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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016
Entre o Sagrado e a Dança: Bernhard Wosien revisita as Danças Sagradas
Moya, Leisi Fernanda1 Bonetti, Maria Cristina2
RESUMO:
Os estudos sobre a dança e o sagrado guardam longa tradição no âmbito das Ciências da Religião. Existe por parte de muitos estudiosos da dança o consenso quanto à compreensão das danças sagradas como uma das manifestações artísticas mais antigas da nossa história, assim como há indícios que comprovam esta estreita relação. Por sua vez, esta proposta de comunicação objetiva destacar a dança tradicional dos povos, a sua história e importância no contexto sócio-cultural e religioso das sociedades antigas, bem como a sua relação entre o sagrado e a dança. Atualmente, a partir de pesquisas de Bernhard Wosien, Maria Gabriele Wosien e Maria Cristina Bonetti as investigações ganham novo sopro, abordando as mudanças de cenários e contextos nas manifestações das Danças Circulares Sagradas. Interessam-nos discutir sobre as aproximações dessa pedagogia com as danças ancestrais e, consequentemente, com o sagrado. A proposta aponta para uma reflexão sobre performances ritualísticas e a dança sagrada.
Palavras-chaves: Danças tradicionais, dança sagrada, sagrado. 1. Introdução:
Existe por parte de muitos autores e estudiosos um consenso no que
tange a compreensão da dança como uma das manifestações artísticas mais
antigas da nossa história. Nas palavras de Miriam Mendes (1987, p.10):
“Esteticamente a dança pode ser considerada como a mais antiga das artes, a
1 Docente efetiva de Educação Física do Instituto Federal Catarinense (IFC), Campus Camboriú –SC.
Doutoranda do curso de Ciências da Linguagem da Unisul, Campus Palhoça. Orientada de Antônio
Carlos Santos e co-orientada por Maria Cristina Bonetti. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Professora da Universidade Estadual de Goiás, Mestre e Doutora em Ciências da Religião (PUC-Goiás).
Pós-doutoranda em História (PPGH-UFG) e Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPQ UFG
“Interartes Processos e Sistemas Interartísticos e Estudos de Performance”.Focalizadora de Danças
Circulares Sagradas. [email protected]
mais capaz de exprimir tanto as fortes quanto as simples emoções sem o
auxílio da palavra, porque esta, podendo tudo expressar, revela-se insuficiente
nesses momentos”. A dança não precisa de palavras para expressar algo, é
uma maneira instintiva de expressão, isso porque ela é uma metalinguagem,
que já se explica por si só, nosso corpo quando dança permite que nos
expressemos e dialoguemos com outros corpos, indiferente da língua, da
cultura, é um diálogo que dispensa qualquer outra linguagem além da corporal,
o que a torna uma linguagem tão representativa e importante em nossa cultura.
Uma estreita relação entre a dança e o sagrado é registrada em
nossa cultura e história desde a antiguidade, existem indícios e registros de
que as danças eram utilizadas em diversos tipos de rituais. Como descreve M-
Cristina Bonetti (2013, p.230), a dança é uma arte ancestral que,
possivelmente, teve inicio na Ilha de Creta, posteriormente teria chego a
Atenas, por meio dos sacerdotes cretenses, que utilizam danças tanto em seus
rituais, durante as liturgias oficiais, como em atividades cotidianas. De acordo
com a autora, nesse período histórico “a dança é sagrada porque a relação
com o outro e com a natureza era considerada sagrada”, a relação entre o
homem e a natureza, assim como a compreensão de mundo eram outras.
Atualmente existem diversos modos ou estilos de dança, assim
como variados motivos e os objetivos que levam as pessoas a dançarem ou a
assistirem os espetáculos de dança. Destacaremos entre esses estilos de
dança a de roda, mais especificamente, a dança circular sagrada, estilo ou
metodologia de dança idealizada por Berhard Wosien, com a colaboração de
M-Gabriele Wosien, que faz parte do nosso contexto contemporâneo, mas que
muito nos remete às danças ancestrais.
Para compreendermos mais sobre as danças ritualísticas ancestrais,
retomemos a tese de Bonetti (2013, p. 231). Em sua compreensão, a “principal
característica dessas danças são os gestos simbólicos que ora estão com a
postura orante, ora com os braços em forma de adoração; ou então os braços
ficam em oposição, um para o alto com a palma da mão voltada para o céu e o
outro para baixo com a palma da mão voltada para a terra”, entre outros gestos
simbólicos ritualísticos que podemos presenciar também nas danças circulares
sagradas (DCS’s). Essa aproximação da dança com o sagrado e a relação do
sagrado com o significado atribuído aos gestos têm raízes ancestrais, não
surgem no contemporâneo e nem por meio das D.C.S’s., o que indica que
Wosien (1908-1986) ao idealizar essa pedagogia de dança não criou um
método inovador, mas sim, “revisitou” esse modo de dançar e esse vínculo do
sagrado com a dança.
Como problematização para nosso debate, temos as seguintes
propostas de reflexão: Quais aproximações podemos estabelecer entre as
danças circulares sagradas e as danças de roda ancestrais? De que modo
essas danças em roda podem nos reaproximar do Sagrado? Nossos objetivos
são: destacar a história da dança, em especial, a dança de roda, sua
importância no contexto social e histórico das sociedades ancestrais, sua
relação com o sagrado; em que contexto surgiram as danças circulares
sagradas e de que modo essas danças têm favorecido uma reaproximação
entre o ato de dançar e uma “reconexão” com o sagrado. Buscaremos atingir
nosso objetivo por meio de uma investigação teórica, utilizando como
metodologia e instrumento de análise a revisão de literatura.
A dança circular sagrada é um estilo de dança que em suas
formações possibilita várias organizações do/no espaço, no entanto,
prevalecem as formações em círculo e espiral. Essa relação da dança com o
círculo também já vem marcada de longa data, do mesmo modo que nossa
relação e concepção de mundo giram em torno de círculos. As palavras de M-
G. Wosien (2002, p.16) exprimem a grandeza do círculo: “No círculo, como
imagem espelhada do universo, as contradições estão suprimidas e toda
potência está contida. Início e fim coincidem nele, seu centro é o colo do
mundo”. Como exemplo dessa presença marcante do círculo poderíamos citar
os formatos da terra, da lua, do sol, das estrelas, os ciclos dos meses e da
vida, o símbolo que demarca as horas, os ninhos dos pássaros, as células,
entre tantas outras coisas que nos rodeiam.
2. Metodologia
Nossa pesquisa encontra-se em fase de elaboração e faz parte da
tese para conclusão de doutorado em Ciências da Linguagem. Caracteriza-se
como de cunho qualitativo, definida por Fábio Rauen (2015) como estilo de
pesquisa que objetiva compreender de modo mais intenso um fenômeno. M-
Cecília Minayo e Odécio Sanches (1993) complementam ao afirmarem que a
investigação qualitativa nos possibilita trabalhar com valores, crenças, hábitos,
atitudes, representações e opiniões. É um método que nos permite adequar e
aprofundar a complexidade dos fatos ou de processos particulares e
específicos a indivíduos e grupos. Iniciamos com o levantamento, leitura,
análise crítica e reflexões a partir do material teórico referente à temática.
Posteriormente será realizada uma análise interpretativa, que nos possibilitará
um posicionamento mais crítico, em que buscaremos compreender e
interpretar melhor as ideias dos autores. Essa fase é de suma importância,
tendo em vista que compreender o que os autores dizem em seus textos é
fundamental para possamos tomar consciência e posicionamentos críticos
quanto aos pressupostos teóricos de cada texto. Como estratégia de analise
dos dados nos apropriaremos dos pressupostos da teoria da história da arte,
antropologia, história, ciências da religião e teoria da imagem.
3. Resultados:
2.1 - A Dança de roda e o Sagrado:
O sagrado, ou a busca pelo sagrado sempre esteve entre as
maiores aspirações humanas, no entanto, conceituar o que é sagrado não é
algo simples, tendo em vista sua abrangência. Limitaremos-nos, inicialmente, a
definição de Mircea Eliade (1995, p.17): “(...) a primeira definição que se pode
dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano”. O sagrado pode se manifestar
de diferentes maneiras e em diversas situações, temporalidades e espaços.
Para Zeny Rosendahl (2014) precisamos reconhecer que as manifestações
sagradas fundam ontologicamente o mundo e que a religião é uma das
possibilidades para se vivenciar experiências sagradas. Segundo a autora, a
experiência religiosa é uma das práticas culturais mais antigas do homem e
que essas experiências fazem parte das necessidades humanas. Em suas
palavras: “(...) As pesquisas empíricas vêm demonstrando que os homens
possuem necessidades religiosas e têm suas experiências de existir
relacionando-se com o mundo à sua volta” (id., p.12-13).
Ainda segundo essa autora, os rituais sagrados seriam
influenciados pelas temporalidades e mudanças sociais, que ocasionam
também alterações nos espaços considerados sagrados. Atualmente podemos
considerar a existência de múltiplos espaços sagrados, que vão desde os
grandes santuários, como basílicas, templos, entre outros, como espaços
abertos e até hoje misteriosos, como o caso das ruínas de Stonehenge, na
Inglaterra. Em suas palavras o espaço sagrado pode ser considerado “(...) a
área onde ocorrem as práticas familiares e religiosas. São espaços constituídos
por rituais simbólicos religiosos”. Essa concepção nos permite compreender
que o sagrado não está em um local específico, fechado, mas que ele é fruto
de uma experiência individual, que independe do espaço (ROSENDAHL, 2014,
p.17).
Para Eliade (1985) o território do sagrado é um espaço construído
pelo homem, onde o profano não coabita, seriam espaços criados com a
intenção de barrar o profano e desse modo, garantir maior segurança aos
homens. Ou seja, pontos fixos que o homem necessita ter, por acreditar que
nesses lugares concretos, “reais”, o sagrado impera sobre o profano. Para o
autor nenhum homem consegue viver uma vida totalmente profana ou abolir
por completo “o comportamento religioso” (p.27). Em suas palavras: “(...) até a
existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização
religiosa do mundo” (id.). Seguindo os pressupostos do autor, “toda festa
religiosa, todo tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento
sagrado que teve lugar num passado místico, nos primórdios” (id., p.63). Para
ele, o afastamento do homem com relação ao divino ou a religião é fruto de
uma necessidade de novas descobertas religiosas, culturais e econômicas que
permitam experiências religiosas mais “concretas”, mais carnais, que estejam
“mais intimamente misturadas à vida” (id., p.106). Nesse ponto, nos
questionamos: poderíamos considerar as danças circulares sagradas exemplos
dessas buscas por vivências concretas do sagrado fora dos espaços e moldes
fixos destinados a ele?
Ao pesquisar sobre o sagrado e sua relação com a modernidade,
Franz Josef Brüseke (2001) nos alerta que a dúvida e a racionalização
exagerada sobre a existência do sagrado, como experimentá-lo, sua relação
com o divino, são obstáculos para que possamos o encontrar e compreendê-lo.
Para ele, o sagrado apresenta duas faces, uma que assusta e aterroriza,
porque “o homem sente-se atraído e repelido por algo enigmático e muito mais
poderoso do que ele mesmo” (p.191). Isso porque nem sempre o homem
consegue explicar racionalmente as experiências vividas e/ou presenciadas
com relação ao sagrado, o que o assusta, devido à necessidade que nosso
contexto contemporâneo nos impõe de ter que explicar tudo racionalmente. A
outra face no qual o autor menciona é que “o sagrado dá notícia de algo
conciliante e harmonioso que mergulha o real no brilho do ideal”, desse modo,
mesmo que amedronte o homem, o sagrado é necessário para que possamos
manter o equilíbrio entre nosso contexto e as nossas raízes ancestrais.
O autor busca argumentos na antropologia, no qual o sagrado pode
ser compreendido como “fenômenos naturais, sociais ou humanos
sobrevalorizados, que simbolizam conhecimentos e poderes que fogem do
controle humano” (BRÜSEKE, 2001, p.191). Tais fenômenos causam
sensações adversas, que vão desde a inquietação ao desejo de se
saber/conhecer mais. De acordo com o autor, o homem primitivo mantinha uma
vida permeada pelo sagrado e o conhecimento mítico, tal fato se justifica pela
ausência do conhecimento científico e demais conhecimentos que hoje nos
possibilitam conhecer mais do universo no qual estamos inseridos.
Na medida em que nos modernizamos aumentamos também o
espaço entre o sagrado e o profano, a ciência e a técnica moderna seriam
protagonistas na deserção dos deuses e diminuição da presença do sagrado.
Para Brüseke, a sociedade moderna passa super valorizar a racionalidade e a
viver de modo que fatores relacionados à irracionalidade, de qualquer espécie,
não possam existir. Existem indícios de movimentos de retorno ao sagrado,
desvinculando este da religião, seriam tentativas de racionalizar o algo
irracional, como afirma Brüseke (2001, p.204, apud Otto, 1991): “As camadas
mais racionalizadas (Otto também diria esquematizadas) do sagrado estão
sendo apropriadas pela sociedade moderna e desvinculadas do seu contexto
religioso”. Um dos exemplos desse rompimento do sagrado com a religião pode
ser atrelado à arte moderna, que deixa de vincular sua produção artística às
obras estritamente religiosas.
Quanto ao retorno do sagrado, M-G. Wosien (1996, p.11), também
sinaliza um desejo ou uma necessidade desse retorno ao afirmar que
“Mediante a observação, mediante a faculdade imaginativa e mediante o
pensamento especulativo, o homem estabelece estruturas para se proteger do
caos da experiência, numa tentativa de localizar o sagrado”. Ao referir-se ao
sagrado ela, não vincula o mesmo a questões religiosas, mas sim a questões
que ainda são um mistério e a uma necessidade do homem em manter-se
conectado com algo que transcende e que poderíamos nomear de sagrado. A
autora afirma que tradições com prática das danças sagradas mostram
abundâncias de “formas imaginadas, através das quais os homens tentaram
relacionar-se com o prodígio da existência. Sua herança reflete o interminável
drama da Vida com suas próprias formas criadas” (id., p.12). Para a autora, a
dança de roda era um meio utilizado por uma comunidade cristã antiga para
celebrar o mistério do divino nascimento e do caminho de Deus ao calvário, a
dança era vivenciada como um caminho a ser percorrido entre o renascimento
e o espírito. A autora destaca vários trechos bíblicos em que são relatados
momentos festivos ou de celebração no qual os apóstolos e Jesus dançam. Um
desses trechos é: “A Dança de Roda de Jesus”, que se encontra nos Atos de
João, Apócrifos do Novo Testamento:
Ele então nos disse para formar um círculo, dando-nos as mãos. Ele mesmo foi para o meio e falou: “Respondam-me com Amém”. Ele começou a cantar um hino e dizer “Louvado sejas, Pai!” E nós, circundando-o, respondíamos:”Amém”” (M-G. Wosien, 2002, p.29).
São destacados também outros trechos, em que a menção às
danças em roda são feitas em outras ocasiões, como festas, por exemplo.
Essa relação entre a dança, religião, divindade, ou sagrado existe há muito
tempo e mesmo que em alguns períodos de nossa história a Igreja tenha
interferido nessa cultura da dança em celebrações religiosas, a força da dança
e da roda prevaleceu, mantendo-se firme de geração a geração. Com relação
ao sagrado e a ligação deste com a dança circular sagrada, destacamos os
seguintes trechos da obra de Wosien (2000, p.25-28):
Na dança sagrada, como oração e conversa sem palavras com Deus, o bailarino encontra o recolhimento. No quadro da irreligiosidade geral de nosso tempo, não é mais fácil exprimir este bater de asas da alma primeiramente “sem palavras”? (...) No caminho da maestria da dança cheguei à conclusão básica de que a dança, como a manifestação artística mais antiga do homem, é um caminho esotérico. O trabalho do bailarino acontece no seu instrumento, ou seja, no seu próprio corpo. Trata-se do trabalho a partir da base, a partir do interior da imagem perfeita de Deus. Segundo a frase esotérica: “Assim em baixo como em cima”, o trabalho está nos fundamentos de nossa autocompreesão, no ser humano como imagem de Deus (...). O homem vivencia na dança a transfiguração de sua existência, uma metamorfose transcendente de seu interior, relativa ao ser e também à elevação ao seu divino. A dança como forma de uma imagem característica e móvel, é o próprio sagrado. (grifo nosso).
Por tanto, as danças circulares sagradas têm como um de seus
propósitos, o retorno às características de um tempo em que a dança era
compreendida como um momento de comunhão e transcendência, em que o
homem experimentava, por meio do movimento corporal, da música, “a
essência, o indizível, o espiritual e o sagrado”, como afirma Luciana Ostetto
(2014, p. 58). Esse tempo, ao que parece, nunca foi apagado da memória,
permanece vivo, pois ainda existe a cultura de manter viva a ligação entre a
dança e o sagrado e o espiritual, mesmo que ressignificada.
Um exemplo dessa ligação da dança de roda e a busca por uma
transcendência ou união com Deus por meio da dança é a dança dos sufis.
Não se tem registro de quando exatamente os sufis, ou dervixes surgem,
estima-se que por volta do séc.VII, no deserto do Oriente, em decorrência da
crescente politização e secularização do Islã. A dança dervixe, denominada
como semâ surge por volta de 1250, sendo considerada uma forma do “vir-a-
ser do mundo a partir da origem unitária de Deus”, seria uma dança ritualística
com princípio espiritual (M-Wosien, 2002b, p.54). Os participantes passam por
um período de preparação, ou iniciação, antes de executar a dança. A dança é
realizada em roda, os participantes executam giros sobre o próprio eixo, no
sentido anti-horário, repetindo ritmicamente o nome de Deus. De acordo com
Rumi, responsável por desenvolver o ritual da dança, por meio da música,
poesia e ritmo, é possível vivenciar diretamente o mundo espiritual, nesse
caso, o corpo seria o instrumento para que essa alquimia ocorra. (M-Wosien,
2002, p.45-46). Essa dança pode ser considerada uma oração em movimento.
Em uma vasta pesquisa sobre a dança e os rituais de êxtase, Bárbara
Ehrenreich (2010) afirma que desde os tempos mais remotos o homem cultua
essa possibilidade de transcendência ou de experiência sagrada e extática por
meio da dança. Segundo ela “(...) só o que podemos presumir hoje é que a
religião dos antigos gregos era uma “religião dançada”, assim como a dos
“selvagens” que os viajantes europeus mais tarde encontrariam ao redor do
mundo” (p.47). Ancorando-se nos estudos de Aldous Huxley, que afirmou que
“danças rituais oferecem uma experiência religiosa que parece mais satisfatória
e convincente do que qualquer outra (...). É com os músculos que obtemos
mais facilmente o conhecimento do divino” (EHRENREICH, 2010, p.47, apud
Conrad, 2002) a autora vem reafirmar essa relação estreita entre a dança e o
sagrado.
2.2 - O revistar de Wosien as danças de roda:
As danças circulares sagradas são danças que têm encontrado
adeptos mundo a fora. Qual seria o motivo da adesão cada vez maior a esse
estilo de dança? O que há nessa dança que atrai púbicos tão diversos e com
finalidades tão distintas? Como hipótese há o pressuposto de que, entre outros
motivos, essa dança atraia porque apresenta qualidades que permitem que um
público variado, com idades, interesses, vivência familiares, com capacidades e
habilidades físicas diferentes, consigam entrar na roda e dançarem juntos. É
um estilo de dança que não exige um corpo e uma qualidade física específica,
tão pouco uma técnica muito aprofundada, como seria o caso de algumas
danças, que exigem uma flexibilidade corporal maior, uma amplitude de
movimentos, uma postura mais rígida e uma familiaridade maior com a técnica
corporal da dança. Além disso, são danças que permitem um encontro com as
tradições e culturas de outros povos, por meio dos gestos característicos,
cheios de significados e pelas músicas tradicionais de cada etnia. Por fim, são
danças que propiciam uma abertura ao sagrado e a vida em comunidade.
Ao utilizarmos o termo revisitar, nos apropriamos do conceito de
Nadja Lamas (2005, p.11), que em sua tese utiliza o termo. A autora, mesmo
admitindo não ser este um termo novo, visto que já aparecia em matérias e
publicações sobre a arte, elabora um conceito para ele, definindo-o como:
Revisitamento é o ato de o artista buscar referência em alguma obra de arte existente, com a intenção de construir a sua própria. É parte constituinte de sua poiética e se materializa na poética da obra, sendo parte integrante do processo de instauração da mesma. O artista vai ao encontro daquela obra de arte que é objeto de sua atenção e estabelece com ela um diálogo. Desse diálogo desencadeia os procedimentos inerentes à criação artística, singular a cada realização.
Segundo a autora, o termo revisitar “constitui a tentativa de
encontrar possibilidades de reflexão um pouco mais autônomas no campo da
arte” (id., p.11). Seria uma proposta de pensar a apropriação de conhecimento
mantendo um distanciamento do campo verbal, voltando-se mais para as obras
do campo da visualidade, embora não dispense a necessidade da utilização da
literatura também.
Ao elaborar sua pedagogia, ou método de dança, Wosien nos
propõe revisitar as danças de roda, ou, danças dos povos, ou, danças
ancestrais, que ao longo dos tempos foram constituindo o acervo de danças
folclóricas da Europa. O dançarino nos faz a proposta de revisitar essas
danças, esses tempos, esses outros sentidos e significados atribuídos à dança
ao incorporar na sua metodologia de dança gestos, significados, músicas,
sentidos de danças que já existiram e haviam caído no esquecimento, além de
ressaltar algumas que ainda estão presentes na nossa cultura contemporânea.
Havia nele uma intenção de retomar características das danças de roda
tradicionais. Suas danças surgem sem uma finalidade de espetacularização, ou
seja, sem o intuito de apresentações públicas, isso porque objetivam valorizar o
ato de dançar em si, o encontro, o ritual, a sustentação das tradições, o retorno
ao sagrado, entre outras características. Bonetti (2013, p.232) reforça essa
hipótese ao afirmar que:
Com a evolução da linguagem da dança para outras esferas, nas concepções primitivas todos os presentes são incluídos na dança, não havendo espectador. Vale ressaltar ainda que as danças com raízes na pré-história, que estão sendo recuperadas e utilizadas na pedagogia das Danças Circulares Sagradas na contemporaneidade, trazem para a consciência mítica uma realidade simbólica que evoca a sua ancestralidade, e não a simples construção de danças espetacularizadas”.
Essa aproximação de Wosien com o sagrado ou com a religião,
assim como, sua ligação com a dança, foi impulsionada desde muito cedo pela
figura do pai, pastor evangélico e adepto da dança. Conta ele, que aos 15 anos
já definira o espaço da dança em sua vida e aos 18 anos já estava envolvido
com o movimento jovem alemão, ou seja, já pisava com um pé em cada um
dos alicerces que serviriam como sustentação para o estilo de dança que mais
adiante iria criar. Segundo Wosien (2000, p.20), sua musa inspiradora,
Terpsícore3despertou nele uma “base religiosa mais nova e profunda. A arte,
enquanto anunciação e profética indicação de um caminho, não mais me
deixou”. Após seis semestres de estudos de Teologia, ele decide por deixar o
curso e tornar-se um bailarino profissional, chegando a se tornar o primeiro
bailarino solista e coreógrafo do Teatro Estadual de Berlim. Dedicou-se aos
palcos até o ano de 1960, quando passou a se dedicar totalmente ao ensino da
dança.
Seu primeiro contato com a comunidade de Findhord4, localizada no
norte da Escócia, foi em 1976. Esse encontro é descrito por Wosien (2000,
p.117) da seguinte maneira:
Por uma feliz circunstância, em um encontro no castelo de Schöneck, em Taunus, reencontrei um antigo amigo da dança da minha época de estudante, Sir George Trevelyan. Este encontro foi muito promissor para mim, pois pudemos reacender a nossa velha amizade. Presentes estavam também Eileen e Peter Caddy, os fundadores da comunidade escocesa da Fundação Findhorn. A minha filha Gabriele e eu recebemos deles o convite para implantarmos em Findhorn as danças de roda e as danças circulares europeias.
Nesse período Wosien já havia tido a intuição de unir a dança ao
sagrado, à meditação, à religião e à tradição das danças de roda ancestrais. Já
não concebia a dança da mesma maneira como a via durante sua experiência
com a dança clássica. Ele descreve seu percurso e conta que por meio das
danças circulares encontrou seu caminho para a meditação, “uma oração sem
palavras” e sintonia entre “espírito, corpo e da alma” (id.,p.117). Por sua vez,
ele considerava a arte de dançar como meio de reverenciar, cultivar as
tradições de povos um ato sagrado. Suas danças apresentam como base a
dança tradicional dos povos.
3Seu nome em grego quer dizer “que ama a dança”. Era musa da dança.
(http://greciamitos.blogspot.com.br/2012/08/as-musas-terpsicore.html)
4 Comunidade onde Wosien obteve maior adesão com relação às danças circulares sagradas, local onde
até hoje essa dança é praticada como atividade habitual de quem lá vive ou visita.
Como nos reintera Bonetti (2013, p.27), sua dança respeita e
acompanha as tradições e a história dos povos, pois, é “composta por uma
multiplicidade de códigos e símbolos que revelam o caminho trilhado pelo ser
humano desde tempos primevos, mostrando como o seu comportamento e a
sua construção cultural estão em constante mutação”. Isso confirma que houve
por parte de Wosien uma preocupação com o acervo cultural das danças, com
as suas tradições, suas origens, assim como, com questões do
contemporâneo, como essa capacidade de recriar e modificar
intermitentemente.
A simbologia do tempo, do ciclo de vida, e, sobretudo do círculo, tão
presente em nossa história, cultura, arte e estética, é representada em várias
danças coreografadas por Wosien. Como exemplo destacamos sua última
coreografia, intitulada “Dança do Agradecimento”, que representa sua
despedida da vida terrena. Os passos se iniciam para a direita, no sentido anti-
horário da roda, representando seu caminho para um futuro, ou para um lugar
de descanso eterno, no entanto, após esse caminhar para frente, ou para a
direita na roda, há uma pausa e o corpo volta-se para o centro da roda, em um
gesto de flexão do tronco à frente, nesse momento, é feito um agradecimento
por tudo o que se viveu nessa terra. Esse caminhar para a direita, em direção
anti-horária, rumo ao futuro, está presente em diversas de suas danças, no
entanto, em determinados momentos da dança, o movimento volta-se para a
esquerda, no sentido horário na roda, indicando que para seguir adiante é
preciso recordar ou retornar ao passado, às raízes. Toda essa simbologia dos
gestos e da direção da dança em relação ao círculo é muito representativa nas
DCS’s, especialmente nas coreografias mais antigas, elaboradas por Wosien
ou por demais coreógrafos de sua geração.
Nesse sentido, nos questionamos: é possível estabelecermos
relações entre as danças circulares sagradas, da pedagogia de Wosien, e as
danças ancestrais? Poderíamos afirmar que ao retomar as danças dos povos e
as danças em roda, Wosien estaria retornando aos princípios primevos da
dança? M–G. Wosien (2002, p.07), nos dá indícios de que sim ao afirmar que
“a dança de roda, como é transmitida até hoje no folclore, é uma riqueza
cultural das mais antigas do ocidente”, a autora assegura ainda que este modo
de dançar pode ser observado desde os primeiros séculos da era cristã,
período em que a dança era comum nas práticas religiosas e no cotidiano das
comunidades.
Da mesma maneira, M-G.Wosien (1996, p.9) defende e reforça a
existência da dança desde os primeiros tempos, como parte do cotidiano dos
povos ancestrais, ao afirmar que “(...) antes de que o homem expressasse sua
experiência da vida mediante os materiais, fá-lo com seu corpo”. Segundo ela,
o homem primitivo aprofunda sua experiência com o corpo e dança em
qualquer ocasião: por alegria, por dor, por amor, por medo; ao amanhecer, na
morte, no nascimento. Para esses povos, ou nesse tempo da história, a dança
era compreendida como um ritual, uma maneira que o homem encontrou para
se aproximar de deus. Esse modo de dançar em roda, ou círculo permaneceu
em nossa bagagem cultural, no entanto, com o tempo essa atribuição sagrada
ou ritualística foi cedendo espaço à nova compreensão de mundo e das
relações estabelecidas entre o homem e a natureza. Esse estilo de dança, com
o tempo, deixa de ser “sagrado” e passa a ser considerado “folclórico”.
Ao revisitar essas danças folclóricas, Wosien possibilita um
reencontro com os gestos, músicas, significados gestuais, permitindo não
apenas uma aproximação com a cultura de outros povos, mas a reapropriação
da dança como um ritual, um ato sagrado, que pode permitir ao dançante
momentos de transcendência, de encontro consigo mesmo, com o outro e com
o sagrado. Suas danças são constituídas de gestos que se repetem várias
vezes, na maioria das vezes, gestos simples, que após serem assimilados pelo
corpo, podem possibilitar momentos de imersão, introspecção, meditação
profunda, quem sabe até, estado de êxtase.
As características apontadas, também presentes nas danças
ritualísticas mais antigas, aproximam ainda mais as DCS’s das danças
ancestrais. Ressaltamos novamente os estudos de M-G.Wosien (1996, p.13-
14), em que confirmaria essa hipótese:
Através da repetição exata dos movimentos sagrados da dança, evocam-se experiências relacionadas com sua origem, e quem a executa entra voluntariamente no mundo do jogo dos deuses com o objetivo de tornar-se como eles. A dança ritual nunca é dirigida exclusivamente à divindade.
Retomamos outra característica considerada muito importante na
pedagogia das DCS’s e que talvez seja um dos grandes diferenciais delas com
relação às danças folclóricas, o distanciamento com o espetáculo. É claro que
no mundo em que vivemos atualmente esse distanciamento se torna muito
difícil, tendo em vista a velocidade com as mídias e redes sociais transformam
tudo em espetáculos. A própria vida pessoal deixou de ser privada passando a
ser um espetáculo nas redes sociais. Com relação ao rito, ao sagrado, a
espetacularização, M-G.Wosien (1996, p.14), adverte que:
(...) quando o rito se transforma em mero espetáculo que tenta exercer influência sobre o homem, ao invés de comungar com Deus, destrói-se e seu poder universal se desintegra. A religião se separa da dança, a arte do trabalho; o sagrado torna-se entretenimento profano e os antigos rituais, relegados para as margens de uma nova vida, degeneram em costumes sociais, transformando-se em jogos e danças folclóricas.
Ao que pudemos perceber, muitas características das DCS’s nos
remetem às danças ancestrais, o que fortalece nossa hipótese de que Wosien,
ao criar sua metodologia de dança, nos possibilita algo que vai além de um
simples revisitar as danças tradicionais dos povos. Esse modo de dançar,
revigorado por seu método, nos proporciona reviver também a tradição da
dança de roda, do ritual e toda a simbologia que permeia esse modo de
dançar, mas também nos reaproxima do sagrado.
4. Conclusão:
Essas primeiras leituras realizadas nos permitem concluir que a dança é
uma manifestação presente na vida do homem desde os tempos mais remotos
e que ao longo dos anos foi se readequando a mudanças sociais ocorridas, no
entanto, não perdeu totalmente suas raízes ancestrais. Essas raízes
permanecem presentes em algumas modalidades de dança em nosso
contexto, que carregam com elas resquícios do tempo que dançar em círculo
era atrelado aos rituais, à busca pelo êxtase e a vivências com o sagrado. Tudo
indica que esse retorno às danças como algo que transcende se reflete na
necessidade do homem em manter suas raízes com a religiosidade e com o
sagrado.
5. Referências: BONETTI, Cristina de Freitas. O sagrado feminino e a serpente: Performance mítica na simbologia das danças circulares Sagradas. (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Goiânia, 2013. Orientação de José Carlos Avelino da Silva. BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. Trad. APPENZELLER, Marina. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BRÜSEKE, Franz Josef. A técnica e os riscos da modernidade. In: BRÜSEKE, Franz Josef. A técnica moderna e o retorno do sagrado. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001, p. 183 – 213. EHRENREICH, Bárbara. Dançando nas ruas: uma história do êxtase coletivo. Trad. Julián Fuks. Rio de Janeiro: Record, 2010. LAMAS, Nadja de Carvalho. Revisitamento “na” e“da” obra de Schwanke. Tese defendida junto a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, em 2005. Orientação de Icleia Maria Borsa Cattani. MINAYO, Maria Cecília S. e SANCHES, Odécio. Quantitativo-Qualitativo: oposição ou complementaridade. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.9, n.3, pp.239-262, 1983. MENDES, Miriam Garcia. A Dança. 2ed. São Paulo: Àtica, 1987. MIRCEA, Eliade. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Trad. FERNANDES, Rogério. São Paulo: Martins Fontes, 1992. OSTETTO, Luciana Esmeralda. Danças Circulares na formação de professores: a inteireza de ser na roda. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014.
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