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História Unisinos 15(1):60-70, Janeiro/Abril 2011 © 2011 by Unisinos – doi: 10.4013/htu.2011.151.07 Casamentos portugueses em uma capital da Amazônia: perfil demográfico, normas e redes sociais (Belém, 1891-1920) Portuguese marriages in an Amazonian capital: Demographic profile, rules and social networks (Belém, 1891-1920) Cristina Donza Cancela 1 [email protected] Daniel Souza Barroso 2 [email protected] Resumo. Entre o final do século XIX e o início do XX, a Amazônia foi destino de um intenso fluxo migratório, onde se destacou a presença portuguesa. Neste artigo, analisa- mos o perfil dos “casamentos portugueses”, destacando sua representatividade e a idade ao casar, atividade exercida e origem dos noivos. Procuramos investigar a relação entre a idade de casamento e o gênero, além da existência de um comportamento homogâmico deste grupo. Perquirimos também contratos de dotação e tensões associadas à bigamia e ao adultério. Trabalhamos com a interseção entre migração, gênero, geração e status social, utilizando registros de casamento e processos criminais. Palavras-chave: casamento, portugueses, migração, Amazônia. Abstract. Between the late 19 th and early 20 th century, the Amazon region was the destination of an intense migration process, which included a significant number of Por- tuguese. is article examines the profile of the “Portuguese marriages,” highlighting their representativeness and age at marriage, occupational activity and origin of the couple. It explores the relationship between the age of wedding and gender, besides the existence of a homogamic behavior among this group. It also analyzes dowry contracts and tensions associated with bigamy and adultery. e authors discuss the intersection between migra- tion, gender, generation and social status, using records of weddings and criminal lawsuits. Key words: marriage, Portuguese, migration, Amazon region. 1 Doutora em História pela Univer- sidade de São Paulo (USP). Mestre em Antropologia Social pela Uni- versidade de Campinas (UNICAMP). Professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Progra- ma de Pós-Graduação em Antropolo- gia e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Vice-líder do grupo de pesquisa “População, Família e Migração na Amazônia” (UFPA/CNPq). 2 Mestrando em História pelo Pro- grama de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de mestrado da CAPES. Membro do grupo de pesquisa “População, Famí- ia e Migração na Amazônia” (UFPA/ CNPq).

[2011, História Unisinos] Casamentos Portugueses Em Uma Capital Da Amazônia

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Artigo publicado, em 2011, na Revista História Unisinos.

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  • Histria Unisinos15(1):60-70, Janeiro/Abril 2011 2011 by Unisinos doi: 10.4013/htu.2011.151.07

    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia: perfi l demogrfi co, normas e redes sociais (Belm, 1891-1920)

    Portuguese marriages in an Amazonian capital: Demographic profi le, rules and social networks (Belm, 1891-1920)

    Cristina Donza [email protected]

    Daniel Souza [email protected]

    Resumo. Entre o final do sculo XIX e o incio do XX, a Amaznia foi destino de um intenso fluxo migratrio, onde se destacou a presena portuguesa. Neste artigo, analisa-mos o perfil dos casamentos portugueses, destacando sua representatividade e a idade ao casar, atividade exercida e origem dos noivos. Procuramos investigar a relao entre a idade de casamento e o gnero, alm da existncia de um comportamento homogmico deste grupo. Perquirimos tambm contratos de dotao e tenses associadas bigamia e ao adultrio. Trabalhamos com a interseo entre migrao, gnero, gerao e status social, utilizando registros de casamento e processos criminais.

    Palavras-chave: casamento, portugueses, migrao, Amaznia.

    Abstract. Between the late 19th and early 20th century, the Amazon region was the destination of an intense migration process, which included a signifi cant number of Por-tuguese. Th is article examines the profi le of the Portuguese marriages, highlighting their representativeness and age at marriage, occupational activity and origin of the couple. It explores the relationship between the age of wedding and gender, besides the existence of a homogamic behavior among this group. It also analyzes dowry contracts and tensions associated with bigamy and adultery. Th e authors discuss the intersection between migra-tion, gender, generation and social status, using records of weddings and criminal lawsuits.

    Key words: marriage, Portuguese, migration, Amazon region.

    1 Doutora em Histria pela Univer-sidade de So Paulo (USP). Mestre em Antropologia Social pela Uni-versidade de Campinas (UNICAMP). Professora da Faculdade de Histria da Universidade Federal do Par e do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia, Progra-ma de Ps-Graduao em Antropolo-gia e Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais. Vice-lder do grupo de pesquisa Populao, Famlia e Migrao na Amaznia (UFPA/CNPq).2 Mestrando em Histria pelo Pro-grama de Ps-Graduao em Histria Social da Amaznia, da Universidade Federal do Par (UFPA). Bolsista de mestrado da CAPES. Membro do grupo de pesquisa Populao, Fam-ia e Migrao na Amaznia (UFPA/CNPq).

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    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia

    A construo deste artigo o resultado de nossa participao em uma rede de pesquisadores acerca da temtica da imigrao portuguesa para o Brasil,3 que incentivou a formao de bancos de dados construdos a partir dos registros civis de casamento, inventrios e processos criminais e civis, envolvendo imigrantes lusos vindos para o Par, entre o fi nal do sculo XIX e o incio do XX.4

    A necessidade de reunirmos esta documentao acerca da presena portuguesa em terras paraenses ocorreu tambm em funo desse fl uxo migratrio ser constante e numericamente expressivo no caso do Par, assim como verifi cado em vrias provncias brasileiras. Para termos uma ideia desta presena, no que diz res-peito cidade de Belm, em 1872, o recenseamento apontava a presena de 12% de estrangeiros, sendo que, desse total, os(as) portugueses(as) correspondiam a cerca de 80% dos indivduos (Brazil, 1872). No recenseamento de 1920, o percentual de estrangeiros correspondia a 7,5% do total da populao de Belm, sendo que, destes, 68% eram portugueses(as) (Brazil, 1926). Portanto, os lusos correspondiam a um expressivo contingente dentre os imigrantes, que pudemos encon-trar tambm em outras fontes, como os registros civis de casamento, onde, dos 4.202 casamentos levantados, em 819 deles (19,5%) havia pelo menos um cnjuge portugus. Em outras palavras, isto signifi ca dizer que em Belm, entre 1908 e 1920, aproximadamente um em cada cinco casamentos contava com a presena lusa entre os nubentes.

    Diante da expressiva visibilidade desses imigran-tes nas fontes trabalhadas, propomo-nos a analisar, em um primeiro momento do texto, suas alianas conjugais tomando como recorte o gnero, a idade ao casar e a atividade exercida, tendo por base uma srie de registros civis de casamento. Deste modo, discutiremos as possveis diferenas no perfi l das alianas matrimoniais de acordo com o gnero, o que signifi ca verifi car se, entre os homens e as mulheres portugueses(as), havia especifi cidades no que se refere escolha dos nubentes em funo da ori-gem, ou ainda, variaes na faixa etria, na idade mdia de casamento e na diferena de idade dos noivos e noivas lusos quando do casamento com seus conterrneos, ou com pessoas de outras naturalidades/nacionalidades. Analisaremos tambm as ocupaes e atividades a que estas pessoas estavam associadas, sempre cruzando com o marcador de gnero.

    J em um segundo momento, observaremos as relaes conjugais, a partir dos contratos de dotao presentes nos inventrios destes imigrantes ou de seus cnjuges, que nos ajudam a pensar as relaes familiares e o patrimnio que envolviam o casamento, examinando, para alm das questes legais do contrato, as estrat-gias de proteo dos bens dos indivduos e da famlia, particularmente nas situaes que envolviam relaes assimtricas de riqueza e prestgio social. Por fi m, os processos criminais de bigamia e adultrio nos permitem chegar mais prximo das normas, das redes sociais e de reciprocidade, mas tambm das tenses que envolveram alguns dos relacionamentos estabelecidos por estes ho-mens e mulheres portugueses(as) em terras paraenses.

    Gnero, gerao e atividade: o perfi l do casamento

    Iniciando nossa anlise, podemos dizer, tomando por referncia os registros de casamento civil ocorridos em Belm, que os homens portugueses predominaram em relao s mulheres portuguesas. Basta indicarmos que dos 819 casamentos anteriormente mencionados, contamos com um total de 769 noivos portugueses, en-quanto que as mulheres se restringiram somente a 253 nubentes. Este dado, de algum modo, reitera o padro eminentemente masculino desta migrao j apontado em diversos trabalhos (Sousa et al., 2009; Scott, 2002). Isto nos leva a uma segunda questo, relativa nacionalidade das pessoas com quem estes imigrantes estavam se casando, observando as alianas aqui efetivadas, cujas preferncias matrimoniais em torno da origem do cnjuge podem ser verifi cadas no Grfi co 1.

    Tomando por base o recorte de gnero, podemos perceber que os homens portugueses casaram-se prefe-rencialmente com mulheres paraenses, e apenas 25,5% deles casou-se com uma conterrnea. O percentual de casamento com mulheres de outras nacionalidades, onde prevaleceram as espanholas, tambm foi expressivo, cor-respondendo a 18%.

    Em relao ao casamento envolvendo migrantes nacionais, importante destacarmos que a presena destes indivduos era bastante signifi cativa no perodo, afi nal, com a expanso da produo gomfera, muitos migrantes deslocaram-se para a capital paraense em busca de traba-lho e oportunidades. Embora os nmeros desta migrao,

    3 Embora nossa entrada nesta rede remonte ao ano de 2008, os pesquisadores se renem desde o ano de 2005 e vm realizando seminrios alternados em Portugal e no Brasil, envolvendo diversas universidades e arquivos brasileiros e portugueses. Dentre os ttulos j publicados a partir dos Seminrios destacamos: Martins e Sousa (2006); Sousa e Martins (2008); Matos et al. (2008); Sousa et al. (2009); Sarges et al. (2010).4 Estas documentaes encontram-se sob a guarda do Centro de Memria da Amaznia da Universidade Federal do Par, no fundo do Poder Judicirio, onde tambm se encon-tram os registros civis do Cartrio Privativo de Casamentos de Belm, cuja srie completa se inicia no ano de 1908 e segue at o ano de 1970.

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    ofi cial ou no, variem muito em funo das investigaes e de novas fontes consideradas,5 alguns dados apontam para esta presena expressiva de migrantes nacionais, em Belm. Assim, em trabalhos anteriores com os registros de casamento religioso de uma das principais parquias da cidade, a igreja de Nossa Senhora de Nazareth, obser-vamos que o percentual de noivos paraenses era de 30%, enquanto aqueles de outras naturalidades brasileiras, alcanava cerca de 50% (Cancela, 2006). Trata-se, por-tanto, de um dado importante como indicativo do fl uxo expressivo destes migrantes nacionais que aportaram em Belm, sendo a maior parte deles vinda dos estados do Cear e do Rio Grande do Norte. Contudo, voltando aos dados dos registros civis de casamento, destacamos que, a despeito desta presena, se pensarmos o percentual desses migrantes nacionais que vieram a se casar com indivduos portugueses, ela no alcana 20% dos enlaces, sendo as alianas preferenciais realizadas com noivas de naturalidade paraense, que corresponderam a 46% dos casos pesquisados.

    Dando sequncia nossa anlise, examinaremos o perfi l das alianas entre as mulheres lusas, destacando ini-cialmente que, diferentemente dos homens, elas casaram-se preferencialmente com seus conterrneos (80,5%). Apenas 9,5% delas casou-se com paraenses, 5% com migrantes na-cionais e tambm 5% com homens de outras nacionalidades, com destaque, novamente, para os espanhis.

    Como j mencionado, parte desse perfi l encon-trado no casamento, com a maior presena de homens,

    pode ser compreendido em funo de esta imigrao ter sido majoritariamente masculina. A menor presena de mulheres lusas pode ser um indicativo importante para en-tendermos o nmero expressivo de casamentos de homens portugueses com mulheres paraenses. O que no signifi ca dizer que estes homens preteririam as noivas brasileiras, caso houvesse um nmero expressivo de conterrneas suas em Belm. Em outros trabalhos, mostramos como muitas vezes o casamento com mulheres locais era extre-mamente vantajoso para esses imigrantes recm-chegados, particularmente os comerciantes (Cancela, 2009). Alm disto, em alguns processos criminais podemos ter acesso a acusaes de mulheres portuguesas contra seus maridos por abandono e amasiamento envolvendo brasileiras.

    Uma outra questo ainda deve ser observada. Como destacado, as portuguesas no representaram, no universo dos casamentos que pesquisamos, sequer um tero da quantidade de homens portugueses. De alguma forma, alm do nmero menos expressivo, poderamos tambm considerar que as portuguesas que migraram para Belm j eram casadas, seja do ponto de vista formal, ou mesmo, atravs de uma relao teda e manteda, o que justifi caria sua presena mais tmida nos registros de casamento.

    As unies teda e manteda, mesmo que no signifi cativamente, faziam-se presentes principalmente entre os imigrantes de nacionalidade portuguesa, quando tomamos por base o conjunto das alianas civis ocorridas em Belm, entre 1908 e 1920. Ao todo, encontramos 16 referncias a unies em que os nubentes declaravam viver

    Grfico 1. Preferncias matrimoniais por origem do cnjuge (Belm, 1908-1920).Graph 1. Matrimonial preferences according to spouses origin (Belm, 1908-1920).

    5 Sobre a migrao nacional ao Par, cf. Nozoe et al. (2003) e Lacerda (2010).

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    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia

    em amasiamento. Nestas relaes foi constante a presena de, pelo menos, um ou dois fi lhos, e a alegao de que o casamento, a partir de ento ofi cializado perante o Estado, justifi cava-se pelo interesse em legitimar os fi lhos desta unio, como to comumente afi rmado pelos nubentes.

    Um terceiro aspecto a ser analisado diz respeito idade com que estas pessoas estavam se casando (Grfi co 2).

    Aqui, mais uma vez o recorte de gnero fun-damental. Pelo grfi co acima, observamos que 1,2% das mulheres casou-se com menos de 15 anos, enquanto entre os homens, nenhum consrcio foi efetivado nesta faixa etria. Do mesmo modo, o nmero de mulheres que vieram a se casar entre 15 a 19 anos de idade (27%) expressivamente maior que os homens na mesma faixa (1,4%). Poucas mulheres estabeleceram enlaces com 15 anos; nesta idade, encontramos apenas 04 portuguesas. Na mesma faixa etria, predominaram aquelas que se consorciaram entre 16 a 19 anos.

    Na faixa de idade entre 20 a 24 anos, o mesmo padro se mantm, fi cando o nmero de mulheres casadas 10% acima dos homens. Contudo, quando avanamos nas faixas etrias seguintes, vemos justamente a tendncia con-trria, qual seja, um nmero menor de mulheres casando-se depois de 30 anos (16,9%) em relao aos homens (38,6%). Isto signifi ca dizer que poucas mulheres casavam-se aps os 30 anos de idade: uma realidade bem diferente para os homens, cujos enlaces crescem nesta faixa etria.

    Obviamente, a distribuio, por gnero, dos casa-mentos portugueses atravs de faixas etrias remete-se, essencialmente, queles que se casavam em primeiras np-cias e que no mantinham quaisquer relaes anteriores, a exemplo de viver teda e manteudamente ou sob matrim-nio religioso. Mas, no geral, nos casamentos portugueses os nubentes casavam-se em idades que muito difi cilmente passariam dos 40 anos, exceto em pouqussimos casos que se enquadram nas situaes que expusemos h pouco. interessante ressaltar, nesse sentido, que parte considervel (aproximadamente 40%) das mulheres portuguesas que se casaram em Belm, entre 1908 e 1920, encontrava-se ainda sob ptrio poder (a partir de 1917, poder familiar).6

    Outra questo a ser observada em relao idade de casar diz respeito ao fato de as mulheres portuguesas, em seus locais de origem, casarem mais tarde, diferentemente do perfi l encontrado em Belm, onde os casamentos ocorre-ram preferencialmente at os 25 anos de idade (Scott, 1999).

    Quando analisamos a mdia de idade de casamento destes imigrantes portugueses, vemos que entre os homens ela era de 29,5 anos e, entre as mulheres, de 24 anos, sen-do ambas maiores que a mdia geral encontrada entre os nubentes das demais origens, aqui inclusos paraenses e mi-grantes de outras regies do Brasil e de outros pases, que foi de 27,8 anos para os homens e 22,6 anos para as mulheres.

    Verifi cando a diferena etria entre os cnjuges em funo da origem, observamos que, no caso dos casamentos

    Grfico 2. Distribuio percentual dos nubentes portugueses por faixas etrias e gnero (Belm, 1908-1920).Graph 2. Percentage distribution of Portuguese spouses according to age and gender (Belm, 1908-1920).

    6 O decreto 181, de 14 de janeiro de 1890, que promulgou o casamento civil no Brasil, previa a idade mnima de casamento para homens e mulheres como, respectivamente, 16 e 14 anos. Entretanto, caso os nubentes fossem menores de idade (21 anos) e ainda no emancipados, estariam sob ptrio poder, necessitando da autorizao paterna (em determi-nados casos, exercida pela me) para a celebrao do casamento. O casamento antes das idades mnimas era permitido apenas em algumas ocasies, a exemplo de reparar o mal de um crime de estupro, mas, neste caso, os nubentes poderiam viver em separao de corpos at alcanarem a idade mnima permitida, conforme determinao do Juiz de rfos. O Cdigo Civil de 1917, no tocante normatizao do casamento, praticamente ratifi cou o decreto 181, porm aumentou a idade mnima do casamento (agora, 18 e 16 anos para, respectivamente, homens e mulheres) e regulou situaes e mecanismos que elidiriam o exerccio do ptrio poder, doravante denominado de poder familiar.

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    entre noivos e noivas portuguesas, esta diferena era de 4,8 anos, a favor dos homens. Este resultado menor do que aquele encontrado entre os enlaces envolvendo homens portugueses e mulheres paraenses, que foi de 6,1 anos, cain-do para 5,5 nos casamentos de portugueses com mulheres brasileiras das demais naturalidades. A menor diferena de idade encontrada ocorreu entre o casamento de homens portugueses com mulheres de outras nacionalidades, que alcanou quatro anos. Portanto, no destacamos alteraes signifi cativas da diferena de idade de casamento neste universo em funo da origem dos nubentes.

    Esta diferena de idade no variou muito entre as mulheres portuguesas. Como vimos, 80% delas casaram-se com seus conterrneos e as demais com pessoas de outras naturalidades/nacionalidades. Se a diferena de idade de casamento com os homens portugueses foi de 4,8 anos, ela subiu para 6,6 anos nas alianas com homens de outras origens, aqui inclusos todos os brasileiros e os demais estrangeiros.

    Por fi m, chegamos ao quarto recorte na anlise das alianas conjugais, relativo s atividades em que os noivos e noivas portuguesas se encontravam envolvidos.

    Ao chegarem a Belm, os migrantes portugueses inseriam-se no mercado de trabalho desempenhando uma variedade de atividades, concentradas, principalmente, nos setores secundrio e tercirio da economia: eram alfaiates, carpinteiros, artistas, comerciantes, mdicos, advogados etc.

    Em percentual muito maior do que de pessoas de outras origens, os homens portugueses estavam ligados a ativi-dades comerciais, seja no papel do comerciante em si, ou apenas como auxiliares e empregados no comrcio. No era incomum, inclusive, que estes migrantes trabalhassem pre-ferencialmente em estabelecimentos de outros portugueses.

    Ao refl etirmos especifi camente sobre os casamen-tos em que havia portugueses, ou seja, acerca dos 819 registros, temos, atravs da descrio das ocupaes que estes migrantes exerciam, uma ideia de sua vivncia social e profi ssional no cotidiano de Belm. Desse modo, nas ocupaes que, essencialmente, percebemos sua presena em sua plenitude. Dando asas nossa imaginao, pos-svel pensarmos em portugueses comprando e vendendo suas mercadorias, fabricando pequenos artesanatos, advo-gando, construindo casas e prdios pblicos etc.

    Voltemos, agora, nossa ateno anlise das ocu-paes; mas, antes, importante afi rmarmos que a fi m de padronizarmos as ocupaes encontradas, valemo-nos da codifi cao socioprofi ssional proposta por Marclio (2000). Obviamente, devido codifi cao ser relativa a outro contexto (sc. XVIII e incio do XIX), fi zemos al-gumas alteraes com vistas a contextualiz-la e adequ-la, a contento, s nossas refl exes.

    Analisando a tabela, vemos que os portugueses que se casaram em Belm, entre 1908 e 1920, exerciam ocupaes predominantemente concentradas no setor

    Tabela 1. Ocupaes masculinas, por setores de atividades (Belm, 1908-1920).Table 1. Masculine occupations according to sectors of activity (Belm, 1908-1920).

    Setores/Atividades Quantidade Percentual

    Primrio (Agricultura/Pesca) 12 1,50%

    Secundrio 123 16%

    Txtil, vesturio e alimentao 26

    Construo civil 5

    Industrial 7

    Madeira e mobilirio 10

    Outros artesanatos 75

    Tercirio 600 78%

    Atividades comerciais e comerciantes 529

    Profisses liberais 12

    Transporte e comunicao 30

    Igreja 1

    Outros servios 28

    No declaradas 34 4,50%

    TOTAL 769 100%

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    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia

    tercirio, com grande destaque s atividades comerciais. As atividades comerciais, em si, representavam um rol de atividades no qual se incluam: comerciantes, empregados e auxiliares no comrcio, negociantes, ambulantes, livreiros, caixeiros e guarda-livros. Como estas atividades foram ar-roladas por cartorrios, torna-se difcil mensurarmos com exatido as diferenas entre uma e outra. As terminologias empregadas para designar as profi sses dos nubentes eram imprecisas e analiticamente limitadas, fi cando difcil us-las como marcador de condio social, pois no temos como saber, pelos registros civis de casamento, se se tratava de um proprietrio de uma grande fi rma de importao de borracha, do dono de uma padaria, de um empregado em loja comercial ou mesmo de um comerciante ambulante, como encontramos em um dos registros. Esta indetermi-nao no que se refere ao detalhamento da ocupao destes nubentes no nos permite, portanto, inferir com segurana a sua condio social, ou mesmo um possvel padro de comportamento de pessoas com status social aproximado, limitando igualmente o cruzamento da condio social com as diferenas etrias e as preferncias de alianas em funo da origem, a fi m de perceber possveis padres de comportamento entre indivduos com maior ou menor fortuna e status social. At mesmo porque as ocupaes esto invisibilizadas na expresso fl uida de comerciantes, que corresponde a 68% das atividades dos portugueses e nos diz muito pouco sobre a condio de classe desses homens, em que tipo de negcio, emprego ou servio es-tavam efetivamente envolvidos, e o contingente de riqueza e patrimnio que encerravam, dados fundamentais para inferncias sobre seus lugares de pertena na sociedade.

    Alm disso, podemos dizer que Belm era, h algum tempo, uma cidade essencialmente comercial. Viajantes e naturalistas que passaram pela cidade no transcorrer do sculo XIX, a exemplo de Spix e Martius, Alfred Wallace, Daniel Kidder e Henry Bates, confi rmam, atravs de seus relatos, a grande presena das atividades comerciais no cotidiano de Belm.

    O famoso gegrafo Elise Reclus, em viagem a Be-lm em 1893, relatou que a cidade se tornara uma grande cidade comercial, a quinta da Repblica brasileira. Alm disso, Reclus tambm destacou o papel dos portugueses no comrcio, afi rmando que eles detinham em suas mos parte do comrcio internacional e parte do comrcio a retalho (Reclus, 1900). Afi nal, como ocorrera em outras localidades, uma vez que as terras se encontravam na posse de famlias proprietrias tradicionais, o comrcio tornava-se a alternativa mais vivel aos migrantes recm-chegados capital.

    Em relao s mulheres percebemos a invisibilida-de ainda mais sintomtica de seu trabalho. Possivelmente, os registros de casamento, assim como os prprios recen-

    seamentos da poca, no possuam grande preocupao ao descrever as atividades exercidas por mulheres, o que se agrava ainda mais devido ao diminuto mercado de trabalho formal acessvel para os segmentos femininos, reduzido a poucas ocupaes.

    As atividades das mulheres portuguesas concen-travam-se nas chamadas ocupaes domsticas (86%). Nesta categoria, no temos como mesurar aquelas que eram remuneradas das que no o eram. Na verdade, sob esta categoria esconde-se uma multiplicidade de ativida-des como lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, criadas, enfim, inmeras profisses exercidas pelas mulheres que, por ocorrerem no mbito domstico, e, ainda, pela desvalorizao das atividades por elas realizadas, fi cam invisibilizadas, difi cultando sua anlise e criando uma categoria genrica servios domsticos que pouco nos revela (Samara e Matos, 1993).

    Ainda em relao ao trabalho das mulheres, no encontramos portuguesas exercendo, por exemplo, o magistrio uma ocupao feminina, poca, bastante comum. Estudos anteriores verifi caram que o mercado de trabalho para estas migrantes no era amplo, pois havia em Belm poucas lojas ou fbricas que ofereciam empregos a mulheres, assim como tambm se verifi cou a ausncia de ofertas de emprego em tabernas, mercearias, padarias ou lojas, excetuando-se as costureiras (Fontes, 1993). Assim, podemos afi rmar que o mercado domstico era a princi-pal opo para as migrantes portuguesas, em especial, de camadas sociais mais baixas.

    Uma vez traado o perfi l dos noivos e noivas portugueses quanto idade ao casar e ocupao, bem como s alianas estabelecidas por eles, conclumos esta primeira parte de nosso artigo e passamos a analisar as relaes matrimoniais sob outras perspectivas, destacando normas, tenses e dissabores vividos no estabelecimento e na vivncia destas relaes.

    Se at o momento nos aproximamos dos casamen-tos atravs dos dados quantitativos e seriais, convidamos o leitor a perceb-los, a partir de agora, atravs do cotidiano, dos comportamentos e das cenas que nos ajudam a com-preender os valores envolvendo estas alianas, ampliando nosso olhar atravs das normas que envolvem os contratos antenupciais de dotao e da lente dos autos processuais.

    Casamentos e contratos de dotao antenupcial

    Alguns dos casamentos presentes nos registros acima mencionados foram antecedidos por contratos de dotao. importante ressaltarmos que esta documen-tao foi encontrada nos inventrios post-mortem e que,

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    apesar deste perodo no se caracterizar pela expressiva presena de contratos antenupciais (Nazzari, 2001), encontramos 15 deles nos inventrios, sendo a maior parte pertencente a casamentos envolvendo estrangeiros, dentre eles, os portugueses.7 Nos contratos antenupciais, os bens do casal fi cam incomunicveis, e tudo aquilo que os cnjuges viessem a receber no poderia ser partilhado pelo(a) vivo(a). Os bens da noiva, por exemplo, fossem aqueles j existentes ou adquiridos durante a vigncia do matrimnio, ou mesmo aqueles dados pelo noivo em forma de dote, poderiam voltar famlia ascendente da nubente, no caso de falecimento ou separao. Neste caso, caberia ao marido apenas administrar os bens da esposa, no detendo sua posse. De algum modo, este acordo per-mitia que a famlia da noiva fi casse menos vulnervel s oscilaes dos negcios e atividades do marido.

    Por outro lado, nos contratos antenupciais en-volvendo separao dos bens, quando o marido dotava a esposa, esta no tinha direito ao legado do esposo, rece-bendo apenas o valor relativo ao dote acordado no incio do matrimnio que, muitas vezes, era inferior aos bens adquiridos ao longo de todo o casamento.

    Dentre aqueles que levaram a efeito estes contratos, destacamos o comerciante Ignacio Jos da Silva, nascido na freguesia de Canedo, na cidade do Porto, e casado com Anna Augusta Corra de Freitas Silva, com que assinou um contrato antenupcial prevendo a separao total de bens e a dotando com uma casa situada em Belm, tra-vessa Sete de Setembro. Igncio possua fi rma comercial, diversas aes de banco e um sobrado. Tambm podemos citar o proprietrio Antonio Gonalves Vallena, de 55 anos de idade, natural da Freguesia de So Victor, da cida-de de Braga, no Reino de Portugal, e casado com Th ereza Delfi na de Arajo Valena, tambm natural de Braga, em Portugal, com quem assinou um contrato antenupcial de separao de bens. Outro caso o do comerciante por-tugus Julio Lambert Pereira, proprietrio da loja Mundo Elegante, localizada na Avenida Joo Alfredo, onde eram vendidas fazendas, modas e miudezas. Casado com uma brasileira, Julio deixou cinco fi lhos e seu monte-mor foi orado em 107 contos de ris. Ao casar com uma para-ense, Julio, com 31 anos de idade, assinou um contrato de dotao antenupcial, em 1886, sendo sua noiva, a paraense Olvia Pereira da Motta, de 21 anos de idade. Nele, fi cava acordado que haveria entre os noivos a separao total de bens seguida de disposio dotal. Isto signifi cava dizer que os bens do casal fi cavam incomunicveis, ou seja, tudo aquilo que por herana, doao, legado, enfi m, qualquer

    aquisio gratuita ou onerosa que os cnjuges viessem a receber no poderia ser partilhada pelo(a) vivo(a). Contudo, na escritura previa-se a quebra da incomunica-bilidade dos bens, se o casal viesse a ter fi lhos. E, de fato, ao falecimento de Julio no ano de 1913, Olvia fi cou com a metade do legado do marido, enquanto seus cinco fi lhos herdaram a outra metade. Dentre os seus bens fi guravam: fi rma comercial, prdios, casas, terrenos, aes e aplices. Na partilha, os bens de Olvia, que compuseram o seu dote, quando do casamento, tambm vieram colao para serem partilhados (CMA, 1913).

    De algum modo, estes acordos parecem ter sido mais frequentes nas relaes envolvendo noivos em con-dies sociais assimtricas, do ponto de vista da riqueza e do prestgio social. Ao que parece, o acordo antenupcial com separao de bens funcionava no sentido de preservar o patrimnio individual e familiar do cnjuge de maior fortuna. O fato de muitos destes acordos terem envolvido imigrantes portugueses, na sua totalidade com atividades no comrcio, pode sugerir o cuidado da famlia da noiva em assegurar os bens frente aos possveis reveses dos negcios do marido. Por vezes, estas noivas vinham de famlias tradicionais paraenses, ou de famlias de comer-ciantes tambm estrangeiros h mais tempo instalados na provncia, constituindo o acordo uma forma de se ater frente a um migrante muitas vezes recm-chegado capital (Cancela, 2009) .

    Por outro lado, podemos pensar tambm que o acordo era uma estratgia importante destes noivos co-merciantes para assegurarem a comunho do rico legado, somente aps a consumao do casamento atualizada na presena de uma prole. Estas situaes nos ajudam a compreender os comportamentos, normas e estratgias matrimoniais envolvendo estes imigrantes portugueses em Belm.

    Tenses amorosas: bigamia e adultrio

    importante que se observe que, muitas vezes, no apenas os perfi s e as normas que norteiam as alianas matrimoniais nos ajudam a enxergar as prticas cotidianas, os comportamentos e os valores normativos do casamento. As situaes de tenso e confl ito tambm se constituem em indicadores importantes para compreendermos estes relacionamentos. Muitos desses confl itos podem ser ob-servados a partir de processos criminais que nos auxiliam

    7 O sistema de casamento portugus, atualizado no Brasil, estabelecia a comunho total de bens, que poderia no ser adotada pelo casal, sendo, nesses casos, necessrio assinar uma escritura de contrato antenupcial. Esses sistemas matrimoniais estavam contemplados nas Ordenaes Filipinas, que permitiam aos cnjuges o seu estabelecimento. J o Cdigo Civil Brasileiro de 1916 que estabelecia quatro espcies de regime de bens no casamento: (a) comunho universal; (b) comunho parcial; (c) separao; (d) dotal. Podem os contrahentes escolher um desses regimes, ou modifi c-los, e combin-los entre si, de modo a formar uma nova espcie (Miranda, 1927, p. 115).

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    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia

    na visualizao da experincia amorosa desses imigrantes, suas estratgias de sobrevivncia e escolhas permeadas por alianas, ajuda mtua e construo e rompimento de reciprocidades. As ocorrncias confl ituosas atualizadas nestes processos, embora se tornem uma fronteira que muitas vezes pontua a interrupo da relao de troca entre os casais e as famlias, possibilitam um olhar sobre as circunstncias que envolviam o relacionamento amoroso.

    o que podemos inferir do processo de bigamia do portugus Jos dOrnellas da Silva, 29 anos, empregado no comrcio, casado na Ilha Terceira, em Aores, com Maria Salete Neves, simplesmente perante o sacerdote catholico (CMA, 1912). Trs anos depois, j na capital paraense, casou-se novamente, desta vez civilmente , com a espanhola Maria Pilar Eyro, menor de 20 anos de idade, que se ocupava de servios domsticos. Segundo ele, o casamento com a espanhola Pilar se deu com urgncia em funo de ele t-la defl orado. Apesar dos pais de Pilar serem falecidos, ela mesma cuidou para que Jos com ela se casasse, ameaando denunci-lo polcia caso no o fi zesse, pois era de menor idade.

    Para realizar o segundo casamento Jos inverteu seus sobrenomes, embora alegasse t-lo feito pelo fato de assim tambm ser conhecido pelos amigos, no tendo com isso tido a inteno de burlar a Lei. Da mesma forma, afi rma que, em relao ao segundo casamento,

    justifi ca perante o juiz de casamento o seu estado de sol-teiro porque eff etivamente o e pois o casamento catholico no e valido aqui nem em Portugal onde desde logo do comeo do regime republicano foi separado a igreja do estado e existindo o casamento civil (CMA, 1912).

    Um dos scios da fi rma onde Jos dOrnellas tra-balhava, Acesino Maximiano dos Santos, 31 anos, casado e comerciante, sabendo ler e escrever, declara que sabia que o empregado era casado, tanto que a fi rma teria lhe adiantado dinheiro para trazer a esposa de Portugal para a capital paraense. E ainda que, ao descobrir o fato de Jos dOrnellas ter novamente se casado com uma rapariga hespanhola tendo at o nome trocado, o teria despedido.

    A perda do emprego ocorreu 15 dias depois do segundo casamento. Ao ser despedido, Jos dOrnellas viajou para Baio a fi m de arrumar trabalho, dizendo para Maria Eyro, sua segunda esposa, que teria sido mandado embora da fi rma em que trabalhava pelo motivo da mesma no gostar de empregado casado.

    Jos dOrnellas foi para Baio em busca de traba-lho, pois poderia ter o apoio de seus primos que l resi-diam. Na viagem, ele levou a primeira esposa portuguesa, Maria Salete. A descoberta da bigamia se deu quando um indivduo comunicou a Maria Eyro que o pai de Jos

    dOrnellas havia falecido em Aores. Com o propsito de informar o fato ao marido que se encontrava em Baio, ela procurou a casa onde este morara na capital, fi cando sabendo, por pessoas que l estavam, que o mesmo viajara com sua famlia para Baio.

    O processo no tem julgamento, porquanto no se sabe o que dele resultou. Mas vrias podem ser as questes trabalhadas a partir dele. Dentre elas, destaca-se o fato de envolver o defl oramento de uma menor. exceo do primeiro casamento de Jos dOrnellas, o casamento com Maria Eyro aconteceu somente na esfera civil, frente a um juiz de casamento, no tendo, portanto, o carter sacramental. Sobre essa questo interessante como Jos dOrnellas usa esse dado em sua argumentao de defesa, alegando que no haveria incompatibilidade entre os dois casamentos que realizara, sendo um no civil e outro no catlico, pois a Igreja havia se separado do Estado, o que fazia com que os dois processos fossem diferentes. Na sua narrativa, o matrimnio religioso no teria validade jurdica para o Estado e, portanto, ele no teria incorrido no crime de bigamia. E, de fato, o processo no apresentou julgamento.

    Neste caso do portugus Jos dOrnellas, a ausncia do passaporte teria facilitado a desinformao sobre seu estado matrimonial. Segundo informou, ao migrar, no te-ria precisado daquele documento, pois viajara na primeira classe do navio, no sendo inquirido sobre seu passaporte. Entretanto, Jos dOrnellas tinha famlia e amigos no Par que estavam a par de seu casamento com uma mulher tambm portuguesa, tendo o patro o ajudado a traz-la para o Brasil. Todos estes fatos poderiam ter difi cultado uma possvel deciso sua de abandonar a primeira esposa portuguesa, frente presso da famlia e de conhecidos, e at mesmo do patro. Por outro lado, a espanhola Maria Eyr no tinha familiares, o que poderia diminuir a presso sobre o marido para com ela permanecer casado, o que de fato fez, abandonando-a ao deslocar-se para Baio. Vemos como as redes de reciprocidade e ajuda mtua funcio-naram para o portugus Jos dOrnellas, tendo recebido ajuda para trazer a esposa de Portugal e, em um segundo momento, seus primos o teriam acolhido em Baio para que pudesse se estabelecer com a famlia.

    O caso seguinte trata-se de um processo crime en-volvendo um casal de portugueses recm-chegados a Belm e um patro, tambm portugus. Avelino Xavier da Costa era caixeiro e residia travessa Sete de Setembro, em cima da fi rma onde trabalhava, pertencente a Jos Osrio, que tambm l morava. Avelino era casado h trs anos com Rosa Maria de Jesus, de 23 anos e ocupada em prendas domsticas, tendo chegado ao Par em fi ns de setembro de 1896. Ele veio com a esposa em busca de um trabalho em Manaus. No entanto, no vapor, conhecera Augusto Bello,

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    que j estivera em Belm e indicou-lhe uma pessoa que poderia ajud-lo a conseguir um outro emprego. Foi ento que ele fora apresentado a Jos Osrio, um comerciante portugus de 31 anos de idade, casado, mas cuja mulher e sobrinho haviam sido mandados para a Europa, pelo que fi cou morando sozinho na casa em que habitava. Nessa oportunidade, Jos Osrio ofereceu emprego e moradia ao casal, fi cando a esposa de Avelino encarregada de realizar os servios domsticos e de cozinhar.

    Destaca-se, nesse caso, como a rede de sociabili-dade funcionava entre conterrneos, indicando pessoas que podiam ofertar emprego e moradia aos indivduos em deslocamento para cidades desconhecidas. Os movimentos migratrios, em geral, so caracterizados pela exixtncia de complexos laos interpessoais que incluem o parentesco, a amizade ou mesmo apenas a conterraneidade (Massey, in Truzzi, 2008). No caso da migrao lusa para o Par, o pioneirismo migratrio de alguns portugueses, sobre-tudo daqueles bem-sucedidos, certamente serviu como elemento de atrao para o estabelecimento permanente de seus conterranos em Belm, para onde a migrao foi direcionada e se fez mais presente.

    No entanto, por vezes, os relacionamentos cons-trudos a partir de auxlios e ajuda mtua desembocavam tambm em situaes de confl itos e tenses. Foi assim que Avelino comeou a desconfi ar das atitudes de seu patro em relao sua esposa, passada apenas uma semana coabitando na mesma residncia. Segundo ele narra em seu depoimento na chefatura da polcia:

    Mario Ozrio, menor sobrinho de [ Jos] Cunha Ozrio, e seu caixeiro, disse ao respondente que quando elle sahia, o patro chegava a porta, olhava para os lados e quando mais no avistava subia para o andar superior, onde estava a mulher do respondente, della voltava passado pouco tempo, cinco ou dez minutos, e de la voltava muito vermelho (CMA, 1896).

    s 2 horas e 30 minutos do dia 19 de outubro de 1896, com pouco menos de um ms vivendo no Par, Ave-lino foi a mando de Jos Osrio ao Trapiche Belm receber uma partida de borracha, entregando-lhe, para tanto, uns conhecimentos. Conforme combinado com o menor que l trabalhava, Avelino fi cou aguardando na esquina da rua, esperando o aceno do mesmo, que logo se deu, ao que ele voltou ao estabelecimento, subindo as escadas de mansinho:

    Donde se viu o quarto de seu patro Cunha Ozrio viu sua mulher deitada na cama deste, elle deitado sobre ella, esforando-se para copular e ella opondo-se dizendo me deixe se no eu grito e fechando as pernas que Ozrio procurava abrir com os joelhos.

    O respondente fora de si, indignado, precipitou-se pela escada abaixo indo ter ao quarto onde vinha saindo sua mulher pondo-lhe uma das mos, agarrando com a outra Cunha Ozrio (CMA, 1896).

    Logo em seguida, Avelino desceu para pegar uma faca e feriu a mo do patro, que declarou em seu depoi-mento que, neste momento, o empregado teria lhe dito estar despedido, portanto podia fazer o que entendesse, seguindo para a porta do estabelecimento onde se achava muita gente.

    O adultrio foi negado pelo patro, Jos Osrio, por Mario, o menor que trabalhava de caixeiro na fi rma e tambm pela esposa, Rosa Maria, que afi rmou que

    estava a depoente a pontear meias em uma das salas que da para a rua quando apareceo Cunha Ozrio que lhe perguntou porque no tinha ido hontem a festividade de Nossa Senhora de Nazareth, a respondente disse-lhe que no fora p ter seu marido ido com Jos Marques (rapaz que dorme em casa) a casa da lavadeira buscar um pouco de roupa e nada mais lhe perguntou Ozrio, retirando-se a respondente para a varanda, que a respondente no sentio seu marido entrar, somente dando por elle quando agarrou-a e emppurrou-a. Que Cunha Ozrio vae durante o dia poucas vezes ao andar superior onde mora a respondente, a no ser por volta das duas horas da tarde mais ou menos, em que sempre sobe para descansar (CMA, 1869).

    Tem-se, assim, uma situao de confl ito gerada entre pessoas com relaes assimtricas de hierarquia e relacionamento. A princpio, a relao de troca estabelecida com o menor e caixeiro Mario, sugerida por Avelino, foi rompida frente ao confronto com o proprietrio da mes-ma, a julgar pelo fato dele ter negado em seu depoimento ter dado qualquer informao a Avelino, conforme este havia narrado. A coabitao entre o patro e o casal de empregados gerou a desconfi ana e facilitou a ocorrncia do confl ito amoroso. A proximidade dos corpos, a moradia e a alimentao partilhada geraram a fl uidez da intimidade, que, se no ocorreu de fato, ao menos foi assim represen-tada pelo marido.

    A fl exibilidade da moradia impunha uma maior exposio e limites privacidade de trabalhadores como Rosa Maria e Avelino, que moravam com o patro nos altos da fi rma onde trabalhavam. As condies materiais levavam necessidade de arranjos domiciliares que pas-savam pela coabitao, pela convivncia com parentes, amigos, agregados e, nesse caso em particular, patres. Com isso, situaes de confl ito e tenso poderiam ser acionadas, e, de fato, neste caso o foram, pelo suposto

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    Casamentos portugueses em uma capital da Amaznia

    relacionamento do proprietrio da fi rma com a esposa de seu empregado.

    Nesta situao, tem-se um casal de imigrantes portugueses provavelmente atrados pelas oportunidades de trabalho abertas pela economia da borracha, emprega-dos em uma fi rma que lidava com a venda desse produto, que tiveram sua convivncia matrimonial marcada pela violncia e pela desconfi ana, gerando o rompimento das relaes de trabalho intrinsecamente ligadas moradia e unio conjugal.

    Consideraes fi nais

    Estas histrias nos ajudam a chegar mais prximo do cotidiano desses portugueses na Belm da borracha, de seus envolvimentos amorosos, de suas alianas ma-trimoniais. Os nmeros indicados no incio do trabalho foram fundamentais para termos um quadro desta migrao, os pretendentes preferenciais, a idade com a qual homens e mulheres se casaram, e as ocupaes aqui exercidas. Destacou-se o maior nmero de casamentos de portugueses com as mulheres nacionais em detri-mento das conterrneas, enquanto entre as mulheres lusas o casamento preferencial ocorreu com homens portugueses, evidenciando a importncia do recorte de gnero na anlise matrimonial. Este recorte se mostrou igualmente fundamental anlise da idade ao casar dos nubentes, onde encontramos a tendncia do casamento feminino em faixas etrias mais baixas em relao ao masculino. Os homens, alm de iniciarem a vida conjugal ofi cialmente com mais idade, atualizavam estes enlaces com idades avanadas, acima dos 40 anos; um padro pouco encontrado entre as mulheres. O envolvimento destes imigrantes com atividades ligadas ao comrcio fi cou da mesma forma evidente nos dados acerca das ocupaes, apontando para a difi culdade dos recm-chegados em se estabelecer como proprietrios de terra e gado, encerrada nas mos das famlias proprietrias tradicionais da provncia, algumas delas com presena e posse que remontavam ao perodo colonial. Da mesma forma, a anlise das ocupaes nos permitiu perceber a invisibilidade do trabalho feminino homogeneizado em termos como ocupaes domsticas, que no esclarece as funes que estas atividades englobavam, ou mesmo se eram ou no remuneradas.

    Os contratos nupciais, por sua vez, nos ajudaram a chegar mais prximo das normas legais, dos acordos de dotao que se constituram em indicativos importantes para percebermos de que modo pessoas com diferenas de renda e de prestgio atualizaram estes acordos para assegurar o portflio familiar de eventuais migrantes aven-tureiros, sendo bastante signifi cativo que os portugueses

    tenham prevalecido no nmero de contratos encontrados, em detrimento dos brasileiros, ou mesmo de outros estran-geiros. Como em uma via de mo dupla, a famlia de uma noiva poderia, com o contrato antenupcial, resguardar-se de possveis reveses do negcio de um marido comerciante, e um marido enriquecido poderia manter seu patrimnio frente famlia da noiva, particularmente nos casos em que houvesse a ausncia de fi lhos(as).

    Os arranjos matrimoniais continuaram a ser discutidos nos fragmentos do cotidiano abertos pelos dois processos aqui tratados. Neles, pudemos observar como a rede de conterrneos e de familiares era acionada para conseguir emprego, estabelecer domiclio e chamar a famlia de Portugal para Belm. Todas estas situaes marcaram relaes de apoio e de reciprocidade entre os imigrantes, mas tambm no deixaram de encerrar tenses, cobranas e confl itos, evidenciando as redes sociais e as normas que envolviam esses comportamentos. Foi um pouco do universo dos(as) portugueses(as), de seus casa-mentos e cotidianos vividos em uma capital amaznica, que procuramos apresentar neste artigo.

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    Submetido em: 11/08/2010Aceito em: 14/09/2010

    Cristina Donza Cancela Universidade Federal do ParInstituto de Filosofia e Cincias HumanasAv. Augusto Corra, 1, Guam66075-110, Belm, PA, Brasil

    Daniel Souza Barroso Universidade Federal do ParInstituto de Filosofia e Cincias HumanasAv. Augusto Corra, 1, Guam66075-110, Belm, PA, Brasil