticos da globalização que
servem de base analítica desta tese; (c) analisar como autores da teoria crítica e
dos estudos críticos da globalização discutem os processos de formação e de
legitimação de uma emergente classe capitalista transnacional, assim como os
mecanismos de legitimação dessa classe, com vistas à continuidade de seu
processo de construção de hegemonia.
24
2.1.
A Transformação da Ordem Mundial
Para compreender com mais profundidade e detalhe as transformações
recentes na ordem mundial seria necessário um enfoque histórico de longa
duração (longue durée1). Em tal perspectiva, o resgate histórico poderia tomar
como base diferentes periodizações: um processo de séculos de exploração do
homem pelo homem da Antiguidade aos nossos dias, com base em ideologias,
desde as religiosas até as da racionalidade moderna; uma abordagem que remonte
aos 500 anos do processo de construção de uma modernidade ocidental que
transita da colonização mercantilista aos ideais liberais que se articulavam com
um mundo imperialista; um enfoque a partir das revoluções burguesas e dos
processos de formação dos Estados-modernos, analisando ainda os processos
econômicos e políticos que levaram o mundo às duas grandes guerras da primeira
metade do Século XX. Contudo, para uma compreensão mais específica das
transformações recentes, optou-se aqui por um recorte histórico que nos leva às
crises na década de 1970 dos arranjos do pós-Segunda Guerra Mundial,
evidenciando como essas crises e as soluções encontradas levaram a uma
mudança no paradigma da produção, a um processo de intensa
transnacionalização da acumulação capitalista e à articulação de uma classe
capitalista transnacional exitosa na ampla aplicação da doutrina neoliberal em
todas as regiões do mundo.
2.1.1.
Crises e adaptações no processo de acumulação capitalista: a
aplicação do receituário neoliberal e sua contestação
Do final da Segunda Guerra Mundial até o começo dos anos 1970, as
forças capitalistas estiveram centradas em torno das políticas econômicas,
políticas e de segurança dos Estados Unidos para o mundo não comunista, em
período identificado com a idéia de uma pax americana (Cox, 1987, 209-267;
Gill, 2003, 163). O caráter da acumulação capitalista neste período é observável
1 O termo se refere à obra de Fernand Braudel, mencionado por vários dos autores (Mittelman 2005, Rosenberg 2005, Gill 2003, Robinson 2004).
25
através dos seguintes fatores: a ampla oferta e o baixo preço de matérias-primas,
com destaque para o petróleo; uma convergência das economias capitalistas em
torno de um liberalismo com alto engajamento do Estado na esfera econômica e
social (fordismo-keynesianismo, economia corporativa ou liberalismo enraizado)
(Gill, 2003, 94;161) e “a habilidade dos Estados Unidos em manter o crescimento
da demanda agregada global através de déficits em sua balança de pagamentos,
parcialmente gerados por pesadas despesas militares em territórios estrangeiros”
(Gill, 2003, 94) “e por investimentos estrangeiros de corporações dos EUA” (Gill,
2003, 163).
Entretanto, após uma fase de prosperidade das economias ocidentais, sob a
égide dos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, um conjunto de elementos
críticos possibilitou uma nova adaptação do processo de acumulação capitalista,
contribuindo para um realinhamento de forças em torno do neoliberalismo a partir
do começo da década de 1970. É assim que se observa nos Estados Unidos o
impacto dos seguintes fatores geradores da transformação do sistema de
acumulação do capital: “desaceleração do crescimento econômico, aumento da
inflação e do desemprego, recorrência e severidade crescente das recessões e um
crescimento do déficit fiscal em todos os níveis de governo” além de “crises
periódicas do dólar” (Gill, 2003, 164; com mais detalhes em Cox, 1987, 274-279).
Tais fatores implicaram em decisões que mudaram o caráter dos acordos político-
econômicos do pós-guerra como é o caso da deliberação do então presidente dos
Estados Unidos, Richard Nixon, de desvincular o dólar do ouro, ou seja, o fim do
padrão ouro-dólar (Gill, 2003, 164). Às crises nos Estados Unidos, soma-se a crise
da oferta e aumento do preço do petróleo. O impacto dessas mudanças foi mais
bem observado na década de 1990, diante do fim da ordem bipolar e da abertura
de grande parte dos países do bloco socialista, com concomitante convergência de
grande parte dos Estados em torno da dinâmica do capital em sua vertente
neoliberal.
Essas mudanças se vinculam a uma agenda político-econômica de
transformação de uma economia internacional para uma economia global
(Robinson, 2004), ou seja, uma transição gradual de uma economia centrada em
um sistema de Estados e relações econômicas internacionais para uma
26
transnacionalização do capital, na qual se verifica uma diminuição do poder dos
Estados, diante da emergência de uma classe capitalista transnacional. Cumpre
destacar que, quando se trata de globalização do capital, esta não se verifica
apenas na mobilidade transnacional do consumo e da circulação de mercadorias,
mas também - e particularmente – da esfera da produção. (Robinson, 2004, 10).
Em tal perspectiva, Robinson nota que os “novos modelos de acumulação flexível
envolvem duas dimensões diferentes: novas tecnologias (...) e inovações
organizacionais.” (Robinson, 2004, 17). Ou seja, percebe-se tanto um
investimento em novas tecnologias destinadas especialmente a aprimorar a
funcionalidade e margem de lucro do capital, quanto novas estratégias
organizacionais como a terceirização de serviços (outsourcing /subcontracting) e
o deslocamento das plantas de produção (maquiladora/offshore) (Robinson, 2004,
17-18). A essas dimensões deve-se somar também a privatização e comodificação
(mercantilização) de bens antes considerados públicos ou sob tutela do Estado
(água, luz, saúde, transportes, estradas, entre outros). Tal assalto do privado sobre
o público é o que Harvey denomina de “acumulação por espoliação” (Harvey,
2004, 2005).
As políticas que compõem a chamada agenda neoliberal foram assumidas
conjuntamente por um amplo grupo de Estados como as bases de uma nova ordem
mundial após o fim da Guerra Fria, no que se tornou conhecido como o
“Consenso de Washington”. Particularmente na década de 1990, verifica-se uma
ampliação na adaptação de Estados e sociedades a essas políticas, ainda que a
aplicação do receituário neoliberal tenha se dado de forma desigual ou não-
uniforme entre os Estados.
Em que pese a ampla aplicação de políticas neoliberais por todo o mundo
na década de 1990, o cenário global sofreu diversas mudanças, principalmente na
década de 2000, as quais de certa forma, se não retrocederam, ao menos frearam
os impulsos de expansão da globalização neoliberal. As possibilidades de uma
grande articulação internacional na agenda de livre comércio, a chamada Rodada
de Doha, terminou por ser emperrada, principalmente na reunião da Organização
Mundial do Comércio em Cancún (2003), quando um grupo de países do Sul se
articulou em um bloco denominado G-20, impedindo o andamento das
27
negociações por conta do protecionismo dos países do Norte em setores
essenciais, como a agricultura. Os ataques aos principais símbolos econômico e
militar dos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, resultaram em uma
agenda de Guerra contra o Terror e em uma política cada vez mais unilateral dos
Estados Unidos, pautada mais na coerção do que no consenso. O aclamado
processo de integração da União Européia foi surpreendentemente paralisado pelo
“Não” à Constituição Européia resultado do plebiscito/referendo na França e na
Holanda e, em seguida, a negociação de um Tratado Constitucional se deparou
também com um “Não” da Irlanda, uma das principais beneficiárias até então da
construção supra-nacional na Europa, o que evidencia os limites na aceleração de
processos construídos pelos burocratas da União Européia e dos governos, sem o
devido amadurecimento de um demos europeu.
Os processos acima elencados demonstram sobretudo que não há sempre
uma conexão automática entre os Estados e as forças capitalistas globalizantes.
Contudo, ainda que possam ser observadas aqui e ali políticas de cunho
tradicional internacional assim como freios ao processo de globalização por parte
de Estados, ou mesmo uma desaceleração nas negociações de acordos de livre
comércio, tais processos dificilmente persistem no longo prazo, como se observou
na aprovação do Tratado Constitucional europeu ou diante do fracasso das
intervenções dos Estados Unidos em nome de uma Guerra ao Terror no Iraque e
Afeganistão. Como será analisado posteriormente, segue a tendência de
naturalização da globalização neoliberal mesmo que com adaptações de função
legitimadora, assim como aprofunda-se a transnacionalização do capital com
destaque inclusive para a ação de empresas oriundas de Estados periféricos que
passam a buscar acumular capital em outras regiões do mundo. Ou seja, do ponto
de vista político-ideológico, percebe-se que o neoliberalismo foi absorvido em um
grau tal que exerce uma função própria de dificultar a emergência de projetos
alternativos:
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito
28
num grau com o qual os seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (Anderson, 1995, 23).
Nesse sentido, cabe ressaltar como, do ponto de vista político, a vertente
neoliberal da globalização impactou o pensamento e a práticas política nacional e
internacionalmente, implicando em transformações dos Estados e das
organizações internacionais.
2.1.2.
De uma política internacional a uma política global
O processo de globalização da economia se fez acompanhar de uma
globalização da política. Observa-se um processo gradual de deslocamento de
uma política internacional para uma política global. Em outras palavras, de uma
política centrada nos conflitos e interações entre Estados, para uma política que
envolve relações entre diversos atores (Estados, empresas transnacionais,
organizações não-governamentais, redes e organizações que envolvem Estados e
outros atores). Atores como empresas e organizações não-governamentais
(ONGs) que costumavam influenciar políticas no âmbito estatal, passam a
estabelecer relações de influência na configuração da ordem mundial, para além
dos Estados. “O Estado-nacional não é mais o princípio organizativo do
capitalismo e o ‘container’ institucional do desenvolvimento de classe e da vida
social” (Robinson, 2004, 40) Embora esta abordagem traduza a evidência de uma
série de circunstâncias do tempo presente e contribua para explicar um poder
exercido de forma cada vez mais intensa por uma emergente classe capitalista
transnacional, há que se ter cuidado ao falar de uma esfera do global como
indicativo de um fim do nacional/internacional. Ou seja, mesmo com uma
significativa transferência de poder dos Estados para entidades supranacionais e
para atores privados que adquiriram o controle de setores antes controlados pelos
Estados (Hobsbawn, 1994, 553-554), ainda é a forma do Estado enquanto
comunidade política que segue sendo demandada (e assim legitimada) tanto para
garantir a regulação do funcionamento do sistema econômico capitalista (mesmo
29
que se trate de regular a flexibilização), quanto para enfrentar os problemas
sociais e ambientais gerados pela globalização (Hobsbawn, 1994, 554).
Se, por um lado, tem-se uma visão de que as mudanças no mundo da
produção ensejam a formação de um sistema global único (Robinson, 2004, 15),
por outro lado não há que se pensar em um câmbio de grau tal que tenha
implicado em um deslocamento fundamental do poder na ordem mundial. Se o
sistema capitalista agia em grande parte através de Estados centrais como os
Estados Unidos durante quase todo o Século XX, o fato de que uma classe
capitalista transnacional tenha se articulado e busque exercer seu poder de forma
cada vez mais independente do poder de Estados não significa necessariamente
um efetivo câmbio na ordem mundial. Os Estados Unidos ainda retêm grande
poder à medida que seguem sendo uma importante força promotora do capital
transnacional (Negri, 2007). Por se tratar de um período de transição histórica
ainda não concluído e, portanto, sujeito a contingências, há que se ter cuidado
com quaisquer análises de que o Estado não tem mais importância ou de que a
única forma de capital agora é global (Robinson, 2004). Assim, diante de um
complexo processo de transição paradigmática (Santos, 2002), qualquer leitura da
política como meramente mais global e menos internacional deve ser devidamente
problematizada, para que não se trate de absorver rapidamente um enfoque de
supostas rupturas, perdendo-se de vista não tanto as potencialidades, mas
sobretudo as limitações ou ressalvas que a história apresenta.
Observe-se ainda que as transformações articuladas pelo pensamento
neoliberal não teriam o poder de manter e ampliar a dominação sistêmica se não
estivessem cada vez mais entranhadas na arte de governar a população, no
controle da vida das pessoas. Tal questão remete às mudanças identificadas por
Foucault no século XVIII com relação à base da legitimação do Estado em um
“princípio de verdade” conferido pelo mercado (Foucault, 2008, 45-47), o que se
constata pela importância dada à disciplina de Economia como forma mensuração
dos custos da administração da esfera do social. É justamente quando se observa
uma incapacidade do Estado para gerir a Economia em bases keynesianas e
garantir o Estado de Bem-estar social que se verifica uma crise de
governamentalidade (Foucault, 2008, 92-95). Ora, mas não teriam essas crises
30
sido causadas justamente pelo liberalismo econômico, pela economia de mercado?
Não, como o mercado é justamente a base da verdade em que se assenta o Estado,
é a este último que são atribuídas as responsabilidades por todos os problemas
econômico-sociais. Diante da nova crise de governamentalidade, sobretudo na
década de 1970, resta ao Estado se submeter a uma regulação ainda maior do
mercado, o que se traduz na absorção pelos Estados de políticas neoliberais
(Foucault, 2008, 157-165). Essa é a centralidade dos Estados no funcionamento de
uma ordem mundial pautada pelo neoliberalismo:
Não haverá o jogo do mercado, que se deve deixar livre, e, depois, a área em que o Estado começará a intervir, já que precisamente o mercado, ou antes, a concorrência pura, que é a própria essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e produzida por uma governamentalidade ativa. Vai-se ter portanto uma espécie de justaposição total dos mecanismos de mercado indexados à concorrência e da política governamental. O governo deve acompanhar de ponta a ponta uma economia de mercado (Foucault, 2008, 164-165).
2.2.
Teoria Crítica e Estudos Críticos da Globalização
Uma leitura particular sobre os processos de globalização e governança
global vêm sendo desenvolvida por autores de Relações Internacionais vinculados
à teoria crítica, sobretudo de base gramsciana. Além de Robert Cox, autor que
estabeleceu as bases do pensamento neogramsciano em Relações Internacionais,
deve-se salientar que a base de sustentação teórica das questões oferecidas por
esta tese se encontra na análise de outros autores que fundamentam parte de seus
estudos nas análises de Gramsci, como William Robinson, Stephen Gill, Ulrich
Brand, entre outros, que se afinam (ou mesmo se apresentam) com um eixo de
pesquisas descrito como “estudos críticos da globalização”. É sobretudo com base
em autores dos estudos críticos da globalização que esta Tese busca estabelecer
um diálogo.
Robert Cox é reconhecido pelo desenvolvimento de estudos que transpõem
a base da teoria política gramsciana para o estudo das relações internacionais. Em
31
artigo de 1983, explica o papel desempenhado pelas organizações internacionais
como expressão das normas universais da hegemonia mundial. Primeiramente, ele
explica os conceitos de guerra de movimento, guerra de posição, revolução
passiva e bloco histórico, todos essencialmente associados ao conceito de
hegemonia em Gramsci. Em seguida, apresenta a tese de Gramsci de que os
processos de construção de hegemonias se dão dentro de cada Estado, ou seja, há
uma precedência do Estado como espaço em que se desenvolvem as forças
hegemônicas, antes de qualquer reestruturação das relações internacionais. As
nações poderosas são justamente aquelas que trabalharam mais as formas do
Estado e as relações sociais, restando às nações periféricas a revolução passiva, a
absorção das bases ideológicas das nações desenvolvidas. Ao aplicar o conceito
gramsciano de hegemonia às relações internacionais, Robert Cox o opõe às
noções que considera equivocadas de imperialismo ou de dominação de um
Estado sobre o outro (Cox, 1996).
Cox observa que há períodos de hegemonia mundial (hegemônicos) e
períodos em que há apenas dominação (não-hegemônicos). A hegemonia mundial
não se dá apenas numa regulação de conflitos entre Estados, mas é sempre
permeada por uma sociedade civil global, num processo de expansão da
hegemonia interna (nacional) de uma classe social dominante. Esse processo
hegemônico é sempre melhor observado nos países centrais do que na periferia,
onde os valores hegemônicos sempre estarão coexistindo com velhas estruturas de
poder num processo de revolução passiva. As organizações internacionais, com
suas normas e mecanismos, estão entre as principais formas de expressão da
hegemonia mundial, decorrendo das forças e Estados hegemônicos, servindo à
expansão da hegemonia, legitimando ideologicamente a ordem mundial e
cooptando as elites econômicas e intelectuais dos países periféricos. Observa-se
que nesse estudo desenvolvido por Cox em 1983, a reflexão com base em
Gramsci de uma perspectiva contra-hegemônica estaria restrita à emergência de
um novo bloco histórico através do desenvolvimento de novas bases político-
sociais em sociedades nacionais estabelecendo um processo de guerra de posição
na ordem mundial (Cox, 1996).
32
Como exposto, outros autores tomam como base os estudos de Gramsci,
assim como as análises iniciais de Cox aplicando os estudos de Gramsci às
Relações Internacionais, para desenvolver suas análises críticas sobre a
globalização e a governança global. Este é o caso de Robinson, Gill, Brand,
Murphy, entre outros. Deve-se ressalvar, contudo, que pesquisas descritas como
estudos críticos da globalização não aglutinam apenas a vertente neogramsciana
da teoria crítica de RI, mas também uma diversidade de outros enfoques. Em obra
organizada como uma ampla compilação de Estudos Críticos da Globalização (e
com este título), Appelbaum e Robinson observam que tais estudos se
caracterizam por buscar ao mesmo tempo “entender a globalização e engajar-se no
ativismo social global” (Appelbaum; Robinson, 2005, xiii).
Seguindo a interpretação de Cox (com base em Gramsci) de períodos de
hegemonia e não-hegemonia, Gill e Brand analisam que a globalização neoliberal
e a governança global não devem ser tratadas como hegemonia, já que se trata
mais de uma política de supremacia (Gill, 2003, 118-119) ou de uma potencial
hegemonia em construção (Brand, 2005). Para Gill, a idéia de hegemonia em
Gramsci pressupõe uma fusão de interesses de classes o que ainda não se observa
no atual estágio de globalização do capital:
By a situation of supremacy I mean rule by a non-hegemonic
bloc of forces that exercises dominance for a period over
apparently fragmented populations until a coherent form of
opposition emerges. For example, bourgeois hegemony implies
the construction of an historical bloc that transcends social
classes and fuses their direction into an active and largely
legitimate system of rule (Gill, 2003, 118-119).
Daí decorre a importância de processos de legitimação como esferas de
construção de uma hegemonia global da classe capitalista transnacional. A fusão
de interesses de classes em função do interesse maior da classe capitalista poderia
constituir então um novo bloco histórico hegemônico.
Gill desenvolve os conceitos de neoliberalismo disciplinador e de neo-
constitucionalismo como formas de observar os processos em curso no sistema
capitalista mundial (Gill, 2003). Ele defende que o atual processo de globalização
33
se caracteriza por um bloco histórico neoliberal que exerce políticas de
supremacia, ou seja, tem um projeto de hegemonia ainda não consolidado. Para
tanto, esse bloco articula “disciplina de mercado com a direta aplicação do poder
político” (Gill, 2003, 118).
O neoliberalismo disciplinador envolve tanto o disciplinamento pelas vias
do poder estrutural do capital quanto o panóptico (Gill, 2003, 130), categoria
foucaultiana que Gill utiliza para discutir as formas hodiernas de controle social.
No nível macro, esse processo se institucionaliza, como observa Gill, dando
origem a seu conceito de neo-constitucionalismo, o qual vem a ser:
Disciplinary neo-liberalism is institutionalized at the macro-
level of Power in the quasi-legal restructuring of state and
international political forms” (…) reflected in the policies of
the Bretton Woods organizations (…) and quasi-constitutional
regional arrangements such as NAFTA or Maastricht, and the
multilateral regulatory framework of the new World Trade
Organization (Gill, 2003, 131).
Isso se coaduna com a crítica de Gramsci ao que ele chama de
economicismo - a doutrina de livre comércio - e à pretensão desta doutrina de
defender uma separação entre sociedade civil (o mercado) e o Estado, já que é
justamente através do Estado que se estabelecem políticas visando garantir o livre
comércio, o qual apenas na aparência (e no discurso neoliberal) se pretende um
movimento espontâneo da economia (Gramsci, 1988, 210). Este também é o
entendimento de Saskia Sassen que reforça a centralidade do papel do Estado no
processo de globalização mesmo que seja para formalizar a transferência de uma
esfera de autoridade do estatal para o privado, ou seja, os Estados não
simplesmente aceitam a globalização neoliberal, eles trabalham para se adaptar a
ela (Sassen, 2006, 230-232; Sassen, 2007, 46-48). Foucault nas conferências em
que tratou do tema da governamentalidade, já expunha o fato de que o
neoliberalismo se imiscui na ação governamental, demandando uma permanente
intervenção dos Estados para garantir a aplicação de políticas econômicas e
sociais (Foucault, 2008, 181-205). Trata-se de uma “arte neoliberal de governar”:
O problema do neoliberalismo é (...) saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos
34
princípios de uma economia de mercado. Não se trata portanto de liberar um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de projetar numa arte geral de governar os princípios formais de uma economia de mercado (Foucault, 2008, 181).
Constata-se o que Gill descreve como um crescente processo de
“accountability de governos para mercados” (Gill, 2003, 131). Ora, tais processos
de reestruturação de base semi-legal se assemelham à idéia de uma governança
global em função da globalização neoliberal. Embora Gill não trate do assunto,
deve-se destacar que seu conceito de neo-constitucionalismo será útil para analisar
a emergência de normas de responsabilidade associadas às corporações
transnacionais, em um movimento regulatório que apenas complementa ou corrige
possíveis falhas de funcionamento do sistema. Cumpre ressaltar que o
neoliberalismo disciplinador não se reduz às ações de uma classe capitalista
transnacional e suas possíveis articulações com organizações internacionais, já
que inclui diversos agentes privados com interferência em políticas públicas
globais, tais como empresas de consultoria de gerenciamento (business gurus),
agências de bond-rating (qualificação de títulos transacionados no mercado) e
outras “burocracias internacionais” tais como empresas de contabilidade e de
seguros (Van Der Pijl, 1998, 160-162; Gill, 2003, 137; Strange, 1999, 93;
Amoore, 2006, 49; Sassen, 2006, 242-246 )
Assim como Gill, Ulrich Brand se utiliza de conceitos de Foucault, no caso
aqui o de discurso, além de categorias gramscianas, para definir a governança
global como “um discurso potencialmente hegemônico de política pós-fordista”.
(Brand, 2005, 161). Brand vai além em sua crítica à governança global, pois
explica que tal processo se apresenta como sendo uma esfera de regulação,
quando na verdade trata-se de uma re-regulação, ou seja, um formato de
manutenção de uma ordem neoliberal com gerenciamento de crises, mas sem
contestar o sistema (Brand, 2005, 155-156)
Ulrich Brand analisa que a governança global surge em um contexto de
manejo das crises geradas pelas disfunções da globalização, ou seja, trata-se de
uma nova adaptação em termos de gerenciamento de crises. Daí se depreende que
35
a noção de regimes internacionais visava legitimar uma ordem liberal pautada em
Estados Nacionais, ao passo que a idéia de governança global se articula com as
transformações da política neoliberal pós-fordista. Portanto, para Brand a
definição de governança global não deve ser a de instituição problem solving,
mas sim de um conceito operacional que pode servir à globalização neoliberal, a
partir de um processo de capital global sustentável (Brand, 2005, 171), ou seja,
maior do que a função de resolver os impactos negativos da transnacionalização
do capital é o papel de garantir a hegemonia da forma capitalista neoliberal em
escala global. Ou seja, a função da governança global deve ser analisada para
além do enfoque de resolver os impactos negativos da transnacionalização do
capital, e sim evidenciando-a como sendo uma governança global neoliberal
(Overbeek, 2004) com pretensão de garantir a continuidade do projeto
hegemônico da forma capitalista neoliberal em escala global.
Entre os autores de teoria crítica e, mais especificamente, de estudos
críticos da globalização, destacam-se ainda os estudos de William Robinson e
Craig Murphy. Robinson se engaja particularmente no que se refere à construção
de “uma teoria do capitalismo global”, a qual se centra nas transformações da
esfera da produção e no surgimento de uma classe capitalista transnacional e de
um Estado Transnacional. Ele defende que é através de uma compreensão da
dinâmica do capitalismo global que se pode garantir a resistência, o
empoderamento da população diante dessas transformações (Robinson, 2004).
Deve-se enfatizar ainda os estudos de Craig Murphy, por sua análise
particular do potencial papel das organizações internacionais na construção
histórica da governança global (Murphy, 1994), observando também com base em
categorias gramscianas as contradições presentes em novos e antigos processos
construídos em organizações internacionais (Murphy, 1994, 2000). Para
compreender melhor tal perspectiva, optou-se por realizar um estudo mais
apurado sobre a análise de Murphy com respeito às organizações internacionais
no terceiro capítulo desta tese, o qual se destina a uma análise específica de
processos de construção de hegemonia do capitalismo global historicamente em
organizações internacionais.
36
2.3.
Teorias sobre a globalização
Ainda que esta Tese tenha como base teórica as análises de autores de
estudos críticos da globalização, faz-se necessário apontar outros enfoques
teóricos sobre questões relacionadas com a globalização, com ênfase em dois
pólos relevantes: a sistematização realizada por Scholte sobre o tema e a crítica
radical negacionista de Rosenberg. Cumpre antes observar que as teorias sobre a
globalização produzidas principalmente nas décadas de 1990 e 2000 não possuíam
uma definição consensual sobre o que estavam denominando como tal. Mais do
que isso, nota-se como foi possível produzir um conceito com tamanha
repercussão sem que fosse necessário se chegar a uma clara definição. Nesse
sentido, os debates se davam em torno da caracterização do significado de eventos
que indicariam supostas mudanças, ou seja, de certa forma a definição estaria
vinculada às diferentes conotações dadas a estes eventos. Assim, percebe-se que o
discurso da globalização se baseia mais em um acordo de que ela existe,
independente de acordos outros sobre o significado desta existência (Bartelson,
2000).
Diante de um intricado debate sobre o significado da globalização, Scholte
busca sintetizar a complexidade relacionada à idéia de globalização como sendo a
difusão de conexões transplanetárias entre as pessoas, a qual mais recentemente se
observaria também por um viés de supra-territorialidade (Scholte, 2005). Sua
crítica se destina às visões reducionistas de globalização como
internacionalização, liberalização, universalização e ocidentalização, as quais não
acrescentariam nada de novo ao conceito. Em sua obra didática sobre a
globalização, é especialmente relevante a abordagem que diferencia os conceitos
de globalização (como processo) e de globalidade (como condição) de uma idéia
de globalismo, a qual Scholte observa não poder ser verificada, devido à
diversidade temporal e espacial na qual se encontra a globalização. Destarte, deve-
se tratar de processos e condições, mas não de um estado das coisas. Nas análises
de Scholte, também é observada uma preocupação conceitual peculiar em não
utilizar adjetivos como estatal, nacional e internacional, demonstrando seu desafio
37
de se afastar de qualquer marco que faça conexão com termos vinculados às idéias
de Estado e nação (Scholte, 2005).
Contudo, há aqueles como Hirst e Thompson que negam à globalização
um papel transformador. Assim, os céticos embora reconheçam mudanças
ocorridas nas últimas décadas, criticam a forma com a qual os globalistas vêm
tratando a extensão do impacto produzidos por essas mudanças:
Quanto mais de perto observávamos, mais superficiais e infundadas tornavam-se as declarações dos partidários mais radicais da globalização. Particularmente, começamos a nos inquietar com três fatos: primeiro, a ausência de um modelo da nova economia global comumente aceito e de uma referência a como ela se diferencia dos estágios anteriores da economia internacional; em segundo lugar, na ausência de um modelo claro contra o qual medir as tendências, a inclinação fortuita a citar exemplos de internacionalização de setores e processos como se fossem uma evidência do crescimento de uma economia dominada por forças autônomas do mercado global; e, em terceiro, a lacuna de fundo histórico, a tendência a retratar mudanças correntes como únicas e sem precedentes, firmemente fixadas para persistirem por muito tempo no futuro (Hirst & Thompson, 1998, 14).
Em um denso artigo publicado na International Politics, em 2005, Justin
Rosenberg proclamou a morte da globalização. Tratava-se, segundo ele, de uma
morte dupla, ou seja, não apenas da pretensão teórico-conceitual, mas também da
durabilidade das evidências empíricas que eram parte dos fenômenos
experimentados pelo mundo e interpretados por intelectuais na década de 1990.
Ele entende que é através de uma análise conjuntural da década de 1990 que se
pode compreender o porquê de ter surgido uma reivindicação teórica denominada
erroneamente de globalização e como uma possível interpretação dos fatos com
base nesta pretensa teoria encontra-se em crise ou declínio alguns anos depois.
Não é que Rosenberg ignore que mudanças efetivamente ocorreram, mas
questiona como foi feita uma correspondência subjetiva entre os fatos e uma
construção ideológica de globalização (Rosenberg, 2005, 03). Para Rosenberg,
foram dois os fatores causais que contribuíram para a aceleração das mudanças na
década de 1990: a implementação de políticas neoliberais desreguladoras nos
38
países ocidentais, sobretudo a partir da década de 1980, somada ao vácuo sócio-
político gerado pelo fim do regime soviético. Para entender a dimensão
representada por esse vácuo, ele sugere uma interpretação com base em Marx
sobretudo nas teses de “inter-relação entre soberania e relações transnacionais” e
de “tendências orgânicas de desenvolvimento do capital” (Rosenberg, 2005). O
problema central das teorias da globalização, para Rosenberg, se refere à
reificação do espaço e do tempo (e de sua compressão) como categorias
explicativas da globalização. Para interpretar as transformações observadas, ele
remete ao conceito marxista-trotskista de “desenvolvimento combinado e
desigual”, entendendo que o capital vive em um permanente processo de
adaptações às conjunturas específicas de cada época, mas que isso não implica em
uma mudança substantiva no caráter geral da acumulação capitalista.
Em síntese, os estudos de globalização seriam considerados para os céticos
como uma impropriedade teórica e, diante disso, mesmo esforços voltados à
compreensão de uma governança global ou de uma sociedade civil global seriam
uma total perda de tempo (Scholte, 2005, 18). Cabe ressaltar que nem todos os
autores comungam de uma divisão exclusiva entre globalistas e céticos. Para
Scholte, há os que se colocam entre os dois, já que levam em conta a disparidade
nos processos experimentados por países, grupos e classes sociais (Scholte, 2005,
17).
Os teóricos da globalização tendem a coincidir no entendimento de que a
globalização não apresenta apenas resultados positivos, mas que há uma série de
efeitos nocivos, com os quais se deve operar. No dizer de Giddens, “estamos
sendo impelidos rumo a uma ordem global que ninguém compreende plenamente,
mas cujos efeitos se fazem sentir sobre todos nós” (Giddens, 2003, 17). É por
conta disso que as análises das implicações da globalização não se separam de
aspectos normativos relacionados a preocupações específicas de cada intelectual.
Tem-se aqui presente a idéia de um processo em curso, ou seja, de algo inacabado,
de uma estreita articulação na experiência do teórico com o empírico, aspecto que
é denunciado por Rosenberg como um problema para a teoria da globalização. De
qualquer maneira, entende-se que a peculiaridade da globalização está justamente
no que ela implica em termos de oportunidades abertas à construção, no que
39
Rosenberg também converge (Rosenberg, 2005, 51), embora os globalistas
reforcem constantemente a permanência de um caráter de aceleração das forças
globalizantes.
Nessa análise sobre as implicações da globalização, Giddens observa
movimentos que operam em várias direções contraditórias e antagônicas. Assim, a
globalização tanto “puxa para cima” desempoderando o Estado-Nação, quanto
“empurra para baixo” empoderando “novas pressões por autonomia local” e o
“ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”
(Giddens, 2003, 23). Por outro lado, dá-se ainda um movimento ou pressão para
os lados com a criação de “novas zonas econômicas e culturais dentro e através
das nações” (Giddens, 2003, 23).
Por último, com relação à periodização histórica, ou seja, à possibilidade
ou não da globalização caracterizar uma mudança de época, Scholte busca
distinguir dois períodos relativos à globalização relacionando-os a eventos
históricos: a fase da globalização incipiente (1850-1950) e a fase contemporânea
de globalização acelerada (1950-hoje). Para chegar a tais conclusões, produz uma
comparação entre os dois períodos com base no desenvolvimento dos seguintes
referentes: comunicações, viagens, organizações, Direito, produção, mercados,
dinheiro, finanças, ecologia social, militarismo e consciência global (Scholte,
2005).
Ora, como observado no começo deste capítulo, a globalização é um
processo histórico intimamente relacionado com a necessidade constante de
acumulação do capital, mas que nas últimas décadas teve impacto não só
econômico, mas político, social e cultural, com especificidades tais que deu
origem a diversas teorias explicativas da globalização. Dentre essas
especificidades, deve-se destacar o neoliberalismo como forma dominante
acompanhado do processo de formação de uma classe capitalista transnacional.
Neste sentido, ainda que seja pertinente a análise de que se possa referir à
globalização como um fenômeno de mais de quinhentos anos como defendem
Wallerstein e outros autores que comungam da perspectiva do sistema-mundo
capitalista, defende-se aqui uma leitura de globalização associada a
40
transformações mais recentes, as quais representam um novo redimensionamento
do espaço mundial nas bases de uma intensificação de processos cuja
complexidade pode ser mais bem entendida através de um enfoque que traga à
tona as diversas nuances de transnacionalização de diversas esferas da vida.
2.4.
Governança Global e a questão do multilateralismo
Para compreender o debate apresentado com relação aos desafios para a
governança global a partir das últimas décadas do Século XX, observam-se as
análises do construtivismo social e multilateralismo de John Ruggie Em alguma
medida, esses autores convergem com a idéia de responsabilidade das corporações
no processo de globalização, tomam a globalização como um processo de
aprofundamento da interdependência e dão as boas-vindas à participação de tais
atores não-estatais na política global.
O conceito de governança global se fortaleceu nos debates políticos e na
academia com os trabalhos realizados pela Comissão de Governança Global no
começo da década de 1990. A deterioração da dignidade humana demandava
ações dos Estados e mesmo de atores não-estatais para que fossem assegurados
padrões mínimos de garantias sociais. Embora aparentemente a reação aos
problemas causados ou aprofundados pela globalização neoliberal aparente estar
restrito à crítica marxista da acumulação do capital, observa-se o envolvimento de
políticos, economistas e pesquisadores em Relações Internacionais de vertentes as
mais diversas, entendendo que, para parte dessas vertentes, a construção de uma
arquitetura de governança global não se choca com os interesses de longo prazo
de manutenção do sistema capitalista.
É assim que são observadas, entre outras, as seguintes implicações
vinculadas a agendas para engajamento: avanços e retrocessos, potencialidades e
deficiências no que se refere à globalização da segurança, da igualdade e da
democracia (Scholte, 2005); emergência e necessidade de fortalecer o
cosmopolitismo (Held, 2003); regionalismos e desafios para a democracia e para a
cidadania (Gómez, 2000).
41
Deve-se resgatar ainda que o próprio conceito de governança global pode
ser tratado como articulado a outros processos anteriores à atual fase de
globalização do capital. Assim, Murphy identifica um processo gradativo de
governança global desde 1850 com mudanças vinculadas ao tipo de produção
capitalista em cada momento (Murphy, 1994). O próprio fim da Guerra Fria é
visto por John Ruggie como resultante da produção de normas e instituições
multilaterais (Ruggie, 1992, 561), já que a bipolaridade caminhava conjuntamente
com a tática norte-americana de construir um multilateralismo principalmente
através da Organização das Nações Unidas-ONU, onde até a União Soviética e
seus aliados tinham assento. Ao tratar da definição de multilateralismo, Ruggie
observa que o conceito também é tratado de formas diversas e quase sempre com
imprecisão (Ruggie, 1992, 565). Sua maior preocupação é a de ressaltar a
dimensão qualitativa do multilateralismo (Ruggie, 1992, 566), constantemente
negligenciada por autores que tratam do tema. Ainda que o termo seja associado
às normas e instituições internacionais presentes desde o começo da era moderna,
o que distingue o multilateralismo é justamente o fato de se conduzir por
princípios que ordenam relações entre Estados (Ruggie, 1992, 567). Para Ruggie,
o multilateralismo que temos é expressão do modelo de hegemonia dos Estados
Unidos, pois reflete seu ambiente doméstico (Ruggie, 1992, 568). Cumpre
observar, entretanto, que para Ruggie a função essencial dos arranjos
institucionais de base multilateral é sua capacidade adaptativa e reprodutiva que
assegura a estabilidade nas transformações do sistema internacional (Ruggie,
1992, 568), função que se assemelha àquela de balança de poder. É por isso que,
embora pareçam termos dicotômicos, que foram construídos com base em
correntes distintas de relações internacionais (realismo e liberalismo), terminam
por comunicar-se a partir de uma perspectiva integrada de neoliberalismo e
neorealismo, no que ficou conhecido como o consenso neo-neo nos estudos de
Relações Internacionais.
A atuação de Ruggie nos processos em curso na ONU sobre a
responsabilidade das corporações transnacionais se coaduna com sua produção
acadêmica e sua inserção no debate teórico de Relações Internacionais (RI). Para
o autor, o neo-utilitarismo em RI, observado nos consensos entre neoliberalismo e
42
neorealismo, está restrito às regras regulatórias com ênfase em interesses e
preferências estáveis. O construtivismo social possibilita analisar os fatores
ideacionais, estudando o impacto da intencionalidade coletiva na política
internacional. É através desses fatores ideacionais que se podem entender as
transformações sistêmicas, pois evidenciam as identidades e aspirações que estão
sendo construídas no nível dos agentes (Ruggie, 1998). Em artigos publicados
sobre o Pacto Global e nos relatórios de seu mandato sobre as Normas em Direitos
Humanos, Ruggie reforça o caráter de aprendizado e conscientização gradativos
que permeia o envolvimento das empresas transnacionais no debate de
responsabilidade social na ONU (Ruggie, 2004). Entende ser possível o processo
de incorporação normativa por parte das empresas de uma conduta mais
responsável, com implicações para a construção de uma governança global que
conduza à superação dos malefícios gerados pela globalização econômica. A
dinâmica de adesão voluntária das empresas nas bases de responsabilidade social
corporativa (CSR, em inglês) permite dispensar a adoção de normas obrigatórias
por parte da ONU: “the more effective the CSR, the less the pressure will be to
accomplish the same ends by other – and potentially far less friendly – means”
(Ruggie, 2004, 41).
De forma similar, ainda que sem o aprofundamento da questão dos fatores
ideacionais, Keohane discute o papel desempenhado por atores não-estatais na
globalização, que ele traduz como um alto grau de interdependência, reforçando o
conceito por ele trabalhado na década de 1970. Ele conclama acadêmicos e
cidadãos a investirem em processos de accountability que garantam uma
governança multilateral legítima (Keohane, 2005). Tal governança só seria
possível com concessões estratégicas por parte de Estados e organizações
poderosas, já que “(...) global governance can impose limits on powerful states
and other powerful organizations, but it also helps the powerful, because they
shape the terms of governance” (Keohane, 2005, 134).
2.5.
A formação de uma classe capitalista transnacional
43
Tendo observado os principais pressupostos analíticos de autores da teoria
crítica e, particularmente, seus enfoques na linha de estudos críticos da
globalização e da governança global, passa-se então a discutir, com base nesses
autores, como se deu o processo de formação de uma classe capitalista
transnacional e a necessidade de legitimação desta classe para o aprofundamento
do processo de acumulação capitalista da globalização.
A estratégia de acumulação capitalista na perspectiva da globalização
neoliberal pode ser mais bem observada quando se evidencia o processo de
formação e a agência de uma classe capitalista transnacional. Entender como se
constituiu historicamente uma classe capitalista transnacional é essencial para que
se possa analisar o interesse dessa classe em debates sobre atribuição de
responsabilidades para as empresas transnacionais em organizações que atuam
globalmente. As percepções sobre o processo de construção desta classe, ainda
que desenvolvidos mais recentemente por Gill e Robinson, já eram explorados por
Cox em estudos como o seu célebre artigo de 1981 engajando-se na crítica ao
Neo-realismo em RI sob o título “Social Forces, States and World Orders:
Beyond International Relations Theory”. Nesse artigo, Cox apontava para a
amplitude da articulação desta classe capitalista transnacional, indicando que “At
the apex of an emerging global class structure is the transnational managerial
class. Having its own ideology, strategy and institutions of collective action, it is a
class both in itself and for itself” (Cox, 1986, 234). A percepção de uma classe
não só em si, mas para si, é posteriormente aprofundada por Gill e Robinson.
O conceito de classe implica em uma forma relacional, já que as classes
existem em oposição umas as outras. Entende-se por classe “um grupo de pessoas
que partilham de uma relação comum com o processo de produção e reprodução
social” (Robinson, 2004, 37). É através de um enfoque com base em relações de
classe que se pode evidenciar a articulação entre produção e poder, entre a esfera
da economia e a da política (Cox, 1987, 03). Para evidenciar grupos específicos
dentro de uma mesma classe, deve-se resgatar a interpretação marxista de
fracionamento de classes (Grasmci, Cox, Robinson, Gill, Van Der Pijl),
observando que além do fracionamento da classe capitalista em industrial,
comercial e financeira – e mais recentemente informacional, pode-se perceber
44
“the idea that under globalization a new class fractionation, or axis, is occurring
between national and transnational fractions of classes” (Robinson, 2004, 37). O
processo de formação de classe envolve dimensões de estrutura e de agência, de
uma classe em si para uma classe para si, como explica Robinson com base em
Karl Marx:
A class-in-itself is a group whose members objectively share a
similar position in the economic structure of society
independent of the degree to which they are aware of their
collective condition or to which they consciously act on the
basis of this condition. A class-for-itself is a class group whose
members are conscious of constituting a particular group with
shared interests and would be expected to act collectively in
pursuit of those interests. The study of class formation therefore
involves structural and agency, or objective and subjective,
levels of analysis (Robinson, 2004: 38).
Pode-se entender também a idéia de uma classe em si e uma classe para si,
aprofundando os aspectos estruturais (base material) e de agência coletiva que
caracterizam respectivamente cada um desses enfoques (Robinson, 2004, 38). A
classe em si tem como base uma relação de propriedade . Na classe capitalista,
tem-se aqueles que têm a propriedade ou o controle dos meios de produção, seja
físico, seja financeiro (Gill, 2003, 167). Já o enfoque de classe para si resgata a
subjetividade desta classe como autoconsciente tanto de seus interesses comuns
quanto da necessidade de unir forças em torno de uma estratégia comum (Gill,
2003, 168). É assim que quando Gill opta pelo conceito de “elites globalizantes”,
este traz imbuído um elemento estratégico diretivo dentro do capitalismo
globalizado: “Globalizing elites – intellectual and practical apparatuses within
transnational capitalism – are at the apex of the social hierarchies that
characterize the new, emerging world order” (Gill, 2003, 159).
Com a globalização da economia, observa-se, portanto, a imposição de
uma estrutura de classes global sobre as estruturas nacionais de classe (Cox, 1986,
234). Contudo, deve-se perceber que uma parte das relações sociais e esferas de
poder situadas em “território nacional” compõe a estrutura do capitalismo global
(Sassen, 2006), ainda que se observe uma considerável resistência subjacente de
classes capitalistas e trabalhadoras de caráter nacional. Ou seja, ao se
45
compreender a esfera do global como uma rede interconectada (Hardt; Negri,
2001), deve-se ter em evidência de que há sempre conexões nacionais como parte
da classe capitalista global:
The members of this transnational class are not limited to those
who carry out functions at the global level, such as executives
of multinational corporations or as senior officials of
international agencies, but include those who manage the
internationally oriented sectors within countries, the finance
ministry officials, local managers of enterprises linked into
international productions and so on (Cox, 1983, 234).
Impelidas a globalizar-se, a participar de um processo de acumulação para
além das fronteiras impostas pelo Estado, necessidade histórica própria do modo
de produção capitalista, aquelas empresas que ainda tinham uma feição
estritamente nacional buscam cada vez mais a transnacionalização da produção e
do consumo de suas mercadorias. É assim, em chave histórica e diante das
contradições inerentes ao processo de acumulação capitalista, que se percebe o
caráter de constituição e de agência da emergente classe capitalista transnacional
(Sklair, 1991, 38). Para Sklair, faz-se necessário compreender uma sutil
diferenciação, ainda que complementar, no caráter específico econômico
(corporações transnacionais), político (classes capitalistas transnacionais) e
cultural-ideológico (agentes e instituições transnacionais) de cada um dos atores
que compõem a classe dominante global: “the transnational corporations strive to
control global capital and material resources, the transnational capitalist classes
strive to control global Power, and the transnational agents and institutions of the
culture-ideology of consumerism strive to control the realm of ideas” (Sklair,
1991, 82).
Mesmo diante da crise de hegemonia dos Estados Unidos a partir da
década de 1970, o projeto de hegemonia do capitalismo global e o suporte à
articulação de uma classe capitalista transnacional foram assegurados em grande
parte pelos Estados Unidos com seu peso econômico, político e militar.
Entretanto, com o final da Guerra Fria, percebe-se um amplo movimento da classe
capitalista transnacional para reedificar a hegemonia do capital sob outras bases
(Gill, 2003, 160), para além de uma relação de dependência específica de um ou
46
outro Estado. “At the same time the ideas, institutions and material capabilities of
the vanguard elements of the globalizing elites of contemporary capitalism are
seeking to reconstruct new patterns of dominance and supremacy at the core of
the system” (Gill, 2003, 159).
O processo gradativo de constituição da classe capitalista transnacional
como uma classe para si esteve diretamente associado à difusão e à aplicação das
teses do neoliberalismo produzidas por Friedman e Hayek, entre outros. Tal
processo de construção de uma hegemonia neoliberal foi produzido em grande
parte pela ação de “redes bem organizadas de produção e disseminação da
doutrina neoliberal operando com relativa autonomia dos centros de poder político
e corporativo” (Plehwe & Walpen, 2006, 28). Um dos momentos-chave desse
processo foi a fundação da Sociedade de Mont-Pèlerin (Plehwe & Walpen, 2006;
Van Der Pijl, 1998, 129-130), mas também pode-se observar a evolução da
articulação da classe capitalista transnacional em uma rede complexa de conexões
em espaços como a Câmara Internacional de Comércio, a Conferência Bilderberg,
a Comissão Trilateral, o Fórum Econômico Mundial e o Conselho Mundial de
Business para o Desenvolvimento Sustentável (Carrol & Carlson, 2006).
Em 1947, após alguns anos de articulação de intelectuais norte-americanos
e europeus em torno de estudos de crítica à politização da economia e em defesa
do livre mercado, é fundada a Sociedade de Mont-Pèlerin (nome que faz
referência ao vilarejo na Suíça onde ocorreu o primeiro encontro) (Plehwe &
Walpen, 2006, 30-31). Organizado pelo próprio Hayek e tendo como base seus
escritos neoliberais, além de seu ativismo pelo neoliberalismo, a Sociedade se
organizou com a participação de membros de várias regiões do mundo (ainda que
a grande maioria fosse de norte-americanos e europeus) em torno de princípios ou
objetivos, além de contar com diversas interfaces tanto com fundações e grupos
de pensamento que atuam no âmbito nacional quanto com outros grupos da classe
capitalista transnacional, como o Fórum Econômico Mundial (Plehwe & Walpen,
2006, 30-40).
Para uma análise das adaptações das agendas neoliberais das redes da
classe capitalista transnacional, espaços onde essa classe se articula e define
47
políticas (policie), destaca-se aqui o estudo realizado por Carroll & Carlson
(2006), no qual eles identificam cinco organizações com o momento histórico em
que foram criadas e o caráter do discurso neoliberal de então. Assim, observa-se
de uma variante neoliberal conservadora de livre mercado, representada pela
Câmara Internacional do Comércio (1919), passando por um neoliberalismo
estruturalista identificado com a Conferência de Bilderberg (1952), o Fórum
Econômico Mundial (1971) e a Comissão Trilateral (1973), até chegar a nova
forma de um neoliberalismo regulacionista com o Conselho de Negócios Mundial
para o Desenvolvimento Sustentável (1995) (Carroll & Carlson, 2006, 55-60). Em
geral, as organizações que foram criadas tendo como base determinada vertente de
agenda neoliberal mantém o perfil sob o qual foram fundadas. Contudo, essas
organizações compõem uma integrada rede global de políticas corporativas
(global corporate-policy network), já que há um grande número de interconexões
entre os membros filiados que compõem ao mesmo tempo os conselhos ou
diretorias de mais de uma organização, gerando assim um constante diálogo e
interface entre elas (Carroll & Carlson, 2006, 60-68).
De todos os espaços de articulação da classe capitalista transnacional,
destaca-se aqui o surgimento do Fórum Econômico Mundial (FEM), na década de
1970, como paradigmático de um deslocamento cada vez maior do capitalismo,
como sugere Cox, de uma estrutura político-econômica internacional para a
emergência de uma estrutura político-econômica global (Cox, 1996; Pigman,
2007, 06), entendendo-se por isso o avanço no processo de articulação das
corporações transnacionais com vistas a uma expansão de sua atuação em todo o
mundo, harmonizando processos de gerenciamento e buscando a flexibilização
dos limites nacionalmente impostos à entrada de capital estrangeiro.
O FEM é também conhecido como Fórum de Davos, já que é nesta cidade
da Suíça que o fórum costuma se reunir anualmente. É uma fundação do setor
privado e sem fins lucrativos, com o objetivo de intercambiar informações e idéias
entre os principais líderes econômicos não-estatais do mundo. Surgiu inicialmente
na Europa, em 1971, com a crise das instituições de Bretton Woods, devido ao
ressentimento das empresas européias diante das norte-americanas que cresciam
mais rapidamente por empregar modernos métodos de gerenciamento (Pigman,
48
2007). Com apoio da RAND Corporation2, organizou-se a primeira reunião do
fórum, com a finalidade inicial de fazer com que as empresas da Europa
aprendessem com a dinâmica empresarial dos Estados Unidos. Já na década de
1980, o Fórum Econômico se havia tornado um espaço privilegiado de diálogo e
aprendizado entre os principais líderes de negócios do mundo, não mais restrito a
uma cooperação entre o setor privado Europa-EUA (Pigman, 2007).
Diante das novas demandas enfrentadas por um acelerado processo de
globalização na década de 1990, o Fórum Econômico Mundial decide cuidar de
questões globais que extrapolam a partilha de informações e idéias no restrito
campo do desempenho empresarial. A estratégia então é intitulada de going
public, ou seja, tratar de políticas públicas em âmbito global. É nesse processo que
os interesses do FEM começam a se aproximar com os ideais da ONU, sobretudo
com o pleito de Annan de aproximar as Nações Unidas do mundo dos negócios
(Pigman, 2007). Para Negri, o FEM é a “é a expressão de uma consciência
capitalística da globalização”, na qual “o capital aparece não só aberto à inovação
mas, sobretudo, tem a oferecer uma imagem de civilidade. Aqui o capital não se
apresenta como negociação, mas como modo de vida” (Negri, 2007, 13).
O emaranhado de articulações entre atores da elite globalizante (Gill)
observado no Fórum Econômico Mundial e em outras organizações aqui referidas
demonstra de que não se trata de uma exclusiva classe capitalista transnacional
bem delineada e constituída, mas de um processo em curso com suas contradições
(Robinson, 2004, 47) e o envolvimento de outros atores. Assim, é relevante
esclarecer que tal processo envolve não apenas empresas transnacionais (os que
controlam os meios de produção capitalista), mas também a elite “técnica” de
profissionais das organizações de capitalistas, das burocracias das organizações
internacionais, das empresas de consultoria, das principais redes e organizações
não-governamentais. Essa elite constitui o que Pijl denomina de cadres - os que
cuidam da gerência ou administração do sistema e que, em última instância, são
responsáveis pela coesão social do mesmo (Van der Pijl, 1998).
2 Um dos principais Think Tanks dos Estados Unidos.
49
The capitalist class is viewed as not directly concerned with the
question of different trajectories of capitalism. This task is
performed by organic intellectuals drawn from the stratum
broadly described as the cadres, as seen for example in the
composition of the Trilateral Commission in which academics
and senior civil servants and planners (cadres), mainly from the
OECD countries, participate and prepare the analyses
considered by the chieftains of transnational firms and
government leaders (Gill, 2003, 172).
Com a aplicação do receituário neoliberal a partir da década de 1980, o
caráter da cadres muda, assim como os desafios de manter a coesão social. As
cadres se afastam cada vez mais dos trabalhadores e de uma agenda econômico-
corporativa ou keynesiana e são amplamente cooptadas pela doutrina neoliberal
(Van der Pijl, 1998, 159-165). Aos poucos, como Van der Pijl observa, se percebe
a necessidade de reaproximar as cadres dos que resistem à dominação do sistema
capitalista, engendrando um novo tipo de coesão social global, o que é um dos
eixos centrais de análise crítica desta tese.
Ora, mas para bem entender melhor o intricado processo de construção da
classe capitalista transnacional, três questões ainda precisam ser aprofundadas.
Tais questões persistem após as análises aqui empreendidas sobre os processos de
transformações da ordem mundial e as teorias que buscaram explicá-las. Em
primeiro lugar, há que se discutir qual é a relação da emergência dessa classe com
o debate sobre um suposto imperialismo norte-americano. Uma segunda questão é
a que se refere à relação da classe capitalista transnacional com as esferas do
nacional e do sub-nacional. Trata-se de oposição ou complementaridade? Por
último, precisa-se analisar como se pode argumentar sobre uma estrutura
emergente de classes em âmbito transnacional, com base em uma classe
capitalista transnacional, sem que se aborde o contraponto de uma classe em
oposição a esta, uma espécie de proletariado global. Cada uma destas questões
será analisada em seguida.
Sobre a identificação da globalização econômica com um tipo de poder
hegemônico ou imperialista dos Estados Unidos no mundo (Agnew, 2005),
entende-se aqui que tais argumentos se justificam em dois aspectos essenciais de
origem histórica: no papel desempenhado pelos EUA de promoção da
50
transnacionalização do capitalismo antes e depois do Consenso (neoliberal) de
Washington; e na influência global da cultura norte-americana de negócios (Cox,
1996). Engajando-se com os que criticam sua abordagem de formação de uma
classe capitalista transnacional se organizando para além do poder dos Estados,
com ênfase nos Estados Unidos, Cox esclarece que
It is sometimes argued that this is merely a case of U.S.
capitalists giving themselves a hegemonic aura, an argument
that by implication makes of imperialism a purely national
phenomenon. There is no doubting the U.S. origin of the values
carried and propagated by this class, but neither is there any
doubt that many non-U.S. citizens and agencies also participate
in it nor hat its world view is global and distinguishable from
the purely national capitalisms which exist alongside it. Though
the transnational managerial class American culture, or a
certain American business culture, has become globally
hegemonic (Cox, 1996, 253).
Assim, em que pese o poder político, econômico e militar que detém os
Estados Unidos e sua contribuição histórica à internacionalização e
transnacionalização do capital, verifica-se cada vez mais um perfil de autonomia
da classe capitalista transnacional, a qual mesmo com conexões nacionais, busca
se desvincular de uma política de benefícios específicos para este ou aquele
Estado. “Davos é símbolo da superação do imperialismo, o sonho realizado de
juntar, para além das dimensões nacionais, a unidade do projeto capitalístico num
plano global” (Negri, 2007, 13). Com isso, percebe-se o interesse dessas classes
na busca de uma hegemonia global não apenas no centro, mas também na
periferia do sistema. É através da ampliação das práticas da classe capitalista
transnacional para as regiões anteriormente denominadas de Segundo e Terceiro
Mundo que se tenta consolidar a hegemonia global do capital (Sklair, 1991, 38).3
Nesse entendimento, buscando discutir a segunda questão sobre a relação
de uma classe capitalista transnacional com o nacional/sub-nacional, observa-se
que tal relação tem transitado cada vez mais de um caráter de oposição para um de
complementaridade. Com isso, Sassen discute os limites de uma análise de classe
3 Note-se que a análise de Sklair estimula um relevante campo de pesquisa, ainda que esse não seja o enfoque dessa tese. Caberia explorar com mais profundidade como se deu a absorção do discurso e da prática de responsabilidade social das empresas do centro para a periferia do sistema.
51
global, já que, por um lado, entende que se trata na verdade de “classes globais”
(no plural) e, por outro, verifica nessas classes uma “posição ambígua entre o
global e o sub-nacional” (Sassen, 2006, 298). Assim, primeiramente ela verifica
outras classes além das cadres de profissionais e executivos descritas por Van Der
Pijl: redes que articulam funcionários setoriais de governos de Estados envolvidos
no enfrentamento de questões transnacionais como migrações e financiamento ao
terrorismo; ativistas da sociedade civil global e de redes de grupos em diáspora;
assim como “comunidades transnacionais de imigrantes” (Sassen, 2006, 298-299).
Junto a essas contradições, observa-se uma relevante crítica àqueles que
conclamam as “classes globais” a engajarem-se em uma agenda cosmopolita de
governança global. Ela analisa que essas classes são fragmentadas e que têm
interesses específicos, o que não se identifica com um prisma de cosmopolitismo
(Sassen, 2006, 299-300).
Por último, indaga-se sobre a necessidade de discutir forças de resistência
globais, como a emergência de uma classe trabalhadora transnacional, em um
entendimento de que as classes devem ser estudadas como parte de um processo
dialético. Tratando dessa questão, Robinson explica que sua análise termina
realmente sendo parcial, já que, mesmo que possa ser observada a existência de
uma classe trabalhadora transnacional em si, ainda não se pode dizer que já existe
uma agência tal que caracterize o proletariado global como uma classe para si
(Robinson, 2004, 43).
Embora também analise que “(...) tendencies towards the globalization of
capitalism (...) condition the limits of the possible for different agents and social
movements in world order” (Gill, 2003, 161), Gill observa com os protestos de
massa contra a globalização e a articulação de atores resistindo a políticas
neoliberais em todo o mundo, a possibilidade de se constituir o que ele chama de
um príncipe pós-moderno (Gill, 2003), ou seja, em lugar de uma figura política
nas bases de um partido como apresentado na obra “O Príncipe” de Maquiavel,
ter-se-ia uma soma de processos difusos de resistência, uma forma de ação
coletiva complexa, respondendo de forma plural a uma dominação também plural
(Gill, 2003, 221). Como símbolo de uma ação coletiva complexa resistindo à
globalização neoliberal e por “uma outra globalização”, observa-se a partir de
52
2001 o processo de construção e realização dos encontros periódicos do Fórum
Social Mundial (FSM) e seus múltiplos desdobramentos em fóruns sociais em
regiões, países e cidades de várias partes do mundo4. Alguns autores também
identificam a existência de um movimento de justiça social global (global social
justice movement), com ênfase na ampla articulação em redes de organizações
não-governamentais (ONGs), embora deva-se fazer uma ressalva de que uma
parte considerável dessas ONGs vêm se associando com a classe capitalista
transnacional voluntariamente ou por cooptação através de uma agenda de
governança global sem viés anti-sistêmico. Ainda que a resistência se apresente
um tanto dispersa, com dificuldades e contradições, ela tem exercido um papel
fundamental de “politizar as contradições do capitalismo global” (Brand, 2006).
2.6.
Legitimação e construção da hegemonia do capital
A insatisfação difusa com as falsas promessas, em parte canalizada para
processos de resistência organizada, ainda que fragmentada, e o aprofundamento
de crises econômicas e sociais geradas pela aplicação de políticas neoliberais
demandaram da classe capitalista transnacional um engajamento ainda maior em
ações que buscassem legitimar a forma neoliberal de globalização, buscando
cooptar a resistência ou reforçando discursos para conquistar “corações e mentes”.
“By the turn of the century the transnational elite had moved from the offensive to
the defensive as the system began to enter a crisis of legitimacy” (Robinson, 2004,
146).
Os conceitos de legitimidade e legitimação são analisados com enfoques
diferentes por autores de Relações Internacionais. Seguindo o eixo teórico de
análise aqui proposto, esses conceitos de legitimidade e legitimação se vinculam à
percepção gramsciana de hegemonia desenvolvida por Robert Cox em Relações
Internacionais. Observa-se que, para Cox, o sentido de legitimação está
diretamente associado ao caráter ideológico da prática hegemônica (Cox, 1983).
4 Sobre o Fórum Social Mundial como espaço inovador de articulação de atores políticos e sociais que resistem à globalização neoliberal, assim como para uma análise de seu histórico, de suas potencialidades, contradições e desafios, consultar Gómez 2005, Sousa Santos 2005a e 2005b, Milani 2007, Roy 2004.
53
Como analisa Sklair, os aspectos econômico e político da dominação de classe já
estavam bem expostos em Marx, mas foi através dos estudos de Gramsci sobre a
“esfera cultural-ideológica”que se pôde perceber que as “oportunidades de
controle ideológico em escala global mudaram incontestavelmente” (Sklair, 1991,
73). Para Cox, a hegemonia é concebida como uma mediação entre poder,
ideologia e instituições (Cox, 1996, 224-225). Questiona-se, em tal perspectiva, o
papel exercido pelas organizações internacionais na legitimação de normas,
instituições e práticas da ordem mundial e, portanto, em que medida as
organizações internacionais devem refletir orientações que favoreçam as elites
econômicas e sociais. (Cox, 1996).
No final do Século XX e começo do Século XXI, diante de pressões de
diversos grupos sociais e Estados, e em face das sucessivas crises financeiras
enfrentadas pelo capital global, a emergente classe capitalista transnacional viu-se
obrigada a buscar novas esferas de legitimação a fim de evitar maiores ameaças a
seu projeto de hegemonia. Com isso, ainda que se mantenham as bases de uma
expansão global do capital e a busca pela comodificação de novos setores da vida
social, uma parte significativa da classe capitalista transnacional tem se dirigido
mais para o envolvimento com o debate de políticas de controle do capital
financeiro, visando a estabilização sistêmica, assim como com questões sociais (e
ambientais), entendendo que seria seu papel cuidar de novas formas de ajuste e
compensação econômico-social (Robinson, 2004, 163) e ambiental, o que implica
em tratar inclusive de abrir espaço para acordar com as organizações
internacionais sobre novas formas de regulação. Tem-se evidenciado, em tal
perspectiva, um emergente debate sobre uma espécie de “neo-keynesianismo
global” (Robinson, 2004) ou “regime global de bem-estar” (Mueller, 2001) em
setores das elites econômicas e políticas. Não é possível saber até que ponto este
debate será desenvolvido, o que depende naturalmente do aprofundamento ou não
das crises e das contradições sociais do capitalismo nos próximos anos. Contudo,
já há um tempo a demanda por maior regulação não é apenas de grupos que se
opõem à transnacionalização do capital.
The clamor for reform within the summits of global Power
points to the rise of an as yet ill-defined global neo-
54
keynesianism, a project that would attempt to attenuate some of
the sharpest contradictions of the system and at the same time
win support from popular and oppositional forces and therefore
hold out the prospect of regenerating hegemony. The contours
of such a project are not clear, but it would most likely involve
a neoregulatory regime supervised by the transnational state (Robinson, 2004,164).
Este tema já se impõe cada vez mais na agenda de organizações
internacionais dominadas pelos países centrais, como o G8, assim como na de
redes que articulam a classe capitalista transnacional. Há uma auto-consciência e
uma convergência das redes da classe capitalista transnacional em torno de uma
concepção pluralista do neoliberalismo, permitindo o engajamento desta classe
inclusive em uma agenda neoliberal de cunho reformista ou regulacionista (Carrol
& Carlson, 2006). Isso se deve a uma reiterada percepção de que a fraqueza dos
Estados e do sistema de Estados para regular, administrando as crises e os custos
sociais, deveria ser acompanhada de uma transferência de atribuições para a classe
capitalista transnacional, a qual pouco a pouco se engaja mais no processo de
assumir responsabilidades. Contudo, deve-se explicitar que os processos de
resistência e as demandas por uma governança global humanizada “contribuem
(mais) para a reforma das constelações hegemônicas neoliberais contemporâneas
do que para o seu fracasso” (Plehwe, Walpen, Neunhöffer, 2006, 17).
O que está em jogo é, portanto, a forma que irá tomar “um regime de
regulação ou neo-keynesianismo global” que em última instância “irá emergir das
conseqüências políticas das dinâmicas de enfrentamentos entre diversas forças
sociais e instituições ao redor do mundo” (Robinson, 2004, 167). Contudo, deve-
se atentar, desde logo, para o fato de que não se trata de um projeto anti-
hegemônico, mas sim de uma tendência já observável em mudanças de políticas
de organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, as
quais em última ordem visam uma consolidação de um projeto de hegemonia do
capitalismo global (Mueller, 2001).
Processos de legitimação também são aplicados por estratégias de
cooptação da oposição, trazendo-a para uma política de centro, o que foi traduzido
por Gramsci com o termo transformismo, ao tratar de processos correlatos na
55
política partidária italiana de sua época (Gill, 2003, 221). É assim que a classe
capitalista transnacional busca exercer um controle das regras do jogo no sistema,
da forma e dos espaços onde se fazem e se definem políticas, constrangendo
aqueles que se afastam de enfoques considerados aceitáveis:
a concept of control (here the neoliberal one) works to
demarcate an area of possible solutions and define
legitimate courses of action for the cadres most directly
(...) The discipline of capital can operate through
progressive NGOs as easily as it does, much more
expressly of course, in the recommendations of
management consultancies (Van Der Pijl, 1998, 162).
Tal flexibilidade do neoliberalismo em se ajustar a um controle da ordem
mundial através de uma estrutura política flexível em consonância com uma
estrutura econômica de acumulação flexível é traduzida por Gill como uma
política de supremacia, uma pós-hegemonia, já que um paradigma de governança
global com institucionalidade difusa e plural termina por contribuir para uma
constante dominação das elites globalizantes, dificultando uma resistência de
caráter contra-hegemônico (Gill, 2003), ou seja, trata-se de uma doutrina cujo
foco não está tanto em práticas consensuais, mas sim em um permanente esforço
de esvaziar a possibilidade de surgirem projetos alternativos.
Neoliberal hegemony is better understood as the capacity to
permanently influence political and economic developments
along neoliberal lines, both by setting the agenda for what
constitutes appropriate and good government, and criticizing
any deviations from the neoliberal course as wrong-headed,
misguided or dangerous (Plehwe & Walpen, 2006: 44).
O esvaziamento de alternativas é parte essencial do processo de
legitimação. Se a ordem mundial sob o prisma da globalização neoliberal tem
como conseqüência efeitos perversos humanos, sociais e ambientais, os quais
precisariam ser melhor administrados na lógica da governança global, a oposição
a tal projeto de globalização é recebida como atraso ou barbárie. Sob esse ponto
de vista, é relevante resgatar o caráter contraditório da utilização do tema dos
direitos humanos pelos Estados centrais e pela classe capitalista transnacional
diante dos desafios de garantir a globalização do capital. Primeiramente, percebe-
56
se que o discurso dos direitos humanos foi amplamente utilizado, a partir da
década de 1970, não apenas para garantir a liberalização da economia e da política
nos países periféricos, associada à entrada de capital estrangeiro, mas também nos
países centrais, diante das crises de funcionamento do sistema capitalista e da
desestruturação de parte do Estado de Bem-Estar social (Lechner, 1979), ou seja,
diante de uma crise de legitimação dos próprios Estados centrais. Se “a moral
universalista do capitalismo perde forças no momento mesmo em que se
universalizam as relações capitalistas de produção, a tarefa não solucionada do
capital é a de gerar um direito e uma moral que acordem com sua
internacionalização” (Lechner, 1979, 21). Ironicamente, porém, com o
aprofundamento da globalização do capital, diversos grupos e organizações
sociais passam a apresentar uma série de denúncias de violações de direitos
humanos perpetradas por corporações transnacionais, tanto em cumplicidade com
os Estados, quanto diante da subserviência dos mesmos que não lograriam
responsabilizá-las. Tais violações de direitos humanos são parte fundamental da
crise de legitimidade do capitalismo global. É nesse cenário que se observa o
surgimento de um novo discurso que visa deslocar parte da responsabilidade em
direitos humanos dos Estados para as empresas, como forma de legitimação.
Diante de um discurso de apropriação de responsabilidades antes
vinculadas aos Estados por parte das corporações transnacionais, aprofunda-se a
questão do esvaziamento de alternativas, já que a solução para os problemas do
capitalismo é cada vez mais direcionada para a classe capitalista transnacional.
Como explica Gill:
The operation of the neo-liberal myth of progress in modernist
capitalism is intended implicitly to engender a fatalism that
denies the construction of alternatives to the prevailing order,
and thus, negates the idea that history is made by collective
human action (Gill, 2003, 139).
Eis o enigma em que se insere este estudo: se as bases para o
aprofundamento da globalização do capital implicam em uma classe capitalista
que assume um papel de responsabilidade em questões globais, não se tornaria
difícil, para não dizer impossível, dissociar o global do sistema capitalista? Em
outras palavras, se as concessões impostas ao capital para que siga seu processo
57
de acumulação global resultam não em um desempoderamento, mas na absorção
de responsabilidades pelos capitalistas, isto não contribuiria ainda mais para a
legitimação e construção da hegemonia do capitalismo global, dificultando ainda
mais possíveis alternativas a um mundo cada vez mais identificado com o sistema
capitalista?
Nesse particular da legitimação através de uma atribuição de
responsabilidades no âmbito global, nota-se o papel desempenhado pelas
organizações internacionais como potenciais mediadoras entre as empresas
transnacionais, os Estados e as organizações sociais. A legitimação da classe
capitalista transnacional implica em uma leitura de como esta classe busca se
legitimar através das organizações internacionais, como visto em Cox, ou seja,
que tipo de influência essa classe exerce e que tipo de respaldo encontra nas
organizações internacionais.
No tempo da Guerra Fria, havia uma reiterada percepção (e um medo) de
que o mundo caminhava para uma destruidora guerra nuclear, o que de certo
modo era reforçado pelo discurso de corrida armamentista das grandes potências.
No período final da Guerra Fria e, principalmente, na década de 1990, o mundo
convive com uma persistente idéia no senso comum, na mídia e na academia de
que forças globalizantes, o processo de globalização, conduzem a uma inevitável
sociedade global, a qual apenas permitiria aos sujeitos um espaço limitado na
esfera da construção de uma governança global essencialmente assentada na
acumulação capitalista e permeada, entre outros aspectos, pela atribuição de
responsabilidades a atores não-estatais, com destaque para as corporações
transnacionais. Faz-se necessário, portanto, olhar para a agência por trás desta
visão da ordem mundial, ou seja, evidenciar com base nas contradições dos
processos histórico-sociais os interesses de classe que estiveram e estão em jogo
na hora de definir responsabilidades que vinculam cada vez mais o sistema global
à forma de capital.
O processo transnacional de formação do capital global e de uma classe
capitalista transnacional passa por conferir responsabilidades. Como irá se discutir
nos próximos capítulos, o processo que articula a idéia de responsabilidade com
58
as corporações transnacionais é essencial como prática legitimadora com vistas à
construção de uma hegemonia. Ao se tratar do neoliberalismo como um projeto,
está se tratando também de um projeto de hegemonia em torno do capitalismo
global, ou seja, de uma hegemonia em construção, projetada para o futuro,
enquanto se consolida a articulação de uma classe capitalista transnacional.