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[2010, REBEP] Histórias de Movimentos

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Artigo publicado, em 2010, na Revista Brasileira de Estudos de População - REBEP.

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  • R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 193-210, jan./jun. 2010

    * Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo, professor da Faculdade de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia da Universidade Federal do Par, pesquisador do CNPq, membro do Grupo de Pesquisa Demografia e Histria, do CNPq, e do Grupo de Trabalho Populao e Histria, da Abep, e diretor do Centro de Memria da Amaznia (CMA/UFPA).** Mestrando em Histria, pelo Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia, da Universidade Federal do Par, bolsista de mestrado da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Capes e membro do Grupo de Pesquisa Demografia e Histria, do CNPq.

    Histrias de movimentos: embarcaes e populao portuguesas

    na Amaznia joanina

    Antonio Otaviano Vieira Junior*Daniel Souza Barroso**

    No esforo de matizar compreenso da repercusso da presena da famlia real portuguesa no Brasil para alm do Rio de Janeiro, esse artigo tem como finalidade possibilitar uma reflexo acerca dos anos joaninos (1808-1821) na Amaznia. O foco de anlise o fluxo de embarcaes portuguesas e a movimentao migratria entre Portugal e o Par.

    Palavras-chave: Amaznia joanina. Movimentao migratria. Populao no Par.

    Introduo

    No Cais de Lisboa, naquele movimenta-do 27 de novembro de 1807, um raro evento se desenrolava. A Corte, incluindo a rainha e o prncipe, iniciava sua transferncia para o outro lado do Atlntico; viagem que trans-formaria uma simples colnia na sede de um Imprio. Pela primeira vez, desde os tempos dos descobrimentos transocenicos, o Velho Mundo assistia um regente deixar o continente e buscar refgio em terras do Novo Mundo.

    Imaginar a partida da Corte no tarefa fcil, principalmente pelas incertezas quanto ao nmero de pessoas que compunham a comitiva real, embora a verso mais repeti-da oscile entre 10 e 15 mil membros. Outra

    estimativa menos generosa, apontando que inicialmente 211 pessoas mais a fa-mlia real chegaram ao Brasil, em 1808, acompanhadas, no ano seguinte, por mais 233 viajantes. Tambm possvel encontrar uma verso que afirma que seis mil seriam apenas os que seguiram a esquadra naval, tendo ainda que somar a famlia real e os membros da Corte. A discrepncia entre os nmeros arrolados pode ser explicada, fundamentalmente, pela variedade de fontes utilizadas e pelo prprio tratamento analtico dispensado a tais documentos (MALERBA, 2008, p. 170-176). Concomitantemente, essa variao ajuda a pensar que a dramaticidade da viagem da Corte para o Brasil deixou um rastro de possibilidades de investigao... e de verses.

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    Apesar das muitas incertezas, pode-se encontrar testemunhos que destacam as tenses e representaes que cercaram a partida da Corte, como na cena descrita nas memrias do marqus da Fronteira, Jos Trazimundo, que, com cinco anos de idade, teve suas lembranas marcadas pela correria e tristeza do embarque real:

    Minhas tias mandaram logo [chamar] por duas carruagens, que nos levaram a toda a pressa ao cais de Belm, onde reinava a maior confuso e desordem. As bagagens da corte, expostas ao tempo e quase abandonadas, ocupavam desde a rua da Junqueira at o cais; as carruagens no puderam entrar no largo de Belm, porque o Estado do Prncipe, o imenso povo que estava no largo, as bagagens e o regimento de Alcntara, que fazia a guarda de honra, impediam o trnsito. No pudemos, portanto, ver os nossos parentes que partiam... Nunca esquecerei as lgrimas que vi derramar, tanto ao povo como aos criados da Casa Real, e aos soldados que estavam no largo de Belm. (BARRETO, 1932, p.32).

    Entre nmeros imprecisos e memrias recriadas, rumo ao Brasil navegava um perodo marcado por transformaes so-ciais, polticas e econmicas, ao qual, hoje, chamamos de joanino (1808-1821). Anos de histrias de muitas separaes: separao de um prncipe de seus sditos, de uma Corte de sua origem, de uma colnia de sua metrpole, de uma nobreza de parte de sua riqueza, de proprietrios de seus pertences, de soldados de seus generais, de criados de seus senhores, separao de famlias... separao de populaes.

    Entre tantas separaes e imprecises, os nmeros tambm podem ser aliados na tentativa de se enveredar pela dinmica da distncia, considerando as embarcaes e as pessoas que deixaram portos lusitanos e buscaram abrigo no Brasil. Nmeros que ancoram possibilidades de investigao e marcam movimentos que no eram novidade entre Portugal e Brasil, mas que ganharam novos contornos.

    Esse ensaio busca analisar o perodo joanino, considerando o movimento de embarcaes e pessoas, no ir e vir entre Portugal e a Amaznia, mais especificamen-te para o Par. No falaremos de nobres

    atordoados pela distncia da Corte e nem de uma Corte restrita ao Rio de Janeiro.... Falaremos de um porto e de uma populao ao norte da Amrica lusitana, onde, por motivos diferenciados, entre 1808 e 1821, presenciou partidas e chegadas.

    Entre mares e rios, o movimento das embarcaes

    A impresso que a cidade de Belm podia causar em viajantes europeus, entre 1808 e 1821, algumas vezes no era das me-lhores... em outras, surpreendia aos menos otimistas. Mesmo considerando os juzos de valor contidos em algumas narrativas da poca, ainda instigante imaginar a paisa-gem inicial que os navegantes encontravam ao ancorarem no Par. Essas impresses, por exemplo, so registradas no dirio de viagem de Spix e Martius (1817-1820):

    Do lado do mar, avistam-se, perto da margem e quase no meio da fila de casas, a Praa do Comrcio e a Alfndega, atrs da qual surgem as duas torres da Igreja das Mercs. Mais para dentro, eleva-se a cpula da Igreja de Santana e, na parte norte, termina a vista com o Convento dos Capuchinhos, de Santo Antonio; na parte do extremo sul, o olhar repousa no Castelo e no Hospital Militar, a que se juntam o Seminrio Episcopal e a Catedral, esta com duas torres. Mais para o interior das terras destaca-se, naquele lado, o Palcio do Governo. (...) Porm, quando o recm-chegado entra na prpria cidade, encontra mais do que prometia o aspecto exterior: casas slidas, construdas, em sua maior parte, de pedras de cantaria, casas em largas ruas, que se cortam em ngulos retos. (SPIX; MARTIUS,1981, p. 23).

    Em si, a impresso da cidade revela o movimento nos termos comparativos implcitos, seja com cidades europeias, seja com outras localidades do Brasil visitadas pela dupla de viajantes. A surpresa com a solidez das construes tambm revela o movimento, pois a expectativa a antes-sala da chegada.

    Entre as ruas da cidade, uma populao marcada pela migrao deixava suas pega-das. Negros crioulos e de variadas partes da frica, ndios de diversas aldeias, bran-

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    cos de vrios pases, brasileiros de vrias capitanias e filhos de relaes intertnicas compunham um cenrio populacional tam-bm marcado pelo movimento.1 Apesar dos nmeros pouco precisos, verifica-se um crescimento da populao paraense nos anos joaninos, que saltou de 96.000 habitantes, em 1808, para 128.000, em 1823 (RECENSEAMENTO DO BRAZIL, 1922). Nmeros em movimento que auxiliam a perceber uma Amaznia multifacetada que poderia ir alm das construes slidas que causavam surpresas aos viajantes europeus. Uma Amaznia que vivenciava transformaes e expanses populacionais. Uma terra de chegadas e de encontros.

    Encontros, como no caso de um rapaz que, em meio aos ecos da terceira invaso francesa ao territrio portugus, foi embar-cado em 1811 no navio Prazeres & Alegria para ser levado ao encontro de seus pais que j estavam no Par:

    (...) igualmente embarcou no mesmo Navio [Prazeres & Alegria] hum Rapaz de menor idade que aqui [no presdio da Trafaria] se achava cujos os Pais tinham j ido degredados para o Referido[Par] por assim me ser determinado por Aviso Va. Exa. De 16 do corrente [novembro de 1811].2

    Dois pontos merecem destaque nes-se caso: o primeiro refere-se ao navio de transporte, o Prazeres & Alegria, uma embarcao que fez com regularidade a linha Belm-Lisboa entre 1809 e 1833; e o segundo diz respeito s circunstncias associadas partida de Lisboa do jovem rapaz, que envolviam prises e degredo de seus pais. Tais destaques mostram possi-bilidades mltiplas de separao e encontro entre familiares, bem como a importncia e a

    regularidade de embarcaes que, mesmo diante das Guerras Peninsulares, continua-ram unindo dois polos de um aparentemente debilitado Imprio lusitano o que nos faz pensar no perfil dessas travessias.

    E assim, vejamos inicialmente o fluxo de embarcaes que navegavam entre a Amaznia e Portugal. Para analisar esse fluxo, utilizou-se, como fonte de pesquisa, o controle da sada de navios atravs da barra da baa do Guajar, na cidade de Belm. Es-ses registros so instigantes por auxiliarem a compreenso do trnsito fluvial-martimo na regio e por, indiretamente, indicarem a dinmica de visitas de embarcaes ao cais belenense.3

    O porto de Belm foi visitado com re-lativa frequncia nos anos joaninos. Entre 1808 e 1821 foi registrada, na fortaleza da cidade, a sada de 534 embarcaes (mdia de 41 por ano), sendo que algumas como Prazeres & Alegria faziam linha regular entre os dois continentes.

    Das sadas registradas na barra de Belm, aproximadamente 64% ocorreram depois de 1815. Considerar esse ano como referncia importante, pois justamente marca o fim das chamadas Guerras Penin-sulares, o fim da invaso portuguesa na Guiana, a elevao do Brasil categoria de Reino Unido, a derrocada final das tropas napolenicas e o incio de uma relativa pacificao na Pennsula Ibrica. A situao poltica na Europa, em especial na Pennsula Ibrica, parece interferir diretamente no fluxo de embarcaes estrangeiras para Belm mas no de maneira linear.

    Embora seja possvel perceber, de um modo geral, o aumento do fluxo de embar-caes depois 1815, tambm nesse perodo

    1 No geral, h poucos trabalhos que estudem a histria demogrfica do Par; existe uma carncia na rea de estudos migratrios e de pesquisas que explorem taxas de natalidade, fecundidade e mortalidade no sculo XIX. Merecem destaque as pesquisas de Kelly (1984), Moraes (1984), Batista (2004), Cancela (2006) e Cardoso (2008). Atualmente, um projeto em desenvolvimento realiza o levantamento de fontes populacionais para a histria da Amaznia, entre 1750 e 1850. Cf: VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. Histria e Populao na Amaznia: levantamento de fontes demogrficas (1750-1850); financiado pelo CNPq, por meio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa.2 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10915 Ofcio do comandante do presdio de Trafaria, Antnio Elesbo Xavier de Almeida, para o [secretrio de estado da Marinha e Ultramar, conde das Galveias, D. Joo de Almeida de Melo e Castro], sobre os indivduos embarcados no navio Prazeres e Alegria, com destino ao Par, onde vo cumprir as penas de degredo a que foram condenados.3 Arquivo Pblico do Estado do Par, Registros Cdice 645, Srie: Abaixo-assinados da navegao com o comandante da fortaleza da Barra (1808-1832).

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    constata-se a retrao no fluxo de navios portugueses: das 216 embarcaes de origem lusitana que passaram pelo controle da barra de Belm nos anos joaninos, 55,5% foram registradas nos anos de maior tenso entre Portugal e Frana (1808-1815). Ou seja, o perodo de maiores tenses militares, econ-micas e polticas em Portugal durante uma srie de invases francesas no significou a fragilizao da presena lusitana no porto de Belm. Muito pelo contrrio, entre 1808 e 1815, havia a hegemonia de naus portuguesas no cais amaznico.

    A partir desses nmeros, pode-se sus-peitar que os combates na Pennsula Ibrica no foram suficientes para retrair a presena de navios lusitanos na Amaznia. Em parte, isso se explica pela fragilidade e tamanho da marinha francesa, que, envolvida diretamente em conflitos navais com esquadras britni-cas, teve aproximadamente dez vezes mais baixas do que os ingleses (HOBSBAWM, 1982, p.104). As empreitadas martimas francesas no conseguiram impedir a nave-gao de embarcaes inglesas e de seus aliados, como Portugal, no Atlntico.

    Por outro lado, at 1815, foi menor a presena de embarcaes de outras na-cionalidades na baa do Guajar. Nesse sentido, o perodo de pacificao na Europa significou aumento das visitas de embarca-es estrangeiras ao porto de Belm do Par e, ao mesmo tempo, retrao no nmero de visitas portuguesas. Seria um indcio da fragilidade dos laos que uniam o Brasil a Portugal e do fortalecimento da presena de outras naes em territrio amaznico?

    Durante todo o perodo joanino (1808-1821), das 534 embarcaes que ancoraram em Belm, apenas 13 no tiveram seus pases de origem informados. Das 521 em-barcaes que tiveram suas nacionalidades referidas, 216 (41%) vieram de Portugal numa mdia de 16 embarcaes/ano. Esses nmeros expressivos podem oferecer novas tonalidades ao considerarmos o impacto da abertura dos portos brasileiros em 1808 e da ocupao francesa em Portugal.

    Aps 1808, mesmo tendo a possi-bilidade legal de ancoragem de navios de diversos pases, Belm ainda recebia majoritariamente embarcaes lusitanas,

    principalmente nos anos de guerra; navios que vinham de um pas marcado por ocu-paes estrangeiras, produo industrial e agrcola agonizante e uma economia que tentava se restabelecer ainda sob o efeito dessas ocupaes.

    Os anos de ocupao francesa e a presena de tropas inglesas em territrio lusitano marcaram uma desarticulao na produo portuguesa. A partir de 1812, com o arrefecimento das Guerras Peninsulares em algumas regies de Portugal, aes governativas buscaram fornecer agricul-tura sementes, mo de obra e ferramentas para retomar o cultivo da terra que havia sido interrompido pela guerra. O estado da produo industrial somente em 1814 foi avaliado pelo governo portugus (Real Junta do Comrcio), que procurou elaborar estatsticas das fbricas ainda existentes no pas (PERES, 1934, p. 418).

    Esse quadro de recuperao econ-mica, iniciado em 1812 e 1814 e que ainda teve que esperar a pacificao efetiva da pennsula ps-1815, mostra a fragilidade produtiva portuguesa nos anos joaninos. Mas, apesar dessa aparente debilidade, em Belm ainda eram as embarcaes portuguesas que dominavam o trnsito no porto da cidade.

    Entretanto, no se deve ignorar a impor-tncia do Congresso de Viena e da expulso do exrcito francs de Portugal. Logo aps a assinatura do Tratado de Paris, em 1815, houve um aumento significativo no nmero de embarcaes portuguesas em Belm, que passou de 14 navios, em 1815, para 23, em 1816, e 25, em 1817. Mas, a partir de 1818, diminuiu vertiginosamente a presena de navios lusitanos: 15 embarcaes nesse ano, 13 em 1819, 10 em 1820 e 10 em 1821. Ou seja, a efetiva pacificao peninsular instigou, inicialmente, o aumento da pre-sena de barcos portugueses no porto de Belm, mas depois, ainda sob o esforo de reorganizao econmica em Portugal, esse nmero voltou a patamares condizentes aos anos de ocupao francesa.

    Ao longo de todo o perodo joanino, a presena de navios lusitanos no ex-cluiu a vinda de embarcaes de pases, destacando-se a Inglaterra, com 177 barcos,

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    ou aproximadamente 34% to total, gerando uma mdia de quase 14 embarcaes/ano. A presena inglesa no Brasil joanino, em especial quando se pensa o Par, pode ser ressaltada ao se comparar o nmero de navios ingleses com os portugueses. A dife-rena percentual foi de apenas 7% a favor das embarcaes lusitanas, o que induz a considerar a influncia britnica nas ativida-des comerciais que envolviam a regio. Essa perspectiva ganha fora quando lembramos o papel das tropas inglesas na expulso dos exrcitos franceses do territrio portugus. E, mesmo aps a derrocada final do exrcito napolenico, o nmero de embarcaes britnicas no porto de Belm continuou a au-mentar, chegando ao mximo em 1818, com 29 visitas. Esses dados ratificam o esforo e sucesso britnicos em obter o controle total dos mercados coloniais e ultramarinos (HOBSBAWM, 1982, p.101).

    Contudo, Belm no foi alvo da visita apenas de embarcaes lusitanas e ingle-sas: 24,5% dos navios que passaram pelo controle da barra do Guajar tinham origem em outros pases, destacando-se os EUA, com 89 (17%), e, para nossa surpresa, a Frana, com 30 (6%).

    A presena de embarcaes de origem francesa em pleno perodo joanino intri-gante; em fins de 1807, em 1809, 1810 e 1815, Portugal e Frana estavam em guerra

    no continente europeu. Alm disso, em julho de 1808, o governador do Par recebeu ordem rgia para invadir Caiena, possesso francesa na Amrica, numa ocupao que se estendeu at 1815: quadro de conflitos que oficialmente anulou o contnuo con-tato entre a Coroa portuguesa e o Estado francs.

    A anlise do Grfico 1 ajuda a compre-ender o fluxo de embarcaes francesas, num comparativo com as inglesas e portu-guesas. Entre 1808 e 1815, nenhuma nau francesa teve registro de passagem arrolado no porto belenense, perodo em que portu-gueses e franceses estavam em conflito nas Guerras Peninsulares e em Caiena. Com o fim das hostilidades em 1815, as visitas de embarcaes francesas aumentaram, com o primeiro registro em 1816. O nmero alcan-ou seu pice em 1818, com 11 autorizaes concedidas pelo posto de controle da barra da baa do Guajar.

    A partir de 1816, observa-se a diminuio da presena de embarcaes portuguesas, quando comparadas com as inglesas e francesas. Esse decrscimo no fluxo de naus lusitanas pode ser pensado a partir de alguns fatores: os anos de guerra significaram o fortalecimento da dependncia da economia portuguesa em relao Inglaterra; o ps-guerra foi marcado pelo esforo de reorgani-zao interna da economia portuguesa; o fim

    GRFICO 1Visitas de embarcaes no porto de Belm, por pas de origem

    Belm, Par 1808-1821

    Fonte: Arquivo Pblico do Estado do Par, Registros Cdice 645, Srie: Abaixo-assinados da navegao com o comandante da fortaleza da Barra (1808-1832).

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    das Guerras Napolenicas no significou o trmino das tenses polticas que envolviam o governo portugus, ao contrrio, houve intensificao desses conflitos, que desa-guaram, em 1821, na Revoluo do Porto; e a fora da marinha inglesa articulada necessidade de ampliao da rede comercial britnica.

    Os dados da Tabela 1 mostram que o fim das Guerras Peninsulares instigou o aumento das embarcaes estrangeiras no porto de Belm, notadamente inglesas e francesas. Alm disso, em nmeros ab-solutos, os navios da Inglaterra chegaram a superar os de Portugal. Somando-se as naus francesas, inglesas e portuguesas, depois de 1815, tem-se um total de 252 visitas quase a metade de todas as visitas do perodo joanino (534). Destas, 50% eram embarcaes inglesas, 38% portuguesas e 12% francesas. H a efetivao do domnio ingls nas relaes porturias em Belm, bem como uma significativa diminuio da presena lusitana.

    A partir desses dados, verifica-se que, entre 1808 e 1821, o porto de Belm foi frequentemente visitado por embarcaes estrangeiras. E mais, no conjunto das visitas, percebe-se um aumento paulatino das embarcaes de origens inglesas e francesas, o que coincidiu com o processo de pacificao das relaes entre Portugal e Frana, com a dominao comercial inglesa e a efetivao de um cenrio poltico que impelia o retorno da famlia real.

    Ainda na chegada do prncipe regente cidade de Salvador, sua primeira carta rgia

    promulgava a abertura dos portos brasilei-ros a todas as naes amigas. No caso do norte do Brasil, isso significou, na prtica, a preponderncia das embarcaes inglesas. A soma das embarcaes de outras naes EUA (17%), Frana (6%), Holanda (0,3%), Sucia (0,6%) e Dinamarca (0,6%) no al-canava o total referente presena inglesa (34%). Os portos foram abertos s naes amigas, mas a mais amiga era a Inglaterra. Segundo Jobson Arruda (2008), pelo menos em relao ao Rio de Janeiro, essa abertura aconteceu efetivamente em 1800. Ou seja, entre a abertura dos portos fluminenses em 1800, a Carta Rgia que formalizou essa abertura em 1808 e a circulao de embar-caes estrangeiras na Amaznia, existem intervalos temporais significativos, o que tor-na instigante pensarmos as especificidades do fluxo de embarcaes no Brasil joanino.

    Em suma, possvel considerar uma histria do movimento, da origem e do perodo dos navios que chegavam a Belm nos anos joaninos, em que se verifica uma relao direta entre as origens das embar-caes que visitavam o cais belenense e a intensificao dos conflitos peninsulares na Europa, marcando o predomnio das embar-caes lusitanas at a derrocada final do exrcito napolenico e a supremacia inglesa nos anos seguintes. Observa-se, tambm, que a suposta abertura dos portos, pelo menos na Amaznia, s se efetivou depois de 1815, com marcante aumento da pre-sena de naus inglesas e francesas. Das 89 embarcaes dos Estados Unidos, somente 20 ancoraram em Belm antes de 1816. Das

    TABELA 1Visitas de embarcaes no porto de Belm, por pas de origem

    Belm, Par 1816-1821

    Ano Portuguesas Inglesas Francesas

    1816 23 09 01

    1817 25 23 02

    1818 15 29 11

    1819 13 18 02

    1820 10 18 08

    1821 10 29 06

    Total 96 126 30

    Fonte: Arquivo Pblico do Estado do Par, Registros Cdice 645, Srie: Abaixo-assinados da navegao com o comandante da fortaleza da Barra (1808-1832).

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    poucas naus holandesas, suecas e dina-marquesas que vieram ao Par no perodo joanino, nenhuma ancorou antes de 1816.

    Da origem ao destino

    Segundo a Ordem Rgia de agosto de 1808, assinada no Rio de Janeiro, todos os navios portugueses e estrangeiros eram obrigados a relacionarem no apenas seu porto de origem, mas tambm o de destino,4 o que possibilita, por meio dos documentos de controle da barra de Belm, ter uma ideia mais detalhada do fluxo de embarcaes na Amaznia.

    Muitas vezes, Belm era utilizada como escala de viagem, por navios que vinham dos EUA e da Europa. No esforo de anlise dessas escalas, a documentao pesquisa-da apresenta um primeiro problema: 62% das embarcaes no declararam seus destinos finais, o que significa o descum-primento das diretrizes porturias joaninas. Assim, das 534 embarcaes que saram de Belm, 333 no registraram seus destinos fi-nais, que poderiam ser outros pases, outras capitanias ou at mesmo outras localidades do prprio Par. Das 201 embarcaes que indicaram seus portos de destino, 184 (91,5%) eram de origem portuguesa. Das 177 embarcaes inglesas e das 30 francesas que partiram da baa do Guajar, nenhuma declarou seu porto de destino.

    Das embarcaes portuguesas, 26,5% (49) estavam indo para Lisboa ou para a cidade do Porto. Dos navios que declara-ram como destino portos portugueses, 47 registraram que o porto de retorno seria na cidade de Belm. Ou seja, partiam de Belm, ancoravam em Lisboa ou no Porto e depois retornavam para a capital paraense. Assim, pode-se imaginar uma continuidade de contato entre os portos portugueses e o de Belm, como no caso j referido do navio Prazeres & Alegria.

    Ainda considerando as embarcaes portuguesas partindo de Belm e que ti-veram seus portos de destino declarados,

    verifica-se um significativo percentual de viagens cujos destinos eram outras regies brasileiras. Essas viagens internas alcana-vam 31% dos destinos declarados, ou 57 viagens: o Maranho era o mais visitado, com 38 viagens, seguido por Pernambuco com sete. A capital, Rio de Janeiro, resi-dncia da famlia real, s recebeu cinco embarcaes lusitanas que partiram de Belm, a vila paraense da regio do salgado, Bragana, recebeu quatro, a Bahia duas e o Cear uma visita. Assim, 31% dos navios portugueses que saam de Belm dirigiam-se para os portos brasileiros. Somando-se a esse nmero os 26,5% das sadas para portos portugueses, verifica-se que 57,5% das embarcaes portuguesas que partiam com destino para outros portos ancoravam no Brasil ou em Portugal.

    Esse nmero ganha novos contornos quando se consideram as viagens para Caiena, que at 1815 estava sob o domnio portugus. Para l foram mais 48 viagens, ou 26% dos destinos de embarcaes por-tuguesas que partiam de Belm. E, mesmo depois de 1815, a Guiana continuou a rece-ber visitas de naus portuguesas, pelo menos at 1821 (foram 22 visitas), o que pode ser um indicador de que a desocupao militar portuguesa no rompeu imediatamente com os vnculos entre Belm e Caiena.

    Assim, se somadas as partidas de em-barcaes portuguesas com destino a ou-tros portos brasileiros, a portos portugueses e a Caiena, tem-se um total de 83,5% dos destinos de navios lusitanos que passaram pela barra de Belm nos anos joaninos. Ou seja, a navegao portuguesa ficava circunscrita a Portugal, ao Brasil e Guiana. Poucos foram os pases na Europa ou na frica que eram destinos das embarcaes lusitanas que partiam de Belm: Frana (2), Inglaterra (2), Angola (4), Guin-Bissau (3), Cabo Verde (4) e Gibraltar (10).

    Entretanto, necessrio relativizar alguns destes dados. Apesar de se locali-zarem no continente africano, Angola, Cabo Verde e Guin-Bissau faziam parte do Imp-

    4 Arquivo Pblico do Estado do Par, Cdice: 616, Documento: 121.

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    rio portugus. Gibraltar, por sua vez, era pos-sesso inglesa. Ou seja, em ltima instncia, embora os navios partissem rumo frica, seus portos de chegada estavam atrelados a Portugal ou, no caso de Gibraltar, Ingla-terra. Essas regies eram fontes do trfico de populao escrava, exceto Gibraltar. A partir de 1815, todavia, apenas Angola se enquadrava nesse aspecto, pois Portugal e Inglaterra firmaram um acordo que proibia o trfico negro de regies da frica localizadas acima da Linha do Equador.5

    Outro ponto a destacar o nmero re-duzido de viagens Frana (apenas duas), o que pode criar a impresso de que o con-tato entre Belm e a Frana era espordico, mesmo considerando o nmero de embar-caes francesas que partiam do porto de Belm (30). Entretanto, o que os registros mostram que os barcos portugueses preferiam visitar as possesses francesas no Caribe: Ilha de So Bartolomeu (trs viagens), Ilha de So Vicente de Guadalupe (trs) e Martinica (uma). No total foram sete viagens a portos franceses no Caribe, mais do que, por exemplo, as quatro viagens para Angola, as duas para Inglaterra, as trs para Guin Bissau ou as duas para Barbados (colnia britnica na parte extrema oriental do Caribe). Alm das visitas das embarca-es portuguesas ao Caribe francs, ainda podem ser somadas as visitas s Guianas, o que efetivamente destaca o contnuo contato entre o porto de Belm com essas regies sob domnio francs, principalmente a partir de 1815-16.

    Em resumo, por meio dos dados apre-sentados, verifica-se que, no perodo joani-no, alguns elementos podem ser destaca-dos no vir e ir de embarcaes portuguesas atravs do porto de Belm.

    No vir, durante o perodo joanino em geral (1808-1821), Belm recebeu prioritariamente visitas de embarcaes portuguesas ou inglesas. Somente depois de 1815, a despeito da famosa abertura

    dos portos em 1808, a ancoragem de em-barcaes estrangeiras no cais de Belm passou a ser mais diversificada, incluindo navios dinamarqueses, suecos, etc. Noutro sentido, o avanar dos anos joaninos tam-bm significou a diminuio da presena de embarcaes portuguesas na baa do Guajar. E fundamentalmente explicitando a fora da ingerncia econmica inglesa, houve o prevalecimento da ancoragem de embarcaes britnicas aps 1815 que superou a presena lusitana.

    No ir, percebe-se que os navios portu-gueses que partiam de Belm trafegavam principalmente entre Portugal, Brasil, Gi-braltar e Caribe francs. As naus lusitanas tambm visitavam com frequncia o porto de Caiena, mesmo aps a desocupao desse territrio por parte das tropas portu-guesas. As mesmas embarcaes portu-guesas, quando tinham destino para outras partes do Brasil, visitavam prioritariamente o Maranho.

    Assim, pode-se ter uma ideia do trfico de embarcaes que passou pelo porto de Belm durante os anos joaninos. O destaque dado para o fluxo de navios lusitanos, que ligaram extremos de um mesmo imprio. Mas, ainda considerando esse imprio, devemos pensar no perfil da trajetria que marca a sada de pessoas, como no caso do rapaz que embarcou no Prazeres & Alegria.

    Para alm das embarcaes

    No foram s navios que partiam e chegavam no porto de Belm nos anos joa-ninos. A relao entre Portugal e a Amaznia no se resumia ao transporte de mercado-rias e nem ao simples ancoradouro. Pessoas tambm saam de Lisboa ou do Porto rumo capital do Par.

    A documentao que sustenta essa anlise est disposta no Arquivo Histrico Ultramarino Portugus: so as solicitaes

    5 Em 1815, durante o Congresso de Viena, Portugal e Inglaterra firmaram um Tratado que proibia o trfico, para o Brasil, de escravos oriundos de regies sobre a Linha do Equador. Em 1817, este Tratado foi ratificado e acrescido, culminando na autorizao Marinha Inglesa para abordar navios suspeitos em pleno mar e na criao de tribunais mistos no Rio de Janeiro e em Serra Leoa, para julgar embarcaes presas sob a suspeita de praticarem o trfico em regies proibidas.

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    de permisso de viagens feitas aos admi-nistradores de Portugal durante a ocupao francesa e a ausncia da famlia real. Os pedidos esto relacionados sada com destino direto ao Par. Trata-se de uma documentao limitada para o esforo de compreenso do perfil demogrfico desse movimento migratrio, pois no difcil imaginar pessoas fugindo de Portugal sem a autorizao de uma administrao pre-cria e submetida a constantes mudanas de governantes e aos rigores das guerras.

    Apesar dos limites, os dados levantados a partir desses registros so um indicativo do perfil do fluxo de pessoas para Belm do Gro-Par. Entre 1808 e 1821, a mdia foi de 17 pedidos de passaportes/ano, um nmero significativamente inferior s 41 embarcaes/ano que passavam pelo porto de Belm no mesmo perodo. Em 1807, um pouco antes da transferncia da famlia real para o Brasil, foram solicitadas 12 autoriza-es de embarque.

    O ano que mais apresentou pedidos de passaportes foi 1811, com 29 solicitaes. Entre a chegada da famlia real ao Brasil (1808) e o ltimo ano de grandes confrontos

    na pacificao da Pennsula Ibrica (1815), houve 140 (54%) autorizaes expedidas para partida de viajantes de Portugal para o Par. Outras 119 autorizaes, ou 46% dos passaportes expedidos, ocorreram entre 1816 e 1821 (Grfico 2).

    Essa constncia nos pedidos de passa-portes parece interessante, principalmente quando lembramos que o ano de 1815 foi um marco nas transformaes do perfil de embarcaes que frequentavam o porto de Belm. Os navios portugueses diminuram sua presena e os estrangeiros tornaram-se mais significativos e variados, enquanto o fluxo de moradores de Portugal que deseja-vam vir ao Par manteve-se o mesmo.

    Mas, fujamos dos nmeros pela pouca confiabilidade da documentao e nos fixe-mos na anlise das trajetrias individuais, que, mesmo circunscritas a histrias de vida, possibilitam pensar o que foram os anos joaninos para pessoas que deixaram Portugal e chegaram Amaznia. E mais, num movimento de refluxo, as trajetrias individuais podem auxiliar a anlise de tendncias populacionais mais gerais, apon-tando limites e possibilidades documentais.

    GRFICO 2Solicitaes de passaporte ao Par

    1808-1821

    Fonte: Arquivo Histrico Ultramarino. Projeto Resgate Baro do Rio Branco. Par. Solicitaes de passaporte.

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    Franceses ao mar

    Os anos joaninos iniciaram com a parti-da da famlia real para o Brasil, perodo que ganhou contornos dramticos pela invaso das tropas de Junot, que avanaram em territrio lusitano enquanto a Corte partia. Esse momento foi marcado por uma srie de batalhas, invases e escaramuas que envolviam ingleses, portugueses, espanhis e franceses. Conflitos que no repercutiram apenas num cenrio blico e nem se res-tringiram ao joguete de tropas e de seus generais.

    As tenses militares entre Portugal e Frana mexeram com a vida de homens e mulheres. A retaliao feita por Portugal Frana, com a tomada da Guiana, em especial com o remanejamento de tropas e de uma elite administrativa para Caiena, a partir de dezembro de 1808 (REIS, s/d, p. 74), por exemplo, marcou a trajetria de Dona Brbara Benedita, que, em outubro de 1809, solicitou passaporte para partir de Lisboa at Belm e de l at Caiena. No viajaria sozinha, pedia licena para ser acompanhada por trs filhas menores de dez anos, um criado e uma criada. O motivo da partida era justificado pela chamada do marido, ento nomeado governador inten-dente geral da Nova Conquista de Caiena e Guiana Francesa. No tabuleiro de retaliaes joaninas, me, filhas e criados tinham seus destinos atrelados ao Par e a Caiena.6

    E se alguns partiram de Lisboa para Belm do Par, outros fizeram o caminho contrrio. Cristvo Luiz era negociante e ex-granadeiro, nascido em Braga e servia em Belm. Havia dado baixa da infantaria por motivos de sade, por adquirir uma molstia que, segundo os cirurgies, s en-contraria remdio em Lisboa: era necessrio regressar. Seu processo de passaporte apresentava detalhes como a descrio fsica de Cristvo que, com 27 anos de idade, era considerado um homem de esta-

    tura mediana, com cabelo castanho escuro, olhos pardos, rosto claro e redondo.

    A travessia para Portugal foi marcada pelo encontro com uma frota francesa: duas fragatas e um brigue aprisionaram o navio que transportava Cristvo, conduzindo-o para a Ilha da Madeira. No entanto, poste-riormente, mesmo debilitado pela molstia, ele conseguiu fugir para Lisboa. Segundo o prprio Cristvo, foi buscar em Portugal a cura de suas doenas, mas no a encon-trou. E justamente por isso, em agosto de 1812, solicitou ao Regente a autorizao de retorno para Belm. Toda essa trajetria de Cristvo Belm-Ilha da Madeira-Lisboa-Belm durou pouco mais de um ano.7

    Seu caso mostra que, apesar das es-caramuas e da intensificao das tenses durante a Guerra Peninsular, homens e mu-lheres comuns continuavam viajando entre Brasil e Portugal mesmo que algumas vezes se deparassem com aes militares francesas. E, a despeito da ameaa france-sa, no foram poucos os que atravessaram o Atlntico rumo ao Brasil, mesmo antes da derrota final do exrcito francs. Entretanto, mesmo a superioridade da marinha inglesa no foi suficiente para impedir pontuais aes francesas no mar, o que poderia significar o apresamento de embarcaes portuguesas e alteraes nos destinos ori-ginais de seus passageiros (HOBSBAWM, 1982, p. 104).

    Homens em rumo ao Par

    Entretanto, a mais famosa travessia foi da frota que trouxe a Corte, ancorando em Salvador em 22 de janeiro de 1808. As ruas da cidade lentamente foram tomadas por sditos curiosos para verem de perto o prncipe e a rainha.

    Em Lisboa, um dia aps a chegada da Corte Bahia, Joaquim Alves Godinho tambm fazia preparativos de viagem para o Brasil e solicitava permisso para partir

    6 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10791 Requerimento de Brbara Benedita de Tavares Ferreira Osrio, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte com destino cidade de Belm do Par e da para Caiena, juntamente com suas filhas menores e dois criados, para ali se juntar a seu marido.7 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10974 Requerimento do negociante Cristvo Lus de Azevedo para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte para regressar cidade de Belm do Par.

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    de Portugal. Porm, no pretendia aportar na cidade baiana ou no Rio de Janeiro, mas sim na capital paraense. No atravessaria o oceano seguido por centenas de famlias nobres, mas tentava embarcar com seus dois supostos filhos, um criado, duas cria-das pretas e a esposa, dando incio a uma travessia pouco mais discreta. Justificava seu pedido de deslocamento pelo fato de ter morada em Belm e l exercer o ofcio de cirurgio. O intrigante do seu pleito era a pre-sena dos filhos. O passaporte solicitado, em 23 de janeiro de 1808, trazia uma anota-o lateral informando que Godinho partiria com a esposa, Gertrudes Justina, dois filhos, um criado e duas criadas pretas. Mas, estranhamente, durante a reiterao da solicitao do passaporte, uma semana depois, Godinho textualmente afirmou: no tem o Suplicante filhos e nem esperana de t-los, pella sua avanada idade por tanto no pode ser til a esse pas [Portugal].

    Parece que o fato de ter ou poder ter filhos dificultaria a permisso de viagem; a ausncia da prole era apresentada como ponto favorvel para seu deslocamento at o Par. Mas, mesmo assim, no se pode esquecer a anotao na lateral da pgina do primeiro pedido de passaporte, bem como o fato de Godinho fazer referncia sua famlia nos dois documentos: seria apenas a esposa? Envolveria os criados? Os filhos seriam frutos de outra relao da esposa? Perguntas que hoje temos poucas condies de responder.

    Mesmo considerando limites documen-tais, possvel estabelecer um dilogo entre casos particulares e tendncias mais gerais, num esforo de compreenso do significa-do da autorizao de viagem pleiteada por Joaquim Godinho e sua famlia (incluindo os supostos filhos). O primeiro ponto a quantidade. Em todo perodo joanino, foram solicitados 236 pedidos de viagem para o Par (considerando a documentao do Arquivo Ultramarino de Portugal); entretan-to, isso no significa dizer que esse foi o

    nmero de pessoas que deixaram Portugal rumo capitania paraense. No seria ab-surdo imaginar a possibilidade de muitos navios partirem de Lisboa e do Porto sem a permisso das autoridades (principalmente considerando-se os anos de guerra e de ocupao de parte do territrio lusitano), trazendo passageiros no declarados e sem passaporte.8

    Joaquim Godinho pediu apenas um passaporte, mas este no se resumia sua partida; compreendia tambm criadagem, supostos filhos e esposa. No geral, embora tenham sido solicitadas 236 autorizaes de viagem, o nmero dos envolvidos era su-perior pela presena de agregados. Alm dos 236 solicitantes, foram identificados 40 agregados, ou quase 17% de pessoas acrescidas ao total de pedidos. A soma dos solicitantes de passaportes e dos agregados apresenta uma mdia de 21 pessoas/ano tentando viajar rumo ao Par. Esse nmero talvez no seja expressivo, principalmente quando comparado com o provvel contingente que acompanhou D. Joo ao Brasil, mas instiga a problematizar, considerando o perodo joanino, as alte-raes populacionais na Amaznia pelo menos quanto ao quadro migratrio.

    Essa tentativa de ponderar sobre os li-mites das possveis alteraes na populao da Amaznia ganha reforo quando se con-sidera o perfil dessas migraes. Joaquim Godinho pediu autorizao de viagem, uma ao que era predominantemente masculi-na: do total de solicitaes de embarque para o Par, aproximadamente 74% foram feitas por homens. Nesse sentido, pode-se pontuar a maior possibilidade de mobilidade masculina. Sim! Mas, no esqueamos que Joaquim viajaria acompanhado, incluindo a esposa. Ento, pedidos feitos por homens no estariam mascarando o deslocamento de mulheres, como no caso citado?

    Entre as solicitaes masculinas que declararam agregados, apenas oito pe-didos no englobavam cnjuges. Outros

    8 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc.10735 Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a confirmao da concesso de passaporte com destino ao Par; e doc. 10737 Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando licena de transporte para a cidade de Belm do Par.

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    24 casos envolviam homens com suas res-pectivas esposas. Ou seja, de 175 homens que solicitaram licena para viajar ao Par, 18% viajaram acompanhados. Mas, quando comparado ao quadro geral de pedidos masculinos, o caso de Joaquim Godinho se enquadrava no rol seleto de homens que partiram de Portugal com cnjuges.

    A justificativa para o pedido feito por Joaquim traz outras informaes. Sua solicitao, mesmo que se valesse de um jogo retrico para fugir de Lisboa, vinculava sua partida ao fato de retornar para casa. Joaquim explicitou para as autoridades que havia residido em Belm por mais de 16 anos, onde tinha casa de morada. Em Lisboa, ainda segundo o prprio Godinho, ele e sua famlia encontravam-se na maior desgraa pelos fundos do seu giro se acharem no Par, onde exercia a funo de cirurgio, o que significava dizer que ele estava partindo de Lisboa motivado por suas precrias condies de subsistncia. E mais, que o Par era local de sua residn-cia onde no apenas tinha propriedades e exercia um ofcio, mas tambm possua uma base domiciliar. Joaquim Godinho estava retornando para sua morada em Belm do Par.9

    Considerando os motivos explicitados nos pedidos de passaporte formalizados por homens, 20% (35) apontavam o retor-no como justificativa da viagem. Ou seja, eram homens que alegavam j ter residncia no Par. Ainda levando-se em conta as so-licitaes masculinas, somente 0,1% (trs) declarou o empenho de se estabelecer pela primeira vez em territrio paraense.

    To significativo quanto o nmero de retornos, como no caso de Joaquim Gondinho, era o percentual de pedidos associados diretamente navegao. Eram homens que apenas exerciam funes em embarcaes que pretendiam aportar no Par. Esses casos tambm figuravam no

    percentual de 20%, com destaque para a presena de capeles de navio (11%).

    Somando os nmeros de retornos com os dos navegadores, tem-se uma perspectiva que minimiza o impacto da pre-sena da Coroa no processo de migrao para Amaznia. Considerando a populao masculina, 40% dos deslocamentos esta-vam associados ao retorno ou s funes de navegao. A esse nmero somam-se 10% de homens que foram degredados (27% no identificaram o motivo). Tem-se um quadro em que no ganham destaque as empreitadas masculinas empenhadas em garantir pela primeira vez residncia na Amaznia joanina.

    Nem mesmos os homens que viajavam acompanhados de suas esposas, excetu-ando os retornados, poderiam indicar um empenho de se estabelecer num perodo mais duradouro no Par. Dos 24 maridos que durante o perodo joanino partiram de Portugal com suas esposas, 12 (50%) tinham uma razo compulsria comum: o degredo.

    Este era o caso de Jos Antonio Martins, comerciante natural de Setbal. Em novem-bro de 1818, encontrava-se preso na Ribeira das Naus. Deveria embarcar o mais breve possvel para Belm, onde cumpriria sua pena de degredo por cinco anos. Escrevera uma solicitao a D. Joo VI destacando que havia sido condenado injustamente, fruto de acusaes falsas de seus inimigos e, principalmente, pelo mal cumprimento da legislao, pois no seu processo no houve exame de corpo e delito e nem pronncia para sua priso. E mais, deixava nas entrelinhas uma reclamao sobre a partida do soberano, enfatizando que uma autoridade local, D. Miguel Pereira Forjaz, fazia as vezes do rei: Vossa Excelncia que faz as vezes e quem enxuga as lgrimas da saudade do nosso amantssimo (sic) soberano auzente. Entretanto, o objetivo

    9 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc.10735 Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a confirmao da concesso de passaporte com destino ao Par; e doc. 10737 Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando licena de transporte para a cidade de Belm do Par.

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    da solicitao era pedir autorizao para que sua esposa o acompanhasse durante o degredo. E justificava o pedido: e o que mais sente he deixar sua mulher e filhos entregues a hua desgraada runa, por no ter tempo de cobrar (...) dividas que se lhe devem, e nem por vigorarse das graves enfermidades que padece.10

    O caso de Jos Antonio entrava em sintonia com metade dos pedidos feitos por maridos que desejavam levar a esposa como acompanhante: iniciava-se a partir do degredo. E mais, nas dificuldades de sobrevivncia da famlia fracionada, estava a justificativa da ao de Jos Antonio. Um homem que reclamava da sua suposta con-denao, das dificuldades de subsistncia da mulher e dos filhos, e que pensava passar cinco anos no Par acompanhado da famlia.

    Embora o mais comum fosse homens condenados ao degredo solicitarem a companhia da esposa, esses casais no estavam isentos de conflitos conjugais. Ca-sais degredados, unidos muito mais pela di-ficuldade de a esposa subsistir em Portugal, nem sempre permaneciam unidos. Como no caso de Teresa de Jesus, cujo marido cometeu vrios crimes. Sob condenao, o esposo foi degredado para o Par, onde deveria ficar por cinco anos. A esposa, Te-resa, se ofereceu para acompanh-lo. Mas, em 1814, Teresa no suportava mais as agresses impostas pelo cnjuge e entrou com um pedido de autorizao para retornar a Lisboa; justificava a solicitao pelos maus tratos dispensados pelo marido a ela e a um filho menor. Parece que a esposa preferiu a insegurana da subsistncia que poderia se abater sobre ela e o filho a ficar exposta violncia impetrada pelo marido.11

    Mulheres para Belm

    Em 1809, apareciam os primeiros pe-didos demandados por mulheres por meio

    de seus procuradores, como no caso de Maria Luiza de Barros, que em 18 de abril de 1809 solicitou autorizao para deixar Lisboa e ir para Belm do Par. Maria nasceu em Lisboa e pretendia embarcar com sua filha, Ana Luiza, de um ano e nove meses. O motivo alegado era atender ao chamado do marido, Antonio Daniel, que j estava residindo na cidade de Belm. Ou seja, a me e a filha buscavam juntar-se ao marido e pai para estabelecer residncia no Brasil. A chamada feita por Antonio Daniel era um forte indcio do esforo de fincar morada no Par, o que justificaria a reunio da famlia em Belm. O passaporte no deixava claro h quanto tempo Daniel estava no Brasil, mas a pouca idade da filha pode estabelecer uma estimativa.

    O passaporte tambm vinculava o depoimento de trs testemunhas, que atestavam a origem, o motivo e a identi-dade de Maria. As trs testemunhas eram martimos, entre eles dois pilotos. Alm dos depoimentos, o passaporte trazia o aval de dois homens de negcio atestando que Maria partiria para Belm em companhia de sua filha e para se encontrar com o marido. Somada ao depoimento das testemunhas e ao aval dos homens de negcio estava a declarao do capito do Navio Comercian-te, que informava estar levando Maria e sua filha para Belm do Par, com a inteno de uni-las ao marido e pai.

    E se Maria Luiza alegava como justifica-tiva para a viagem o esforo de reunir-se ao esposo, podemos entrever outras mulheres com o mesmo empenho. o caso de outra Maria, a Maria Joaquina dos Santos, em 20 de abril de 1809. Joaquina havia nascido e morado no Porto e pedia para ir a Belm acompanhada por sua me viva e dois filhos, um com seis e outro com quatro anos. Deixaria Portugal levando um grupo familiar mais dilatado, incluindo a me viva. O instigante nesse documento o fato de

    10 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 11439 Requerimento de Jos Antnio Martins, negociante da vila de Setbal, para o rei [D. Joo VI], solicitando licena para que a esposa, Felcia Rosa, o acompanhe na viagem de degredo para o Par, a que fora condenado.11 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 11059 Requerimento de Teresa de Jesus para o prncipe regente [D. Joo], solicitando o seu regresso ao Reino e afastamento de seu marido, Manuel Francisco, condenado ao degredo no Par, e a quem acompanhou na viagem, devido aos maus tratos por este praticados contra a pessoa da suplicante.

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    Maria Joaquina, seus dois filhos e sua me terem embarcado na mesma viagem que levara Maria Luiza e sua recm-nascida filha ao Par.12

    Duas famlias que deixavam Portugal e rumavam para Belm. Essas duas mulhe-res no apenas compartilharam a mesma viagem, mas tambm declararam o mesmo motivo: ficarem juntas dos respectivos ma-ridos e residirem com as famlias no Par onde os cnjuges haviam se estabelecido. O Navio Comerciante foi palco, naquele ms de abril de 1809, do encontro entre Marias. Marias que deixavam Lisboa e rumavam para Belm, Marias que bus-cavam o amparo do marido, Marias que levavam seus filhos rumo a uma distante e mal conhecida regio do outrora poderoso Imprio lusitano e que agora se deparava com a ameaa das empreitadas napole-nicas. No convs do Comerciante, histrias parecidas se encontrariam.

    O caso de Maria do Rosrio tambm instigante, devido s instrues que acompanhavam a carta de chamada, escrita por Zeferino Xavier, seu marido, que havia partido para a capital paraense antes mesmo da ocupao francesa e, em 1805, j morava na cidade. Aps cinco anos dis-tante da famlia, ele achava que chegara o momento de chamar a esposa e o filho. Por isso, Rosrio, a esposa, em 1810, solicitara o direito de viajar para Belm acompanhada de um filho com seis anos de idade. A carta do marido fora escrita em agosto de 1809, no Par; chegara s mos de Rosrio por meio de um comerciante que vinha de Be-lm e logo nas primeiras linhas orientava a esposa para se por em prtica seu avizo.

    Zeferino explicitava sua vontade de buscar pessoalmente Rosrio e seu filho: Eu queria antes ir em lugar da carta (...). Mas, logo justificada a sua impossibilidade: porem este gosto no me possvel tello

    pelo desarranjo em que fica meu giro (sic). O negcio estabelecido por ele no Par ne-cessitava da sua presena contnua, o que na carta aparece como justificativa para a permanncia no Brasil.

    A carta continha claras instrues para Rosrio, como ela deveria proceder ao che-gar em Belm. Primeiro, ela deveria buscar a casa dos irmos Feliciano e Domingos Colares, pois eles providenciariam a ida de Rosrio e de seu filho at onde seu marido estava no Par. Ao compadre que morava em Portugal escrevia tambm, pedindo que este auxiliasse Rosrio a suprir qualquer eventual necessidade de vesturio. A parti-da de Rosrio deveria ser rpida, Zeferino esperava reunir-se com a famlia no Natal. Para tanto, pedia que a mulher embarcas-se logo no primeiro navio e que, se no o fizesse, lhe avisasse em qual embarcaria. Ele teve que esperar, pois, apesar de remeter a carta em agosto de 1809, somente em 15 de janeiro de 1810 o processo comeou a caminhar: passou mais um Natal longe da esposa e do filho.13

    Orientava que a esposa vendesse os trastes que tinha em casa. Embora tivesse dvida sobre a possibilidade da existncia de tais trastes, explicitada numa lacnica frase: se he que ainda tem algum. Essa dvida pode sugerir uma instabilidade econmica na vida de Rosrio, explicada parcialmente pela situao de Portugal aps a partida da Corte, pois houve um expressivo deslocamento de parte de sua base econmica para o Brasil, incluindo a intensidade do comrcio e a circulao de capital. Nesse quadro, Rosrio tinha que sustentar a si e a um filho, e sem ajuda dos pais que j eram falecidos. A venda dos trastes serviria como meio de sustento. No entanto, na mesma carta, o marido orientava Rosrio a no se desfazer da cama, que deveria acompanh-la at o Par era um

    12 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10762 Requerimento de Maria Joaquina dos Santos, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte com destino cidade de Belm do Par, indo ao encontro de seu marido, Manuel Carlos dos Santos.13 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10802 Requerimento de Maria do Rosrio, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte com destino cidade de Belm do Par, acompanhada de seu filho, Tom Jos Xavier, indo ao encontro de seu marido Zeferino Jos Xavier.

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    traste especial, que merecia ser mantido no patrimnio familiar, o que se justifica pela limitada possibilidade de aquisio de moblia no Brasil e seu elevado custo.

    Aps todas as orientaes, o marido reforava o desejo de se reunir com a es-posa: o mais que me resta fica para a vista, que s com ella serei feliz. Encerra a carta mandando lembranas a muitos conheci-dos e parentes que residiam em Portugal, e assinava a carta como: Seu fiel esposo, Zeferino Jos Xavier.

    A carta de chamada instigante por apresentar problemas corriqueiros que en-volviam o deslocamento para a Amaznia. O cuidado com os bens que ficavam em Lis-boa, a debilidade material no Par, a rede de sociabilidade criada em Belm e que deveria amparar a chegada da esposa, a entrada de Zeferino em regies distantes de Belm, o desejo de reencontrar a famlia, os amigos e parentes que continuavam em Portugal... Todos esses elementos integravam uma espcie de cotidiano da separao de um casal que, dos sete anos de possvel vida marital, tiveram durante cinco anos o Atlntico como fronteira.

    Mas, no geral, quais seriam os motivos alegados por mulheres para deixarem Por-tugal em busca da Amaznia? Dos 61 casos que envolviam mulheres, 42% (26) estavam justificados pelo empenho da esposa em acompanhar o marido. Seja um marido que foi degredado, seja, principalmente, um esposo que buscava morar no Par. Como no caso de Zeferino que chamava Rosrio para fazer residncia em Belm. Em outros casos, as mulheres alegavam acompanhar parentes masculinos, como filhos (8%), irmos (6,5%), genro ou pai (3%). Ou seja, 61,5% das partidas das mulheres eram justificadas pelo fato de acompanharem a iniciativa de parentes masculinos.

    Assim, marca-se uma diferena sig-nificativa entre os motivos alegados por homens e por mulheres para alcanarem a Amaznia. Os homens, no geral, declaravam

    retornar para suas moradas no Par (20%) ou acompanhar as embarcaes onde exer-ciam ofcio (20%). No caso das mulheres, o destaque era dado para seus empenhos em seguir o marido. Somente 5% (3) das mulheres alegaram buscar em Belm do Par por iniciativa prpria, embora ampara-da por outros parentes, uma alternativa de sobrevivncia que no estava relacionada diretamente a uma determinao masculina.

    Este o caso da ex-escrava Joaquina Maria, nascida em Angola, com 25 anos de idade e que residia em Lisboa. Em 26 de maio de 1809, solicitou passaporte para retornar ao Par, junto a uma filha chamada Paula Francisca, de pouco mais de quatro anos. Paula era natural do Par, ou seja, sua me estava h pouco tempo morando em Lisboa. Foi para a capital portuguesa acompanhando seu senhor, Jos Monteiro de Carvalho, e por morte deste ganhou a alforria. Forra e em Lisboa, Joaquina pre-cisava garantir a vida naqueles tempos de incertezas, tempos de sditos sem sobera-no. A forra declarou que sua ida para Belm se justificava por no ter condies de se sustentar na capital portuguesa e por contar no Par com o apoio de parentes. O paquete Santo Antonio do Par foi autorizado a levar a ex-escrava e a filha.14

    O outro caso foi de Dona Ana Raimun-da Ges Freire, viva do desembargador Manuel Freire. Em abril de 1817, Dona Ana solicitou o direito de partir de Lisboa, onde morava, para a cidade de Belm. O pedido se estendia a trs filhos menores, um com 11 anos, outro com cinco anos e o mais novo com trs meses de idade; tambm foi solicitado o passaporte para sua criada Maria Gertrudes, uma portuguesa com 20 anos de idade. Dona Ana era viva e, pela idade da filha mais nova, presume-se que recentemente perdera o marido. Mas o que levaria a viva de um alto funcionrio, com seus trs filhos e uma criada, partir de Lisboa para Belm naquele ano de 1817? A explicao talvez resida no fato de Dona

    14 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10766 Requerimento de Joaquina Maria, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte com destino cidade de Belm do Par.

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    Ana ter nascido em Belm do Par, onde provavelmente tinha uma base familiar que lhe garantiria a subsistncia sua e de seus filhos.15

    Cita-se, ainda, o caso de Vitria Maria Teresa, viva e natural do Par. Fora para Lisboa acompanhando o filho que era cirur-gio numa nau real. Aps o falecimento do filho na capital portuguesa, Vitria solicitou, em 1810, autorizao para voltar a Belm com a filha e o neto de seis anos. Alegava que estava passando grandes mizerias e necessidades pela falta de abrigo e amparo do dito seu filho sem terem por quem as sustentem. Vitria formava um intrigante grupo familiar em Lisboa, pois a paraense viva morava com a filha (sem referncia ao genro), com o neto e com o filho que era o provedor da residncia. Continuando seu relato, empenhada em transmitir a gravidade de sua situao, Vitria Maria dizia que no Par tinha dois filhos, que serviriam como base de apoio para que ela, a filha e o neto retornassem para Belm.16

    Considerando o caso da ex-escrava, da viva do desembargador e de Vitria, encontramos os trs nicos processos de passaporte solicitados por mulheres que destacavam como motivo da viagem a vontade de estabelecer vida em Belm. No atrelando suas viagens diretamente a parentes masculinos especficos, como a maioria dos casos, tais mulheres buscavam retornar terra de suas famlias. Embora es-tivessem separadas por estamentos sociais to distantes, a ex-escrava Joaquina Maria, Dona Ana e Vitria tinham como marco do deslocamento inicial o falecimento de seus provedores em Lisboa; seja o senhor, o marido proprietrio ou o filho.

    Os casos citados possibilitam pensar que as viagens de mulheres ao Par no se limitavam a um nico estamento social, envolvendo senhoras casadas acompanha-das de seus filhos, vivas com seus netos, bem como uma ex-escrava e sua filha. A cidade de Belm, em anos joaninos, emergia como possibilidade de residncia e ampa-ro mesmo para poucos , principalmente considerando o estabelecimento de maridos e outros parentes que serviam como base de auxlio. No rastro da famlia real, outras famlias buscaram no Brasil sobrevivncia, residncia e tentaram reconstruir suas vidas, embora, na realidade especfica do Par, esse nmero no seja significativo.

    Mas nem todos vinham Amaznia por vontade prpria. Alguns eram obrigados, pagando punies judiciais com o degredo. Em 27 de novembro de 1811, era remetida pelo comandante do presdio de Trafaria uma lista de condenados que deveriam ser embarcados para o Par, na j referida em-barcao Prazeres e Alegria, que fazia linha regular entre Belm e Portugal, transportando passageiros, plvora, madeira, sal, fio de vela, pedra calcria... e, naquele novembro de 1811, a carga inclua 13 presos.17

    Entre os presos apenas um era homem, os demais eram mulheres. A culpa mais co-mum entre as condenadas era o furto (10), outra era acusada de infanticdio, uma viva acusada de participar da morte do marido e o nico homem arrolado fora acusado de aviso falso. Mulheres livres, outras conde-nadas, esposas de altos funcionrios reais, cnjuges de comerciantes, ex-escravas, prisioneiras... compunham um cenrio com muitas possibilidades daqueles que partiam de Portugal e buscavam o Par.

    15 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 11156 Requerimento de Ana Raimunda de Gis Freire, viva do desembargador Manuel Joaquim Ribeiro Freire, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte para viajar com destino ao Par, levando seus trs filhos menores, Ins Amlia dos Santos, Cipriano Ribeiro Freire e Maria Honorata.16 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10820 Requerimento de Vitria Maria Teresa, viva de Jos de Lima lvares e natural da cidade do Par, para o prncipe regente [D. Joo], solicitando a concesso de passaporte com destino cidade de Belm do Par.17 Projeto Resgate, Par, Arq. Histrico Ultramarino, doc. 10915 Ofcio do comandante do presdio de Trafaria, Antnio Elesbo Xavier de Almeida, para o [secretrio de estado da Marinha e Ultramar, conde das Galveias, D. Joo de Almeida de Melo e Castro], sobre os indivduos embarcados no navio Prazeres e Alegria, com destino ao Par, onde vo cumprir as penas de degredo a que foram condenados.

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    Eplogo

    Mesmo em poca joanina, com as incertezas rondando um Portugal em meio a avanos e recuos de invases estrangei-ras e a um regente afastado, o ir e vir no cessou entre a Amaznia e os portos lusi-tanos. No rastro da Coroa, alguns partiram para o norte do Brasil, por variados motivos. O instigante no reduzirmos essas aven-turas migratrias a uma nobreza perdida, nem a homens de guerra. preciso consi-derar outros agentes sociais, que insistiam em procurar o Brasil. Alis, tambm preciso pensar a presena da famlia Real

    alm do Rio de Janeiro, relativizando seus desdobramentos.

    E, nesse caleidoscpio, a Amaznia emerge como possibilidade de imagens. Seja por continuar a receber embarcaes de origens portuguesas e estrangeiras, seja por se apresentar como possibilidade de sobrevivncia ou expurgo de crimes para moradores de Portugal. Os anos joaninos no significaram o isolamento da regio e, mesmo no auge dos confrontos peninsula-res europeus, muitas embarcaes e pes-soas buscaram o porto da cidade de Belm. Anos de movimento, de embarcaes, populaes e... histria em movimento.

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    Resumen

    Historias de movimientos: embarcaciones y poblacin portuguesas en la Amazonia juanina

    Con el objetivo de matizar la comprensin de la repercusin de la presencia de la familia real portuguesa en Brasil, ms all de Ro de Janeiro, este artculo tiene como finalidad posibilitar una reflexin sobre los aos juaninos (1808-1821) en la Amazonia. El centro del anlisis es el flujo de embarcaciones portuguesas y el movimiento migratorio entre Portugal y Par.

    Palabras-clave: Amazonia juanina. Movimiento migratorio. Poblacin en Par.

    Abstract

    Stories of movements: Portuguese boats and population in the 18th-century Amazon

    In order to better organize the understanding of the effects of the presence of the Portuguese Royal Family in Brazil beyond Rio de Janeiro, this article discusses the period of the Brazilian reign of King John VI (1808-1821), in the Amazon region. The focus of the analysis is the in-and-out of Portuguese vessels and the migratory processes between Portugal and the then Province of Par.

    Keywords: 19th-century Amazon. Migratory movements. Population in Par.

    Recebido para publicao em 21/09/2009 Aceito para publicao em 23/01/2009