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2. O que afinal é uma imagem de arquivo? 2.1. Imagem-arquivo uma elaboração imaginativa Claude Lanzmann, diretor do filme Shoah, afirma de forma categórica: Siempre he dicho que las imágenes de archivo son imágenes sin imaginación. Petrifican el pensamiento y aniquilan todo poder de evocacíon.83 Defende uma reflexão sobre a história e um resgate do passado através do testemunho. Acredita num método de criação e recuperação da memória do acontecimento através de entrevistas ao invés da análise de imagens. “Preferir el archivo fílmico a las palabras de los testigos, como si éste tuviese más poder que ellas, es subrepticiamente reconducir esta descalificación de la palavra humana en su destino hacia la verdad.” 84 George Didi-Huberman questiona a maneira como Lanzmann defende esta metodologia em detrimento da utilização de imagens de arquivo em seus filmes. O autor da obra, Images malgré tout, opta por desenvolver um olhar mais atencioso e busca refletir sobre as implicações de se trabalhar com este tipo de imagens. No vemos por qué un pedazo de realidad el documento de archivo convocaría de forma tan inevitable el “mentís" de lo real. No vemos por qué el hecho de interrogar un imagen de archivo equivaldría tan mecánicamente a una negativa a escuchar “la palavra humana”. Interrogar una imagen no es solo cuestión de una “pulsión escópica”, como pretende Lanzmann: es necessario el cruce constante de los acontecimentos, de las palabras, de los textos. No vemos por qué el hecho de trabajar sobre los archivos equivaldría a privarse de un “trabajo de elaboracíon”: muy al contrario, el archivo a menudo una massa desorganizada al principio no llega a ser significante si no se elabora pacientemente. Generalmente ello exige al historiador más tiempo del que necesita un cineasta para hacer su filme. 85 83 LANZMANN, Claude. Apud DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 143. Sempre achei que as imagens de arquivo fossem imagens sem imaginação. Paralisam o pensamento e aniquilam o poder de evocação.” – Tradução pessoal. 84 Op. cit. Preferir o arquivo fílmico às palavras dos testemunhos, como se aquele tivesse mais poder que estas, é reconduzir, subrepeticiamente, esse escalonamento da palavra humana a seu destino até a verdade.” – Tradução pessoal. 85 DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 143. Não vemos porque um pedaço de realidade o documento de arquivo evocaria de forma inevitável a "mentira" do real. Não vemos porque o fato de interrogar uma imagem de arquivo equivaleria mecanicamente a uma recusa de escutar "a palavra humana”. Interrogar uma imagem não é apenas uma questão de "pulsão escópica" como pretende Lanzmann: é necessário o cruzamento constante dos acontecimentos, das palavras, dos textos. Não vemos porque o fato de trabalhar sobre os arquivos equivaleria a uma renúncia do "trabalho de elaboração": pelo contrário, o arquivo

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2. O que afinal é uma imagem de arquivo? 2.1. Imagem-arquivo – uma elaboração imaginativa

Claude Lanzmann, diretor do filme Shoah, afirma de forma categórica:

“Siempre he dicho que las imágenes de archivo son imágenes sin imaginación.

Petrifican el pensamiento y aniquilan todo poder de evocacíon.”83

Defende uma

reflexão sobre a história e um resgate do passado através do testemunho. Acredita

num método de criação e recuperação da memória do acontecimento através de

entrevistas ao invés da análise de imagens. “Preferir el archivo fílmico a las

palabras de los testigos, como si éste tuviese más poder que ellas, es

subrepticiamente reconducir esta descalificación de la palavra humana en su

destino hacia la verdad.”84

George Didi-Huberman questiona a maneira como Lanzmann defende esta

metodologia em detrimento da utilização de imagens de arquivo em seus filmes. O

autor da obra, Images malgré tout, opta por desenvolver um olhar mais atencioso

e busca refletir sobre as implicações de se trabalhar com este tipo de imagens.

No vemos por qué un pedazo de realidad – el documento de archivo – convocaría

de forma tan inevitable el “mentís" de lo real. No vemos por qué el hecho de

interrogar un imagen de archivo equivaldría tan mecánicamente a una negativa a

escuchar “la palavra humana”. Interrogar una imagen no es solo cuestión de una

“pulsión escópica”, como pretende Lanzmann: es necessario el cruce constante de

los acontecimentos, de las palabras, de los textos. No vemos por qué el hecho de

trabajar sobre los archivos equivaldría a privarse de un “trabajo de elaboracíon”:

muy al contrario, el archivo – a menudo una massa desorganizada al principio –

no llega a ser significante si no se elabora pacientemente. Generalmente ello

exige al historiador más tiempo del que necesita un cineasta para hacer su filme.85

83

LANZMANN, Claude. Apud DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 143. –

“Sempre achei que as imagens de arquivo fossem imagens sem imaginação. Paralisam o

pensamento e aniquilam o poder de evocação.” – Tradução pessoal. 84

Op. cit. – “Preferir o arquivo fílmico às palavras dos testemunhos, como se aquele tivesse mais

poder que estas, é reconduzir, subrepeticiamente, esse escalonamento da palavra humana a seu

destino até a verdade.” – Tradução pessoal. 85

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 143. – “Não vemos porque um pedaço

de realidade – o documento de arquivo – evocaria de forma inevitável a "mentira" do real. Não

vemos porque o fato de interrogar uma imagem de arquivo equivaleria mecanicamente a uma

recusa de escutar "a palavra humana”. Interrogar uma imagem não é apenas uma questão de

"pulsão escópica" como pretende Lanzmann: é necessário o cruzamento constante dos

acontecimentos, das palavras, dos textos. Não vemos porque o fato de trabalhar sobre os arquivos

equivaleria a uma renúncia do "trabalho de elaboração": pelo contrário, o arquivo –

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É necessário, assim, estabelecer conexões, buscar identificar

constantemente possíveis interrelações entre os acontecimentos, as palavras e os

textos. Trabalhar com imagens de arquivo não implica desta forma, em deixar de

lado outros elementos que auxiliem na produção de conhecimento e na busca por

informações mais apuradas. Apropriar-se de imagens de arquivo, no sentido

proposto por Georges Didi-Huberman, implica um trabalho de investigação

minusciosa e detalhada com o objetivo de desenvolvimento de uma reflexão

crítica.

Nesta proposta, a imagem de arquivo não substitui o testemunho, mas

serve para complementá-lo, para enriquecer o conhecimento sobre a própria

realidade. Através da interrelação entre imagens, palavras e textos surge a

possibilidade de uma investigação mais profunda do acontecimento. Ou seja, é

fundamental colocar as imagens de arquivo em diálogo para estimular o

pensamento crítico e extrair delas novas informações e novos conhecimentos.

Torna-se, assim, necessária uma organização elaborada do material que separado

não teria nenhum sentido prévio ou, pelo menos, que passaria a assumir um novo

sentido após ser colocado em diálogo. Didi-Huberman valoriza, assim, o trabalho

de montagem. Acredita que tanto a imagem, quanto o evento estão em processo.

Justamente, por isso, a montagem assume um papel fundamental na construção de

sentido.

En historia – escribía Michel de Certeau –, todo comienza con el acto de apartar,

de reunir, de transformar así en “documentos” ciertos objetos repartidos de otro

modo. La labor empieza con este nuevo reparto cultural. En realidad, éste

consiste en producir tales documentos, por el hecho de copiar de nuevo,

transcribir o fotografiar esos objetos cambiando a la vez su lugar y su estatus.86

Didi-Huberman coaduna-se com o pensamento de Certeau. Acredita neste

gesto de refletir sobre as imagens de arquivo através de conexões, de arranjos.

Concorda com a colocação de Jacques Derrida que diz que “nada es menos

frequentemente uma massa desorganizada num primeiro momento – não se torna significativo se

não for pacientemente elaborado. Geralmente exige mais tempo do historiador do que de um

cineasta necessita para fazer seu filme.” – Tradução pessoal. 86

CERTEAU, Michel. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 148-149. –

“Na história – Michel de Certeau escreveu – tudo começa com o ato de remover, recolher e

transformar em "documentos" certos objetos distribuídos de outra maneira. O trabalho começa

com esta nova organização cultural. Na verdade, consiste na produção de tais documentos, para o

feito de copiar novamente, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu

lugar e seu status.” – Tradução pessoal.

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seguro, nada es menos claro hoy en dia que la palabra archivo.”87

Portanto, é

necessário examinar de perto e evitar olhar para a imagem de arquivo como sendo

apenas uma prova histórica, ou seja, reduzí-la ou desqualificá-la. Ao invés disso,

busca analisá-la a partir de suas potencialidades, acredita que através dela é

possível gerar conhecimento e estimular o pensamento e a imaginação, ao

contrário do que Lanzmann defende. O historiador de arte francês observa a

imagem como sendo lacunar. Desta forma, ela apresenta fissuras, possibilidades

de múltiplas leituras e precisa ser compreendida desta forma para que não seja

interpretada equivocadamente.

La imagen está hecha de todo: una forma de expresar su naturaleza de amalgama,

de impureza, de cosas visibles mezcladas con cosas reveladoras, de formas

visuales mezcladas con el pensamiento en acto. Así pues, no es ni todo (como

teme secretamente Wajcman), ni nada (como afirma perentoriamente). Si la

imagen fuese “total”, sin duda habría que decir que no hay imágenes de la Shoah.

Pero es precisamente porque la imagen no es total por lo que sigue siendo

legítimo constatar lo siguiente: hay imágenes de la Shoah que, si no lo dicen todo

– y aún menos “el todo” – de la Shoah, son de todos modos dignas de ser miradas

e interrogadas como hechos característicos y como testimonios de pleno derecho

de esta trágica historia.88

Através desta postura diante das imagens de arquivo Didi-Huberman

rebate as críticas que recebeu de seus acusadores, justifica sua escolha e indica a

partir de qual perspectiva busca olhar para o passado representado pelas imagens.

Vê a imagem de arquivo ser construída como parte de um complexo processo.

Aponta desta forma, a fragilidade, o aspecto precário e impuro existente nas

imagens. Para Didi-Huberman há uma impossibilidade de descrever o real em

todo ato de imagem. Não é possível visualizar algo “absoluto” através da imagem

de arquivo, pois “el archivo no es un stock del que sacaríamos algo por placer,

87

DERRIDA, Jacques. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 149. – “nada

é menos seguro, nada é menos claro hoje em dia que a palavra arquivo.” – Tradução pessoal. 88

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 102. – “A imagem é feita de tudo: uma

forma de expressar sua natureza amálgama, de impureza, de coisas visíveis misturadas com coisas

revelandoras, de formas visuais misturadas com o pensamento em ação. Desta forma, não é nem

tudo (como teme secretamente Wajcman), nem nada (como afirma peremptoriamente). Se a

imagem foi "total", certamente teria que dizer que não existem imagens da Shoah. Mas é

precisamente porque a imagem não é total que segue sendo legítimo constatar o seguinte: há

imagens da Shoah que, se não dizem tudo – e muito menos "o tudo" – sobre a Shoah, são de todo

modo, dignas de serem visualizadas e interrogadas como fatos característicos e como testemunhas

de pleno direito desta trágica história.” – Tradução pessoal.

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representa constantemente una carencia – e incluso, a veces ‘la impotencia de no

saber qué hacer con ellos.’”89

Na entrevista que Jean-Louis Comolli realiza com Sylvie Lindeperg,

intitulada Imagens de arquivo: imbricamento de olhares, a historiadora francesa

comenta, entre outras coisas, sobre o trabalho de Alain Resnais em Noite e

Neblina (1955, Alain Resnais, França) e, principalmente, procura investigar

características peculiares das imagens de arquivo utilizadas pelo diretor francês

para construir esta obra que pode ser considerada um marco na história mundial

do cinema. Em determinado momento da conversa Comolli pergunta: “Então, o

arquivo é julgado como insuficiente; é preciso completá-lo?” Ao que Lindeperg

responde: “Toda categoria do visível é julgada como insuficiente.”90

François Niney, por sua vez, afirma em seu livro L’épreuve du réel à

l’écran que o arquivo de hoje não pode deixar de ser considerado como uma

atualidade do passado. “l’archive d’aujourd’hui, c’est l’actualité d’hier.”91

Para

este teórico francês a memória do passado é sempre reconstruída em função do

presente e, ao mesmo tempo, nossa consciência do presente é indissociável de

nossas experiências passadas. Com isso, conclui que nossa consciência pode ser

interpretada como o presente reconstruído em função do passado. Neste sentido,

as experiências vivenciadas são constituintes de nossa forma de enxergar o

mundo. Niney faz questão de enfatizar que as imagens de arquivo são, também,

representações e que isso deve ser sempre considerado durante o processo de

ressignificação das mesmas. “(...) le document ne saurait être convoqué

simplement comme un indice attestant un événement ou une icône en tenant lieu,

il doit être interrogé comme une représentation.”92

89

FARGE, Arlette. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 150. – “o

arquivo não é um estoque do qual retiramos algo por prazer, representa constantemente uma

carência – e mesmo, às vezes ‘a impotência de não saber o que fazer com eles.’” – Tradução

pessoal. 90 Imagens de arquvos: Imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Silvie

Lindeperg. p. 332. 91

NINEY, François. L’épreuve du réel à l’écran. p. 253. – “o arquivo de hoje, é a notícia de

ontem.” – Tradução pessoal. 92

Op. cit. p.255. – “(…) o documento não pode ser convocado simplesmente como um índice que

atesta um evento ou um ícone em seu lugar, ele deve ser analisado como uma representação.” –

Tradução pessoal.

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Esta ideia reforça e corrobora a concepção defendida por George Didi-

Huberman de que a imagem de arquivo possui fissuras que precisam ser

preenchidas. Conceber o visível como insuficiente reforça o conceito de imagem

lacunar elaborado pelo crítico de arte francês e reafirma a percepção de que a

imagem não é um todo absoluto. Ou seja, apesar de tudo, é possível olhar de

maneira cuidadosa e criteriosa para as imagens de arquivos e interrogá-las, “cada

fragmento existente – de imágenes, de palabras, o de escritos – es arrancado a un

fondo de imposible. Dar testimonio significa explicar pese a todo lo que es

imposible explicar del todo.”93

Jean-Paul Sartre afirma: “La imagen es un acto, no una cosa.”94

Existe,

assim, em cada imagem um posicionamento, um gesto que fica nela impresso e

que deve ser considerado durante o processo de análise da mesma. Não existe,

portanto, imagem pura ou sem intecionalidade. É, justamente, a partir desta

formulação do filósofo francês que George Didi-Huberman aprofunda sua

argumentação rebatendo as críticas que recebeu de Gérard Wajcman e Élisabeth

Pagnoux sobre sua análise das quatro fotografias do campo de extermínio nazista.

Para ele “podemos dudar de las imágenes: es decir, recurrir a una mirada más

exigente, una mirada crítica que busca, en particular, no dejarse invadir por lá

‘ilusión referencial’”.95

Ou seja, é fundamental não assumir uma postura ingênua

diante das imagens de arquivo, deve-se questioná-las, interrogá-las a partir de

novos pontos de vista, revê-las munidos de informações mais recentes.

(...) cada descubrimiento surge en ella como una fisura en la historia concebida,

una singularidad provisionalmente incalificable que el investigador tratará de

componer en el entramado de lo que ya sabe para producir, si es posible, una

historia pensada de nuevo del acontecimiento en cuestión. “El archivo rompe las

imágenes estereotipadas”, escribe bien Arlette Farge.96

93

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 158. – “cada fragmento existente - de

imagens, palavras ou escritos - é retirado de um fundo de impossibilidades. Dar testemunho

significa explicar apesar de tudo o que é impossível de explicar completamente.” – Tradução

pessoal. 94

Op. cit. p. .81. – “A imagem é um ato, não uma coisa.” – Tradução pessoal. 95

Op. cit. p. 110. – “podemos duvidar das imagens: ou seja, recorrer a um olhar mais exigente, um

olhar crítico que busca, em particular, não deixar-se influenciar pela ‘ilusão referencial.’” –

Tradução pessoal. 96

Op. cit. p. 150. – “cada descoberta surge como uma rachadura na história concebida, uma

singularidade provisoriamente indizível que o pesquisador deverá elaborar para organizar o que já

sabe e produzir, se possível, uma história revisitada do acontecimento em questão. "O arquivo

rompe as imagens estereotipadas", escreve bem Arlette Farge.” – Tradução pessoal.

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Ou seja, a imagem de arquivo demanda uma contínua construção, não é

algo preestabelecido ou preconcebido. Duvidar das imagens de arquivo é um

gesto enriquecedor e fundamental para extrair novas informações delas. Trabalhar

com imagens de arquivo pressupõe relação, imaginação e disponibilidade para

descobrir múltiplos significados sem deixar de ser uma testificação de um

acontecimento passado, logo;

No por ello constituye el puro y simple “reflejo” del acontecimiento, ni su pura y

simple “prueba”, pues tiene que elaborarse constantemente haciendo

comprobaciones incesantes, a través del montaje con otros archivos. No hay ni

que sobrestimar el carácter “inmediato” del archivo, ni subestimarlo como un

simples accidente del conocimiento histórico. El archivo pide siempre ser

construido, pero siempre es el “testigo” de algo...97

O autor do livro Images malgré tout propõe olhar para o arquivo visual,

apesar de suas características técnicas formais, não como uma representação

histórica completa, mas como um possível “ponto de contato” entre a imagem e o

real. Ou seja, como um indício, um fragmento, uma peça de um quadro mais

amplo e complexo, mas que pode revelar ou trazer à tona aspectos significativos

que contribuam para aprofundar o conhecimento sobre os acontecimentos

passados.

Los documentos de archivo nunca nos hacen ver un “absoluto”. (...) si la miramos

pese a todo con un poco más de atención, entonces “esos granos son interessantes

[...], es decir, que la fotografia puede cambiar completamente nuestra percepción

de lo real, de la historia y de la existencia.”

Las imágenes no lo dan todo por supuesto. Lo que es peor, sabemos que algunas

veces nos “paralizan”, tal y como escribe Susan Sontag: “Las imágenes paralizan.

Las imágenes anestesian. Un acontecimiento conocido a través de unas

fotografias gana un plus de realidad [...] pero también, después de que estas

imágenes hayan sido impuestas repetidamente a nuestra vista, este

acontecimiento pierde realidad”.98

97 Op. cit. p. 151. – “Não é a pura e simples "reflexão" do acontecimento, ou sua pura e simples

“prova”, pois tem que ser desenvolvido constantemente fazendo verificações incessantes, através

da montagem com outros arquivos. Não há que superestimar o caráter "imediato" do arquivo, ou

subestimá-lo como um simples acidente de conhecimento histórico. O arquivo sempre pode ser

construído, mas é sempre o "testemunho" de algo…” – Tradução pessoal. 98 Op. cit. p. 127-128. – “Os documentos de arquivo nunca nos fazem ver um “absoluto”. (…) se

olharmos, apesar de tudo, com um pouco mais de atenção, então “essas granulações são

interessantes […], isto é, a imagem fotográfica pode modificar completamente nossa percepção da

realidade, da história e da existência”.

Obviamente, as imagens não dão tudo. Pior ainda, sabemos que algumas vezes nos “paralisam”,

assim como escreve Susan Sontag: “As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um

acontecimento conhecido através de fotografias ganha uma dose extra de realidade […] mas

também, depois que estas imagens tenham sido repetidamente impostas ao nosso olhar, este

acontecimento perde realidade.” – Tradução pessoal.

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O caso do ônibus 174, por exemplo, foi transmitido ao vivo e nos dias que

sucederam ao acontecimento, aquelas imagens foram amplamente repetidas pela

mídia. Aquelas imagens começaram a ser vistas apenas como um clichê da

violência na cidade do Rio de Janeiro. Quando José Padilha retoma-nas pouco

mais de dois anos após aquele incidente sua proposta é, de certa forma, extrair e

expressar através delas novas informações para comunicar mais do que apenas um

episódio violento. O cineasta carioca visa, também, resgatar uma potência de

realidade. Justamente por isso, uma de suas estratégias é reapresentar o incidente

como se estivesse em tempo real. Através da organização de seu discurso pretende

trazer na memória do espectador um tempo presente, uma sensação de visualizar

as imagens como se estas estivessem sendo transmitidas ao vivo durante o próprio

documentário.

Desta forma, é possível compreender a imagem de arquivo como fazendo

parte de um processo que está em contínua construção, mas que é ao mesmo

tempo ambíguo. A partir de um olhar mais atento para esta imagem, abre-se a

possibilidade para assumir uma nova posição, uma nova postura diante dos fatos.

Entretanto, a afirmação de Susan Sontag gera certa inquietação, afinal seria uma

consequência muito profunda da imposição da visualização de imagens de

arquivo. Seria a própria realidade perdendo força e relevância por tornar-se

desgastada ao olhar. A visão estaria condicionada e, desta forma, impossibilitada

de ser afetada.

Ônibus 174, neste sentido, parece despertar nossa atenção e curiosidade

muito mais pela investigação aprofundada sobre a vida de Sandro do que pelas

imagens reutilizadas do próprio acontecimento. De algum modo estas imagens

televisivas estão banalizadas, pois a violência urbana permeia, quando não

domina, os noticiários cotidianos. A fala do antropólogo Luiz Eduardo Soares

durante o documentário parece corroborar este raciocínio. Existem muitos outros

jovens como Sandro em nossa sociedade que permanecem invisíveis. Mesmo suas

imagens na televisão não causam mais tanto constrangimento. Passou a ser

comum visualizarmos cenas violentas que não chocam mais da mesma maneira.

Parece que somente quando acontece uma tragédia de grandes proporções é que

somos chacoalhados pela realidade social que nos cerca há tanto tempo. É curioso

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perceber que durante a transmissão ao vivo daquele incidente as câmeras

estivessem posicionadas aguardando registrar um assassinato ao vivo.

George Didi-Huberman aponta este duplo regime das imagens de arquivo,

este fluxo e refluxo da verdade como algo que deve ser considerado; “cuando su

área de desconocimiento se ve alcanzada por una turbulencia, una ola de

conocimento, atravesamos entonces el momento difícil y fecundo de una prueba

de verdad.”99

Neste sentido, o primeiro contato com as imagens de arquivo

assume um significado profundo. Abrem a possibilidade para algo novo. O

momento de ver passa a ser decisivo para o próprio saber, mas é importante ter

cuidado para não saturá-lo e, assim, extinguir toda sua potência.

Recorrer ao arquivo audiovisual parece ser uma tentativa de investigar

melhor o passado. Uma busca por compreender melhor fatos e acontecimentos

que ocorreram, que ainda povoam o imaginário e que não foram completamente

esmiuçados. Olhar uma imagem uma segunda vez implica olhá-la com um novo

olhar, sob uma nova perspectiva, munido de novas informações.

Si elegí interrogar las cuatro fotografias de 1944, es precisamente porque

constituían, en el corpus conocido de los documentos visuales de esa época, un

caso extremo, una pertubadora singularidad: un síntoma histórico capaz de

transtornar y, por lo tanto, de reconfigurar la relación que el historiador de las

imágenes mantiene habitualmente con sus propios objetos de estudio. Hay, pues,

en este caso extremo, algo que cuestiona nuestro propio ver y nuestro propio

saber: un síntoma teórico cuya misma disputa manifesta plenamente que éste nos

agita juntos – desde nuestra común historia – de parte a parte.100

O crítico e historiador de arte francês justifica a escolha de seu corpus de

pesquisa no livro Images malgré tout, enfatiza a importância e relevância do

material com o qual está trabalhando. Mas, ao mesmo tempo, faz questão de

enfatizar que a imagem é impotente para mostrar todo o “real”. Explicita sua

compreensão de que uma imagem é incompleta, frágil e que precisa ser trabalhada

99

Op. cit. p. 128. – “quando sua área de ignorância é alcançada pela turbulência, por uma onda de

conhecimento, atravessamos, então, o difícil e fecundo momento de uma prova da realidade.” –

Traduçnao pessoal. 100

Op. cit. p. 91. – “Se escolhi interrogar as quarto fotografias de 1944, é precisamente porque elas

constituíam, dentro do corpus dos documentos conhecido de sua época, um caso extremo, uma

perturbadora singularidade: um sintoma histórico capaz de trantornar e, portanto, de reconfigurar a

relação que o historiador das imagens mantém habitualmente com seus próprios objetos de

estudo. Há, pois, neste caso extremo, algo que questiona nosso próprio saber: um sintoma teórico

cuja mesma disputa manifesta plenamente uma inquietação conjunta – em nossa história

compartilhada – de lado a lado.” – Tradução pessoal.

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para poder revelar. É necessário que seja estabelecida a relação entre o que se vê e

as informações que se possui.

¿Cómo podría poseer un objeto de una vez por todas las características de la

mirada que se posa sobre él y la comprensión que de él se obtiene? La imagen de

archivo no es más que un objeto entre mis manos un revelado fotográfico

indecifrable e insignificante mientras yo no haya estabelecido la relación –

imaginativa y especulativa – entre lo que veo aqui y lo que sé por otro lado.101

Mais adinte, Didi-Huberman retoma o raciocínio de Sartre anteriormente

citado para questioná-lo e argumentar que a imagem, apesar de ser realmente um

ato, é, ao mesmo tempo, também uma coisa. Afinal, não é possível desconsiderar

sua própria essência. Não é possível avaliar qualquer tipo de imagem separada de

sua atividade, de sua dinâmica própria.

(...) el estudio del punto de vista producido, del grano de la imagem, de las

huellas de los movimientos, todo ello puede ser empleado para articular la

observación de la imagen misma con la casi-observación de los acontecimientos

que ésta representa. Esta casi-observación, incompleta y frágil en si misma, se

convertirá en interpretación, o “lectura” en el sentido de Walter Benjamin,

cuando sean convocados todos los elementos del saber – documentos escritos,

testimonios contemporaneous, otras fuentes visuales – susceptibles de ser

reunidos por la imaginación histórica en una especie de montaje o de puzzle,

teniendo un valor, para hablar como Freud, de “construccíon en el análisis.”102

A observação das imagens articulada a uma “quase-obesrvação” dos

acontecimentos que as mesmas representam são sempre incompletas, parciais,

frágeis e serão apenas interpretações ou leituras. Os elementos do saber são

reunidos em uma montagem ou quebra-cabeça que possui um valor de

“construção da análise”. Fica nítida, desta forma, a importância do processo de

imaginação elaborado em torno da imagem de arquivo, apesar de todas suas

limitações e imprecisões. Suas próprias características podem ser utilizadas como

101

Op. cit. p. 169. – “Como poderia um objeto possuir de uma vez por todas as características do

olhar que se direciona sobre ele e a compreensão do que ele obtém? A imagem de arquivo é

apenas um objeto em minhas mãos, uma fotografia revelada indecifrável e insignificante até que

eu não tenha estabelecido a relação – imaginativa e especulativa – entre o que vejo aqui e o que eu

sei por outro lado.” – Traducnao pessoal. 102

Op. cit. p. 171. – “(…) o estudo da perspectiva produzida, da granulação da imagem, dos

rastros dos movimentos, podem ser utilizados para articular a observação da própria imagem com

a quase observação dos acontecimentos que esta representa. Esta quase observação, incompleta e

frágil em si mesma, se converterá em interpretação, ou “leitura” no sentido de Walter Benjamin,

quando todos os elementos do saber forem convocados – documentos escritos, evidências

contemporâneas, outras fontes visuais – suscetíveis de serem coletados pela imaginação histórica

em uma espécie de montagem ou de quebra-cabeça, com um valor, para falar como Freud, de

“construção da análise.” – Tradução pessoal.

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elementos de enriquecimento da análise e da reflexão. As imagens de arquivo

podem fazer pensar, questionando um ponto de vista rígido e único. Podem,

também, possibilitar múltiplas leituras e interpretações de um mesmo

acontecimento. Justamente por isso é que:

Una imagen sin imaginación es, simplesmente, una imagen a la que no hemos

dedicado un tiempo de trabajo. Porque la imaginación es trabajo, ese tiempo de

trabajo de las imágenes, que sin cesar actúan chocando o fusionándose entre

ellas, quebrándose o metamorfoseándose. Todo ello actuando sobre nuestra

propia actividad de conocimiento y de pensamiento. Así pues, para saber, hay que

imaginar: la mesa de trabajo especulativa debe ir acompañada de una mesa de

montaje imaginativa.103

Portanto, desenvolver a imaginação através das imagens de arquivo para

extrair delas novos sentidos pode ser considerado como um gesto político, como

um exercício criativo, uma possibilidade estética de trazer à tona novas reflexões e

novas discussões sobre temas que demandam imaginação, interrogação e

elaboração para serem melhores compreendidos e avaliados, apesar das lacunas e

das impossibilidades existentes dentro do processo. Especular sobre as imagens,

então, pode ser considerado como uma montagem mental. “O fato de um artista

retomar por conta própria imagens já possuindo significação e identidade e dotá-

las de significação e identidade novas é, segundo o crítico americano Arthur

Danto, a maior contribuição que os artistas visuais deram à década de 70.”104

A organização das imagens jornalísticas reutilizadas em Ônibus 174

apresenta o entorno daquele acontecimento. Estes arquivos midiáticos combinados

com as imagens da câmera da CET-Rio ganham um poder maior de representação

do real. A fala das testemunhas que estavam dentro do ônibus são utilizadas em

off como uma forma de descrever a imagem apresentada. Este recurso é

amplamente utilizado pelo diretor do filme como um objetivo de releitura da

imagem, como uma alternativa narrativa de reapresentação do fato.

103

Op. cit. p. 177. – “Uma imagem sem imaginação é, simplesmente, uma imagem à qual não

dedicamos um tempo de trabalho. Porque a imaginação é trabalho, esse tempo de trabalho das

imagens, que sem cessar atuam chocando-se ou fundindo-se entre elas, quebrando-se ou

metamorfoseando-se. Todo este trabalho atuando sobre nossa própria atividade de conhecimento e

de pensamento. Assim pois, para saber, há que imaginar: a mesa de trabalho especulativo deve ir

acompanhada de uma mesa de montagem imaginativa.” – Tradução pessoal. 104

ISHAGPOUR, Youseef. Apud. LINS, Consuelo e REZENDE, Luiz. A voz, o ensaio, o outro.

IN. FURTADO, Beatriz. (org). Imagem contemporânea – cinema, TV, documentário, fotografia,

videoarte, games... vol.1. p109.

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Durante a palestra proferida durante o 3º Encontro do Cinema Brasileiro,

no CCBB do Rio de Janeiro, José Padilha e Felipe Lacerda comentam sobre a

negociação com os entrevistados, sobre o diálogo desenvolvido com as pessoas

envolvidas naquele episódio. Felipe Lacerda afirma que alguns entrevistados

foram ouvidos três ou quatro vezes e que algumas pessoas chegaram a falar até

quase nove horas. Padilha, por sua vez, complementa que chegou a projetar

imagens de arquivo para alguns entrevistados durante a entrevista. Este

procedimento, segundo o diretor, possibilitava aos entrevistados se lembrarem de

detalhes que inicialmente não mencionariam. Buscava, assim, por lembranças ou

memórias distintas daquelas que estavam sendo repetidamente relatadas após os

dias que sucederam o acontecimento. Tentava encontrar novas informações sobre

o incidente a partir de relatos. Revela, também, que colocou uma refém para

entrevistar a outra, pois acreditava que dessa forma surgiriam perguntas que não

teria como fazer, uma vez que não vivenciou a experiência no interior do ônibus,

alega Padilha. Reforça, neste caso, a teoria de que havia uma encenação sendo

organizada por Sandro dentro do ônibus.

Reutilizar uma imagem, congelá-la na tela, deixá-la mais lenta, fazê-la voltar, ou

acelerar, dissociá-la do som, são procedimentos utilizados pelos diretores para

imprimir uma distância entre a imagem e o mundo, entre a imagem e o

espectador.105

Estas estratégias de manipulação possibilitam ao espectador visualizar as

imagens de arquivo como uma informação aberta que deve ser trabalhada,

compreendida, que precisa ser relacionada com outros tempos, outras imagens,

outras histórias e memórias e não como representações fechadas de algum

acontecimento do passado. Uma estratégia interessante adotada por José Padilha

em Ônibus 174 é a reutilização das imagens das crianças em frente à Igreja da

Candelária. O diretor, de forma bastante habilidosa, consegue, neste momento do

documentário, costurar dois tempos; passado e presente são conjugados e

apresentados, permitindo, assim, ao espectador, relacionar histórias e memórias

distintas, mas que possuem aspectos comuns, que possibilitam compreender um

pouco melhor a condição de vida dos menores de rua da cidade do Rio de Janeiro.

105

Op. cit. p. 113.

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José Padilha, na palestra realizada no CCBB durante o 3º Encontro do

Cinema Brasileiro relata, também, onde estava no dia do incidente com o ônibus

da linha 174 e que seu interesse pelo acontecimento foi despertado, justamente,

pela quantidade de imagens que estavam sendo produzidas durante a transmissão

daquele acontecimento. Contrariando a opinião de Susan Sontang, as imagens não

o paralisaram ou anestesiaram, pelo contrário, despertaram a percepção de que

havia um grande potencial documental naquele material que havia sido

largamente produzido pela mídia.

Padilha comenta, também, que devido a variedade e quantidade de

imagens seria capaz de elaborar o documentário apenas com o material do acervo

da Rede Globo. Além disso, o diretor revela que, juntamente com sua equipe,

colocou bilhetes debaixo das portas de alguns apartamentos que ficam nas

imediações do local onde tudo aconteceu para tentar encontrar outras imagens

domésticas, caseiras, para ampliar e enriquecer o material disponível para elaborar

sua reapropriação. Infelizmente, não obteve êxito em sua empreitada,

possivelmente por não haver ainda naquele período um estímulo mais contundente

ao jornalismo colaborativo.

O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto

de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências

visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para

se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu

ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma

operacão fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa,

além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor.106

George Didi-Huberman nos apresenta o olhar, também, como uma ação

incompleta e que, inevitavelmente, nos retorna. Ou seja, aquilo que vemos está

impregnado pelo nosso próprio olhar. Existe, de acordo com este raciocínio, uma

interferência subjetiva naquilo que vemos. Jean-Louis Comolli defende uma ideia

semelhante quando aborda questões relacionadas à auto-mise-en-scène que serão

abordadas mais detalhadamente adiante. Para ele, toda imagem está marcada pelo

próprio olhar daquele que a produz.

106

DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. p. 77.

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Desta forma, um primeiro aspecto que deve ser considerado é como

olhamos para uma imagem de arquivo. São imagens realizadas no passado que são

“retomadas” no presente e que, de alguma forma, possibilitam novas reflexões. “O

arquivo é sempre algo em construção, intrinsicamente ligado ao presente.”107

O

espectador, desta forma, é convocado a assumir uma posição diante das imagens

de arquivo. Aquele que vê é impelido a pensar de novas maneiras. “Tornar nova

uma imagem é, então, descobrir elementos latentes, que não eram ‘visíveis’ à

época de sua captação.”108

2.2. O instante de tomada das imagens – primeiro posicionamento

A realização de uma imagem, o instante de sua captação, pode ser

considerado como um momento único, complicado e repleto de possibilidades. A

gênese de uma imagem revela parte de sua própria essência. As condições de

produção ficam impressas na imagem e são um dos aspectos que compõem e

complexificam o sentido da mesma. Entretanto, muitas vezes, isso não fica tão

evidente num primeiro olhar.

Não se pode trabalhar com a “retomada” dessas imagens e da utilização delas sem

interrogar esse momento único que é a “tomada”. Ou seja, o que é irredutível no

olhar do fotógrafo ou do diretor de fotografia nazista mas, também o que resiste,

às vezes, na imagem e que se revela com o passar do tempo e de suas

reutilizações.109

Não por acaso, o crítico de arte francês, George Didi-Huberman, toma

como ponto fundamental de suas reflexões em seu livro, Images malgré tout, as

fotografias produzidas no campo de extermínio de Auschwitz por um dos

membros do Sonderkommando110

e como este gesto de resistência impregna de

sentido cada uma das imagens.

107

LINS, Consuelo e REZENDE, Luiz. A voz, o ensaio, o outro. IN. FURTADO, Beatriz. (org).

Imagem contemporânea – cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games... vol.1. p.110. 108

Op. cit. p. 115. 109

Imagens de arquvos: Imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Silvie

Lindeperg. p.319. 110

Sobre estas fotografias do Sonderkommando Sylvie Linderperg na entrevista com Jean-Louis

Comolli afirma: “Para que as imagens do Sonderkommando sejam encaradas em sua singularidade,

foi necessário investir o gesto do fotógrafo clandestino de um valor simbólico e testemunhal;

encará-lo como um ato de resistência à política do segredo e à empreitada de invisibilidade do

genocídio dos judeus.” p.330.

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... no invoquemos lo inimaginable. Era mucho más dificil, para los prisioneros,

sustraer del campo esos pocos fragmentos de los que actualmente somos

depositarios, con el agravante de soportarlos de una sola mirada. Estos

fragmentos son para nosotros más preciosos y menos sosegadores que todas las

obras de arte posibles, arrebatados como fueron a un mundo que los deseaba

imposibles. Así pues, pese a todo, imágenes: pese al infierno de Auschwitz, pese

a los riesgos corridos. A cambio, debemos contemplarlas. Pese a todo, imágenes:

pese a nuestra propria incapacidad para saber mirarlas tal y como se merecerían,

pese a nuestro proprio mundo atiborrado, casi asfixiado, de mercancía

imaginaria.111

É necessário fazer um esforço e buscar informações nas mais diferentes

fontes existentes para compreender em que situação estavam inseridos estes

indivíduos produtores destas imagens. Afinal, isso confere uma contundência

ainda maior naquilo que ela busca transmitir. Revelam condições de produção e

aspectos emocionais. Atestam o “delito más demoníaco del nacionalsocialismo.

(...) tenían que ser los judíos quienes metiesen en los hornos a los judíos, tenía

que demostrarse que los judíos (...) se prestaban a cualquier humillación, hasta la

de destruirse a sí mismos.”112

Neste contexto, fica evidente que o processo de criação de uma imagem

está diretamente relacionado com uma motivação interior profunda daquele que a

produz. O posicionamento político fica inscrito, marca e estrapola as margens da

imagem. Abre a possibilidade para que o espectador entre a partir de seu olhar e

de sua subjetividade no contexto representado. Havia naquele fotógrafo anônimo

uma intencionalidade ao produzir aquelas fotografias. Foi uma estratégia para

resistir a toda violência que estava submetido, sua maneira de, silenciosamente,

gritar para o mundo que não estava inserido naquela realidade quais eram suas

experiências, suas atribuições, suas condições de trabalho.

111

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 17. – “... não invoquemos o

inimaginável. Foi muito mais difícil, para os prisioneiros, extrair do campo esses poucos

fragmentos que atualmente somos responsáveis, com o agravante de resistir em uma única olhada.

Estes fragmentos são para nós mais preciosos e menos sossegadores do que todas as obras de arte

possíveis, arrebatados como um mundo que os desejava impossíveis. Desta forma, apesar de tudo,

imagens; apesar do inferno de Auschwitz, apesar dos riscos corridos. Em troca, devemos

contemplá-las. Apesar de tudo, imagens; apesar de nossa própria incapacidade de saber observá-

las tal e qual elas mereceriam, apesar de nosso próprio mundo saturado, quase sufocado, de

mercadorias imaginárias.” – Tradução pessoal. 112

Primo Levi. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 18 – “delito mais

demoníaco do nacional-socialismo. (...) os próprios judeus tinham que colocar os judeus nos

fornos, tinham que demonstrar que os judeus (...) se emprestavam a qualquer humilhação, até

destruir-se a si mesmos.

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Didi-Huberman descreve minusciosamente como era o trabalho de um

membro do Sonderkommando. Enumera cada uma das etapas bárbaras pelas quais

aqueles indivíduos tinham que passar. Eram submetidos a realizar o mais

degradante dos trabalhos, pois uma de suas atribuições era limpar os crematórios

para que novos seres humanos fossem queimados vivos. Ou seja, tinham

consciência de qual seria o destino dos homens e mulheres que entrariam naquele

local e não podiam falar nada, do contrário eles também eram brutalmente

executados.113

Todos estes aspectos estão inseridos naquelas quatro fotografias. Para

olharmos cada uma delas é fundamental que estejamos munidos dessas

informações relativas às suas condições de tomada. Psicologica e

emocionalmente, aquele ser humano estava vivenciando uma situação limite. Sua

tentativa pode ser considerada como um grito de socorro, como um sinal de

esperança de ser ouvido e resgatado, mas também como uma forma desesperada

de tentar registrar algo inacreditável, algo que seria impossível de ser reproduzido.

“Tiempo, espacio, mirada, pensamiento, pathos; todo estaba ofuscado por la

enormidad mecánica de la violencia producida.”114

De que forma estas imagens foram produzidas? Em que circunstâncias

estava o fotógrafo? Será que pouco antes daquele instante havia ingerido alguma

bebida alcoólica para tomar coragem apesar da circunstância na qual estava

inserido? Informou aos demais componentes do Sonderkommando que estavam

trabalhando que iria fotografar naquele momento? Será que havia algum tipo de

arranjo pré-estabelecido no posicionamento dos corpos para que fossem melhor

fotografados? Enfim, ao mesmo tempo em que estas fotografias revelam, elas

ocultam. Elas mostram e escondem, simultaneamente. Justamente dentro da

proposta paradoxal do autor francês, mencionada anteriormente, de que a imagem

não é tudo e, também, não é nada. Precisa sempre ser olhada de forma crítica e

não ingênua.

113

Para maiores detalhes de quais eram as atribuições desses judeus consultar; DIDI-

HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p. 19-20. 114 DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p.23. – “Tempo, espaço, olhar,

pensamento, pathos; tudo estava ofuscado pela enormidade mecânica da violência produzida.” –

Tradução pessoal.

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Da mesma forma Sylvie Lindiperg comenta sobre as imagens produzidas

nos guetos de Varsóvia entre 1940 e 1942. Existe em cada uma delas traços

significativos que permitem observá-las dentro de uma determinada lógica, de um

determinado discurso político. Não são tomadas realizadas de forma aleatória. Há

toda uma ideologia sendo elaborada imageticamente.

Os câmeras procuraram nos guetos fabricar imagens que não faziam referências à

realidade mas que estivessem de acordo com seu imaginário antisemita. Essas

tomadas trazem o olhar nazista traduzido por vários procedimentos bastante

conhecidos: contra-plongées, enquadramentos particulares, trabalho com as lentes

focais, etc.115

Apesar de ter contribuições significativas para compreendermos

características das imagens, Benjamin em seu célèbre artigo, A obra de arte na

era da reprodutibilidade técnica, confere uma singularidade questionável às

imagens cinematográficas ao comparar o trabalho de um pintor com o de um

cinegrafista. Declara que a imagem cinematográfica oferece “um aspecto da

realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao

procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade.”116

Confere

imparcialidade às imagens e atribui uma capacidade extraordinária e utópica aos

equipamentos de captura de imagens.

Jay Leyda, por sua vez, em sua obra Films Beget Films, faz questão de

expressar sua forma de compreender as imagens. Para o autor norte-americano

existe um duplo conteúdo em cada uma das imagens. Existem informações de

diferentes tipos, como por exemplo, a textura das imagens de um determinado

período histórico, o comportamento das pessoas em determinados lugares, a

aparência das ruas, uma tragédia, entre outras. Há, também, além destas

informações, em cada imagem um conteúdo formal, não comentado, mas visível,

que inclui elementos que possibilitam a construção da comunicação com aqueles

que vêem as imagens.

115 Imagens de arquvos: Imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Silvie

Lindeperg. p. 320. 116 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. vol1. p. 187.

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(...) It is this accumulation of two kinds of content that we react to, with only

partial consciousness, from our seat in the theatre, as each piece of newsreel

comes and goes on the screen.

You cannot rearrange the elements within a piece of newsreel, though you can

manipulate them in relation to other pieces – but only if you have studied their

whole content. It is from such study and manipulation that the art of the

compilation film can grow.117

Ou seja, a observação de todos os aspectos existentes na imagem é

fundamental para o trabalho de ressignificação. Compreender cada um dos

detalhes proporciona maior capacidade de articular e estabelecer relações mais

ricas entre diferentes arquivos.

Justamente sobre esta habilidade de trabalhar com o conteúdo intrínseco

nas imagens que Sergey Tretyakov, Victor Shklovsky, Esther Shub e Osip Brik

discutem no Simpósio sobre o Documentário Soviético em 1927. Questionam as

diferenças de realização existentes entre os filmes de ficção e os de não ficção.

Refletem sobre as consequências do posicionamento de câmera, do tipo de

enquadramento escolhido, da iluminação utilizada e, como não poderia ser

diferente, do processo de montagem. Esther Shub aponta que o mais relevante é

definir com que tipo de material optamos por trabalhar. “We are convinced that

with great skill it will be possible to make a film out of nonfictional material

which will beat any fiction film.”118

Osip Brik completa o raciocínio afirmando

que o mais importante é definir o que filmar. Para ele, o simples fato da imagem

ser bidimensional já implica em distorções. Segundo este teórico russo, devemos

questionar o que é essencial mostrar no cinema, defende uma postura política por

parte daquele que produz imagens;

117

LEIDA, Jay. Films Beget Films. p. 22. – “(…) É nesta acumulação de dois tipos de conteúdo

que podemos reagir, apenas parcialmente conscientes, a partir de nossa posição no teatro, como

cada parte das imagens de atualidade passa pela tela.

Você não pode reorganizar os elementos dentro de cada parte das imagens de atualidade, todavia

você pode manipulá-los em relação a outras partes – mas somente se você tiver estudado todo seu

conteúdo. É a partir deste estudo e manipulação que a arte do filme de compilação pode crescer.” –

Traducão pessoal. 118

Symposium on Soviet Documentary: S. Tretyakov, V. Shklovsky, E. Shub and O. Brik. IN.

LEWIS, Jacobs. The documentary tradition. p. 35. – “Estamos convencidos de que, com grande

habilidade, será possível fazer um filme com material não ficcional que irá vencer qualquer filme

de ficção.” – Tradução pessoal.

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In order to film a newsreel, it is necessary not only to know cinematography, but

to be a highly cultured political person. Even a White Guard can film some story

about a tsarist official, but only a politically educated person, a person with a very

precise knowledge of the goal of what he wants to film can film the Soviet

Caucasus. Therefore, when we say that the reflection of the reality must be

filmed, this does not mean to set the camera up on the street and go away, but to

reflect reality from a definite point of view.119

Jean-Louis Comolli, mais recentemente, também busca refletir sobre as

interferências causadas pela presença de uma câmera no momento de uma

filmagem. Justamente por compreender que o momento de “tomada” é um

momento singular e que não deve ser julgado como menor e ficar fora do processo

de análise da imagem. O documentarista francês defende uma determinada

postura ética de realização de documentários e, principalmente, de relação com

aquele que está sendo filmado. Acredita que uma câmera deve ser compartilhada e

que este objeto deve estar ao alcance daquele que está sendo filmado. Para ele a

mise-en-scène estabelecida entre o realizador e aquele que está sendo filmado

deve transbordar na imagem. Ou seja, reconhece a influência da câmera durante a

filmagem e busca utilizá-la como mais um elemento para compor e complexificar

a própria obra.

Há em todo mundo um saber inconsciente sobre o olhar do outro, um saber que se

manifesta por uma tomada de posição, uma postura. A cinematografia fornece a

prova disso, porque suscita e solicita essa postura e, ao mesmo tempo, porque a

registra, nela inscreve sua marca. O sujeito filmado, infalivelmente, identifica o

olho negro e redondo da câmera como olhar do outro materializado. Por um saber

inconsciente mas certeiro, o sujeito sabe que ser filmado significa se expor ao

outro.

Portanto, a câmera é visível para quem ela filma. Ela se inscreve no quadro do

meu campo visual como o sinal do olhar do outro para mim.(...).

É que um antropocentrismo persistente nos faz pensar o olhar como indo do olho

às coisas e, por consequência preguiçosa, nos faz pensar a filmagem como indo

da câmera em direção à coisa filmada, nos faz supor a mise-en-scène dirigida do

cineasta ao personagem, e a “captação de imagens” indo do enquadramento em

direção ao objeto. Trata-se aqui, de uma ilusão, de um engodo que reconforta

facilmente. Todo mundo, inclusive o cineasta, está sob o olhar dos outros, e as

próprias coisas, quando nos retornam nosso olhar, o devolvem impregnado delas,

modificado por elas.120

119

Op. cit. p. 36. – “Para filmar imagens de atualidade, é necessário não só conhecer

cinematografia, mas ser uma pessoa altamente culta e política. Mesmo um Guarda Branco é capaz

e filmar uma história sobre um oficial czarista, mas somente uma pessoa politicamente educada,

uma pessoa com um conhecimento muito preciso do efeito que deseja atingir, é capaz de filmar o

Cáucaso Soviético. Portanto, quando afirmamos que o reflexo da realidade deve ser filmado, isso

não significa posicionar a câmera na rua e ir embora, mas refletir a realidade sob um ponto de vista

definido.” – Tradução pessoal. 120

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. p. 81-82.

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Todas estas informações, todas estas interferências do fazer, todas estas

trocas e compartilhamentos de olhares, portanto, estão presentes nas imagens e

permanecem lá mesmo após o arquivamento das mesmas. No caso específico do

documentário Ônibus 174 é possível destacar dois momentos nos quais fica

evidente toda esta troca e interferência de olhares. O primeiro deles pode ser

observado nas imagens da Candelária. O discurso daquele menino diante da

câmera como uma vítima social só é possível de ser registrado daquela maneira

porque quem está realizando a entrevista é uma equipe de filmagem que trabalha

em parceria com a ONG que presta assistência àquelas crianças. Ficam expressas

naquelas palavras a segurança e a confiança do menino. Ele sabe que não será

constrangido ou coagido devido ao conteúdo de sua fala, de sua denúncia. De

alguma forma, ele verbaliza e externaliza uma opinião que corrobora as

convicções políticas daquelas pessoas que o entrevistaram. José Padilha, por sua

vez, apropria-se disso para transmitir sua visão crítica frente às injustiças sociais.

O outro momento, este um pouco mais sutil, mas que também permite perceber

este saber inconsciente sobre o olhar do outro está presente nas cenas da capoeira.

As pessoas presentes naquele espaço demonstram uma empolgação maior do que

o normal em uma roda de capoeira. Há, inclusive, um dos capoeiristas que faz

questão de derrubar o outro para enfatizar sua superioridade. A própria

organização, a disposicão da roda de capoeira está feita de forma que facilite a

filmagem. Aquele cinegrafista é, no mínimo, um apreciador da capoeira e busca

transmitir através das imagens uma atmosfera acolhedora e harmônica. Estes são,

justamente, os aspectos enfatizados por Padilha no documentário quando reutiliza

estas imagens para comentar sobre um breve período da infância de Sandro.

Além dessas duas cenas, cabe apontar que nas imagens televisivas em que

Sandro é filmado dentro do ônibus há a identificação do olho negro da câmera

como materialização do olhar do outro. Ou seja, o comportamento de Sandro

também sofre influência e é modificado em consequência da quantidade de lentes

apontadas em sua direção. O olhar acusador e encriminatório que incide sobre ele

nos retorna impregnado de raiva, revolta e indignação. Afinal, ele também

reinvindica ser visto como um sobrevivente de um massacre que presenciou no

passado.

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Entretanto, muitas vezes essas modificações e interferências ocorridas em

decorrência da troca de olhares só serão percebidas ou só passarão a ter relevância

quando as imagens são “retomadas”, quando são reavaliadas, retrabalhadas. Por

isso mesmo, a fundamental importância da investigação e do olhar crítico diante

das imagens de arquivo. Ou seja, a “retomada” das imagens, como bem aponta

Sylvie Lindeperg na entrevista com Jean-Louis Comolli, pode ser considerada

como o momento de maior criatividade do artista, do cineasta, daquele que busca

trabalhar com imagens de arquivo. “A intuição de Resnais é admirável, pois ela

precede todo o conhecimento que virá mais tarde sobre o evento e sobre a

imagem. O olhar do cineasta imbrica-se em todos esses outros olhares.”121

Sylvie Lindeperg, historiadora francesa, em diálogo com Jean-Louis

Comolli questiona: “em que momento uma imagem torna-se arquivo. Muitas

vezes, ela não é gravada para ser arquivo: ela se torna arquivo.”122

Esta potência

de duração existente nas imagens é, talvez, uma das principais forças que ela

assume quando “retomada” e articulada dentro de uma nova lógica. Existe, assim,

nas imagens de arquivo a possibilidade de assumirem significados e sentidos

múltiplos impensados no momento em que foram capturadas. “Tem algo de

ready-made se se considerar que esses objetos mudam de significação ao serem

transportados de um contexto para outro.”123

Portanto, como domar e recriar

significados a partir de um primeiro olhar e recorte elaborado pelo outro?

Ao refletir, sobretudo, sobre as imagens produzidas pelos nazistas durante

o período da Segunda Guerra Mundial, Sylvie Lindeperg afirma que aquelas

imagens estavam sendo produzidas, pois iriam retratar algo que seria destruído.

Aponta, inclusive, algumas características presentes nas imagens que evidenciam

uma conduta antisemita. Desta forma, é possível afirmar que o arquivo é capaz de

mostrar algo que deixou de existir e, ao mesmo tempo, revelar opções estéticas e

posicionamentos políticos defendidos durante sua “tomada”. Tem a possibilidade,

também, de preservar informações que só serão conhecidas posteriormente com a

descoberta ou o conhecimento de novos fatos históricos.

121

Imagens de arquivo: imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Sylvie

Lindeperg. p.327 122

Imagens de arquvos: Imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Silvie

Lindeperg. p.319. 123

BERNARDET, Jean-Claude. A subjetividade e as imagens alheias: ressignificação. p.31.

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2.3. Processo de montagem – as imagens tomam posição

(...) la “nature” originelle de l’archive (fiction ou reportage, réclame ou

propagande, ehtnologique ou industrielle) devient secunde relativement à la

fonction qu’elle vient occuper dans le nouveau montage et qui lui fait dire autre

chose que ce pour quoi elle vait été conçue. Et l’esprit dans lequel elle a été

conçue est en partie avéré par ce décalage.124

François Niney, com este raciocíonio, enfatiza a importância da

montagem, prioriza o processo de ressemantização das imagens em detrimento de

sua própria origem. Opta por refletir sobre as questões que os cineastas devem

elaborar diante das imagens e como estas interferem no resultado final da obra.

George Didi-Huberman, assim como Walter Benjamin já havia feito,

também confere à montagem um papel de destaque. Como mencionado

anteriormente, defende que a imagem de arquivo não pode ser decifrada e sequer

apresentar um sentido sem que seja trabalhada na montagem. Para ele é essencial

que as imagens estejam em relação com outros elementos para que possam

comunicar. É fundamental que sejam trabalhadas em série. Argumenta que as

imagens devem ser consideradas como um processo. O que pode nos levar a

perceber que elas estão sempre em contínua construção, numa espécie de devir.

Aponta, também, para o aspecto de instabilidade deste processo e questiona o

conhecimento construído sobre o mesmo. Afirma que este evento/processo não é

nem algo absoluto, nem indizível ou inenarrável. Desta forma, sugere a montagem

como um modo de fazer conhecer, como uma maneira de multiplicar

possibilidades de imaginação sobre as imagens. Através deste método uma

imagem se une à outra, mas também a outras dimensões do próprio evento.

El montaje sólo es válido cuando no se apresura demasiado en concluir o en

clausurar de nuevo, es decir, cuando inicia y vuelve compleja nuestra aprehensíon

de la historia, no cuando la esquematiza abusivamente. Cuando nos permite

acceder a las singularidades del tiempo, luego a su esencial multiplicidad.125

124

NINEY, François. L’épreuve du réel à l’écran. p. 255. – “A ‘natureza’ original do arquivo

(ficção ou documentário, publicidade ou propaganda, etnográfico ou industrial) torna-se

secundária relativamente à função que ele venha ocupar na nova montagem que o faz transmitir

algo diferente daquilo para o qual foi concebido. E o espírito pelo qual foi concebido é

parcialmente comprovado pelo deslocamento.” – Tradução pessoal. 125

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p.180. – “ A montagem só é válida quando

não tem pressa para concluir ou fechar novamente, ou seja, quando começa e complexifica nossa

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Desta forma, fica evidente que entre os posicionamentos extremos de que

a imagem é tudo ou que não é nada existem inúmeras possibilidades. Este novo

sentido será orientado pela montagem, pela nova relação e organização que será

estabelecida entre as imagens. Este novo olhar sobre a imagem, esta busca por

novos sentidos e novas interpretações é que irá permitir o surgimento do

pensamento e da imaginação.

Las imágenes nunca lo muestran todo; mejor, saben mostrar la ausencia desde el

no todo que constantemente nos proponen. (...)

Todo acto de imagen es arrancado de la imposible descripción de una realidad.

Los artistas, en particular, se niegan a someterse a lo irrepresentable cuya

experiencia vaciadora conocen bien – como cualquiera que haya afrontado la

destruccíon del hombre por el hombre. Entonces, realizan series, montajes pese a

todo: también saben que los desastres son multiplicables hasta el infinito. (...) El

mundo histórico, en sus obras, se convierte en obsession, es decir, en un azote

imaginativo, en una profileración de las figuras – de las semejanzas y las

desemejanzas – en torno a un mismo torbellino de tiempo.126

Para explicitar sua maneira de compreender o papel essencial da

montagem na apropriação das imagens de arquivo Didi-Huberman opta por

relacionar as propostas de trabalho e, principalmente, de montagens realizadas por

Claude Lanzmann e Jean-Luc Godard. Compara como cada um dos dois diretores

cinematográficos se aproximam de um mesmo acontecimento histórico e como

cada um, a partir de metodologias distintas, elabora seu discurso e constroe

sentidos distintos e que ao mesmo tempo podem dialogar.

Godard y Lanzmann creen que la Shoah no pide pensar de nuevo toda nuestra

relación com la imagen, y tienen mucha razón. Lanzmann cree que ninguna

imagen es capaz de “decir” esta historia, y por eso es por lo que filma,

incansablemente, la palabra de los testigos. Godard, por su parte, cree que todas

las imágenes, desde entonces, no nos “hablan” más que eso (pero decir que

“hablan de eso” no es decir que “lo dicen”), y es por lo que, incansablemente,

revisita toda nuestra cultura visual condicionado por esta cuestión.

(...)

apreensão da história, e não quando a esquematiza de forma abusiva. Quando nos permite ter

acesso às singularidades do tempo, logo à sua multiplicidade essencial.” – Tradução pessoal. 126

Op. cit. p. 185. – “As imagens nunca mostram tudo; melhor, sabem mostrar a ausência no todo

que constantemente nos propõem. (…)

Todo ato de imagem começa da impossibilidade de descrição da realidade. Os artistas, em

particular, negam-se a se submeter ao irrepresentável cuja dolorosa experiência conhecem bem –

como alguém que tenha enfrentado a destruição do homem pelo homem. Então, realizam séries,

montagens apesar de tudo: também sabem que os desastres são multiplicáveis até o infinito. (…) O

mundo histórico, em suas obras, se transforma em obsessão, ou seja, em um flagelo imaginativo,

em uma proliferação das figuras – das semelhanças e das diferenças – em torno de um mesmo

turbilhão do tempo.” – Traducão pessoal.

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La polaridad estética se expresa, desde entonces – vía la “ética de la mirada” – en

términos casi teológicos. Por un lado, las imágenes compuestas de Jean-Luc

Godard: tumultuosas, múltiples, barrocas. Es decir, artificiales. Se parecen a la

famosa “estatua compuesta” con la que soñaba Nabucodonosor. Son imágenes

idolátricas e irreverentes. No dudan en mezclar el archivo histórico –

omnipresente – con el repertorio artístico del cine mundial. Muestran mucho, lo

montan todo con todo. De ahí nacerá una sospecha: estas imágenes en general

mienten. En el lado opuesto está la imagen unívoca de Claude Lanzmann: y “esta

imagen estaría más bien del lado de lo que no se puede mirar [...], la Nada” de la

pura verdad. 127

O historiador da arte francês acredita que aquilo que não pode ser visto

deve ser mostrado. Mais uma vez questiona o raciocínio de Lanzmann que busca

uma “imagem unívoca”, uma “imagem total” para dar conta desta tarefa. Didi-

Huberman acredita na multiplicação e na conjugação das imagens, por mais

incompletas e imprecisas que sejam, como a possibilidade, como a via “apesar de

tudo”, de mostrar aquilo que não podia ser visto. Apoia-se num argumento do

próprio Godard que afirma: “No hay imagen, sólo hay imágenes. Y hay una cierta

forma de articulación de las imágenes: desde el momento en que hay dos, tres.

[...] Es el fundamento del cine.”128

Em seu livro, Quand les images prennent position, George Didi-

Huberman utiliza o Diário de Trabalho de Brecht para desenvolver seu raciocínio

sobre o papel das imagens. Para o presente trabalho interessa extrair sua análise

sobre o processo de montagem. Brecht desenvolve toda uma nova estratégia

teatral baseada na noção de distanciamento. Um conceito complexo e que propõe

uma completa transformação na noção tradicional do olhar e da representação.

127

Op. cit. p. 186-188. – “Godard e Lanzmann acreditam que a Shoah não pede para repensarmos

toda nossa relação com a imagem, e estão com a razão. Lanzmann acredita que nenhuma imagem

é capaz de ‘contar’ esta história, e é por isso que filma, incansavelmente, a palavra das

testemunhas. Godard, por sua vez, acredita que todas as imagens, desde então, não nos ‘falam’

mais que isso (mas afirmar que ‘falam sobre isso’ não significa dizer que elas ‘contam’), e assim,

incansavelmente, revisita toda nossa cultura visual condicionado por esta questão.

(…)

A polaridade estética se expressa, desde então – através da ‘ética do olhar’ – em termos quase

teológicos. Por um lado, as imagens compostas de Jean-Luc Godard: tumultuadas, múltiplas,

barrocas. Isto é, artificiais. Assemelham-se à famosa ‘estátua composta’ com que sonhava

Nabucodonosor. São imagens idólatras e irreverentes. Não hesitam em misturar o arquivo histórico

– onipresente – com o repertório artístico do cinema mundial. Mostram muito, montam tudo com

tudo. Daí nasce uma suspeita: estas imagens em geral mentem. No lado oposto está a imagem

unívoca de Claude Lanzmann: e “está imagem estaria melhor do lado daquilo que não se pode

olhar […], o Nada” da pura verdade.” – Tradução pessoal. 128 Op. cit. p. 199. – “Não há imagem, só há imagens. E existe uma certa forma de articulação das

imagens: desde o momento em que há duas, três. […] É o fundamento do cinema.” – Traducão

pessoal.

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“Distanciar no es contentarse con poner lejos: se pierde de vista a fuerza de

alejar, cuando distanciar supone, al contrario, aguzar la mirada.”129

Mais uma vez o crítico de arte francês busca investigar a visão e como é

possível desenvolver um olhar crítico e questionador diante de imagens do

passado. Toma como referência, justamente, o trabalho do dramaturgo alemão

como base para suas reflexões sobre aquilo que pode ser mostrado através das

imagens.

Brecht escribió profusamente sobre el “efecto de distanciamiento”

(Verfremdungseffeckt) en tanto marca revolucionaria del teatro que quería

praticar. Se trataba ante todo de construir los medios estéticos de una crítica de la

ilusión, es decir de abrir en el campo dramatúrgico el mismo género de crisis de

la representación que ya estaba obrando en la pintura con Picaso, el cine con

Eisenstein, o la literatura con James Joyce. Criticar la ilusión, poner en crisis la

representación, esto empieza remarcando la modestia del gesto mismo que

consiste en mostrar; distanciar, es mostrar, afirma primeiro Bertold Brecht.130

Propõe, através deste conceito de distanciamento, converter a imagem de

arquivo em uma peça para desenvolver o conhecimento e não como uma

ferramenta ilusória. Retoma o raciocínio de Brecht que defendia que “sin conocer,

nada se puede mostrar; ¿cómo se hace para saber qué es lo que vale la pena

conocer?”131

Ou seja, acredita que a investigação dos indícios seja essencial para

extrair sentido das imagens de arquivo. O processo, o gesto adotado para

descobrir aquilo que será mostrado é fundamental para o distanciamento. Pois,

distanciar é mostrar, é um gesto dialético que possibilita aproximar e fazer

dialogar diferenças visuais e temporais. “Distanciar es saber manipular el

129

___________. Cuando Las imágens toman posición. p. 76. – “Distanciar não é simplesmente

colocar longe: perde-se de vista a força de afastar, quando distanciar supõe, ao contrario, aguçar o

olhar.” – Tradução pessoal. 130

Op. cit. – “Brecht escreveu extensivamente sobre o ‘efeito de distanciamento’

(Verfremdungseffeckt) como marca revolucionária do teatro que queria realizar. Se tratava antes de

tudo de construir os meios estéticos de uma crítica da ilusão, isto é de abrir no campo

dramatúrgico o mesmo tipo de crise de representação que já estava acontecendo na pintura de

Picasso, no cinema de Eisenstein, ou na literatura de James Joyce. Criticar a ilusão, colocar em

crise a representação, isto começa reforçando a modéstia do gesto que consiste em mostrar;

distanciar, é mostrar, afirma primeiro Bertold Brecht.” – Tradução pessoal. 131

Op. cit. p. 77. – “Sem conhecer, nada se pode mostrar; como se faz para saber o que vale a pena

conhecer?” – Traducão pessoal.

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material visual y narrativo como un montaje de citas que hacen referencia a la

historia real...”132

Consiste numa proposta política de Brecht que estimulava a reflexão do

espectator, este deveria assumir uma atitude crítica e não passiva diante do

processo representado. A montagem dos intervalos, onde inicialmente só era

possível visualizar unidade, cria novas junções entre elementos da realidade que

eram pressumidos como sendo muito diferentes.

Distanciar es desmontar mostrando las relaciones de cosas mostradas juntas y

añadidas según sus diferencias. Por lo tanto no hay distanciamento sin trabajo de

montaje, que es dialéctica del desmontaje y del remontaje, de la descomposición

y de la recomposición de toda cosa. Pero, de resultas, este conocimiento por el

montaje también será conocimiento por la extrañeza.133

Dentro desta perspectiva a montagem é apresentada como um elemento

fundamental que possibilita o diálogo das diferenças através dos choques, das

confrontações e dos conflitos. A montagem é o momento no qual o discurso é

construído, através de uma elaboração imaginativa e de um pensamento crítico.

Desorganiza-se uma primeira leitura das imagens de arquivo para fazer surgir

novos significados. Múltiplas leituras podem ser possíveis.

Una manera de mostrar toda disposición como un choque de heterogeneidades.

Esto es el montaje: no se muestra más que desmembrando, no se dispone más que

dysponiendo primeiro. No se muestra más que mostrando las aberturas que agitan

a cada sujeto frente a todos los demás.

(...) la decisión de mostrar por montaje, es decir por dislocaciones y

recomposiciones de todo. El montaje sería un método de conocimiento y un

procedimento formal nacido de la guerra, que toma acta del “desorden del

mundo”.134

132

Op. cit. p. 78. – “Distanciar é saber manipular o material visual e narrativo como uma

montagem de citações que fazem referência à história real…” – Traducão pessoal. 133

Op. cit. p. 81. – “Distanciar é desmontar mostrando as relações de coisas mostradas juntas e

somadas segundo suas diferenças. Portanto, não há distanciamento sem trabalho de montagem, que

é dialética de desmontagem e de remontagem, da decomposição e da recomposição de tudo. Mas,

em consequência, este conhecimento através da montagem também será conhecimento pela

estranheza.” – Tradução pessoal. 134

Op. cit. p. 97-98. – “Uma forma de mostrar toda organização como um choque de

heterogeneidades. Isto é a montagem: não se mostra mais que desmembrando, não se dispõe mais

que organizando primeiro. Não se mostra mais que mostrando as aberturas que agitam a cada

sujeito frente a todos os demais.

(…) a decisão de mostrar por montagem, quer dizer por deslocamentos e recomposições do todo.

A montagem seria um método de conhecimento e um procedimento formal nascido da guerra, que

toma nota da ‘desordem do mundo’”. – Traducão pessoal.

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Montar imagens de arquivo é assumir, desde o início, todas as suas

particularidades e explorá-las como mais um elemento de complexidade. José

Padilha parece não explorar tão bem estas potencialidades existentes na

montagem das imagens de arquivo em Ônibus 174. Com excessão da sequência

final, na qual Sandro desce do ônibus e Geísa é baleada, Padilha opta por uma

montagem mais clássica, em alguns cortes parece, inclusive, buscar pelo raccord

dos planos. Em nenhum momento do documentário paralisa a imagem para

questionar possíveis informações contidas nas próprias imagens.

A busca proposta por Georges Didi-Huberman é por trazer à tona novas

informações, novos sentidos que durante a tomada das imagens não haviam sido

pensados. Justamente por isso é que o historiador francês observa a montagem

como uma “desordem dialética”. O pensamento emerge através da confrontação

das oposições. Os múltiplos pontos de vista de uma mesma questão são

observados como uma forma de enriquecer o raciocínio e a imaginação. Neste

aspecto José Padilha parece demonstrar habilidade. Procura apresentar múltiplos

pontos de vista ao longo do documentário Ônibus 174. O diretor busca ouvir as

testemunhas daquele episódio para, assim, compor um panorama amplo daquele

acontecimento. Assim, a confrontação de oposições reforça a necessidade de

interrogar e questionar todas as imagens de arquivo e os acontecimentos que

representam, justamente, pelo aspecto efêmero e variável que possuem.

(...) Ahí donde el filósofo neo-hegeliano construye argumentos para plantear la

verdad, el artista del montaje fabrica heterogeneidades para dys-poner la verdad

en un orden que no es precisamente el orden de las razones, sino el de las

“correspondencias” (para hablar con Baudelaire), de las “afinidades electivas”

(para hablar con Goethe y Benjamin), de los “desgarros” (para hablar con

Georges Bataille) o de las “atracciones” (para hablar con Eisenstein).

Una forma de exponer la verdad desorganizando – y no explicando – las cosas.

(...) dialéctica del montador, es decir del que “dys-pone”, separando y

readjuntando sus elementos en el punto de su más improblable relación.135

135

Op. cit. p. 108. – “(…) Aí onde o filósofo neo-hegeliano constrói argumentos para apresentar a

verdade, o artista da montagem fabrica heterogeneidades para organizar a verdade em uma ordem

que não é precisamente a ordem das razões, senão a das ‘correspondências’ (para dialogar com

Baudelaire), a das ‘afinidades eletivas’ (para dialogar com Goethe e Benjamin), a dos

‘rompimentos’ (para dialogar com Georges Bataille) ou a das ‘atrações’ (para dialogar com

Eisenstein).

Uma forma de expor a verdade desorganizando – e não explicando – as coisas. (…) dialética do

montador, ou seja, aquele que ‘organiza’, separando e readjuntando seus elementos em seu ponto

de maior improvável relação.” – Tradução pessoal.

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O trabalho de montagem, neste sentido, implica em tentar estabelecer

conexões até então impensadas. Requer assumir o caráter singular, parcial e

incompleto das imagens e buscar, mesmo em suas fissuras e em sua fugacidade,

através de relações improváveis por verdades concretas que possam proporcionar

uma reflexão mais profunda e crítica sobre determinado acontecimento. O

processo de montagem é capaz de intensificar e trazer à tona as fissuras das

imagens e, assim, restituir à experiência visual uma potência que o hábito do olhar

tende a atenuar. Este processo visa estabelecer contato constante e intenso com

aquilo que é imprevisto e que escapa nas próprias imagens.

O documentário de José Padilha, Ônibus 174, é composto na sua grande

maioria de imagens de arquivo. A montagem, a reorganização e ressignificação

destas imagens são fundamentais para a construção do discurso proposto pelo

diretor. As imagens do local do incidente que ocorreu em 12 de junho de 2000

apresentadas ao longo do filme são todas de emissoras de TV (Rede Globo, Rede

Record e Rede Bandeirantes) ou, no caso das imagens da CET-Rio, da Prefeitura.

Apesar de ter desenvolvido um trabalho bastante investigativo deixa de explorar

algumas das potencialidades existentes nas imagens das quais se apropria.

Montar imagens de arquivo demanda investigação das contradições não

solucionadas e estratégias reflexivas para tensioná-las, implica, entre outras

possíveis técnicas, em alterar a velocidade original para que novos elementos

surjam e possam ser analisados.

Entonces se entiende que la “dialéctica del montador” desorganice radicalmente

el componente de previsibilidad que se hubiera podido esperar de una “dialéctica

filosófica” que describiera los progresos de la razón en la historia. La dialéctica

del montador – del artista, del mostrador –, porque ofrece todo su lugar a las

contradicciones no resueltas, a las velocidades de aparición y a las

discontinuidades, no dys-pone las cosas más que para poner a prueba su intrínseca

vocación de desorden.136

A sensação de desordem passa a ser assim, na opinião de George Didi-

Huberman, uma equação sine qua non para toda lógica da dialética de montagem

136

Op. cit. p. 114. – “Então, entende-se que a ‘dialética do montaedor’ desorganiza radicalmente o

componente de previsibilidade que poderia se esperar de uma ‘dialética filosófica’ que descrevesse

os progressos da razão e da história. A dilética do montador – do artista, do mostrador –, por

oferecer todo seu espaço às contradições não resolvidas, às velocidades das aparições e das

descontinuidades, não organiza os elementos senão para para provar sua intrínseca vocação de

desordem.” – Tradução pessoal.

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que observa nos trabalho de Brecht e que acredita que deve ser utilizada para

trabalhar com imagens de arquivo. Ao argumentar sobre o processo de montagem,

o crítico de arte francês, faz questão de enfatizar que este não deve ser confundido

com manipulação. “Montagem não é fusão, assimilação ou destruição dos

elementos que constituem as imagens. Trata-se de montar mostrando as diferenças

e ligações com o que nos cerca.”137

Comolli, por sua vez, denomina de “mixagem de elementos documentários

provenientes de diferentes fontes” esta estratégia de conectar imagens

provenientes de lugares diferentes, com distintas temporalidades, produzidas de

formas variadas e que buscam certa unificação. O gesto do montador em busca de

uma forma, segundo Sylvie Lindeperg, é o momento no qual a história das

imagens desaparece. No extremo, permanecem apenas como “reminiscências no

fora-do-filme.”138

El montaje confiere, pues, a las imágenes, este estatus de enunciación que las

convertirá, según su valor de uso, en justas o injustas: tal como un filme de

ficción – siguiendo la vision que tienen de éste Hitchcock, Godard, Bresson y

muchos otros – puede llevar las imágenes a un grado de intensidad capaz de hacer

surgir de ellas una verdad, también un simple telediario puede utilizar unas

imágenes documentales hasta llegar a producir una falsificación de una realidad

histórica que, sin embargo, archivan. Se puede comprender en qué momento el

montaje acaba por encontrarse en pleno centro de la cuestión concreta – del uso

singular y no de la verdad general – de las imágenes.139

Godard assume a montagem como um processo que faz ver, ou seja, como

um mecanismo que desperta atenção do espectador para indícios importantes e

significativos. De acordo com o cineasta francês, é essencial recordar que o

cinema, em primeiro lugar, foi construído como um meio para estimular o

pensamento. Didi-Huberman apoia-se nesta concepção de Godard para afirmar

que a montagem é a arte que possibilita o surgimento de uma forma, de um objeto

137

LINS, Consuelo e REZENDE, Luiz. A voz, o ensaio, o outro. IN. FURTADO, Beatriz. (org).

Imagem contemporânea – cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games... vol.1. p.112. 138

Imagens de arquivo: imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Sylvie

Lindeperg. p.332. 139

DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo. p.202. – “A montagem confere, pois, às

imagens, este status de enunciação que as converterá, segundo seu valor de uso, em justas ou

injustas: tal como um filme de ficção – seguindo a visão que tem disto Hitchcock, Godard,

Bresson e muitos outros – pode levar as imagens a um grau de intensidade capaz de fazer surgir

delas uma verdade, também um simples noticiário pode utilizar algumas imagens documentais até

chegar a produzir uma falsificação da realidade histórica que, no entanto, arquivam. Pode-se

compreender em que momento a montagem acaba se encontrando no centro da questão concreta –

do uso singular e não da verdade geral – das imagens.” – Tradução pessoal.

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que faz pensar ou que estimula o pensamento. A montagem é “el arte de reflejar

la imagen dialéctica.”140

(...) la dialéctica debe comprenderse en el sentido de una collision

desmultiplicada de palabras e imágenes: las imágenes chocan entre sí para que

surjan las palabras, las palabras chocan entre ellas para que surjan las imágenes,

las imágenes y las palabras entran en collision para que visualmente tenga lugar

el pensamiento.141

Então, uma montagem realizada, principalmente, a partir de associações

livres, poéticas e subjetivas de imagens de arquivo juntamente com um texto que

busque refletir sobre elas possibilita o surgimento de aspectos impensados durante

o processo de tomada das próprias imagens. A montagem assume, assim, um

papel central na reflexão sobre as imagens de arquivo e no estímulo do

pensamento e do raciocínio crítico.

2.4. A imagem de arquivo enquanto um documento/monumento

A história de cada imagem, de cada plano, de cada documento desaparece pura e

simplesmente. Tempo, lugares e circunstâncias são misturados, geralmente

respondendo a um projeto unificador. Isso parece colocar alguns problemas ao

historiador que deve recompor tudo o que foi despedaçado. (...) Será que essa

perda de referentes é o “destino” que espera, inevitalmente, as imagens do

passado?142

Walter Benjamin ao escrever Sobre o conceito da história aponta aspectos

essenciais para compreensão do ofício do historiador e, principalmente, da

construção da própria história. Demonstra diferenças práticas entre o materialismo

histórico e o historicismo. Aponta que estamos habituados com um tipo de

história; a dos vencedores. A história divulgada é sempre a versão dos “herdeiros

de todos os que venceram antes”143

.

François Niney reforça este pensamento de Benjamin ao afirmar que os

arquivos não são inocentes e que há sempre uma intencionalidade na preservação

140

Op. cit. p. 204. – “a arte de refletir a imagem dialética.” – Traducão pessoal. 141

Op. cit. p. 205. – “(…) a dialética deve ser compreendida no sentido de uma colisão

desmultiplicada de palavras e imagens: as imagens se chocam entre si para que surjam as palavras,

as palavras se chocam entre elas para que surjam as imagens, as imagens e as palavras entram em

colisão para que visualmente o pensamento tenha lugar.” – Traducão pessoal. 142 Imagens de arquvos: Imbricamentos de olhares. Entrevista de Jean-Louis Comolli com Silvie

Lindeperg. p.327. 143

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. vol1. p. 225.

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de uma determinada imagem. Em relação aos arquivos, o filósofo e crítico de

cinema francês declara; “elle sont effectivement ‘armées’ et orientées.”144

Benjamin, todavia, propõe pensarmos a possibilidade de um novo tipo de

história. Não mais uma verdade absoluta inquestionável e impenetrável, mas uma

construção marcada por “um tempo saturado de ‘agoras’”145

. Ou seja, propõe um

olhar sobre o passado sem deixar de considerar as marcas presentes.

A palavra 'história' (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego

antigo historie, em dialeto jônico [Keuck, 1934]. Esta forma deriva da raiz indo-

européia wid-, weid 'ver'. Daí o sânscrito vettas 'testemunha' e o grego histor

'testemunha' no sentido de 'aquele que vê'. Esta concepção da visão como fonte

essencial de conhecimento leva-nos à idéia que histor 'aquele que vê' é também

aquele que sabe; historein em grego antigo é 'procurar saber', 'informar-se'.

Historie significa pois "procurar". É este o sentido da palavra em Heródoto, no

início das suas Histórias, que são "investigações", "procuras" [cf. Benveniste,

1969, t. II, pp. 173-74; Hartog, 1980]. Ver, logo saber, é um primeiro

problema.146

Jacques Le Goff é extremamente cuidadoso e faz questão de explicar,

através da raiz etimológica, o sentido primário de cada um dos conceitos com os

quais trabalha. Aborda, logo no início de seu livro, a problemática em torno da

própria noção de história e retoma uma discussão anteriormente abordada neste

trabalho segundo a proposta de George Didi-Huberman em relação as próprias

imagens; a maneira como olhamos para elas. O próprio ato de ver enquanto um

gesto de interferência e construção. Um ato que precisa ser cautelosamente

observado, uma vez que este também é resultado de um processo de construção

subjetivo e influencia o discurso que será elaborado posteriormente.

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas

uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal

do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do

tempo que passa, os historiadores.

Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os

monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador.147

Estes dois conceitos – documento e monumento – são de extrema

importância para serem aplicados na análise das imagens de arquivo. Auxiliam a

144

NINEY, François. L’épreuve du réel à l’écran. p. 256. – “eles são realmente ‘armados’ e

orientados.” – Tradução pessoal. 145

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. vol1. p. 229. 146

LE GOFF, Jacques. História e Memória. p.18. 147

Op. cit. p.535.

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esclarecer e aprofundar a observação do acervo audiovisual. O historiador francês

começa sua descrição pelo monumento e afirma que este está ligado à memória.

“O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o

monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação...”148

O monumento tem íntima relação com o “poder de perpetuação”, com um legado

que é deixado para as outras gerações, voluntária ou involuntariamente. Em

seguida, aborda a noção de documento e afirma que este é originariamente

derivado do termo “ensinar”, depois evolui para um sentido de “prova”, e só

ganha o sentido de testemunho histórico no início do século XIX.

O documento que, para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do

início do século XX, será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da

escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como

prova histórica. A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do

monumento.149

Le Goff segue relatando como estes dois termos foram sendo empregados

ao longo dos anos em tratados, publicações, relatórios, entre outros, até que no

século XX, em virtude da escola positivista, o documento assume papel

preponderante e todo historiador assume-o como indispensável para qualquer

investigação. ‘“Não há notícia histórica sem documentos”; e precisava: “Pois se

dos fatos históricos não foram registrados documentos, ou gravados ou escritos,

aqueles fatos perderam-se.”’150

Entretanto, como bem aponta Le Goff no texto, o conceito de documento

começa a ganhar novos contornos, torna-se mais amplo e enriquece o próprio

trabalho do historiador. Se inicialmente era apenas texto, Fustel de Coulanges já

apontava uma limitação e acreditava que:

Onde faltam os monumentos escritos, deve a história demandar às línguas mortas

os seus segredos... Deve escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação...

Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua

inteligência, aí está a história.151

Aqueles historiadores que estavam envolvidos na revista Annales

d’histoire économique et sociale (1929) são considerados os pioneiros de uma

148

Op. cit. 149

Op. cit. p.536. 150

LEFEBVRE, Georges. Apud. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p.539. 151

COULANGES, Fustel. Apud. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p.539.

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nova história que rompe com os conceitos positivistas e defende a ampliação do

conceito de documento, acreditavam que;

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.

Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem.

Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o

seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e

telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a

atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e

com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que,

pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem,

demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.152

Neste sentido, é possível aproximar o trabalho investigativo do historiador

com a retomada de imagens de arquivo executada pelo montador. A mesa de

montagem pode ser considerada como um campo arqueológico de imagens. As

imagens de arquivo podem ser assim, consideradas como mais um grupo de

documentos que devem ser analisados para elaboração da própria história.

Fragmentos que isolados não têm a mesma potência, ou simplesmente não

refletem tudo o que podem antes de serem conectados, montados e remontados.

Há um esforço por extrair as coisas não ditas dos documentos. Um processo

criativo para elaborar, para construir e, principalmente, para estimular o

pensamento e o raciocínio crítico.

Le Goff, em seu livro, continua desenvolvendo seu raciocínio e explicação

da transformação e da ampliação da noção de documento. Relata como se deu a

revolução documental e como Paul Zumthor, através de seus questionamentos,

descobre como o documento pode transformar-se em monumento, a partir de sua

utilização. Ou seja, aponta que não há nenhum documento objetivo, puro e livre

de intencionalidade.

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto

da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o

poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória

coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno

conhecimento de causa.

Michel Foucault colocou claramente a questão. Antes de mais nada, ele declara

que os problemas da história podem se resumir numa só palavra: "o questionar do

documento" [1969, p. 13]. E logo recorda: "O documento não é o feliz

instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória:

152

LEFEBVRE, Georges. Apud. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p.540.

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a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma

massa documental de que se não separa" [ibid., p. 13].

Segue-se-lhe a definição de revolução documental em profundidade e da nova

tarefa que se apresenta ao historiador: "A história, na sua forma tradicional,

dedicava-se a 'memorizar' os monumentos do passado, a transformá-los em

documentos e em fazer falar os traços que, por si próprios, muitas vezes não são

absolutamente verbais, ou dizem em silêncio outra coisa diferente do que dizem;

nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e o

que, onde dantes se decifravam traços deixados pelos homens, onde dantes se

tentava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, apresenta agora uma

massa de elementos que é preciso depois isolar, reagrupar, tomar pertinentes,

colocar em relação, constituir em conjunto" [ibid., pp. 13- 14].153

A aproximação proposta entre os conceitos de documento e monumento

parece ser bastante enriquecedora para a interpretação e organização dos registros

de nossa memória coletiva. É fundamental não sermos ingênuos durante a análise

dos arquivos, afinal, tomá-los como verdade absoluta seria deixar de lado todo

aspecto de montagem existente no monumento. Como já foi apontado

anteriormente, para efetuar uma avaliação pertinente é necessário desconstruir,

investigar as condições de produção. É importante enfatizar, como bem apontou

Michel Foucault, que o arquivo é uma escrita dotada de sintáxe e ideologia. A

história, desta forma, é composta ao redor de lacunas que devem ser

constantemente questionadas, pois nunca são completamente preenchidas.

O medievalista (e, poder-se-ia acrescentar, o historiador) que procura uma

história total deve repensar a própria noção de documento. A intervenção do

historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do

passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo

menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da

sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos

"neutra" do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É antes de mais

nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da

época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas

durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a

ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que

dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz

devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado

aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades

históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada

imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o

documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. Os

medievalistas, que tanto trabalharam para construir uma crítica – sempre útil,

decerto – do falso, devem superar esta problemática porque qualquer documento

é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e

falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência

enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta

153

LE GOFF, Jacques. História e Memória. p. 545-546.

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montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos

documentos-monumentos.154

É possível relacionar esta concepção apresentada por Le Goff com a lógica

da “desordem dialética” defendida por Didi-Huberman para pensar o processo de

montagem. É justamente esta a proposta deste trabalho, esmiuçar o documentário

Ônibus 174 de José Padilha. Esta obra cinematográfica é composta, na sua grande

maioria, por imagens de arquivo. A montagem, a reorganização e ressignificação

destas imagens são fundamentais para a construção do discurso proposto pelo

diretor. As imagens do local do incidente que ocorreu em 12 de junho de 2000

apresentadas ao longo do filme são todas de emissoras de TV (Rede Globo, Rede

Record e Rede Bandeirantes) ou, no caso das imagens da CET-Rio, da Prefeitura.

Logo, há inúmeras relações de poder presentes nestas imagens que podem servir

como elementos de reflexão e questionamento.

154

LE GOFF, Jacques. História e Memória. p. 547-548.

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