Upload
sass79
View
231
Download
6
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Around the critical approaches of the urban space: the different senses of the urban periphery
Citation preview
UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA
JANANA DE MORAES KAECKE
EM TORNO DAS ABORDAGENS CRTICAS AO ESPAO URBANO: os diferentes sentidos da periferia
VERSO CORRIGIDA
So Paulo2014
UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA
EM TORNO DAS ABORDAGENS CRTICAS AO ESPAO URBANO: os diferentes sentidos da periferia
VERSO CORRIGIDA
Dissertao de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde
So Paulo2014
Apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para defesa do ttulo de mestre.
Agradecimentos
Agradeo FAPESP pela bolsa de pesquisa;
Ao Rodrigo Valverde pelo profissionalismo e pela generosidade com que me orientou nessa pesquisa;
Aos professores Fbio Betioli Contel e Marcelo J. Lopes de Souza, pelas contribuies decisivas oferecidas no momento da qualificao, e ao professor Everaldo Batista da Costa, pela leitura atenta e pelos comentrios elucidativos no momento da banca de defesa;
Ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana e ao Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo, seus professores e funcionrios. Em especial, aos professores Ricardo Mendes Antas Jr., pela tima acolhida como sua estagiria, e Elvio Rodrigues Martins, pela importncia de seus cursos na graduao e no mestrado em minha formao; e s tcnicas de laboratrio Ana Elisa Rodrigues Pereira e Clenes Louzeiro;
Ao Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em especial aos funcionrios da Biblioteca PPGG;
Aos familiares, pela pacincia e pelo apoio: Madalena, Milson, Rosria, Reinaldo, Sueli e Sidney. Deixo aqui tambm os agradecimentos aos tios Carlos e Rosely e aos primos Bruno e Rafael.
Ao Thomas, companheiro de todos os momentos, que comemorou e sofreu comigo a cada novo passo;
A todos os amigos que colaboraram, cada um sua maneira, para a manuteno da sanidade mental ao longo desses anos. Em especial (em ordem alfabtica) ao Caio e seus assuntos que eu quase nada entendo, mas que admiro e reconheo a importncia; aos Carlos, Nbia, Gladius, Fernando e Joyce, pela convivncia prazerosa e pela torcida para que essa dissertao tivesse um bom desfecho; ao Gabriel, pelo otimismo e pela confiana que sempre passa em nossas conversas; Lgia, cujos encontros so sempre proveitosos; Natallye, sua me e seu pai, pela acolhida calorosa que me ofereceram; e ao Thiago e ao Fellipe, pelas sugestes de leitura e pelas cpias de material bibliogrfico que muito ajudaram.
KAECKE, Janana de Moraes. Em Torno das Abordagens Crticas ao Espao Urbano: os diferentes sentidos da periferia. 2014. 242f. Dissertao de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
Resumo
Essa pesquisa tem como objeto de estudo a formao do conceito de periferia urbana na Geografia brasileira ao longo da dcada de 1980. Para isso, so valorizados como filtros, a funcionalidade estrutural atribuda realidade perifrica e a discusso acerca da centralidade da distncia enquanto um elemento definidor da periferia urbana. Isso pensado tendo como referncia o movimento de renovao disciplinar interno Geografia ocorrido na dcada de 1970 e que, no contexto brasileiro, foi acompanhada pelo fortalecimento dos estudos marxistas e pela preocupao em produzir um conhecimento socialmente engajado. Outro aspecto valorizado em nossa dissertao o dilogo estabelecido entre a Geografia urbana com outras cincias sociais, em especial a Economia, a Sociologia e o Urbanismo, na formulao de suas pesquisas sobre a periferia urbana. Tais disciplinas iniciaram os estudos sobre tais realidades num momento anterior Geografia, sendo referncias importantes para os estudos realizados pelos gegrafos. por meio desse caminho que buscamos assinalar a negao da perspectiva ecolgica da noo de periferia e a ascenso de explicaes fundadas na totalidade social, que so organizadas em duas propostas interpretativas. Em uma delas, valoriza-se a periferia enquanto o local de reproduo da fora de trabalho; na outra, a periferia urbana pensada pelo vis do consumo e da produo do espao. Para atingir tal objetivo, usamos como fontes de pesquisa teses e dissertaes defendidas nos Programas de Ps-Graduao em Geografia da Univerisdade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de So Paulo, escolhidas pela centralidade que possuem na produo acadmica nacional. A potencialidade em trabalharmos com teses e dissertaes est no fato de serem estudos empricos, que nos permitem refletir sobre o uso dos modelos para compreender as realidades analisadas.
Palavras-chavePeriferia urbana; pobreza urbana; Geografia urbana brasileira; dcada de 1980.
Abstract
This research has as it object the formation of the concept of urban periphery in brazilian Geography along the 80's. For that aim, are valued as filters, the structural functionality assigned to the peripheric reality and the discussion about the centrality of the distance as a defining element of the urban periphery. This is tought as has been a reference with the movement of disciplinary review inside of Geography that happened in the 70's and, in the brazilian context, was followed by the improvement of marxist studies and by the concern in the production of a knowledge socially committed. Another valued aspect in our dissertation is the dialogue between urban Geography with another social sciences, in special with Economy, with Sociology and the Urbanism, in the formulation of your researches about urban periphery. These sciences started their studies about this realities in a moment before the Geography, been important references to the studies made by the geographers. In this pathway we search point the denial of the ecologic perspective of periphery and the ascention of explications supported in social totality, that are organised into two interpretative proposals. In one of they, are valorised the periphery as long the place of the reproduction of the workforce; in the other, the urban periphery is seen by the perspective of the consumption and the production of space. To reach this goal, we used as research sources theses and dissertation presented in Geography graduation programs in Federal University of Rio de Janeiro and in the University of So Paulo, choosen by the centrality of this universities in the nacional academic production. The potentiality of working with theses and dissertations is founded in the fact that these sources was empiric, that allow us to think about the application of models to understand the studied realities.
KeywordsUrban periphery; urban poverty; brazilian Geography; 80's.
SumrioIntroduo.............................................................................................................................................7Captulo 1. A GEOGRAFIA EM TRANSFORMAO E SEUS IMPACTOS NA RENOVAO CRTICA DA GEOGRAFIA URBANA BRASILEIRA....................................................................19Captulo 2. A TOTALIDADE SOCIAL COMO BASE PARA O CONCEITO DE ESPAO NA GEOGRAFIA CRTICA....................................................................................................................33Captulo 3. O DILOGO DA GEOGRAFIA URBANA BRASILEIRA COM OUTRAS CINCIAS SOCIAIS.............................................................................................................................................55Captulo 4. PERIFERIA DO CENTRO: DA PERSPECTIVA ECOLGICA SUA NEGAO. .68Captulo 5. A PERIFERIA E A ESFERA DA PRODUO: A REPRODUO DA FORA DE TRABALHO....................................................................................................................................104
5.1 O subdesenvolvimento nacional como motor da periferizao das cidades brasileiras........1105.2 A periferia urbana enquanto lcus da reproduo da totalidade social nacional...................1295.3 A importncia da localizao intraurbana na definio de periferia......................................1485.4 Cultura e poltica: concretizaes da totalidade social..........................................................161
Captulo 6. A PERIFERIA E A ESFERA DO CONSUMO: A REPRODUO DO ESPAO URBANO.........................................................................................................................................179
6.1 Os diferentes contedos sociais abarcados pelo conceito de periferia urbana......................1856.2 Os diferentes territrios abarcados pelo conceito de periferia urbana...................................212
REFLEXES FINAIS......................................................................................................................230REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................................239
Introduo
A proposta desse trabalho que iniciamos agora teve como ponto de partida questes
no respondidas em nosso trabalho de concluso de graduao. Naquele momento, nos
debruamos sobre o Pagode da 27, uma roda de samba semanal e com um forte vnculo
comunitrio que ocorre no bairro do Graja, periferia da zona sul da capital paulista. Ele
estava inserido em um movimento mais amplo chamado por Alessandro Dozena1 de
movimentos de samba, que so rodas de samba que ocorrem em lugares pblicos ou
abertos, como ruas e bares, que carregam um compromisso social com o lugar onde
realizado e um discurso de resgate das razes do samba, que segundo o autor, ganham fora
em So Paulo a partir da dcada de 1990. Apesar da palavra resgate estar associada a um
certo conservadorismo, a compreenso comumente aceita sobre esses movimentos que
eles esto associados a um processo de renovao do samba, colocado como uma
manifestao cultural da periferia. Desse modo, o argumento que o samba sempre esteve
vinculado com as classes populares, que ao se dirigirem em massa para as franjas da
metrpole, carregaram junto suas manifestaes culturais2.
Ao mapearmos os movimentos de samba existentes na Regio Metropolitana de
So Paulo, encontramos em 2010 mais de 20 registros, cujas localizaes variavam de
bairros inequivocadamente perifricos, como Graja; municpios da metrpole, como
Jundia; at bairros mais centrais, como o Brs. Contudo, ainda que suas localizaes
intraurbanas sejam variadas, todos estavam situados em locais marcadamente pobres, sem
acesso s mercadorias do lazer e com problemas sociais e urbanos tpicos do que
chamamos de lugares perifricos. Na segunda parte da pesquisa, analisando propriamente a
realidade onde estava inserido o Pagode da 27, os microdados do Censo de 20003 relativos
ao rendimento salarial daqueles moradores expressavam uma heterogeneidade inesperada,
de modo que 6% recebiam menos de 1 salrio mnimo; 23% recebiam entre 1 e 2 salrios
1 DOZENA, A. Os Movimentos de Samba na Cidade de So Paulo: espaos de resistncia e de esperana. In: XIII Seminrio APEC Associacin de Investigadores y Estudiantes Brasileos en Catalua, 2008, Barcelona. Actas del XIII APEC. Barcelona, 2008, v.1, p.19-28.
2 Sobre as transformaes nas localizaes de realizao do samba em So Paulo de acordo com os movimentos das moradias das classes populares, ver: MARCELINO, M.M. Uma Leitura do Samba Rural ao Samba Urbano na Cidade de So Paulo. Dissertao (mestrado). Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007.
3 Naquele momento, os microdados relativos ao Censo de 2010 ainda no haviam sido divulgados.
7
mnimos; 22% entre 2 e 3 salrios mnimos; 25% entre 3 e 5 salrios mnimos; 20% entre 5
e 10 salrios mnimos; e 5% recebiam mais de 10 salrios mnimos.
Desse modo, tnhamos que a pobreza era territorializada de tal modo que a
localizao intraurbana no estabelecia em si um critrio explicador e que, apesar da
distncia entre os locais onde ocorriam movimentos de samba e de suas diferenas
espaciais, a emergncia de um conjunto de prticas semelhantes, sem que houvesse uma
organizao que os fomentasse, apontava para um compartilhamento de referncias
simblicas. Alm disso, na anlise do caso especfico de nosso estudo, a questo da renda
apareceu com uma variedade entre os salrios recebidos que no correspondia imagem
comumente difundida de uma pobreza homognea como definidor das periferias urbanas.
Tal heterogeneidade estava presente tambm na paisagem, onde as moradias variavam de
terrenos com uma nica e ampla casa de alvenaria; terrenos subloteados para diferentes
unidades residenciais, tambm de alvenaria; diversas vielas4 e favelas com casas de
madeira ou materiais mais precrios. Assim, terminamos aquela pesquisa sem ter clareza
sobre a qual realidade o conceito de periferia urbana fazia referncia, sendo esse o fio
condutor dessa nova pesquisa.
Diante disso, a pergunta que nos colocamos no incio dessa pesquisa foi de quais
maneiras se deu a formao do conceito de periferia urbana no interior da Geografia
urbana brasileira. Nossa hiptese de que existiria um hiato entre o conceito de periferia
urbana privilegiado nos estudos urbanos em geral, e na Geografia em particular, e sua
operacionalidade para pensar a realidade perifrica tal qual ela se apresenta hoje. Nesse
sentido, buscvamos pensar em que medida aquele conceito poderia restringir o campo de
investigao de novos sentidos da periferia no incio do sculo XXI.
Dois pontos nos fizeram pensar que a dcada de 1980 era privilegiada para pensar
essa formao do conceito de periferia urbana. O primeiro deles era a dimenso das
renovaes disciplinares vividas pela Geografia humana na dcada de 1970, quando alguns
de seus pesquisadores buscavam uma maior aproximao com uma vertente crtica do
pensamento social. Entendamos que a renovao temtica, o engajamento social e a
aproximao com o marxismo representados por esse movimento traria uma compreenso
da realidade perifrica transversalizada por aquele conjunto de inovaes tericas e
4 Ruas ilegais e bastante estreitas, onde existe uma srie de pequenas casas conjugadas dos dois lados. Tais casas no apresentam recuo entre a entrada e a viela.
8
metodolgicas. Alm disso, o perodo compreendido entre as dcadas de 1960 e 1980
definia-se por profundas transformaes na estrutura da sociedade brasileira, que passava
por uma urbanizao intensa e por um crescimento vertiginoso de algumas cidades, cujas
consequncias passaram pelo espraiamento do tecido urbano e pelo agravamento da
pobreza urbana, com a piora da qualidade de vida dos pobres urbanos e o aumento da
quantidade de pessoas nessa situao, fazendo com que as questes sobre as periferias
urbanas entrassem na pauta dos estudos urbanos em geral, realizado em outros campos da
cincia.
Considerando especificamente o contexto disciplinar, no comeo da dcada de 1990
tem incio um movimento de abertura aos estudos com abordagem cultural, mais
expressivo no Rio de Janeiro, trazendo mtodos e temas que at ento no tinham eco na
Geografia brasileira. Desse modo, escolhemos focar nossa anlise nesse perodo
compreendido entre as renovaes disciplinares do final da dcada de 1970 e a introduo
da Geografia cultural no cenrio brasileiro, cujos eventos de referncia foram,
respectivamente, o 3 Encontro da AGB (Associao dos Gegrafos Brasileiros), em
Fortaleza (CE), em 1978, e a fundao do NEPEC (Ncleo de Estudos e Pesquisas Sobre
Espao e Cultura), na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em 1993.
Como fonte de estudo, escolhemos trabalhar com teses e dissertaes defendidas
nos programas de ps-graduao em Geografia que versassem sobre periferia urbana,
dentre o perodo compreendido entre 1978 e 1993. Trata-se de um material que apresenta
potencialidades e limitaes para a analisar a disciplina nesse contexto. Por um lado, as
pesquisas em ps-graduao contam com certas limitaes, como as relativas
inexperincia do pesquisador ou o peso que determinadas tradies dos programas de
ps-graduao ou de certos docentes podem ter dentro dos departamentos universitrios.
Desse modo, reconhecemos que tais fontes no configuram um local privilegiado para
encontrarmos perspectivas inovadoras para se pensar um determinado tema. Alm disso,
tais pesquisas visam dar conta de um objeto de estudo especfico, o que no
necessariamente caminha na definio do conceito de periferia urbana, mas em manipul-
lo para compreender uma realidade particular.
No entanto, dentre as potencialidades que encontramos, est justamente o fato de
que tais pesquisas dedicam-se na maior parte das vezes a realidades empricas, sendo uma
oportunidade de pensar a realidade atravs dos modelos em voga, o que tambm implica
9
em um teste desses modelos. Dessa forma, as pesquisas empricas dos trabalhos de ps-
graduao nos servem como recursos para pensar sobre os usos dos modelos acerca da
realidade perifrica que se formava nas cidades brasileiras, o que no seria possvel se
tivssemos escolhido unicamente obras de autores consagrados, que tm uma teoria rica,
mas no um objeto concreto. Ao invs de um sistema classificatrio de autores,
pretendemos desenvolver um estudo sobre como as periferias foram pensadas, mobilizadas
como elemento discursivo e reconhecidas como parte da transformao social. Os autores
muitas vezes alteraram suas abordagens ou simplesmente podem ter trabalhado com outros
objetos que no exigissem uma problematizao maior da condio perifrica. No entanto,
os sentidos de periferia que foram evocados podem ser reconhecidos como tendncias para
o reconhecimento do pensamento geogrfico. Existe um volume expressivo de pesquisas
em ps-graduao, o que nos faz perceber a repetio de determinadas metodologias de
pesquisa, de certos conceitos ou de determinadas referncias tericas, apontando para um
modo hegemnico de se estudar a periferia dentro da Geografia urbana brasileira daquele
contexto.
De acordo com Mnica Machado (2009, p.174), a produo de ps-graduao em
Geografia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da USP (Universidade de
So Paulo) so importantes fontes documentais para pesquisas. Isso ocorreria pelo fato
dessas duas universidades terem uma centralidade na produo acadmica nacional, cuja
expresso est, por exemplo, na quantidade de professores de outras instituies de ensino
superior cujas ps-graduaes foram feitas na UFRJ ou na USP. De fato, tais instituies
abrigaram os primeiros programas de ps-graduao em Geografia existentes no Brasil, de
modo que a UFRJ iniciou seu mestrado em 1972 e a USP iniciou os cursos de mestrado e
de doutorado em 1971. Universidades como a UFPE (Universidade Federal de
Pernambuco) e a UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro tambm abriram
cursos de mestrado durante a dcada de 1970, contudo, o volume de trabalhos defendido
era bem menor que os da UFRJ e da USP, de tal forma que a dimenso dos programas
tambm contribuiu para a difuso de suas ideias pelas universidades do Brasil5. Desse
modo, esse material expressa as linhas de pesquisa existentes nessas universidades,
passadas pelos pesquisadores atravs de seus orientadores, que iro ter influncia na
5 Ao levantarmos as teses e as dissertaes defendidas nessas instituies ao longo dentre 1978 e 1993 cujos ttulos apontavam para um debate sobre uma das concepes presentes na expresso periferia urbana, tivemos os seguintes nmeros: 10 na UFPE, 26 na UFRJ, nove na UNESP e 34 na USP.
10
produo nacional como um todo.
Para selecionarmos nosso material de trabalho, num primeiro momento,
consultamos os sites dos programas de ps-graduao realizados na UFRJ e na USP, onde
constam todas as pesquisas neles realizadas. A partir desses dados, selecionamos aquelas
defendidas entre 1978 e 1993 que potencialmente tratassem de questes relativas
periferia urbana, cujos critrios fundamentais foram o ttulo e os nomes de orientador e
orientando. Sobre o ttulo, buscamos a seleo mais ampla possvel que abarcasse a
polissemia da palavra periferia, englobando pesquisas relativas ao antigo cinturo verde da
metrpole, municpios metropolitanos, movimentos sociais urbanos, periferia do centro,
pobreza urbana e modos de moradias populares. Com isso, obtivemos nesse momento 60
registros, das quais efetivamente lemos 25, que constam em nossa bibliografia. Os critrios
de seleo dos trabalhos a serem lidos priorizaram valorizar pesquisas defendidas durante
todo o perodo considerado, evitando concentraes temporais. Alm disso, buscamos
selecionar pesquisas com orientadores distintos e que expressassem uma pluralidade
temtica, a fim de aumentar a diversidade do material encontrado.
Aps a leitura, identificamos as diferentes formas de pensar a periferia urbana, que
esto apresentadas entre os captulos quatro e seis desse trabalho. Contudo, dada a
inoperacionalidade de trabalhar com um volume de material to extenso e a repetio de
ideias, argumentos e metodologias entre elas, escolhemos algumas dessas pesquisas para
ilustrar nossa reflexo, que no busca tratar sobre esses trabalhos em si, mas sobre o modo
como a questo da periferia pensada neles. Para isso, usamos unicamente pesquisas cujos
objetos eram casos empricos, justamente para explorar os modos como os modelos
tericos foram usados para pensar casos concretos. Alm disso, priorizamos aqueles
realizados por pesquisadores de ps-graduao que acabaram tendo destaque na Geografia
brasileira.
As anlises empricas apontam que o conceito de periferia urbana
transversalizado pela ideia de reproduo, que aparece de modo distintos nas pesquisas.
Em linhas bastante gerais, de um lado, alguns pesquisadores tero suas reflexes centradas
na reproduo social da fora de trabalho, partindo-se do princpio de que a periferia a
territorializao de moradia de trabalhadores pobres, ao passo que outros enfatizam a
periferia enquanto uma realidade vinculada reproduo do espao, a partir do
espraiamento do tecido urbano para reas no-urbanas, que so incorporadas como
11
periferias. Subjaz a essas perspectivas a questo da totalidade, que aparece de diferentes
maneiras. Primeiro, pela compreenso da populao moradora da periferia atravs das
contradies de classe, representando o proletariado urbano que, por meio do trabalho,
produz a riqueza social, que drenada para as classes hegemnicas. Dessa forma, a
periferia expressa espacialmente as contradies de classe, tendo sua determinao
fundamental no prprio capitalismo brasileiro. Uma segunda forma em que a totalidade
ocorre nos trabalhos refere-se a pensar a periferia como uma frao da metrpole ou da
malha urbana na qual est inserida, de modo que a configurao de seus objetos e recursos
espaciais considerada subordinada a uma totalidade espacial.
Esse recorte nosso ponto de partida para analisar o conceito de periferia, usado
geralmente para designar reas distantes e precarizadas dos centros urbanos, mas que
carrega uma polissemia perceptvel nos seus usos. Tais diferentes significados
concernentes expresso dizem respeito justamente s duas caractersticas que lhes so
geralmente atribudas: distncia e pobreza. Nesse sentido, enquanto alguns pesquisadores
pensam a periferia como a territorializao da pobreza no tecido urbano independente de
sua localizao cartogrfica, para outros, a distncia ganha destaque na sua definio,
colocando em segundo plano os contedos sociais dessa poro do territrio urbano.
Outros ainda pensaro a periferia de forma articulada entre pobreza e distncia, definido
como perifricas somente as reas distantes e ao mesmo tempo precarizadas. Assim, os
usos do conceito de periferia apontam para valorizaes distintas da questo da distncia
como um crivo definidor, como tambm de seu contedo social, expressando realidades
sociais distintas entre si e que podem conter heterogeneidades nos usos do espao.
Desse modo, o que nos interessa mapear os critrios de definio da periferia nas
pesquisas empricas, tendo como referncia suas justificativas tericas na Geografia urbana
e nas demais cincias sociais com as quais foram estabelecidos privilegiados nos estudos
urbanos desse perodo. Ainda que no pretendamos fazer uma anlise propriamente sobre
essas pesquisas de ps-graduao, mas sim de como o conceito de periferia tratado nelas,
em alguns momentos recorremos a descries de seus trabalhos. Isso tem, inicialmente, a
funo de valorizar a metodologia do pesquisador para analisar seu objeto de estudo. Para
alm, compreendemos que na prpria descrio do material com o qual trabalhamos j
existe um trabalho de classificao, posto que ao selecionarmos o que ser descrito,
apontamos para os elementos que valorizamos em nossa anlise.
12
Antes da introduo do marxismo nos estudos urbanos, a palavra periferia dizia
respeito unicamente a uma dada localizao, definida pela distncia do ncleo central e por
uma situao limtrofe entre o que est dentro e o que est fora da cidade, cujo significado
confundido, muitas vezes, com o de subrbio6. nesse sentido que se pode dizer que as
zonas das melhores residncias e dos commuters, dentro do modelo de estrutura urbana7
apresentado por Enerst Burgess (1929), so perifricas, ainda que concentrem as moradias
dos grupos sociais mais elitizados da cidade. De acordo com esse modelo, os pobres,
representados na sociedade estadunidense sobretudo por negros e imigrantes, eram
compreendidos por meio do conceito de segregao, que na cidade estavam vinculados
formao de guetos localizados sobretudo na rea central. Para os adeptos das teorias
ecolgicas, a segregao uma consequncia de uma inadaptao social e cultural aos
modos de vida da cidade, que geralmente recai aos imigrantes recm-chegados. Segundo
esse modelo, com o passar do tempo e das geraes, h um ajustamento entre as condies
objetivas de vida impostas pelo urbano e as referncias simblicas e culturais, ou seja, tem-
se uma adequao que acompanhada de uma ascenso social.
J no escopo marxista, que ganha espao nos estudos urbanos a partir da dcada de
1970, a produo de localidades segregadas est fortemente ligada com os processos de
acumulao capitalista. Trata-se de um pensamento ancorado na contradio entre capital e
trabalho que ocorre na produo e que antagoniza as classes sociais entre aqueles que
6 lvaro Domingues (1994/5) aponta como periferia e subrbio so utilizados em trabalhos empricos e qual seu suporte material, considerando a localizao e seu contedo social. A seguir, ele aponta elementos que colocam as significaes de tais palavras em crise, o que ocorre atravs dos estudos sobre as metrpoles. A ideia presente que a urbanizao ocorre sobreposta a uma antiga estrutura urbana, caracterizada pela coeso e pela dicotomia centro-periferia. Essa nova urbanizao como uma exploso urbana, fragmentando o tecido urbano. A urbe deixa de ser coesa e bem delimitada, e este um elemento da crise das ideias de periferia e subrbio, como tambm da concepo urbana em centro/periferia. Socialmente, continuam a existir marginalizaes social e geogrfica, cuja gravidade pode ter se intensificado. Entretanto,, segundo seu argumento, a materializao desse um fenmeno sociolgico no mais a mesma, de modo que necessrio reconceituar subrbio e periferia para compreender os movimentos da dinmica urbana metropolitana.
7 O referido modelo prope que a cidade organizada em cinco zonas concntricas. Na Zona I, tem-se o Distrito Comercial Central, onde predomina a vida poltica, cultural e econmica da cidade e onde os empregos esto concentrados. Na Zona II, ocorre a Zona de Transio, onde esto concentradas as fbricas, as colnias de primeira fixao de imigrantes, os homens sem lar, as habitaes ruins, etc. De acordo com o modelo, conforme as famlias prosperam, elas se mudam para a Zona III, A Zona das Casas dos Trabalhadores Independentes, caracterizada por famlias trabalhadoras que buscam a proximidade do centro e anseiam residir na Zona IV no futuro. Esta, a Zona das Melhores Residncias, abriga a classe mdia dos americanos nativos, com moradias de boa qualidade, e tambm centros comerciais e de lazer. Por ltimo, tem-se a Zona V, a Zona dos Commuters, que formada por vilas e aldeias que circundam a cidade. So os subrbios-dormitrios, nos quais residem classes mdias e altas, que realizam movimentos pendulares dirios para o trabalho, localizado no ncleo urbano.
13
detm os meios de produo e aqueles que efetivamente trabalham e produzem valor. De
acordo com essa perspectiva, o cerne das questes de marginalidade e de segregao est
no acesso dos trabalhadores riqueza socialmente produzida, que limitado pelo fato dos
grupos hegemnicos se apropriarem da produo. E como o capital tende a se reproduzir
de forma ampliada, assim como as relaes sociais engendradas nesse processo, o
movimento esperado ao longo do tempo que as contradies de classe sejam agravadas, e
no amenizadas. Nossa pesquisa trata de um momento de vigor do marxismo nos estudos
urbanos, que haviam sido bastante influenciados pelas perspectivas ecolgicas. Dentro do
campo da Geografia urbana brasileira, a dcada de 1980 expressa uma aproximao com o
marxismo e o distanciamento com as abordagens anteriores acerca da cidade e da pobreza.
Dessa maneira, esse momento expressa uma transio entre dois grandes contextos
disciplinares, em que h o declnio de abordagens baseadas na concretude e na
funcionalidade das formas espaciais e a ascenso daquelas fundamentadas na totalidade
social, onde as paisagens so engendradas a partir dessa estrutura.
Ainda nesse mesmo contexto, diversas cidades do mundo passaram por
transformaes urbanas at ento inditas, definidas em linhas gerais pela intensificao da
urbanizao e pelos impactos decorrentes disso, tais quais a ampliao dos servios
ofertados, a expanso da violncia urbana e da segregao, a difuso do uso do automvel,
a efervescncia de movimentos sociais, etc. Sobre os ritmos do crescimento urbano, Pierre
George (1983 [1961], p.18 e segs.) assinala o rpido crescimento das cidades nesse perodo
em diferentes partes do mundo. O autor destaca o caso dos EUA, cujos ritmos de
crescimento so classificados como espantosos (GEORGE, 1983 [1961], p.19). Assim,
Nova Iorque conta em 1973 com uma populao 200 vezes maior do que possua em 1801,
e Los Angeles, que tinha 300.000 habitantes em 1910 e 7 milhes em 1970. Pierre George
salienta tambm o caso das cidades dos pases subdesenvolvidos, apontando como
exemplos, dentre outros, dois casos brasileiros. O Rio de Janeiro tinha 43 mil moradores
em 1800, 800 mil em 1900, atingindo o ndice de 5 milhes de habitantes em meados da
dcada de 1970. No caso de So Paulo, de 1850 para 1970, passaram de 30 mil habitantes
para mais de 6 milhes (GEORGE, 1983 [1961], p.21).
Dada essa nova realidade urbana cada vez mais complexa, os modelos e as
explicaes com base na Escola de Chicago tornam-se insuficientes. A explicao de que a
marginalidade e a segregao seriam resultados de uma inadequao s condies de vida
14
impostas pela cidade perde sua capacidade explicativa para pensar uma realidade to
intrincada como a que existe em So Paulo em meados da dcada de 1970. Camargo et.
alli. coloca que, em 1975, as famlias migrantes representam ao menos 2/3 da populao de
So Paulo, o que impede que o problema seja tratado como residual, alm do fato de suas
rendas no serem to distintas do que as encontradas nas famlias no-migrantes
(CAMARGO, 1976, p.13 e segs.). Desse modo, no era possvel pensar a questo da
migrao como um problema residual, dada a extenso do fenmeno, e tampouco os dados
socioeconmicos apontavam para uma superao da pobreza urbana com o passar do
tempo.
Era imperativo, portanto, uma adequao dos conceitos para tratar dessa nova
realidade urbana, caracterizada pelo crescimento populacional intenso e, no caso dos pases
latinoamericanos, com destaque para o Brasil, pelo agravamento das condies de pobreza.
Assim, as cidades brasileiras, em especial as de maior porte, tero uma ampliao de
territrios definidos pela moradia dos pobres urbanos, marcado pela falta de infraestrutura
urbana e de servios de consumo coletivo fundamentais para a vida na cidade.
Os bolses de pobreza nas cidades do Brasil no so uma novidade forjada pelo
crescimento urbano vertiginoso ocorrido aps a dcada de 1950. Nas primeiras dcadas do
sculo XX, cidades como So Paulo e Rio de Janeiro j tinham uma estratificao
residencial com base na renda, de modo que os pobres urbanos tinham seu local de
moradia nos centros urbanos, em favelas, cortios ou vilas operrias. Maurcio de Abreu
(2003) assinala que, no Rio de Janeiro, a Reforma Passos8 alterou a diferenciao
residencial das classes sociais na cidade, que deixa de ser fundamentada no tipo de
habitao e passa a ser centrada no local da moradia. Desse modo, num primeiro momento,
moradias de diferentes grupos sociais e vrios tipos de usos compartilhavam lugares
prximos na cidade, situao que foi tendencialmente9 alterada com a Reforma, que separa
8 Conjunto de reformas urbanas, iniciadas em 1903, no Rio de Janeiro, com o objetivo de modernizar a cidade. Um dos objetivos foi adequar o Rio de Janeiro aos automveis, com a abertura de avenidas amplas e que cortavam as principais partes da cidade. No que diz respeito habitao popular, a Reforma Passos foi responsvel pela demolio de cortios localizados no centro da cidade, cuja consequncia imediata foi a formao de favelas nos morros do Rio de Janeiro. Um movimento urbanstico semelhante ocorreu em So Paulo nas dcadas de 1920 e 1930, atravs do Plano de Avenidas elaborado por Prestes Maia, cujo objetivo tambm era adequar a planta da cidade ao ideal de modernidade, que passava pelo uso do automvel. Esse conjunto de projetos urbanos modernizantes tem como referncia a Reforma Haussmann, realizada em Paris na segunda metade do sculo XIX, que destruiu as ruas e as construes da cidade medieval, abrindo no lugar parques urbanos, bulevares e avenidas longas e amplas.
9 O uso da palavra tendencial est presente em Maurcio de Abreu (2003, p.229) e cumpre a funo de apontar que essas transformaes urbanas impostas pela Reforma Passos no alteraram a realidade
15
os locais de trabalho e de residncia, e hierarquiza os locais de moradia entre os diversos
grupos sociais. Desse modo, os pobres urbanos passaram a se concentrar nos bairros da
periferia do centro, nas favelas ou nos loteamentos distantes que comeavam a surgir.
Situao parecida sobre a territorializao da pobreza urbana descrita por Pierre Monbeig
(2004 [1953], p.83-85) sobre a cidade de So Paulo na primeira metade do sculo XX. O
gegrafo francs aponta a precariedade dos bairros proletrios na periferia do centro, como
no Bexiga, Barra Funda ou Brs, marcado pelos cortios insalubres, super-lotados e com
alugueis caros. De acordo com o autor, nesse momento, entre 40% e 60% das habitaes de
So Paulo apresentam condies inferiores s mnimas aceitveis. Alm disso, os pobres
urbanos tambm residem nas vilas operrias localizadas na periferia industrial, sofrendo
com o isolamento da cidade e com alugueis ainda mais caros que os dos cortios, mas
contando com residncias unifamiliares e mais espaosas e conservadas.
A novidade urbana aps o rpido crescimento demogrfico das cidades brasileiras,
acompanhado dos projetos modernizantes, a alterao da distribuio topolgica dos
grupos e das classes sociais pela cidade. Assim, passam a existir bairros majoritariamente
pobres, em oposio aos enclaves elitizados. Desse modo, ao longo das dcadas entre 1950
e 1970, tem-se o espraiamento das moradias populares para locais ainda mais afastados do
que os ento subrbios das elites urbanas, marcados pela distncia e pela precariedade de
suas infraestruturas urbanas. Tal fenmeno scio-territorial foi acompanhado da
necessidade de uma transio conceitual, na qual a periferia no expresse unicamente uma
localizao, mas sobretudo uma dada forma de insero social de seus lugares e de seus
moradores.
Nesse momento, os tericos do urbano passam a compreender mais claramente que
as cidades no podem ser explicadas de modo isolado, e que preciso articular fenmenos
em outras escalas. Desse modo, o crescimento das cidades brasileiras passa a ser entendido
como articulado s transformaes produtivas no campo e na cidade, quando h uma
alterao na relao entre eles. No plano do capitalismo internacional, esse contexto foi
marcado pela reconfigurao geogrfica da diviso internacional do trabalho, quando os
territrios dos pases subdesenvolvidos passaram a ser considerados nas topologias
industriais das multinacionais, o que tambm tem impactos nas cidades desses pases.
anterior como um todo, permanecendo reminiscncias das antigas formas de usos urbanos. Contudo, elas mudaram as orientaes gerais do movimento urbano, e nisso que reside sua importncia.
16
Assim, fenmenos como o espraiamento do tecido urbano e a criao de realidades
geogrficas marcadas majoritariamente pela pobreza, pela precariedade das infraestruturas
e por uma relao perversa com o mundo do trabalho nas cidades brasileiras passam a ter
sua explicao fora das fronteiras da cidade, articulando determinaes multiescalares e
imperativos do modo de produo capitalista. Essa nova compreenso da realidade das
cidades ser transversal na formao do conceito de periferia urbana desenvolvido a partir
das dcadas de 1970 e 1980.
A fim de compreender as posies tericas desenvolvidas na Geografia urbana
brasileira ao longo da dcada de 1980, faz-se necessrio analisarmos antes o processo de
renovao disciplinar, que teve impactos importantes em termos de mtodos e de
temticas, posto que se buscava uma produo do conhecimento que atendesse aos
interesses dos grupos socialmente mais vulnraveis na sociedade capitalista.
Assim, no primeiro captulo, buscaremos compreender as transformaes pelas
quais a Geografia passou ao longo da dcada de 1970 e que antecederam seus estudos
sobre a cidade com base no marxismo.
No captulo dois, nos dedicaremos a pensar o conceito de espao geogrfico, que
emerge do movimento de renovao disciplinar como o conceito-chave da Geografia e que
carrega em si a indissociabilidade entre a materialidade das formas espaciais e da vida
social, articulada atravs da noo de totalidade social, que ser importante nos estudos
sobre periferia urbana.
O terceiro captulo ser dedicado a apontar anlises acerca das periferias urbanas
feitas por pesquisadores de diferentes cincias sociais, cuja importncia se justifica pelas
contribuies de tais reas do conhecimento nas pesquisas que sero feitas na Geografia
Urbana brasileira. Nossa compreenso que, ao longo dos anos de 1980, os gegrafos
preocupados em compreender as realidades perifricas das cidades do Brasil iro articular
as inovaes trazidas pelas renovaes internas Geografia com os avanos feitos em
outros campos dos estudos urbanos, com destaque para a Economia Urbana, o Urbanismo
e a Sociologia.
A anlise de nossas fontes de pesquisa tem incio no captulo quatro, no qual
buscamos ilustrar as transformaes que envolvem a noo de periferia do centro, que
originalmente est vinculada aos estudos ecolgicos sobre a cidade e que expressa a
realidade social localizada nas bordas do ncleo urbano central. O que identificamos um
17
abandono da perspectiva ecolgica e a progressiva adoo de modelos marxistas para
compreender essa poro do tecido urbano, valorizando-se a anlise fundada na totalidade
social e nas contradies de classe.
A partir desse momento, a periferia urbana passa a ser compreendida diretamente
atravs do espraiamento do tecido urbano e da expanso e intensificao da precariedade
urbana. Assim, no captulo seis, destacamos a abordagem segundo a qual a periferia urbana
definida, grosso modo, como a territorializao dos locais de reproduo da fora de
trabalho numericamente mais expressiva no contexto das dcadas de 1970 e 1980, que so
os pobres urbanos. O stimo captulo mantm relaes estreitas com o anterior, mas sua
definio de periferia urbana est centrada na reproduo do espao metropolitano, cujo
processo ancorado tanto na expanso da cidade, que incorpora lotes rurais ao urbano,
quanto na deteriorao de reas urbanas antigas. Desse modo, a periferia compreendida
atravs da precariedade das suas formas urbanas, seja pela construo recente e informal
que ocorreu nas grandes cidades brasileiras, seja pela degradao de pores centrais e que
acabaram sendo transformadas em moradias precarizadas.
Por fim, faremos algumas reflexes finais onde buscamos encontrar pontos de
convergncia dentre a polissemia que envolve o conceito de periferia urbana na Geografia
Urbana brasileira, como tambm refletir sobre o potencial explicativo daquele conceito de
periferia urbana delineado ao longo dos anos de 1970 e 1980 para pensar as realidades
perifricas contemporneas.
18
Captulo 1. A Geografia em transformao e seus impactos na renovao crtica da Geografia urbana brasileira
Durante a dcada de 1970, a Geografia brasileira como um todo passava por um
processo de transformaes tericas e epistemolgicas profundas, cujos impactos sero
sentidos fortemente na Geografia urbana brasileira. Esse processo ficou conhecimento
como um movimento amplo de renovao da Geografia, com questionamentos
transversais, ancorados, de acordo com Ariovaldo de Oliveira10 (2008, p.8), em dois
pilares: de um lado, a reivindicao de democratizar internamente a AGB (Associao dos
Gegrafos Brasileiros), e de outro, a abertura da Geografia perspectiva marxista nos seus
estudos.
Ruy Moreira (2013 [1992], p.23-24), em um texto escrito em 1988 e publicado anos
mais tarde, se prope a analisar esse movimento de mudanas internas Geografia, e
coloca que desde, ao menos, 1974, havia um contexto de crticas s prticas disciplinares e
de expectativas de renovao, que convergiram no encontro da AGB de 1978, em Fortaleza
(CE).
Quando, em 1978, os gegrafos brasileiros renem-se em Fortaleza, no 3 Encontro Nacional de Gegrafos (ENG), da AGB, a geografia brasileira vivia j um estado de grande ebulio. E isso pelo menos desde 1974. Nos vrios cantos do pas, movimentos de crtica e de renovao, espontneos, difusos e, portanto, sem hegemonia nacional vinham acontecendo. O 3 ENG ensejou o olhar recproco, o conhecimento dos protagonistas uns dos outros, a conscientizao dos descontentamentos que promovem a necessidade de mudanas e a aglutinao de ideias que precipitam a crise da cincia. (MOREIRA, 2013 [1992], p.24).
Em sua viso particular do processo de transformao da disciplina, do qual
participou ativamente, Ruy Moreira aponta para um certo espontanesmo nesse movimento
de renovao disciplinar. No se trata de uma interpretao unnime dentro da Geografia
brasileira, como fica claro no trecho abaixo retirado da entrevista concedida por Milton
Santos Geosul:
Acho que 1978 foi a ecloso de um movimento que vinha se gestando h mais tempo e que havia uma fermentao extremamente bem orquestrada. No foi obra do acaso, nem foi erupo espontnea. No houve apenas gratuidade. Havia um grupo
10 Entrevista publicada no Boletim Paulista de Geografia 88, julho de 2008.
19
de gegrafos brasileiros preocupados com a Geografia brasileira, dispostos a mudar seu rumo, no sentido acadmico, na construo de uma nova teoria geogrfica, uma nova posio que fosse tambm, ao mesmo tempo, poltica e acadmica, dentro da Geografia. (SANTOS, 1989, p.142)
De fato, esse conjunto de citaes expressam posies particulares de quem
participou ativamente daquele processo de transformao da disciplina, sendo por isso
carregado de memrias e de cargas simblicas. Contudo, no faz parte do escopo de nossa
pesquisa dar conta das diferentes interpretaes possveis do momento que convergiu nas
transformaes disciplinares representada pelo ENG de 1978. O que pretendemos
assinalar a importncia desse movimento amplo na renovao da Geografia brasileira, que
passa por mudanas tericas, aproximando-se de certas vertentes marxistas, e polticas,
articulando suas pesquisas com os grupos mais vulnerveis da sociedade. Desse modo,
apesar das pluralidade de anlises sobre aquela conjuntura, avaliamos que no h dvida da
importncia daquele movimento nos caminhos futuros da Geografia brasileira. E que, em
linhas gerais, o germe desse movimento de renovao disciplinar estava no
descontentamento de um conjunto amplo de gegrafos com as prticas em curso. Os alvos
de tal oposio eram tanto a Geografia Tradicional, herdeira dos estudos regionais de
origem francesa, quanto a Nova Geografia, corrente neopositivista que surge em meados
da dcada de 1940.
No final da dcada de 1970, havia um movimento de crtica da Geografia fora do
Brasil, e consideramos aqui especialmente os questionamentos feitos pelos gegrafos
franceses disciplina, e que teve impactos importantes no cenrio nacional11. Em linhas
gerais, havia a acusao de que a Geografia produzia um conjunto de conhecimentos que
serviam para efetuar o poder de atores hegemnicos, sendo til dominao poltica e
territorial exercidas pelo Estado e pelos agentes econmicos. Desse modo, havia a
percepo de que os problemas sociais eram questes de menor importncia dentro da
11 Nosso destaque Frana se deve ao fato de que a consolidao da Geografia brasileira, nas primeiras dcadas do sculo XX, ocorreu atravs de laos estreitos com aquela realizada pelos franceses, em razo das misses universitrias que trouxeram professores franceses em diferentes reas do saber, incluindo a Geografia, para o Brasil. Com isso, os cursos de Geografia da ento Universidade do Distrito Federal e da Universidade de So Paulo sero bastante influenciados pelos gegrafos franceses (MACHADO, 2009, p.62). Ao longo do sculo XX, diversos professores franceses atuaram nas universidades brasileiras, e a Frana era um dos principais destinos dos gegrafos brasileiros que buscavam qualificao profissional. Aps o Congresso da U.G.I., em 1956, intensificam-se as visitas dos gegrafos franceses ao Brasil. Alm disso, diversos gegrafos brasileiros cursaram ps-graduao na Frana, como Milton Santos, Pedro Geiger, Orlando Valverde, dentre outros (ALMEIDA, 2013).
20
Geografia em curso at ento. Alm disso, era tecida tambm a crtica de que os gegrafos,
desde o final do sculo XIX, pareciam estar mais preocupados em atingir um grau de
prestgio junto s demais cincias sociais, do que em formular uma epistemologia e uma
teoria para analisar a realidade.
Nesse sentido, Milton Santos (2004 [1978], p.30), em Por Uma Geografia Nova,
assinala que o prprio nascimento da Geografia concomitante com a ascenso da
burguesia. Seu argumento de que era um imperativo hegemnico daquele contexto a
expanso do comrcio e o estabelecimento de uma diviso internacional do trabalho a fim
de formar um um centro produtor de gneros alimentcios e de produtos primrios para a
indstria e um mercado consumidor para seus produtos industrializados. Para Milton
Santos, a maior parte dos gegrafos esteve ao lado do colonialismo e do capital, de modo
que, ao se consolidar cientificamente, a Geografia manteve-se atrelada aos grandes
interesses. Isso significou uma produo do conhecimento que servia para esconder o papel
do Estado e das classes sociais na organizao do espao e da sociedade.
A ideologia engendrada pelo capitalismo quando da sua implantao tinha que ser adequada s suas necessidades de expanso nos pases centrais e na periferia. Esse era um momento crucial em que urgia remediar, ao mesmo tempo, o excesso de produo e o excesso de capitais, bem como sopitar as crises sociais e econmicas que sacudiam os pases interessados. Era necessrio, portanto, criar as condies para a expanso do comrcio. [] Era ento imperativo adaptar as estruturas espacial e econmica dos pases pobres s novas tarefas que deviam assegurar sem descontinuidade. A geografia foi chamada a representar um papel importante nessa transformao.Diante da marcha triunfante do imperialismo, os gegrafos dividiram seus pontos de vista. De um lado aqueles que lutavam pelo advento de um mundo mais justo, onde o espao seria organizado com o fim de oferecer ao homem mais igualdade e mais felicidade: so os casos de Elyse Reclus e Camille Vallaux. [] De outro lado, aqueles que preconizaram claramente o colonialismo e o imprio do capital e aqueles, mais numerosos, que se imaginando humanistas no chegaram a construir uma cincia geogrfica conforme a seus generosos anelos.Nascida tardiamente como cincia oficial, a geografia teve dificuldades para se desligar, desde o bero, dos grandes interesses. Estes acabaram carregando-a consigo. Uma das grandes metas conceituais da geografia foi justamente, de um lado, esconder o papel do Estado bem como o das classes, na organizao da sociedade e do espao. A justificativa da obra colonial foi um outro
21
aspecto do mesmo programa. (SANTOS, 2004 [1978], p.30-31)
Yves Lacoste (2005 [1976]) tambm faz uma crtica aos usos polticos aos quais a
Geografia se deixou usar, contribuindo para a manuteno de um poder conservador. Em A
Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, explorado um antagonismo
entre a geografia ensinada nas escolas, centrada na descrio regional, e a de Estado,
prenhe de significados polticos. Em seu argumento, o conhecimento em geografia dos
militares, ou de Estado, cumpriu um papel ativo na dominao que os pases centrais
exerceram sobre outros lugares do globo, como no caso da Guerra do Vietn ou das
expanses coloniais. J o ensino de geografia no tinha como proposta difundir um
conjunto de informaes sobre o espao que permitisse aos alunos uma postura crtica
sobre as prticas do Estado. Ao contrrio, para Yves Lacoste, o modo como a geografia
apresentada aos alunos faz com que ela parea um contedo intil, mascarando seu carter
poltico e estratgico. Isso articulado com um ensino ancorado num conceito de regio
tributrio de Vidal de LaBlache, que para o autor naturaliza o espao, escamoteando as
relaes e as contradies sociais nesses lugares. Isso, segundo a perspectiva apresentada,
contribui para que a geografia dos professores cumpra o papel de ensinar sobre a ptria,
estando vinculado criao de uma identidade nacional e ocultando as tenses sociais
existentes.
Desse modo, em Yves Lacoste (2005 [1976]), a geografia est duplamente ao lado
dos interesses hegemnicos. Primeiro, ao oferecer um conjunto de conhecimentos espaciais
que so usados pelos Estados com a inteno de dominar territrios e subjulgar sua
populao. E tambm por esconder seu carter poltico nos contedos escolares, no
porporcionando aos alunos meios de desvendar as prticas militares dos Estados,
ensinando-os a aceitar a ideologia nacional, retirando deles a oportunidade de conhecer os
conflitos sociais que regem a sociedade na qual esto imersos.
Hoje ainda, em todos os Estados, e sobretudo nos novos Estados recentemente sados do domnio colonial, o ensino da geografia , incontestavelmente, ligado ilustrao e edificao do sentimento nacional. Que isso agrade ou no, os argumentos geogrficos pesam muito forte, no somente no discurso poltico (ou politizado), mas tambm na expresso popular da idia de ptria, quer se trate de reflexos de uma ideologia nacionalista invocada pelos coronis, uma pequena oligarquia, uma "burguesia nacional", uma burocracia de grande potncia, ou se refira aos
22
sentimentos do povo vietnamita. A idia nacional tem algo mais que conotaes geogrficas; ela se formula em grande parte como um fato geogrfico: o territrio nacional, o solo sagrado da ptria, a carta do Estado com suas fronteiras e sua capital, um dos smbolos da nao. A instaurao do ensino da geografia na Frana no fim do sculo XIX no teve portanto como finalidade (como na maioria dos pases) difundir um instrumental conceitual que teria permitido apreender racionalmente e estrategicamente a especialidade diferencial de pensar melhor o espao, mas sim de naturalizar "fisicamente" os fundamentos da ideologia nacional, ancor-los sobre a crosta terrestre; paralelamente, o ensino da histria teve por funo a de relatar as desgraas e os sucessos da ptria. (LACOSTE, 2005 [1976], p.57)
Esse movimento de renovao da Geografia em direo ao marxismo foi
acompanhado de uma srie de revises da histria da disciplina, nas quais se buscou
apontar os problemas polticos e ideolgicos da Geografia Tradicional, acusada de ser
coerente com os interesses ideolgicos conservadores da sociedade. Alm disso, sua
potencialidade explicativa tambm era questionada. De acordo com os gegrafos crticos,
foi a percepo de que a Geografia Tradicional no permitia a compreenso do mundo e a
interveno na realidade social que deu origem ao primeiro movimento de crtica a essa
corrente atravs da Nova Geografia. O argumento era que a Geografia Tradicional estava
ainda muito presa aos referenciais do sculo XIX, que eram inadequados para compreender
o mundo ps II Guerra Mundial, quando ocorreu o aumento das relaes comerciais entre
as diferentes partes do mundo e das formas de dominao entre os pases. Alm disso, os
pases passaram a se preocupar com o planejamento territorial, ou seja, com a interveno
estatal na organizao do espao, e o conjunto de conhecimentos da Geografia Tradicional
no possibilitavam esse tipo de ao.
A realidade havia mudado, deixando produtos defasados, aqueles que no acompanharam o ritmo da mudana. O desenvolvimento do modo de produo capitalista havia superado seu estgio concorrencial, entrando na era monopolista. No se tratava mais de um capitalismo assentado em mltiplas empresas, com burgueses mdios concorrendo no mercado. Vivia-se a poca dos grandes trustes, do monoplio e do grande capital. Uma revoluo tecnolgica entrepunha-se aos dois momentos. O liberalismo econmico j estava enterrado; a grande crise de 1929 havia colocado a necessidade da interveno estatal na economia. Haviam cado por terra as teses da livre iniciativa, da ordem natural e auto-regulada do mercado. Propunha-se agora a ao do Estado
23
na ordenao e regulao da vida econmica. O planejamento econmico estava estabelecido como uma arma de interveno do Estado. E, com ele, o planejamento territorial, com a proposta de ao deliberada na organizao do espao. A realidade do planejamento colocava uma nova funo para as cincias humanas: a necessidade de gerar um instrumental de interveno, enfim uma feio mais tecnolgica. A Geografia Tradicional no apontava nessa direo, da sua defasagem e sua crise. (MORAES, 2005, p.104)
Desse modo, a leitura feita que a Nova Geografia surgia como uma resposta
inaptido da Geografia Tradicional de interpretar a realidade e de planejar uma interveno
estatal na organizao do espao. No bojo desse movimento, se desenvolve a Geografia
Quantitativa, onde seus adeptos buscaram a preciso e a generalidade da linguagem
matemtica, a fim de prever fenmenos e atuar na realidade tendo como referncia seus
modelos e sistemas.
Segundo Milton Santos (2004 [1978], p.67), a Geografia Quantitativa buscava
apontar relaes de causalidade linear para a compreenso da realidade, no atingindo o
mago da realidade social. Por conta disso, seus resultados apareceriam como
desvinculados dos processos sociais, e consequentemente, imutveis. Soma-se ao seu
argumento a considerao de que essa corrente colocava a Geografia a servio dos
planejadores territoriais e dos agentes industriais e empresariais para quem o espao era
um dos elementos da sua lucratividade. Desse modo, a Nova Geografia prestava-se
manuteno do status quo e legitimao cientfica do mundo dos negcios.
Ento, o espao geogrfico estudado como se ele no fosse o resultado de um processo onde o homem, a produo e o tempo exercem papel essencial. Assim o espao do homem deveria ser aviltado para dar a impresso de que, no ato de produzir, os homens se confrontam com um espao parcelado, desumanizado, reificado. O espao real substitudo por um espao ideolgico sob o qual puderam assentar-se falsas teorias substantivas e de planificao. (SANTOS, 2004 [1978], p.114-115).
Antnio Carlos Moraes (2005, p.109 e segs.) faz uma interpretao semelhante,
avaliando que, ainda que a Nova Geografia como um desdobramento dos limites da
Geografia Tradicional, ela representa uma continuidade nos vnculos entre a Geografia e o
referencial ideolgico da burguesia. Desse modo, dentro do movimento de renovao da
Geografia via marxismo, a entrada de uma corrente quantitativa na disciplina no alterou
24
significativamente seus rumos.
No interior do embate entre a Geografia Tradicional e a Nova Geografia, um grupo
de pesquisadores da ala mais esquerda da Geografia clssica ir caminhar em direo a
uma disciplina mais atenta aos problemas sociais da realidade. Conhecida como Geografia
Ativa, nomes como Pierre George, Bernard Kayser, Yves Lacoste, Jean Dresch e Jean
Tricart, buscam se opr vertente quantitativa, avanando no carter de denncia da
abordagem regional.
Sobre esse movimento, Franois Dosse (1994 [1991], p.349) aponta que, no ps-
guerra, gegrafos comunistas buscam avanar em uma abordagem marxista da disciplina.
Contudo, ainda que concordassem com o materialismo histrico, esses gegrafos no se
desvencilharam da Geografia Tradicional e mantiveram-se presos ao seu empirismo.
Assim, a disciplina no questiona epistemologicamente seus fundamentos e no se abre a
uma abertura interdisciplinaridade.
Essa geografia tradicional vai se conciliar com uma abordagem marxista que registra substancial avano no ps-guerra, graas influncia e penetrao que um certo nmero de gegrafos adquiriu: Pierre George, Jean Dresch, eleitor para a Sorbonne, e Jean Tricart, para a Universidade de Estraburgo. Contudo, marcados pela geografia tradicional e prisioneiros do seu empirismo, esses gegrafos no lograro abalar sua disciplina nem abri-la para um questionamento epistemolgico sobre seus fundamentos ou para dilogos tericos interdisciplinares. Tanto mais que a conjuntura da guerra fria e do stalinismo era pouco propcia ao desenfurnar desses gegrafos comunistas encerrados em sua torre de marfim e em sua dupla certeza: a de um materialismo histrico, por um lado, e, por outro, um saber emprico estribado nas grandes obras do passado, sem contar algumas tradies jdanovianas como aquela a que sucumbiu o gegrafo Jean Tricart, quando ops a geomorfologia marxista geomorfologia burguesa de seus predecessores. (DOSSE, 1994 [1991], p.349)
Considerando o contexto brasileiro, a Geografia Crtica, ao buscar se estabelecer
enquanto uma vertente disciplinar, reconhecia que a Geografia Ativa deu uma importante
contribuio disciplina ao politizar o discurso geogrfico. No entanto, tambm
afirmavam a insuficincia do carter denuncista que tomava. Desse modo, a crtica de
Franois Dosse (1994 [1991]) Geografia Ativa estava presente no prprio movimento de
engendramento da Geografia Crtica. Em 1981, Antnio Carlos Moraes afirma que o fato
25
desse grupo de pesquisadores no ter rompido com a anlise regional e com os referenciais
da Geografia Tradicional acabou impedindo que suas reflexes atingissem o que
considerado o cerne dos problemas sociais em uma abordagem marxista, mantendo-se na
descrio das aparncias.
Entretanto, esta Geografia de denncia no rompia, em termos metodolgicos, com a anlise regional tradicional. Mantinha-se a tnica descritiva e empirista, apenas passava-se a englobar no estudo tpicos por ela no abordados. Introduziam-se novos temas, mantendo os procedimentos gerais da anlise regional. Fazia-se uma descrio da vida regional, que no encobria as contradies existentes no espao analisado. Sendo a realidade injusta, sua mera descrio j adquiria um componente de oposio ordem instituda. Tal perspectiva aparece com clareza, por exemplo, em obras como a Geografia da Fome de Josu de Castro, ou a Geografia do Subdesenvolvimento de Y. Lacoste. Estes livros no iam alm da proposta regional, porm apresentavam realidades to contraditrias, que sua simples descrio adquiria uma fora considervel de denncia, fazendo da Geografia um instrumento de ao poltica. Estes estudos tiveram um papel significativo, pois abriram novos horizontes para os gegrafos, ao apontarem uma perspectiva de engajamento social, de atuao crtica. (MORAES, 2005, p.124)
Tem-se, portanto, a compreenso de que, ainda que a Geografia Ativa no
questionasse a estrutura interna do mundo capitalista, ela apontava para um
comprometimento maior com as questes sociais e com os problemas do desenvolvimento
e do subdesenvolvimento12 dos pases. Com isso, passam a valorizar aspectos antes
negligenciados na Geografia, diferenciando-se das demais correntes por jogarem luz nas
12 Uma srie de termos so usados para se referir ao conjunto de pases de economia capitalista e que no pertecem queles de industrializao original. Esse debate ganha fora durante o perodo da Guerra Fria, quando os pases alinhados aos EUA passaram a participar da configurao de uma nova diviso internacional do trabalho pelas companhias transnacionais. Isso implicou a integrao produtiva dos territrios de diferentes naes, dissociando a ideia de que a presena de indstrias estaria necessariamente vinculada ao desenvolvimento. Tambm a ideia de desenvolvimento est imersa em uma srie de debates que visam, sobretudo, dissoci-lo do crescimento meramente econmico ou produtivo. Dessa maneira, expresses como pases em desenvolvimento, sub-desenvolvidos, no desenvolvidos, pases do terceiro mundo, perifricos, etc., expressam vinculaes tericas de seus autores e os debates nos quais esto inseridos. Contudo, ainda que compreendamos a importncia poltica e terica das discusses semnticas, trata-se de algo que foge ao nosso objetivo desse texto. Dessa maneira, respeitaremos os usos que cada um dos autores faz dessas expresses, ou seja, ao nos referirmos a um determinado autor, usaremos a expresso por ele empregada nesse contexto. Se por um lado, isso nos esquiva de um debate, por outro, compreendemos que os direfentes autores que usamos como referncia compartilham de um determinado conjunto terico, no havendo disparidades profundas entre eles. Com base nisso, julgamos que essa discusso acerca de termos e das expresses no traria grande contribuio ao trabalho desenvolvido.
26
contradies presentes nas realidades estudadas, explicitando a misria, a desiguldade e a
injustia social. Esse movimento abriu novas perspectivas Geografia, que poderia usar
sua capacidade descritiva como um instrumento de denncia, apontando para um
engajamento social que at ento ocorria dentre os gegrafos apenas de forma
reminiscente. Por essa razo, Jorge Silva (1996, p.192) avalia que nesse contexto que
sero gestados os elementos responsveis pela transformao da disciplina entre o final da
dcada de 1970 e a de 1980.
Isso passa por uma crtica sistemtica ao conceito de regio, que atacado tanto por
o julgarem inadequado para explicar o mundo moderno, marcado cada vez mais por
relaes que ultrapassam as escalas locais, quanto pela acusao de ser politicamente
conservador, estando necessariamente atrelado dominao burguesa e aos interesses
hegemnicos, realizado atravs da naturalizao do espao e das relaes de classe e de
poder envolvidas. nesse conjunto de circunstncias que, no comeo da dcada de 1960,
Max Sorre, com base no problema da alienao levantado por Marx, prope pensarmos em
paisagens derivadas, j que as paisagens dos pases subdesenvolvidos so forjadas,
derivam, dos interesses dos pases centrais.
Ainda assim, na dcada de 1970, a Nova Geografia continua sendo feita, e o mesmo
ocorria com a Geografia Tradicional, que apesar dos questionamentos da Geografia Ativa,
mantinha-se presa a teorias, modelos e conceitos referentes a um espao-tempo que no
existia mais. em meio a esse contexto que tero incio os movimentos de renovao
disciplinar, que nas Geografias francesa e brasileira ocorreram por meio da incorporao
do marxismo na disciplina, buscando no apenas descrever as realidades espaciais mais
precarizadas, mas fundamentalmente compreender suas causas genticas e quem eram os
beneficiados com essa situao. Dito de outra forma, aqueles gegrafos tinham o objetivo
de elucidar de que modo o espao era resultado dos movimentos da totalidade social e ao
mesmo tempo contribua para sua reproduo.
Tratava-se de um contexto marcado pela forte instabilidade social em seus
diferentes aspectos. Os pases centrais estavam imersos nas guerras de libertao colonial e
havia a ecloso de uma srie de lutas pela ampliao dos direitos civis. Nos pases
perifricos, em especial os latinoamericanos, estavam em curso ditaduras militares
sangrentas cujo objetivo era, ao menos no discurso, evitar o avano do comunismo
sovitico, garantindo o alinhamento desses pases aos EUA durante a Guerra Fria. Por toda
27
a parte, havia a exploso dos problemas urbanos, que no poupavam nenhum dos trs
mundos existentes no perodo. Desse modo, a avaliao que fazemos que, em alguma
medida, a sntese das acusaes feitas Geografia de que havia um descompasso entre as
prticas dos gegrafos e suas tentativas de explicar a realidade e as ebulies polticas em
curso.
No caso da realidade brasileira, novas questes sociais e polticas emergiam no
pas. Imerso em um processo de modernizao produtiva, cujos impactos eram sentidos
tanto no campo, quanto nas cidades. O que se via era um crescimento indito de suas
cidades, a ampliao desenfreada da pobreza urbana e de seus problemas decorrentes,
como a expanso de moradias precrias e da violncia. Contudo, esses problemas urbanos
apareciam com os mais variados contornos ao longo do territrio brasileiro. Tratava-se de
uma realidade to complexa que Fany Davidovich (1987) classificou a urbanizao
brasileira em curso na dcada de 1970 de acordo com a atividade econmica vinculada e
com suas caractersticas. Desse modo, ao falar de urbanizao do Brasil, era necessrio
distinguir as especificidades do que ocorria nas regies metropolitanas, nos centros
urbanos regionais e nas frentes pioneiras do Norte e do Centro-Oeste. No que diz respeito
s grandes cidades brasileiras, eclodem problemas sociais relacionados com a incorporao
da mo de obra, a moradia e a valorizao intensa do solo urbano, a mobilidade
metropolitana e o aumento das distncias causadas pelo espraiamento da cidade, a falta ou
precariedade de servios essenciais bsicos, dentre outras questes.
Desse modo, uma parte expressiva dos gegrafos brasileiros, em consonncia com
os movimentos na Geografia francesa, pensam de que forma essa realidade pode ser
compreendida atravs de uma anlise espacial. nesse sentido que Ruy Moreira destaca as
contribuies de Yves Lacoste e de Henri Lefebvre para uma compreenso marxista do
espao. O primeiro, ao fazer a crtica da neutralidade presente nos discursos geogrficos,
assinala o problema ideolgico-poltico do espao. J o filsofo francs, aponta a
compreenso de que o espao a uma categoria estruturante da realidade. Segundo a
leitura de Moreira, o espao definido como uma categoria que comanda a reproduo da
estrutura global da sociedade por meio das relaes de produo, abrindo caminho para
uma crtica interna ao funcionalismo e ao neopositivismo em voga na Geografia.
Fazendo uma reflexo para ns at ento inusitada sobre o espao, Lefebvre fornece no plano terico o fundamento para aquilo que
28
Lacoste fizera no plano institucional e epistemolgico do discurso geogrfico. Abrem ambos assim para a crtica interna s duas correntes ento vigentes na geografia: a funcionalista e a neopositivista. (MOREIRA, 2013 [1992], p.26)
Isso aponta para um momento no qual os gegrafos buscam se afastar da mxima
vidalina de que o espao o palco da ao humana, caminhando em direo a uma
resignificao do espao, o que ser feito atravs do entendimento de que ele uma
instncia social relevante para a reproduo da sociedade como um todo. Assim, desvendar
o funcionamento do espao um modo de contribuir para a compreenso de um prisma da
realidade social. Essa a sntese da proposta de espao geogrfico apresentada por Milton
Santos (2004 [1978]) em Por Uma Geografia Nova, livro lanado no encontro da AGB de
1978 em Fortaleza e considerado como a obra que marca o movimento de renovao da
Geografia no Brasil.
No j citado artigo de Ruy Moreira (2013 [1992]) sobre os eventos de 1978, o
gegrafo busca revisitar os acontecimentos que marcaram o movimento de renovao da
Geografia. Em sua perspectiva, aquele contexto foi marcado pela revalorizao da histria,
que havia sido declarada morta pelos pensamentos neopositivista e estruturalista nas
demais cincias sociais. Na Geografia, essa crtica da morte da histria foi tecida
justamente pela crtica estruturalista corrente neopositivista da Geografia Quantitativa. E
como o estruturalismo no havia se desenvolvido na Geografia, ele aparece nesse contexto
como uma novidade. Desse modo, Moreira (2013 [1992], p.28) avalia que o referido livro
de Milton Santos oferece uma viso estruturalista do espao como instncia social,
criticando de forma contundente a Geografia Quantitativa ao mesmo tempo em que
sublima o sujeito da histria.
Na geografia neopositivista, a morte da histria dera-se na forma da reduo do espao a um mero discurso de pontos e linhas. A uma ideia de espao s como forma, despojado de contedo. Fala-se nela de pontos, querendo-se falar de cidades. E fala-se de linhas, querendo-se falar de redes e fluxos de transportes. O que, todavia, a cidade e o que a rede de transportes, o que exprimem como formas de realizao da histria, disso no se cogita. A viso estruturalista do espao como instncia trazida geografia por Milton Santos oferece o elemento essencial crtica da abordagem neopositivista, embora nela o sujeito da histria, contraditoriamente, seja sublimado. (MOREIRA, 2013 [1992], p.28)
29
A questo do avano do estruturalismo na Geografia a partir da dcada de 1970
tambm apontada por Franois Dosse (2007). Ainda que, nesse momento, a corrente
estruturalista estivesse em declnio nas demais cincias sociais, a Geografia no havia
ainda tido contato com ela, o que compreendido por duas chaves. Primeiro, a prpria
natureza do objeto da Geografia, considerado ento como as relaes entre a natureza e a
cultura, interseo que no era abarcado pelas ambies estruturalistas de fundar as
cincias do homem exclusivamente sobre a cultura, modelada pelas regras da linguagem.
Desse modo, a adeso ao estruturalismo implicaria na separao entre os dois domnios do
saber, o que era interpretado pelos gegrafos como uma ameaa aos seus paradigmas
disciplinares (DOSSE, 1994 [1991], p.347).
A segunda chave para a ausncia da Geografia no movimento estruturalista o fato
da disciplina estar ainda muito presa sua histria, vivendo sombra dos louros
conquistados no passado pela geografia vidalina. Franois Dosse aponta que o auge dessa
Geografia Tradicional ocorreu nas dcadas de 1920 e 1930, quando as monografias
regionais so difundidas para fora da Frana. O xito dos gegrafos foi aproveitado pelos
historiadores, atravs de Lucien Febvre. No interior da Escola dos Anais, Febvre defende
vigorosamente Vidal de LaBlache nas disputas traadas com Ratzel e com Durkheim. Em
1929, ao fundar a revista Annales d'histoire conomique et sociale, junto com Marc Bloch,
Febvre convida o gegrafo Albert Demangeon para o comit de redao, e a orientao da
nova escola histrica francesa retoma os aspectos essenciais do paradigma vidaliano. Para
a Geografia, isso significou a perda de seu dinamismo prprio, o que beneficia somente os
historiadores. Assim, entre o ps-guerra e a dcada de 1960, as grandes monografias
regionais sero feitas principalmente por historiadores (DOSSE, 1994 [1991], p.348-349).
Desse modo, a Geografia permanece estruturalmente vinculada Histria e tm suas
prticas limitadas ao que Dosse chama de plano em gavetas, justapondo elementos do
relevo, do clima, da populao, etc., em busca de uma sntese ideal.
Ainda de acordo com Franois Dosse, a dcada de 1970 marca o despertar da
Geografia para a epistemologia, o que ocorre atravs da sua abertura para a matemtica. A
situao intermediria da disciplina, causada por sua localizao entre as cincias da
natureza e as sociais, solucionada atravs do conceito de espao trazido pela Nova
Geografia, colocando a disciplina dentre as cincias humanas. Isso permite que gegrafos
como Yves Lacoste questionem o saber geogrfico fundamentado em formalizaes
30
matemticas, apontando sua insuficincia, na medida em que aquele conjunto de medies
no eram resultado de reflexes tericas13. Lacoste usa, declaradamente, Althusser como
referncia para pensar as diferentes escalas de conceituao e a distino entre o espao
enquanto um objeto real e enquanto um objeto de conhecimento. Desse modo, Franois
Dosse (1994 [1991], p.352) afirma que o espao pensado com base num modelo
althusseriano, fazendo com que a Geografia seja a ltima cincia a ser influenciada pelo
althusserianismo.
Assim, ainda na dcada de 1970, o meio dos gegrafos estava agitado, em um
movimento que no foi unssono em direo renovao. Em meados da dcada, quando o
estruturalismo j estava bastante questionado nas demais cincias sociais, entram na
Geografia as noes de estrutura, sistema e processo (DOSSE, 1994 [1991], p.353). Em
1975, jovens gegrafos franceses colocam-se contra a Geografia Tradicional francesa,
expressando a vontade de romper com o isolamento disciplinar e por-se na interface das
demais cincias sociais14. Segundo Dosse (1994 [1991], p.357), essa virada epistemologia
so os ecos atrasados das questes estruturalistas levantadas nas demais cincias sociais
na dcada de 1960, que direcionavam os pesquisadores a pensar as fronteiras disciplinares
e a crtica das aparncias enganadoras, a fim de fazer emergir a cincia e a teoria.
A influncia do estruturalismo na Geografia simultnea valorizao do espao
como conceito-chave na disciplina. O carter holista presente no estruturalismo ser
tambm transversal ao conceito de espao elaborado pelos gegrafos marxistas, que
apresenta uma interdependncia dos elementos da totalidade social. Nesse sentido,
compreendemos que importante nesse momento nos debruarmos sobre o conceito de
espao que passa a ser discutido no interior do movimento de renovao da Geografia
brasileira. Por um lado, acreditamos que esse conceito nos d a direo de como os
gegrafos marxistas saram da crise disciplinar que identificaram em suas revises do
desenvolvimento histrico da Geografia. Por outro, o conceito de espao desenvolvido
13 Franois Dosse faz referncia ao artigo de Yves Lacoste na enciclopdia sobre a histria da filosofia organizado por Franois Chtelet. Segundo Lacoste, necessrio construir conceitos de acordo com o modelo epistemolgico preconizado por Bachelard (La formatin de l'esprit scientifique, PUF (1938), p.213), de que cumpre refletir para medir e no medir para refletir.
14 Trata-se de uma meno ao boletim criado por alunos da seo de histria e geografia da ENSET (Ecole Normale Suprieure de l'Enseignement Technique), intitulado EspacesTemps. Dada a polmica do contedo da publicao, o boletim acabou impelido a se autonomizar. Em 1976, lanado seu manifesto, onde se l: pensar a geografia; refletir a histria; intervir no ensino; interrogar as cincias sociais (DOSSE, 1994 [1991], p.356).
31
nesse contexto nos mostra o referencial terico atravs dos qual os estudos sobre a periferia
urbana sero feitos na Geografia brasileira, que propriamente nosso objeto de estudo.
32
Captulo 2. A totalidade social como base para o conceito de espao na Geografia Crtica
Como visto at o momento, da segunda metade da dcada de 1970 e na dcada
seguinte, a Geografia brasileira encontra-se em um contexto de questionamentos e de
transformaes. Trata-se de uma situao compartilhada com colegas de outros lugares do
globo, de modo que havia uma espcie de desencanto com as prticas em curso na
Geografia. Alm disso, tanto na Geografia brasileira, como na francesa, havia a percepo
de que a disciplina apresentava-se incapaz de dar explicaes sobre o mundo. Essa situao
teve impacto at mesmo na Geografia anglo-sax, como fica expresso quando David
Harvey (1980 [1973], p.11) diz que quando realmente [ns, gegrafos] dizemos alguma
coisa, ela parece trivial e talvez ridcula.
Desse modo, uma srie de desconfortos com a prpria disciplina marcavam os
gegrafos daquele momento, que passavam desde o prestgio dentre as outras cincias
sociais, quanto pelo modo negativo como eles avaliavam a Geografia at o momento,
acusada de ter uma baixa capacidade explicativa e vinculaes polticas conservadoras.
Considerando especificamente o caso da Geografia brasileira, o caminho encontrado para
sair dessa crise passou pela busca de uma explicao marxista do espao, de modo que
fosse possvel elucidar quais so as articulaes entre os movimentos da sociedade
considerando a histria, a economia, os movimentos sociais, etc. e a base geogrfica
onde isso se desenvolvia. Buscava-se responder como o espao estava inserido na
totalidade social, escapando de uma perspectiva que via o conhecimento geogrfico como
enciclopdico e sem grandes potencialidades polticas.
Isso passava por uma reviso crtica dos conceitos usados at ento na Geografia
para analisar a realidade, com o objetivo de apontar de que forma suas limitaes
explicativas contribuam para uma cincia politicamente conservadora. A Geografia
Tradicional tinha a regio como conceito-chave em suas explicaes. Como vimos, foi com
a Geografia Quantitativa que o conceito de espao passou a ser valorizado na Geografia.
Contudo, tratava-se de um espao absoluto, contingente da vida social. Desse modo, para
aqueles gegrafos crticos, nem a regio da Geografia Tradicional, nem o espao da
Geografia Quantitativa caminhavam no sentido de um conceito de espao que contribusse
para uma interpretao da sociedade e de seu movimento.
33
No temos a pretenso de esgotar a discusso acerca do espao nesse contexto.
Antes, nosso nico objetivo apresentar a polmica e fornecer elementos sobre como o
conceito de espao mobilizado pelos gegrafos renovadores, com destaque para os
brasileiros, que sero importantes na segunda parte desse trabalho. O que pretendemos
que, ao chegarmos na segunda parte do trabalho, tenhamos um conjunto de reflexes feitas
para dar conta do uso que ser feito do conceito de espao nas pesquisas empricas. Dito
isso, seguimos ao nosso argumento, que ser conduzido por dois eixos.
O primeiro deles diz respeito a uma reflexo acerca da escala, naturalizada na
Geografia sobretudo atravs dos estudos regionais15. No entanto, surgem questionamentos
de que a escala no expressa unicamente uma proporo matemtica entre a realidade e a
representao cartogrfica, o que a colocaria circunscrita no campo da cartografia16. Ao
contrrio, aquelas reflexes apontam para uma compreenso de que a escala seleciona
quais fenmenos da realidade so perceptveis e, portanto, quais podem ser investigados,
sendo desse modo um elemento importante de discusso na Geografia humana.
Yves Lacoste (2005 [1976]) procura se afastar da geografia regional de influncia
vidalina, questionando dois de seus atributos. Primeiro, a compartimentao da realidade
em regies, como se estas fossem reas que naturalmente agrupam um conjunto de
caractersticas ambientais e sociais. Isso no se sustenta devido ao fato de que cada um
desses aspectos clima, geologia, demografia, etc. tem extenso distinta do outro, de
modo que elas no coincidem exatamente. Alm disso, a palavra regio usada para fazer
referncia a realidades dos mais diferentes tamanhos, compreendendo desde um conjunto
de cidades, at uma zona climtica inteira. A questo para Lacoste que essas dimenses
variadas da realidade expressam nveis de anlise da realidade, que permitem visualizar
determinados fenmenos, ao passo que escondem outros. Assim, segundo o exemplo dado,
a compreenso de um acontecimento climtico exige que uma vasta rea do planeta seja
considerada, ao passo que uma eroso ser visvel apenas em uma escala maior. Desse
modo, a escala no apenas nos fornece um grau de aproximao de um dado fenmeno,
15 Para Yves Lacoste (2005 [1976], p.59 e segs.), a geografia escolar e universitria a qual faz referncia em seu livro foram influenciadas ou at mesmo formadas sob a perspectiva vidalina de geografia regional.
16 Para Racine, Raffestin e Ruffy (1983 [1980], p.124), a Geografia emprestou a escala da Cartografia, no desenvolvendo um conceito prprio. Isso tem implicaes na disciplina, j que a cartografia exprime uma representao matemtica do espao e a geografia busca compreender a relao entre as sociedades e o espao. Dessa forma, a escala cartogrfica pode ser um instrumento da geografia, mas no o seu conceito de escala, pois nada diz sobre a relao sociedade-espao.
34
mas de fato seleciona o que pode ser visto naquele nvel de anlise (LACOSTE, 2005
[1976], p.77). por essa razo que para o autor, no existe nveis de anlise privilegiado
para o conhecimento, visto que cada uma delas permite visualizarmos certos fenmenos,
que no conhecemos previamente e portanto no podemos negligenciar.
Racine, Raffestin e Ruffy (1983 [1980]) apontam que, em Geografia, a escala
abarca um conjunto de elementos da realidade que so pertinentes ao estudo que se
pretende fazer. Nesse sentido, delimitar uma escala de anlise significa escolher um rol de
fenmenos que auxiliam o pesquisador a refletir sob um determinado prisma. Ainda
segundo os autores, trata-se de algo distinto do que feito em Cartografia, onde a escolha
da escala significa a demarcao de uma rea de estudo. Alm disso, nos estudos
geogrficos, a escala confere alguns atributos realidade observada, de modo que, quanto
maior a escala, as informaes so mais factuais, o vivido valorizado e tem-se a
tendncia heterogeneidade. No caso contrrio, quanto menor a escala, as informaes so
estruturadas e tem-se a tendncia homogeneidade dos fenmenos. Para os autores, a
homogeneidade a distribuio uniforme de um fenmeno, e a heterogeneidade a
concentrao desse fenmeno.
Na escala de uma regio urbana, por exemplo, a coroa urbana parece homognea. Os mesmos dados, estudados na escala da coroa, somente, mostram um grau de heterogeneidade muito grande. Variaes locais podem produzir formas de grupamento em grande escala enquanto que variaes regionais podem traduzir-se pelo que nos aparece como uma distribuio homognea. (RACINE et. Alli., 1983 [1980], p.125)
Nesse sentido, essa discusso implica, inicialmente, em desnaturalizar a escala
preferencial da Geografia