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0 VIAGENS DE FORA PARA DENTRO: profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim por CÍNTIA MACHADO DE CAMPOS ALMEIDA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Vernáculas, na subárea de Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Rio de Janeiro 2014

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VIAGENS DE FORA PARA DENTRO:

profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim

por

CÍNTIA MACHADO DE CAMPOS ALMEIDA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas, na subárea de

Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua

Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Letras

Vernáculas, na especialidade de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia

Tindó Ribeiro Secco

Rio de Janeiro

2014

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Almeida, Cíntia Machado de Campos.

Viagens de fora para dentro: profanações e vagamundagens

de Luís Carlos Patraquim / Cíntia Machado de Campos Almeida.

– 2014.

273 p. ; 30 cm.

Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

Bibliografia: f. 242 – 256.

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

1. Literatura moçambicana contemporânea. 2. Poesia. 3. Luis

Carlos Patraquim. I. Título.

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Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ

(Orientadora)

Professora Doutora Ida Ferreira Alves – UFF

Professor Doutor Luis Cláudio de Sant‟Anna Maffei – UFF

Professora Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ

Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ

Professora Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ

Professora Doutora Vanessa Ribeiro Teixeira – UFRJ

Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2014.

ALMEIDA, Cíntia Machado de Campos. Viagens de fora para dentro:

profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim. Tese de

Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014, 273 p.

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3

Ao meu “barco elementar”, constituído por:

Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, leme e bússola. Exemplo.

E Luís Carlos Patraquim, vela içada. Inspiração. O melhor dos poetas, sem talvez.

E aos meus portos:

Haroldo, Kadu e Heitor: pai, marido e filho. Amores.

Pois toda viagem pressupõe um retorno.

E todo barco sempre sente a necessidade de, também, ancorar.

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AGRADECIMENTOS

A Deus. Propulsão. Alimento.

À minha família. Base, apoio, porto. Amor.

Aos amigos. Família eletiva. Torcida. Em especial, às camaradas Fernanda

Antunes Gomes da Costa e Vanessa Relvas de Oliveira Ribeiro, amigas-irmãs.

Portas escancaradas: casa e coração.

À Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, orientadora de

sempre e para sempre. Meu prumo. Afeto: amiga, mamã, casa.

À Professora Doutora Edna Maria dos Santos. Paciência, disponibilidade, alma

e poesia. AFRIKIN!

À Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Ideia, incentivo, aposta.

Ao poeta Luís Carlos Patraquim. Todos os esclarecimentos a qualquer hora,

dosados com (muito) bom humor!

Aos Professores Doutores Luci Ruas, Luis Cláudio Maffei, Ida Ferreira

Alves e Jorge Fernandes da Silveira. Indispensáveis. Aceite, atenção, enriquecimento.

Ao Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Faculdade de

Letras da UFRJ. Resistência.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, casa

acadêmica. Às funcionárias Patrícia Barbosa Oliveira Pereira e Urânia. Seriedade,

solicitude e simpatia.

Ao CNPq. Fomento, realização.

A todos vocês, KHANIMAMBO!

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SINOPSE

Interpretação da obra poética de Luís Carlos

Patraquim, expoente da literatura moçambicana

contemporânea. A internalização do olhar lírico do

poeta e o alargamento dos percursos simbólico e

intertextual de sua escrita. A paisagem como

instância reflexiva de desejos e memórias. As

profanações da poesia patraquimiana.

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quando a Palavra cai até à sua última altura

um incêndio magnífico recomeça

a desordem do Mundo

Luís Carlos Patraquim1

Os olhos são mais maduros, agora, e podem olhar-se por dentro.

Eduardo White2

Esgueirando-se pelas mesas, vacila espreitando às portas, procurando os amigos, as

vozes boas do coração. Surge menino-homem homem-menino, de palavras doces, de

palavrões acertados, morrendo e renascendo a cada instante, um riso largo, uma

lágrima grossa a correr pela face, o retrato na cabeceira da memória – Patraquim.

Teresa Roza d‟Oliveira3

1 PATRAQUIM, 2011, p. 141.

2 WHITE, 1992, p. 13.

3 D‟OLIVEIRA, 1992, p. 15.

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RESUMO

Interpretação da obra poética de Luís Carlos Patraquim, expoente da literatura

moçambicana contemporânea. Reflete-se acerca da paisagem, que no início de sua

trajetória lírica, era captada de fora para dentro: o olhar poético partia dos contornos

físicos de seus redores para então alcançar suas possíveis dimensões simbólicas –

lugares íntimos, suscitados pelas memórias. No decorrer de três décadas e meia de

carreira literária e oito livros de poesia publicados, o olhar do poeta entranhou-se corpo

adentro. Partindo da pele, passou a mirar, gradativamente, a carne, o sangue, os ossos,

os brônquios até alcançar o inconsciente, cuja dimensão metafísica, metaforizada pelo

escuro, empreendeu uma busca pelas origens do ato de criação poética. Em

contrapartida, à proporção que minimalizava suas referências paisagísticas, Patraquim

expandia suas referências intertextuais: o poeta, que se lança à literatura em 1980

estabelecendo diálogos, em sua maioria, restritos a nomes representativos da poesia em

língua portuguesa, paulatinamente amplia suas possibilidades dialógicas,

universalizando-as. Defende-se a hipótese de que o poeta moçambicano, livro a livro,

interioriza sua percepção de mundo, na medida em que alarga os percursos simbólico e

intertextual de sua poesia. Aborda-se a paisagem como instância reflexiva de desejos,

memórias e afetos e discorre-se acerca dos múltiplos sentidos deste conceito na escrita

lírica de Patraquim. Discute-se as profanações da poesia patraquimiana, segundo

Giorgio Agamben. As bases metodológicas desta tese articulam a literatura com a

história, a geografia e a sociologia.

ALMEIDA, Cíntia Machado de Campos. Viagens de fora para dentro:

profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim. Tese de

Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014, 273 p.

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ABSTRACT

Understanding of the poetic work by Luis Carlos Patraquim, exponent of the

contemporary Mozambican literature. It is a reflection on the sightseeing which was

perceived from the inside to the outside in the beginning of its lyric path: The poetic

view arised from the physical shape of the surroundings to its possible symbolic

dimensions – inner places, brought by memories. During three and a half decades and

eight poetry books published, the view of the poet went inside the body. From the

skin, he started to watch, gradually, meat, blood, bones, bronchi until reaching the

unconsciousness whose metaphysical dimension, using darkness as metaphor , the poet

started to search through the origins of the poetic creative act. On the other hand, as far

as he diminished his sightseeing references, Patraquim expanded his intertextual

references: the poet, who started his literary career in 1980 by establishing dialogues, in

its majority, limited to names which represented the Portuguese language poetry,

gradually amplifies his dialogic possibilities, in a global way. In this work, there is a

hypothesis related to the mozambican poet, in each book, he inners his world

perception as far as he enlarges the symbolic and intertextual ways of his poetry. The

sightseeing is viewed as a reflexive instance of wishes, memories and affection where

the multiple meanings of this concept is shown in the lyric writing by Patraquim. There

are also some discussions on the profane of the patraquinian poetry , according to

Giorgio Agamben. The methodological basis of this thesis articulate literature and

history, geography and sociology.

ALMEIDA, Cíntia Machado de Campos. Viagens de fora para dentro:

profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim. Tese de

Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014, 273 p.

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RESUMEN

Interpretación de la obra poética de Luis Carlos Patraquim, exponente de la

literatura mozambiqueña contemporánea. Reflexiona acerca de los paisajes, que en el

inicio de su trayectoria lírica, eran captados de fuera para adentro: la inspiración poética

partía de las formas físicas de sus alrededores para después alcanzar sus posibles

dimensiones simbólicas – lugares íntimos, sugeridos por las memorias. En el transcurso

de tres décadas y media de carrera literaria y ocho libros de poesía publicados, la mirada

del poeta se adentró en su cuerpo. Partiendo desde la piel, pasó a mirar gradualmente la

carne, la sangre, los huesos y los bronquios hasta alcanzar el subconsciente, cuya

dimensión metafísica, metaforizada por la oscuridad, emprendió una búsqueda por los

orígenes de la creación poética. En contrapartida, la proporción que minimalizaba sus

referencias paisajísticas, Patraquim expandía sus referencias intertextuales: el poeta, que

se lanza a la literatura en 1980, estableciendo diálogos, en su mayoría, restringidos a

nombres representativos de la poesía en lengua portuguesa, paulatinamente amplia sus

posibilidades dialécticas, universalizándolas. Se defiende la hipótesis de que el poeta

mozambiqueño, libro a libro, interioriza su percepción del mundo, en la medida en la

que agranda los recursos simbólicos e intertextuales de su poesía. Aborda los paisajes

como instancia reflexiva de deseos, memorias y afectos y se discurre a través de estos

múltiples sentidos en la lirica de Patraquim. Se abordan las profanaciones de la

escritura lirica de Patraquim, según Giorgio Agamben. Las bases metodológicas de esta

tesis articulan la literatura con la historia y la geografía con la sociología.

ALMEIDA, Cíntia Machado de Campos. Viagens de fora para dentro:

profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim. Tese de

Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014, 273 p.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................13

1.1. No encalço de uma lírica travessia: a escolha pelo aedo de Alto Maé ....................13

1.2. A tese e a originalidade da pesquisa ........................................................................15

1.3. A estrutura da tese ...................................................................................................16

1.4. Das rotas teóricas .....................................................................................................18

2. TRÊS PERCURSOS, UMA VIAGEM ...................................................................32

2.1. A descoberta dos ventos: Monção, “livro de começo” ............................................43

2.1.1. Tatuagens textuais ........................................................................................47

2.1.2. A “morna geografia do ventre”: a paisagem dos desejos .............................50

2.1.3. “a sul implanto uma cartografia sem limites” ..............................................54

2.1.4. As paisagens da memória .............................................................................57

2.1.5. Direito de resposta ........................................................................................67

2.2. Ainda, a descoberta: um poeta em viagem ..............................................................69

2.2.1. “Inaugural país de folhas nuas”: princípios de geo(ero)grafia .....................75

2.2.2. Os sentidos da paisagem e a (re)invenção de Maputo ..................................78

2.2.3. Reinventários culturais ................................................................................ 88

2.2.4. Das coisas que existem .................................................................................96

2.3 As nervuras da poesia ............................................................................................ 106

2.3.1. “A umbila sob as palavras” ........................................................................109

2.3.2. “Os barcos elementares” .............................................................................133

2.3.3. A carne do poema ......................................................................................146

3. LUAS, BLUES E OSSOS .......................................................................................155

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3.1. O subúrbio azul ......................................................................................................156

3.2. O blues da rua ........................................................................................................171

3.3. Osteopoética ..........................................................................................................182

3.4. Outros ossos ...........................................................................................................192

4. INTRAPOESIA ......................................................................................................203

4.1. Os brônquios do poema .........................................................................................203

4.2. Prosemas ................................................................................................................215

4.3. Escrita em blackout ...............................................................................................224

4.4. Mais dentro ............................................................................................................228

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................237

6. REFERÊNCIAS BIBLIO E WEBGRÁFICAS ...................................................242

6.1. Obras de Luis Carlos Patraquim ........................................................................... 242

6.2. Referências específicas sobre o poeta e a obra de Luis Carlos Patraquim ........... 242

6.3. Bibliografia Geral ................................................................................................. 245

7. REFERÊNCIAS PICTÓRICAS, FONOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS ...... 255

8. ANEXOS ................................................................................................................. 257

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa de Moçambique ...................................................................................33

Figura 2 – Estádio da Machava, Moçambique, em 25 de junho de 1975: proclamação da

independência moçambicana ......................................................................................... 37

Figura 3 – Estádio da Machava, Moçambique, em 25 de junho de 1975, dia da

proclamação da independência: o primeiro hastear de bandeira da República Popular de

Moçambique .................................................................................................................. 37

Figura 4 – Nyau, dança ritualística moçambicana ......................................................... 62

Figura 5 – Timbila ....................................................................................................... 110

Figura 6 – Aparição do halakavuma ............................................................................ 120

Figura 7 – Halakavuma ................................................................................................ 120

Figura 8 – N‟goma ....................................................................................................... 128

Figura 9 – Gala-gala .................................................................................................... 128

Figura 10 – Máscara de m‟siro .................................................................................... 139

Figura 11 – Máscara de m‟siro .................................................................................... 139

Figura 12 – Casas de macuti ........................................................................................ 198

Figura 13 – Lazurita, pedra bruta ................................................................................ 216

Figura 14 – Lazurita, pedra polida ............................................................................... 216

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1. INTRODUÇÃO

1.1. No encalço de uma lírica travessia: a escolha pelo aedo de Alto Maé

Nossa tese está vinculada às linhas de pesquisa “LITERATURAS

PORTUGUESA E AFRICANAS: RELAÇÃO ENTRE CULTURA E ARTE” e

“ESTUDOS DE POESIA PORTUGUESA E AFRICANA – POESIA E POÉTICA”,

ambas do Curso de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, bem como ao Projeto de Pesquisa “A ALQUIMIA DO CANTO E DOS

AFETOS NA POESIA ANGOLANA E MOÇAMBICANA CONTEMPORÂNEAS”,

coordenado por nossa orientadora, Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro

Secco. Os 48 meses de duração de nossos estudos foram integralmente fomentados por

bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

– CNPq/Brasil.

Motivados pelo desejo antigo de promover um estudo crítico-interpretativo de

toda a obra poética de Luís Carlos Patraquim, nome representativo da poesia

moçambicana contemporânea, propomos a investigação de lugares referenciais e

simbólicos pelos quais circulam as imagens evocadas por seus poemas.

Acerca dos caminhos que nos conduziram a Luís Carlos Patraquim, precisamos

confessar que ainda não sabemos, ao certo, se fomos nós que escolhemos sua poesia ou

se foi ela que nos escolheu.

A opção pela obra do poeta que hoje se traduz como nosso objeto de tese

remonta-nos ao ano de 2003, quando ainda éramos um dos membros integrantes do

Projeto de Pesquisa Por entre palavras e imagens: mito, memória e paisagem em letras

e telas de Angola e Moçambique, desenvolvido numa parceria entre CNPq e a

Faculdade de Letras da UFRJ desde 1999, sob a coordenação de nossa orientadora,

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Professora Doutora Carmen Tindó Secco. Aliás, os poemas de Patraquim nos foram

sugeridos por ela, a fim de protagonizar o projeto de pesquisa que nos levou a concorrer

– e a conquistar – uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian,

por intermédio da Cátedra Jorge de Sena para estudos literários luso-afro-brasileiros de

nossa Faculdade.

Ao findar de um ano, o estudo da poesia de Patraquim culminou no artigo “Por

onde ecoam sonhos, desejos, paisagens e memórias em letras e cores de Moçambique”

(ALMEIDA, 2004, p. 89-96), apresentado em versão resumida na XXV Jornada de

Iniciação Científica daquele ano e publicado na íntegra no quinto volume da Revista

Metamorfoses.

Nós, que havíamos iniciado os estudos acadêmicos na área das literaturas

africanas de língua portuguesa em 2001, com pesquisas centradas na poesia de Eduardo

White, não apenas expandíamos nosso conhecimento acerca da literatura moçambicana,

como também amadurecíamos nossas vivências acadêmicas graças a tudo o que

Moçambique tinha – e ainda tem – para nos ensinar.

No entanto, desde então, não retornamos à poesia de Patraquim. Enveredamos

por outras rotas de pesquisa durante o Mestrado e a Pós-Graduação. Pensávamos que

havíamos esgotado as possibilidades de estudo sobre a obra do poeta, quando, no

primeiro semestre de nosso curso de Doutorado, em 2010, após a certeza de que

desbravaríamos o insular universo poético cabo-verdiano, recebemos grande incentivo

da professora, ensaísta e poetisa Ana Mafalda Leite para reformularmos nosso projeto

de tese. Desconhecíamos o fato de que, até então, a obra de Patraquim ainda não havia

inspirado uma tese de doutoramento centrada em seu legado poético, o que muito nos

incentivou a retomar a fúria dos versos do moçambicano.

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Em comum acordo com nossa orientadora, adiamos o projeto de pesquisa sobre

a poesia de Cabo Verde e regressamos à casa lírica moçambicana. E a rosa de Luís

Carlos Patraquim rompia o asfalto de nossos estudos acadêmicos mais uma vez.

1.2. A tese e a originalidade da pesquisa

Partindo do conceito de paisagem, tomado de empréstimo da Geografia e

alargado pelas reflexões de outras áreas de conhecimento, nossa tese almeja

compreender os múltiplos significados da paisagem na obra poética de Patraquim. Ao

longo de seu percurso literário, o poeta estabelece uma espécie de „lírica da paisagem‟,

que se desdobra em múltiplas dimensões, dentre as quais destacamos a histórica,

cultural, social, mítica, subjetiva, erótica, linguística, metapoética e intertextual.

Nossa tese buscará comprovar que paisagem e poesia constituem instâncias

amalgamadas na obra de Luís Carlos Patraquim. E sobre ambas, desponta uma

particularidade comum: a cada livro, afloram de modo mais intimista, como nos mostra

seu percurso poético. Eis, aqui, o vetor edificante de nosso trabalho.

No início da trajetória lírica patraquimiana, a paisagem correspondia a um lugar

captado predominantemente de fora para dentro: veremos que o olhar poético partia dos

contornos físicos de seus redores, compostos por elementos e formas referenciais, para

então alcançar suas possíveis dimensões simbólicas – lugares íntimos, suscitados pelas

memórias e pelos afetos, lícitas pela ação da função poética da linguagem. Contudo, ao

longo de sua produção poética, o corpo paisagístico vai perdendo sua totalidade visível:

livro a livro, a poesia interioriza-se. Ao passo que transforma suas percepções de mundo

desde 1980, o poeta redireciona seu olhar, concebendo suas imagens poéticas sob

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perspectivas cada vez mais aprofundadas. Eis as hipóteses de nossa tese que, ao longo

de nossa análise, tencionamos demonstrar.

No decorrer de três décadas e meia de exercício poético, as retinas líricas de

Patraquim violaram o corpo-paisagem de modo a penetrá-lo. Seu olhar deixou-se

entranhar corpo adentro; da pele, passou captar, gradativamente, a carne, o sangue, os

ossos, os brônquios até alcançar o “escuro anterior”4, embrenhando-se pelo

inconsciente, em busca das origens do ato de criação poética.

Semelhante mudança de fluxo também procuraremos constatar com relação à

paisagem geográfica apreendida por sua poesia: os ventos, representados pelas

monções, a terra, o mar, a ilha, o país, o subúrbio, motes primordiais referentes aos

espaços físicos evocados pela escrita patraquimiana, foram, gradualmente,

compartilhando versos com paisagens íntimas, clamadas pelas memórias.

Assim, formulamos nossa tese embasados nas referidas especificidades

observadas na fortuna poética de Luís Carlos Patraquim e defendemos a hipótese de que

o poeta moçambicano, livro a livro, interioriza sua percepção de mundo, na medida em

que alarga os percursos simbólico e intertextual de sua poesia.

1.3. A estrutura da tese

Desenvolvemos nossa tese ao longo de três capítulos textuais.

Optamos por dividir as seções de nossa tese de acordo com as fases poéticas que

reconhecemos no conjunto da lírica patraquimiana. Esclareçamos, pois, que a proposta

desse agrupamento possui um caráter estritamente didático, a fim de evidenciar a ideia

central que pretendemos defender: a interiorização da mensagem de sua poiesis e sua

4 O escuro anterior (2001): o mais recente livro de poemas de Patraquim.

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expansão intertextual. Os critérios que nos levaram a agregar suas obras, de modo a

compor as referidas fases literárias do poeta moçambicano, serão devidamente

justificados no decorrer de cada capítulo. Consideramos válida a inserção de reflexões

que focalizem, de modo panorâmico, o contexto histórico de Moçambique a partir de

1975, ano de sua independência política. Concordamos com Antonio Candido ao

conceber que “[...] as considerações históricas, longe de desvirtuarem a interpretação

dos autores e dos movimentos, podem levar a um juízo estético mais justo”

(CANDIDO, 1997, p. 18). Em vista desse propósito, a contextualização histórica da

qual participa Patraquim encontra-se diluída ao longo de cada capítulo.

Iniciamos nossas reflexões pela leitura crítico-interpretativa dos três primeiros

livros que consideramos caracterizar a primeira fase de sua poesia: Monção (1980), A

inadiável viagem (1985) e Vinte e tal formulações e uma elegia carnívora (1991), esta

última uma obra a sinalizar o fechamento de um circuito poético que também significará

a abertura de novas possibilidades líricas.

A primeira jornada patraquimiana, da qual se ocupa o segundo capítulo desta

tese, compreende, segundo o próprio poeta, uma trilogia. Veremos que, na presente fase,

Patraquim percorre, ao longo de onze anos, um itinerário composto, ainda, por

referências paisagísticas – geográficas e culturais – predominantemente exteriores. Em

tempo, acompanharemos um alargamento paulatino de suas redes intertextuais.

Os títulos publicados entre 1992 e 2004 – Mariscando luas (1992), Lidemburgo

blues (1997) e O osso côncavo (2004) – inspiram nossos apontamentos no terceiro

capítulo. Juntos, assinalam a segunda fase do percurso poético de Patraquim. Neste

ciclo, avaliaremos a presença de um teor subjetivo mais intimista, em comparação ao

ciclo anterior, perceptível, principalmente, em relação aos índices paisagísticos.

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Prenunciada pelos últimos poemas de O osso côncavo e outros poemas (2004), a

terceira e mais recente fase da poesia patraquimiana consiste no objeto de nossas

reflexões no quarto e derradeiro capítulo deste estudo. Este ciclo, que se consolidou, até

agora, com os dois últimos livros de poesia publicados por Patraquim – Pneuma (2009)

e O escuro anterior (2011) integra a fase que nomeamos de intrapoética.

Em Pneuma (2009), procuraremos provar que a poesia de Patraquim imerge nas

profundezas da subjetividade: primeiramente, com os poemas de 2009, reporta-se aos

brônquios do intimismo e institui sua „pneumopoética‟, ao captar o ritmo respiratório da

escrita poética. Em 2011, averiguaremos a possibilidade de ir mais dentro deste

mergulho lírico. De mãos dadas com o sujeito lírico, adentraremos pelo breu da

inconsciência, em demanda do próprio ato de criação poética. Pretendemos mostrar que,

nesta fase, o poeta marca as nervuras mais interiorizadas, herméticas e fragmentadas de

sua obra poética.

1.4. Das rotas teóricas

Articularemos nossas leituras a abordagens teóricas interdisciplinares consoantes

à literatura: conhecimentos oriundos de áreas outras das humanidades, como história,

filosofia, ciências sociais e geografia, fundamentarão nossas reflexões.

Dentre os alicerces críticos evocados à luz por nossas linhas, destacaremos

aqueles que representam o cerne teórico de nossa tese: a problematização dos conceitos

de profanação e paisagem, bem como os múltiplos sentidos que os referidos termos

podem assumir, quando em consonância com a interpretação dos poemas de Luís Carlos

Patraquim.

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Para desenvolvermos nossa proposição, precisávamos encontrar uma teoria que

respaldasse as transgressões que o poeta moçambicano promove com sua escrita lírica

em relação à história da literatura moçambicana.

Motivados pela palavra „transgressão‟, alcançamos, por sinonímia, outra, que

muito nos intrigou: transgredir equivaleria, segundo os dicionários de Língua

Portuguesa, a uma forma de „profanar‟. Partimos, assim, em demanda de significações

para esse termo, a fim de averiguar se poderíamos aplicá-lo conceptualmente em nossa

tese; se, de fato, a „profanação‟ consistia em uma marca da poiesis patraquimiana.

A grande maioria das acepções desse vocábulo remete a um campo semântico

negativo, como “fazer mau uso”, “degradar”, “aviltar”, “tornar impuro”, “macular”,

“desonrar”, “ofender”, “injuriar”, “afrontar”, dentre outras denotações. Ao nos

defrontarmos com Profanações (2007), de Giorgio Agamben, sentimo-nos motivados,

de súbito, já pelo título da obra.

Não tivemos dúvidas quanto à eleição das contribuições agambenianas no

conjunto teórico de nossa tese, a começar pela certeza de que sua proposição coincide

com a nossa: a de que „profanar‟ equivale a uma forma de reinvenção. Encontramos aí

um ponto de confluência entre o conceptu do filósofo e a poiesis de Patraquim.

Veremos que o poeta profana paisagens, memórias, desejos, a história, a sociedade, bem

como sua própria escrita lírica. Casaremos as linhas do crítico italiano com os versos

do moçambicano já a partir do segundo capítulo da tese.

Veremos que, para Agamben, profanação significa um tipo de reutilização e,

portanto, a reinvenção de um uso, anteriormente „sacralizado‟, isto é, apartado do uso

comum. Nesse sentido, o ato de profanar constitui uma forma de libertação e de

recriação do que foi profanado. Partiremos da hipótese de que Patraquim profana a

literatura moçambicana do período pós-independência, revisitando – e recriando – um

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lirismo anterior, na medida em que reinventa o lirismo intimista já existente em seu

país.

A poetisa e pesquisadora de literaturas africanas de língua portuguesa Ana

Mafalda Leite, em Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003), confirma

as profanações patraquimianas por meio das ideias de “rasura”, “contraste” e

“subversão”. Para a ensaísta, a poesia do moçambicano compreende

um percurso que se concretiza numa textualidade onde se revela e, ao mesmo

tempo, se rasura a dimensão de natureza ideológica, que se inscreve,

todavia, obtusa e transversalmente. Prática que contrasta com a postura,

muitas vezes, vitoriosa do discurso mimético e pleno, erguido da então

recente conquista da independência política. Escolha porventura difícil,

subvertendo a monção favorável do slogan, da palavra de ordem e, diga-se

também, o vazio editorial que, na altura, o primeiro livro do poeta veio

preencher (LEITE, 2003, p. 127-8. Grifos nossos).

A paisagem compreende outra importante baliza teórica de nossa tese. Consiste

em um elemento essencial da poesia patraquimiana e estratégico para o

desenvolvimento de nossa hipótese, uma vez que, por meio da experiência da paisagem

vivenciada nos versos de Patraquim, conseguiremos demonstrar a ponderada

interiorização de seu percurso poético.

Elucidaremos que, em sua poesia, as paisagens constituem instâncias plurais,

que se desdobram em múltiplas dimensões. Para além da paisagem natural, de cunho

físico, os versos do moçambicano nos revelam paisagens outras, transbordantes de

histórias, manifestações culturais, indícios eróticos e resquícios mnemônicos. Em busca

de olhares críticos que embasassem a condição pluridimensional da paisagem, bem

como os múltiplos sentidos que esse conceito pode engendrar, optamos pelas

contribuições de Simon Schama – professor de História e História da Arte na

Universidade Columbia, em Nova York – e Michel Collot – professor de literatura

francesa na Université Sorbonne Nouvelle.

Observou Collot que,

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se é verdade que toda uma tendência da arte e do pensamento no Ocidente

pôde, desde os Tempos Modernos, colocar e tratar a paisagem como um

objeto, uma tendência inversa aflorou, ao menos desde o Romantismo, para

dele fazer a expressão íntima entre o homem e o mundo. Tal tendência tornou

possível a emergência desse “pensamento-paisagem”, que hoje me parece

inspirar não apenas obras, mas também práticas paisagísticas que recusam os

danos do Modernismo e reinventam, através de formas e novas

circunstâncias, a antiga aliança do ser humano com seu meio. (COLLOT,

2013, p.14)

Nossa pesquisa almeja mostrar que o lirismo patraquimiano viabilizou a inserção

do pensamento-paisagem na poesia moçambicana pós-80, reinventando – e reatando –

seus laços com seu país e com o lirismo anterior nele existente.

Partiremos do princípio de que a paisagem reflete bem mais do que a imediata

visão para além das janelas: nela estão impressas marcas subjetivas que se revelam

como frutos de um modo de ver e, por extensão, de um estado de alma (AMIEL. In:

COLLOT, 2010, p. 207.). A partir do segundo capítulo desta tese, elucidaremos os

contributos de Schama, para quem toda paisagem é constituída de „bagagens‟ subjetivas

e apreendida, sobretudo, pelos olhos da mente.

Em meio ao trabalho de interpretação da poesia patraquimiana, também

esmiuçaremos o mesmo conceito, segundo Collot. Para o pesquisador, a paisagem se faz

conivente com os sentidos a ela atribuídos, e plenamente passível de receber – e inspirar

– incontáveis possibilidades de leituras, concernentes ao domínio do visível, como do

invisível.

Pontuou o geógrafo Frederico Roza Barcellos (UFRJ) que, a partir da década de

1970, com a renovação dos estudos geográficos, a Geografia passou a focar,

principalmente, a dimensão cultural do espaço. A área, que hoje procura alternativas

para novas formas de apreensão espacial, “muito tem a ganhar através da incorporação

crítica de discursos [outros], como o da literatura” (BARCELLOS, 2009, p. 42).

Concordamos com o pesquisador que, no encalço de um lugar para a abordagem

literária no pensamento geográfico, visando à renovação metodológica de seu campo

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intelectual, abre-nos precedentes para promovermos o possível encontro entre leituras

poéticas e reflexões concebidas pela Geografia Cultural.

Embasados ainda – e também – em Michel Collot, para quem “a Geografia [...]

integra cada vez mais a dimensão histórica, tornando-se uma Geografia humana,

econômica, social e cultural, mais que uma Geografia física” (COLLOT, 2013, p. 15),

nossa tese se propõe a iniciar um diálogo entre a o olhar poético e o geográfico.

Optamos por ir ao encontro da Geografia cultural, vertente que busca abordar o

conceito de paisagem enquanto instância pluridimensional, como, aliás, também a

concebe a poesia de Patraquim. De acordo com os geógrafos Roberto Lobato Corrêa

(UFRJ) e Zeny Rosendahl (UERJ), toda paisagem é portadora de um número indefinido

de significados: expressam valores, transmitem-nos crenças, recontam-nos mitos,

confidenciam-nos suas utopias (CORRÊA; ROSENDAHL, 2004, p. 8). Assim sendo,

em nossa tese ecoarão vozes oriundas dos estudos geográficos, como as de Paul Claval,

Carl Sauer, Denis Cosgrove e Augustin Berque. Suas reflexões participam da linha de

pesquisa coordenada por Corrêa e Rosendahl, que descarta a apreensão da paisagem sob

um aspecto meramente referencial. Ao contrário, consideram-na como o “resultado da

ação da cultura, ao longo do tempo, sobre a paisagem natural” (SAUER. In: CORRÊA;

ROSENDAHL, 2004, p. 7).

As reflexões oriundas da Geografia cultural confluem para a concepção de

paisagem, segundo Michel Collot, que, outrossim, a considera

[...] como uma manifestação exemplar da multidimensionalidade dos

fenômenos humanos e sociais, da interdependência do tempo e do espaço e

da interação da natureza e da cultura, do econômico e do simbólico, do

indivíduo e da sociedade. A paisagem nos fornece um modelo para pensar a

complexidade de uma realidade que convida a articular os aportes das

diferentes ciências do homem e da sociedade. (COLLOT, 2013, p. 15)

Memória, sociedade e subjetividade constituem instâncias críticas em frequente

permuta, indissociáveis da poesia patraquimiana.

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Discorreremos acerca da significância da memória – tema cuja importância e

pertinência para o estudo da obra de Patraquim não poderia passar incólume. Para tanto,

pautaremos nossas reflexões pelas contribuições críticas de nomes como Jacques Le

Goff, Andréas Huyssen, Beatriz Sarlo e Simon Schama.

Andréas Huyssen, Professor de Literatura Comparada e Especialista em Estudos

Culturais da Universidade Columbia, em Nova York, oferece-nos estudos que

problematizam a memória coletiva e o trauma histórico. Em Seduzidos pela memória

(2000), seus ensaios não apenas discutem o despontar de uma cultura da memória, como

também avaliam os novos sentidos da memória histórica. Observa o pesquisador que os

discursos da memória emergiram, principalmente, “no rastro da descolonização e dos

novos movimentos sociais em sua busca por histórias alternativas e revisionistas”

(ibidem, p. 10), como no caso moçambicano. Segundo o professor, a partir da década de

1980, o olhar que outrora tendia a mirar o futuro, deslocou-se para o passado, trazendo-

o até o presente. Constatamos a referida tendência ao longo da poesia patraquimiana,

uma escrita a que também podemos chamar, parafraseando Huyssen, de “seduzida pela

memória”, empenhada em promover o resgate de “passados presentes” (ibidem, p. 9).

Em consonância com Huyssen, Beatriz Sarlo auxilia-nos a iniciar o debate

acerca da atuação da memória na obra lírica do poeta. A pesquisadora argentina também

prevê o aparecimento de uma cultura da memória observada, principalmente, em

instantes históricos que sucedem períodos ditatoriais e outros momentos marcados por

similar opressão. Embora Sarlo detenha suas análises no estudo da queda das ditaduras

em nosso continente, podemos estender seus apontamentos às vivências históricas de

Patraquim em Moçambique. Explicitemos: para Sarlo, lembrar equivale a um ato de

“restauração” de laços sociais e comunitários perdidos em processo de exílios ou

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dissolvidos pela violência do Estado. A lembrança é, portanto, uma retomada: um

recomeço (SARLO, 2007, p. 9).

Analisemos o caso moçambicano: em menos de três décadas, dentre a maioria

dos países da África, Moçambique foi o que talvez tenha experimentado as mais densas

– e contraditórias – transformações sociais. Em entrevista ao caderno “Prosa e Verso”,

de O Globo, em 12 de março de 2005, Mia Couto discorrera acerca desta vertiginosa

saga moçambicana:

Moçambique está estreando nessa invenção de um futuro e é natural que a

nossa projeção no porvir não seja ainda visível. Nós viajamos por sistemas

radicalmente diferentes num breve espaço de 30 anos. Passamos do

colonialismo e do fascismo para um regime comunista, transitamos de

província portuguesa para nação independente, submergimos numa guerra

civil que durou 16 anos, passamos do socialismo ao capitalismo, da violência

militar para a paz e democracia. Tudo isso significou mudar de chão, renascer

e questionarmo-nos naquilo que parecia ser essência e se revelou ser apenas

estória convertendo-se em História. (COUTO, 2005, p. 3)

Muita carga histórica para tão pouco tempo: eis a sina de um país que já foi

considerado um dos três mais pobres do mundo, na década de 1980. Como se não

bastasse o turbilhão político-social, Moçambique foi acometido pela fúria de diversas

calamidades naturais, que vão da escassez extremada ocasionada pelas estiagens às

cheias devastadoras que o país teve de enfrentar na mesma década.

Veremos que a reconstrução trata-se de uma jogada crucial por sobre o tabuleiro

da história moçambicana. No entanto, não se trata de uma tarefa que se encerre apenas

no âmbito físico da questão. Antes de se iniciar por meio das mãos, reconstruir é

também uma ação promovida pelas mentes; um trabalho a ser exercido subjetivamente.

Assim, a poesia se transforma em um propício canal de emersão mnemônica, pelo qual

se dá não o “resgate”, mas o “retorno do passado”, conforme prefere pontuar Beatriz

Sarlo (SARLO, 2007, p. 9). Evidenciaremos que as memórias revolvidas pelas poesias

de Patraquim esboçam a necessidade dessa reconstrução, visto que “nem sempre a

história consegue acreditar na memória, e esta desconfia de uma reconstituição que não

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coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de

subjetividade)” (idem, ibidem).

Infere Sarlo que a retomada de histórias orais, testemunhos e demais

experiências subjetivas equivalem à restituição da confiança na primeira pessoa que traz

à tona seus mais variados tipos de vivências (privadas, públicas, afetivas ou políticas),

seja para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada (ibidem, p.

19). Esta “guinada subjetiva” (ibidem, p. 15) a que se refere a pesquisadora traduz, aliás,

uma tendência que verificamos na poesia moçambicana, a partir da década de 1980, da

qual a obra patraquimiana se faz representante.

Jacques Le Goff representa outro notável alicerce teórico para nosso estudo.

Concordamos com o historiador francês, para quem “a memória, na qual cresce a

história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e

ao futuro.” (LE GOFF, 2003, p. 471). Le Goff posiciona-se a favor do resgate da

memória, defendendo o princípio de que a mesma encontra seu valor maior quando

serve “para a libertação e não para a servidão dos homens” (idem, ibidem).

Acreditamos que a escrita poética de Patraquim situa-se no desvão da História.

Uma tese que se propõe a investigar o labor de um poeta cujo lirismo detém o dom de

profanar, inclusive, a própria história, não poderia banir Walter Benjamin de nossas

considerações iniciais. Ao avaliarmos o olhar poético de Luís Carlos Patraquim em

evidente cumplicidade com o legado histórico de seu país, partimos do preceito de que

“o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida”

(BENJAMIN, 1984, p. 228). Veremos que os versos do poeta moçambicano, na esteira

indelével do pensador da Escola de Frankfurt, almejam – e alcançam com sucesso o

intento de – “escovar a história a contrapelo” (ibidem, p. 225).

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Aliás, averiguaremos que lírica e sociedade constituem esferas de reflexão

intimamente associadas, ao longo do trajeto poético patraquimiano. Valer-nos-emos dos

apontamentos de Adorno e Alfredo Bosi para discorrermos, já no segundo capítulo de

nossa tese, acerca desta evidente associação nos versos do moçambicano.

A linguagem levada a efeito pela poiesis patraquimiana também é partícipe do

mesmo processo social. Defendemos a hipótese de que Patraquim expande as

possibilidades dialógicas de sua poesia. Trata-se de referências históricas, políticas e

literárias convidadas por seu lirismo – ora diretamente, através de epígrafes,

dedicatórias e demais tipos de menções, ora de maneira implícita, por evocações

previamente digeridas pela escrita e que passaram a figurar como marcas poéticas de

um assumido „devorador de textos‟ desde os tenros anos. Como numa via de mão dupla,

a poesia patraquimiana invade os domínios de outras linguagens, ao mesmo tempo em

que se deixa penetrar por elas, despontando, ao longo de nossa tese, reflexões acerca da

intertextualidade.

Ao traçarmos o dialogismo no percurso literário de Patraquim, recorreremos ao

conceito bakhtiniano de “intersubjetividade”. Para o pensador russo, a língua não

constitui uma propriedade particular, nem ao menos compreende um objeto

independente dos indivíduos. O poeta se mostra, aliás, ciente quanto à linguagem como

processo social: “É evidente que todo texto é um intertexto”, afirmou Patraquim a

Michel Laban (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 925). Eis um poeta adepto de

homenagens onomásticas: em seus versos posicionam-se entrenomes que, de alguma

maneira, deixaram marcas em sua escrita.

Nossa tese esmera-se em avaliar as bases relacionais suscitadas pela lírica

patraquimiana. Ao lado de Bakhtin, figura a presença de Julia Kristeva em nossas

reflexões. A ensaísta francesa elucidará os efeitos que diversificadas vozes podem

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empreender em um texto quando nele estão presentes e se entrecruzam. Partindo de seu

conceito de intertextualidade, veremos que, ao longo de seu processo de formação, a

poesia de Patraquim engendrará um mosaico de citações, que vão desde a vinculação a

um pensamento ou postura literária, até explícitas apropriações textuais.

Consideremos o fenômeno da intertextualidade nos versos do poeta

moçambicano também uma forma de profanação, visto que sua poesia converge para

referências que, em 1980, constituíam vozes „inadequadas‟ para o contexto social da

época:

todo o meu trabalho na altura, todos os referentes que eu tinha passavam por leituras

de todo o gênero e feitio, mas no que dizia respeito ao que tinha sido feito na terra,

passava por referências tão importantes como o próprio José Craveirinha, o Rui

Knopfli, o João Fonseca Amaral, poetas de que [em 1980] não era oportuno falar

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 915)

Ao abarcarmos a poesia de Patraquim, não poderíamos negligenciar a leitura dos

desejos: o erotismo e a fruição do texto literário são marcas essenciais de sua escrita.

Ao identificarmos as formas mais recorrentes com que o lirismo patraquimiano

capta as paisagens que lhes servem de mote, evidenciamos a ótica dos desejos.

Detectamos dois modos basilares através dos quais o poeta arrebata liricamente a

paisagem: o primeiro, pelas retinas do “cio da terra” (HOLLANDA; NASCIMENTO,

1977), instância de observação que também abrange o cio do ser; e o segundo, através

do cio das palavras, concernente ao erotismo da linguagem.

Evocamos a ideia do „cio‟, vocábulo cuja acepção mais direta está intimamente

associada à conotação sexual, ao descobrirmos que o termo deriva da mesma raiz

etimológica que a palavra „zelo‟ – do grego, zelos e do latim, zelu. Embora ambas as

denotações tenham em muito se distanciado (entendemos por „zelo‟ o mesmo que

“afeição”, “dedicação”, “cuidado”), há ainda o sentido – oficialmente dicionarizado –

de que zelar é também manifestar “um vivo ardor” (FERREIRA, 2004, s/p. – versão

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eletrônica) em relação àquilo de que se cuida. Talvez aí encontremos o elo perdido entre

„zelo‟ e „cio‟.

Importa-nos antecipar que as paisagens que motivam o canto poético de

Patraquim são ardorosamente captadas. O poeta despeja sobre elas um inegável modo

erótico de ver, o que encerra mais uma das marcas de sua escrita: o erotismo à flor do

verso.

Símbolo maior das impulsões vitais, o erotismo caminha no avesso do que há de

mais violento para os homens: a morte, que “nos arranca da obstinação que temos de ver

durar o ser descontínuo que nós somos.” (BATAILLE, 1987, p. 16).

Internalizados em nossas reflexões estarão, desde as primeiras linhas, os

ensinamentos de Georges Bataille, para quem o erotismo consiste em uma experiência

totalmente ligada à vida. Uma vez que o princípio do erotismo visa à destruição da

estrutura do ser fechado (ibidem, p. 17), a ação decisiva da concretização do erotismo

compreenderá o desnudamento, visto que a nudez remete ao exato oposto da condição

oclusiva: “é um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade

possível do ser” (idem, ibidem).

Na contramão da “poesia da vitória”5 (HONWANA. Apud PATRAQUIM. In:

LABAN, 1998, p. 915), Patraquim direciona um olhar erótico por sobre suas paisagens,

desnudando seus materiais líricos para poder dizer em versos o que não se podia

mencionar na prosa jornalística. Perceberemos que Patraquim zela pelas paisagens:

permite-se imbuir deste „vivo ardor‟, para saudar novas possibilidades de se ver a terra,

os seres e a poesia moçambicana. “[...] não nos davam o direito de pensar a própria

pátria [...]” (ibidem, p. 916), reclamou, certa vez, o poeta, consciente de que, embora

houvesse “um lado visível de todos nós para a militância” (idem, ibidem), era

5 A expressão “poesia da vitória” foi cunhada por Luís Bernardo Honwana, referindo-se ao lirismo que

enaltecia valores políticos que precisavam ser veiculados, na época em que Patraquim se lança à aventura

poética.

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incontestável não reconhecer o aflorar de um outro tipo de engajamento, uma militância

a que qualificou como “interiorizada” (idem, ibidem), afinal, “[...] as pessoas falavam

sobretudo no nós colectivo e estavam a esquecer que elas também eram pessoas...”

(ibidem, p. 940).

Violaremos as paisagens dos desejos propostas pelo olhar lírico – e erótico – de

Luís Carlos Patraquim, baseando-nos nas reflexões de Battaille, de modo a mostrar a

ruptura literária – e ideológica – que o intimismo proposto pelos versos patraquimianos

causou no panorama poético moçambicano do pós-independência. Acusado de

subversão, dentre tantas outras críticas atrozes acerca da qualidade e da validade de seu

lirismo, Patraquim soube perceber que o ideário vigente no cenário nacional após 1975

não passava de um “oportunismo político” (ibidem, p. 915). Como jornalista, sentiu-se

um copy-writer a serviço do discurso oficial:

Não é que não acreditasse em muitas das coisas que escrevi no sentido dos

jornais oficiais em que tive que escrever como jornalista que era, repórter.

Mas algumas máximas tinham que ser ditas – eram aquilo a que o Barthes

chama alavancas: aqueles sinais que têm que lá estar para o discurso ser

aquele. [...] eu tinha de vestir aquele tipo de paramentos quando sabia que a

própria realidade já estava a ser outra. Já não havia adequação entre o

projecto [sic] político e o discurso de o dizer com a própria realidade. [...] já

não estava a reportar a realidade, estava a reportar um conjunto de

paradigmas, de cânones, que eram outra coisa. A poesia um refúgio onde a

gente vai tentar sistematizar [...] (ibidem, p. 916)

A palavra, enfim desnuda, trouxe à epiderme do poema um idioma pautado pelo

domínio das sensações. Os versos de Patraquim ecoam o fascínio do poeta pela vida.

O erotismo que, para Bataille, representa “o desequilíbrio em que o próprio ser se

põe conscientemente em questão” (BATAILLE, 1987, p. 29), em Patraquim assume o

compromisso de servir à poesia sob a condição de não se reduzir a um mero apelo ao

prazer dos sentidos. Erotizar a escrita equivale, para ele, sobretudo, à tessitura de uma

teia que enreda a poesia e a reflexão existencial:

ó minha palavra nua

idioma do teu corpo

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aqui fundo a raiz

e o espaço

neste ciciado cio

teu monte azeviche

aberto às manhãs

cacimbadas a nervo!

(PATRAQUIM, 1980, p. 52)

Seus poemas nos levam ao encontro de imagens em que a sensualidade,

estimulada pelos sentidos físicos, invade o âmbito carnal. Ambos atuam de modo a

reverter os rastros de Thánatos deixados pelos subsequentes anos de guerra.

Dentre todas as razões pelas quais Patraquim deixa seu nome registrado na

história da literatura moçambicana, apontamos o erotismo como um de seus eixos

temáticos mais representativos. Sua escrita pulsa, incita, arde. Traz para o bojo do

poema a “palavra nua” (idem, ibidem), que traduz o “idioma do corpo” (idem, ibidem), e

dos desejos. Atingida pelas flechas de Eros, a poesia, desvirginada, rende-se à presença

de imagens assinaladas pelo signo erótico, como a “vulva” (ibidem, p. 50) e “o pelo nu

triangular / onde o vértice esconde a gruta” (ibidem, p. 31). Constataremos que,

definitivamente, o lirismo de Patraquim estava (bem) à frente de seu tempo. À medida

que propunha a “desabotoar o corpo” (ibidem, p. 20), sua poiesis profanou o uso

linguístico na poesia moçambicana contemporânea. Ao desnudar a língua de seus

pudores, Patraquim nos ensinará, com sua escrita lírica, que o desejo é, também, uma

forma de libertação política.

A força das imagens evocadas e a violência do cio das palavras desconfortam, na

medida em que “faz[em] vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor,

[bem como] a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças; faz

entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 2004, p. 20-21), o que

caracteriza a poesia patraquimiana como exemplar “texto de fruição”.

Em tempo, também embasarão nossas reflexões entrevistas, ensaios e artigos

variados de renomados pensadores da África, especialistas em Moçambique e

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pesquisadores da área das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Estes textos nos

auxiliarão a fincar, com maior estabilidade, os pilares críticos de nosso trabalho.

Destacamos as contribuições de Amadou Hampâté-Bâ, Honorat Aguessy, Joseph Ki-

Zerbo, Fátima Mendonça, Francisco Noa, Mia Couto, Ana Mafalda Leite, Patrick

Chabal, Pires Laranjeira, Celina Martins, Michel Laban, Cremilda de Araújo Medina,

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, dentre outros.

* * *

“[...] continuamos em trajetórias de descobertas, às vezes de desencontro, mas de

permanente criação e de invenção de nós próprios” (PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999,

p. 1), avaliou, certa vez, nosso poeta. A partir de agora, convidamos nossos leitores a

uma viagem interpretativa, a fim de desvelarmos as formas com que Luís Carlos

Patraquim reinventa a si mesmo e a poesia moçambicana, desde 1980.

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2. TRÊS PERCURSOS, UMA VIAGEM

“Maputo e o mar desde 1953. Em março começa o vento da terra”

(PATRAQUIM. In: MEDINA, 1987, p. 76). Assim inicia o poeta seu lírico autorretrato,

em entrevista publicada no livro Sonha mamana África (ibidem, p. 76). Precisamente

em 26 de março, o sopro telúrico içou um filho de Moçambique de nome Luís Carlos

Patraquim. Quarto filho de uma prole de seis, suas raízes remontam à cidade de Lagos,

no Algarve. O pai, José Rodrigues Patraquim, operário, foi o primeiro a deixar a

província portuguesa, no final da Segunda Guerra, para se instalar em Moçambique,

graças à Carta de Chamada feita pelo avô paterno, que lá já estava. Em seguida, a mãe,

Maria Helena da Silva Borges Patraquim, cruzara o Atlântico para descobrir, no bairro

de Omenchifre, a Avenida do Trabalho, no subúrbio lourenço-marquino, atual Maputo.

Depois, a família descobriu a rua de Lidemburgo e, em seguida, o Alto Maé:

Vivi sempre até quase a independência nos chamados bairros populares;

portanto pertenci à faixa dentro de toda aquela estigmatização colonial e

divisão classista e que naquele caso era racista também. Pertenci sempre à

franja dos subúrbios, da periferia dos pobres brancos da terra.

(PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 1)

Em convívio com os livros desde miúdo – a leitura em estágio quase compulsivo

foi a herança materna legada a todos os filhos –, o menino Luís Carlos experimentava

sua infância entre a “casa velha” (idem, ibidem) de madeira e zinco e a aprazível

periferia. Suas memórias reconvocam o subúrbio como lugar de acentuada mestiçagem.

Criado em uma casa, cujas referências culturais transmitiam um conjunto de valores

assinalados não pela tolerância, mas, antes, pela convivência, Patraquim relembra os

pretos, os mulatos, os brancos, chineses, gregos, os indianos e os „monhés‟6 (embora

reconheça a acepção depreciativa desse termo), todos juntos, compartilhando

traquinagens e construindo, outrora, o que hoje são, para o poeta, as mais belas

6 Monhé: mestiço de indiano com negro.

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reminiscências de sua biografia. De suas memórias, aliás, não participam, com seus

calções e suas meias altas, os meninos ricos da Polana, bairro com ares aristocráticos da

capital moçambicana (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 929).

Fig. 1: mapa de Moçambique. A divisão geográfica em dez províncias. Ao sul, a capital, Maputo, situada

em província homônima.

Patraquim falava a língua ronga o suficiente para brincar, pilhar arames para

fazer carrinhos, andar com pneu, eixo e arco “com os dois paus e um bocadinho de água

para não fazer a fricção” (ibidem, p. 929): “ia ao ferro-velho comprar um arco, porque

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não tinha a bicicleta, como o menino negro fazia – quem tinha a bicicleta era o menino

da Polana, eu também não tinha. Portanto, tinha que inventar o arco, o gancho e a roda”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 929).

Na mesma década em que o pequeno Luís Carlos esmerava-se na criativa

engenharia da infância, grande parte da poesia moçambicana confluía para o debate

social. Avaliava, dentre outros problemas, a exploração do continente negro, o

aniquilamento histórico-cultural de cinco séculos sofrido pelos colonizados e a

discriminação racial. Muitas foram as vozes literárias que se empenhavam em traduzir

questionamentos ideológicos e partidários. E sendo o discurso da utopia “comunitário,

comunicante, comunista” (BOSI A., 2000, p. 213), assumindo, assim, o poema “o

destino dos oprimidos no registro da sua voz” (ibidem), a poiesis conclamou o „nós‟

moçambicano para se alistar, com urgência, na avant-guarde da luta pela libertação

política.

A guerra colonial, deflagrada em 1964, hastearia temporariamente a bandeira

branca apenas onze anos mais tarde, com o advento da independência. Abolir a

condição de colônia portuguesa significava a grande meta a ser atingida e a autonomia

política passava a representar a solução das agruras vivenciadas por Moçambique.

Referimo-nos ao ciclo da literatura de combate. À luz desse espírito, a poesia

expressava a realidade de uma guerra generalizada nas colônias portuguesas em África,

que, a partir dos anos sessenta, empunharam suas armas na tentativa de trazerem à luz

dos novos tempos os sonhos de liberdade tão adiados quanto suas pátrias. Seus

principais cultores, segundo Francisco Noa, eram militantes e guerrilheiros da

FRELIMO7. A língua portuguesa transformou-se em arma, estabelecendo uma espécie

de “lei de nacionalidade literária” (NOA, 1998, p. 39).

7 FRELIMO: FREnte pela LIbertação de MOçambique

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Todavia, ressaltemos que as experiências literárias moçambicanas desse período

não se restringiram apenas ao propósito de uma arte panfletária. Afinal, “a poesia lírica

sempre arriscou em Moçambique”, conforme pontuou Mia Couto (COUTO. In:

WHITE, 1992, p. 9), fazendo justiça a poetas representativos de seu país, cujas

contribuições são indeléveis da história da literatura moçambicana. Diversos

pesquisadores e ensaístas das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa ensinaram-

nos que anterior e contemporânea a um lirismo de ethos revolucionário sempre exisitu

em Moçambique uma poesia caracterizada por uma preocupação intimista e existencial.

Consoante a Professora Doutora Carmen Tindó Secco, nessa escrita poética não eram

trabalhadas explicitamente as questões políticas, embora alguns dos poetas também

demonstrassem, de forma implícita, solidariedade e simpatia pelas causas ideológicas

(SECCO, 1999, p. 24).

O pai de Luís Carlos Patraquim, que imigrara para Moçambique para trabalhar

como técnico junto aos Caminhos de Ferro em Lourenço Marques, e que, em 1970, era

mecânico da antiga DETA, atual LAM – Linhas Aéreas de Moçambique –, resolveu

deixar o território moçambicano rumo às minas de ouro situadas na África do Sul. A

esperança ou a “miragem” de lucro certo, como mesmo definiu o poeta ao revisitar sua

biografia, já havia motivado muitos dos amigos de seu pai, que, àquela altura, também

sentira-se impelido a esgueirar-se pela mesma oportunidade. Em seus planos, o patriarca

pretendia levar consigo seus seis filhos. Porém, partiu com cinco. Rememorou

Patraquim: “e eu digo-lhe que não quero ir para a África do Sul, não quero ir para um

país de apartheid, não quero ir, acabou-se! E aí ele aceita e diz: „eu vou porque tenho

que ganhar a vida” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 930). Àquela altura, o poeta

era, ainda, somente repórter. Iniciara na atividade jornalística no jornal A voz de

Moçambique, anos antes da independência.

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Moçambique conseguiu deter por mais três anos o último dos Patraquins dentro

das fronteiras de sua Lourenço Marques: em 1973, o poeta encontrou na Suécia um

porto de exílio. Dos motivos que o levaram à decisão da partida, citamos,

primeiramente, o “falso moralismo burguês” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p.

918) instaurado há muito na colônia moçambicana. Incomodava-lhe aquela atmosfera

pseudo metropolitana: tudo “muito português, muito católico, e também muito

hipócrita, com a Sexta-feira Santa e aquela procissão que passava pela cidade, aquela

coisa horrível! Não tinha nada a ver com aquilo.” (idem, ibidem). Assim, Estocolmo

significou, em primeira instância, um lugar de libertação. No entanto, o poeta não

desconsiderou “o lado político da questão” que o levou à escolha do exílio:

uma coisa que a gente recusou a fazer – eu e o grupo de malta que foi –, era ir

para a guerra colonial, isso nunca! E estávamos na idade em que isso podia

acontecer. Aliás já éramos olhados pela PIDE: trabalhávamos na Voz de

Moçambique8; a gente, de certa forma, contribuiu para o relançamento de A

voz de Moçambique, vamos distribuí-la pelos cafés da Baixa... Somos nós a

pôr alguns textos marxistas, como os textos sobre o subdesenvolvimento de

André Gunder Frank – a gente conseguia despistar a PIDE mandando

primeiro o texto, depois é que mandávamos o nome do autor! [...] Mas

perfeitamente conscientes que teríamos que estar era já do outro lado [...]

(ibidem, p. 919)

Cremilda de Araújo Medina, pesquisadora brasileira das literaturas africanas de

língua portuguesa, observou que, ao refugiar-se na Suécia, Patraquim “trabalhou em

fábricas no Primeiro Mundo [e] enriqueceu a vivência de Terceiro Mundo” (MEDINA,

1987, p. 70). Após o 25 de abril, era chegada a hora do regresso. Voltava diferente;

maior do que aquele rapaz de 20 anos que havia partido dois anos antes. Em 26 de

janeiro de 1975, o poeta retornou à casa moçambicana, em tempo de assistir ao primeiro

içar da bandeira de sua terra no histórico 25 de junho daquele ano.

8 A voz de Moçambique: “o único jornal que havia de alguma oposição – pelo menos não alinhado com

todo o esquema oficial que havia lá na altura [...]” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 917).

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Fig. 2 – Estádio da Machava, Moçambique, 07 de setembro de 1974: clamava-se pela

independência moçambicana e entoavam-se palavras de apoio à FRELIMO.

Figura 3: “Momento em que o general Alberto Chipande, no Estádio da Machava, na meia-noite

do dia 25 de junho de 1975, fazia erguer pela primeira vez a bandeira da República Popular de

Moçambique” (COUTO, F., 2011, p. 320). Patraquim estava presente.

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Embora tenha significado a extinção do colonialismo, a proclamação da

independência moçambicana não ostentou por muito tempo a paz. As utopias foram

abaladas por uma guerra civil iniciada no ano seguinte, conflito batizado pela

FRELIMO – frente política que assumira o poder no país – como “guerra de

desestabilização” e hoje também conhecido como “Guerra dos 16 anos”.

Enquanto o país deixava-se tomar pela distopia, Patraquim reingressava no

jornalismo. Seu nome, desta vez, assinava páginas de A Tribuna. Foi, ainda, fundador

da AIM – Agência de Informação de Moçambique e, a partir de 1977, começou a atuar

no INC – Instituto Nacional de Cinema – como roteirista, argumentista e redator do

jornal cinematográfico Kuxa Kanema9:

A Agência de Informação de Moçambique é precisamente formada pelo

corpo redatorial do jornal A Tribuna, do governo. Naquela altura era um

tempo de guerra de palavras, de propaganda dos dois campos, digamos, do

campo do imperialismo americano e do campo socialista. O nosso trabalho lá

era um pouco difícil porque era menos jornalístico do que devia ser. Fiquei

na Agência de Informação de Moçambique cerca de seis meses, porque logo

em seguida me transferi para o Instituto Nacional de Cinema, onde, sim,

havia possibilidades de desenvolver um trabalho, que, naquele caso, foi pura

e simplesmente a criação do cinema moçambicano. [...] queríamos mostrar

uma perspectiva que pudesse fazer frente em relação à voz única das grandes

mídias. (PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 1)

Publicou em 1978, na revista Colóquio Letras, seus primeiros versos, as

primeiras “viagens interiores” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 913) do jornalista

acostumado à função referencial da linguagem, embora jornadas intimistas ainda não

significassem uma tendência no final dos anos setenta, em Moçambique. Passavam de

um período em que os heróis acabavam sempre mortos para outro tempo, em que sequer

nasciam (COUTO, 2002, p. 1), como bem definiu Mia Couto ao se referir à atmosfera

de desencanto que sucedeu a independência moçambicana.

No artigo “Literatura moçambicana: dez anos depois” (MENDONÇA, 1988, p.

57), ao promover um balanço crítico dos dez anos do advento da independência, a

9 Kuxa Kanema significa “o nascimento do cinema” (cf. PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 5).

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professora Fátima Mendonça lança uma tentativa de análise do processo literário

desenvolvido em Moçambique desde 1975. Observou a pesquisadora que, nos primeiros

cinco anos após o 25 de junho, a atividade editorial moçambicana foi assinalada pela

dispersão. Apenas algumas reedições, ainda sob a égide da poesia de combate, e outras

poucas coletâneas foram publicadas durante esse período. Dentre elas, citamos A

palavra é lume aceso, uma coletânea de poemas publicados na revista Tempo, ao lado

de alguns inéditos (ibidem, 1988, p. 57).

A tiragem de exemplares dessas edições publicadas entre 1975 e 1980 variava de

cinco a dez mil volumes. Apesar do alto índice de analfabetismo no país, os exemplares

esgotavam-se rapidamente: dado surpreendente, se levarmos em conta a estimativa de

que as camadas letradas à data da independência não ultrapassavam 5% da população

(MENDONÇA, 1988, p. 57).

A partir da década de oitenta, uma parte considerável da arte migrou para os

caminhos do intimismo. Nascia aí o que Francisco Noa designou como a “nova poesia

moçambicana” (NOA, 1998, p. 41), assinalada por uma “febre de ruptura” (ibidem, p.

41). Instituindo uma espécie de “omnipotência da possibilidade” (ibidem, p. 42),

conceitos existencialistas foram positivados pela nova produção poética, como a

liberdade, a subjetividade, a responsabilidade, as escolhas (e seus riscos), bem como a

angústia e a morte, que figuravam, no reverso da moeda, como ideias à sombra da

guerra civil. Para Fátima Mendonça, a nova poiesis também significou uma atividade

editorial intensa e orientada (MENDONÇA, 1988, p. 61).

Calcados em Ana Mafalda Leite (LEITE, 2003, p. 127), defendemos o

pressuposto de que cabe a Luís Carlos Patraquim a inauguração de um novo lirismo na

literatura moçambicana, que caracterizará a chamada “geração de 80”. Não nos

esqueçamos, pois, de Heliodoro Baptista e Sebastião Alba, nomes igualmente

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representativos que podem, segundo a pesquisadora, ser considerados “poetas de

fronteira” da década de 1970 para a de 1980, em Moçambique.

Entre os anos de 1980 e 81, o INLD – Instituto Nacional do Livro e do Disco de

Moçambique – e a lisboeta Edições 70 publicaram, em parceria, doze títulos que

constituíram a Coleção “Autores Moçambicanos”. Tal advento consistiu em um dos

marcos decisivos para a abertura de um novo tempo da produção literária moçambicana,

consciência essa, aliás, expressa em palavras na primeira página de cada obra, em jeito

de nota de abertura. Transcrevemos abaixo o trecho de responsabilidade dos editores:

Consequência da luta de libertação que conduziu à independência do País os

poetas e prosadores de Moçambique, podem agora ser editados em liberdade.

Esta colecção é a afirmação duma cultura que o poder opressor não pôde

destruir, pois não se pode manter indefinidamente silenciada a voz de um

Povo (OS EDITORES. In: PATRAQUIM, 1980, p. 3)

Monção (1980), livro de estreia de Luís Carlos Patraquim, foi o segundo título

publicado pela referida coleção, precedido por Cela 1, de José Craveirinha.

Consideramos igualmente decisiva a participação da Associação dos Escritores

Moçambicanos (AEMO) para a consolidação da nova poesia do país. Fundada em 1982,

a associação soube articular o contato entre os escritores, conferiu maior dinamização à

atividade editorial e ao fenômeno literário propriamente dito, visto que incentivou

saraus de poesia e contribuiu efetivamente para a divulgação literária. Dos catorze

títulos publicados sob a insígnia da AEMO de 1982 a 1985, destacamos A inadiável

viagem, segundo livro de Patraquim, editado neste último ano.

Em 1984, surgiu a revista Charrua, outra notável iniciativa que também

condicionou os contornos internos da literatura moçambicana pós-80. Para Francisco

Noa, Charrua “tem um efeito aglutinador em volta da geração da distopia” (NOA,

1998, p. 41). No mesmo ano, Patraquim comprometeu-se com um novo projeto: trazer a

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público, nas páginas da revista Tempo, um suplemento cultural. Nascia, assim, sob a

coordenação do poeta, a Gazeta de Letras e Artes.

Por intermédio das referidas iniciativas editoriais, a nova poesia moçambicana

empunhava uma bandeira contrária à ideologia vigente até então. Era chegado o instante

de se fazer ouvir a voz que entoava o canto da liberdade subjetiva: hora de conceder vez

ao sujeito da e na escrita.

Embora focado nos direitos individuais, o lirismo moçambicano não deslindou

um enclausuramento do eu sobre si próprio. Dentre as inúmeras temáticas abraçadas em

tom existencial pela nova poética, algumas abordagens passaram a compor o novo

cenário lírico com maior assiduidade, como a liberdade, o amor, os sonhos, as

memórias, os desejos, o erotismo, a subjetividade, a metapoesia, a consciência da

responsabilidade social, a crítica histórica, as reflexões sobre os danos da guerra, a

angústia, os traumas, as mutilações, as distopias, dentre outras motes de reflexão.

Naquele estágio de vida e de arte, Patraquim pretendia “medir o espaço entre o

sonho mítico de 1975 e a realidade dos anos 1980.” (MEDINA, 1987, p. 71), constatou

Cremilda Medina, em 1986. Àquela altura dos acontecimentos – com apenas onze anos

de libertação política – o país, sob a mira dos BA‟s (bandidos armados), vivenciava um

conturbado contexto político-social. A pesquisadora reconheceu que ficaria delicado

propor um balanço às sensibilidades poéticas em meio àquele contexto social (ibidem,

p. 71). Dezoito anos nos distanciam das percepções de Medina, publicadas em Sonha

mamana África (idem, ibidem). Neste ínterim, Moçambique conheceu caminhos tão

diversificados quanto os de seu filho Luís Carlos Patraquim, que em 1986 escolheu

Portugal por morada. Desde então, o poeta publicou outros livros de poesia, contos e

crônicas, falando-nos sempre “doutra estória às avessas da história” (PATRAQUIM,

1991, p. 45), na medida em que Moçambique continuou a viver “entre a fúria da

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natureza e a insensatez dos homens” (CACCIA-BAVA; THOMAZ. In: FRY, 2001, p.

21).

Após conquistar sua independência e escolher o socialismo por guião,

Moçambique arruinou-se em uma guerra que matou, mutilou e refugiou milhões de

pessoas. Hasteada a bandeira da paz em 1992, a nação recém-libertada optou por trilhar

na contramão de seu próprio percurso histórico, ao adotar o regime capitalista e assumir

a economia de mercado sem, no entanto, estar preparada para mudanças tão radicais.

Todas essas transformações refletiram, sob os mais diversificados olhares, na expressão

lírica moçambicana. As retinas de Patraquim não estariam alheias a esse turbilhão.

A entrevista concedida por Patraquim a Cremilda Medina data do ano de 1986.

Nossa tese aproveitará o ensejo para mostrar que, desde então, o poeta desejou

amplificar a medida do lugar a que aludiu em conversa com a pesquisadora. O

amadurecimento de sua poesia interiorizou seu olhar e expandiu suas possibilidades

dialógicas, elevando sua escrita à posição de “a mais complexa, a mais hermeticamente

artificiosa e a que suscita, naturalmente, maiores embaraços interpretativos”, segundo as

considerações de Francisco Noa (NOA, 1998, p. 43). Entre “a exuberância do intelecto

e a solenidade da emoção” (ibidem), encontra-se a nova medida de seu lirismo.

Em entrevista a Michel Laban, em 1993, no encalço da publicação de Vinte e tal

novas formulações e uma elegia carnívora (1991), seu terceiro livro, Patraquim foi

levado a refletir acerca do lugar dessa obra no conjunto de sua poesia10

: “O Patraquim

considerou este livro como o fim de uma trilogia...” (LABAN, 1998, p. 949), provocou

Laban, aguçando o comentário bem humorado do entrevistado: “Se calhar é grande

pretensão da minha parte andar a fazer trilogias!” (PATRAQUIM. idem, ibidem).

Isentando-se de modéstia, soube reconhecer o poeta que Monção (1980) e A inadiável

10

Na ocasião da entrevista, as “Formulações” – modo como o poeta se refere a essa obra – constituía o

último livro trazido a público. Patraquim lançaria outro título apenas cinco anos mais tarde: Lidemburgo

blues, em 1997.

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viagem (1985) integram um ciclo iniciado em 1980 que só se completou com o título

publicado em 1991.

A oportuna observação de Michel Laban fez despontar no poeta um olhar

analítico por sobre o próprio percurso lírico, estabelecendo a existência de laços

indissociáveis entre seus três primeiros livros. Ouçamos as observações de Patraquim:

Olhe, há uma coisa a que eu dou alguma importância, que para mim serve de

azimute, que são os títulos. Há bocado perguntou-me sobre Monção: Monção

tem a ver com essa percepção do espaço índico a que pertenço. Esta Monção

poderá surgir aqui como metonímia de muita coisa para além do nome. A

inadiável viagem cabe nisso, nos momentos favoráveis ou desfavoráveis

dessa Monção, que tem a ver com o que já é clássico, que já vem desde os

gregos, que é a viagem iniciática de tudo isso, de todas as imagens. As

Formulações tentam ser um pensar desses dois momentos: da descoberta dos

ventos e da viagem e o pensar em que condições é que esta viagem acontece

[...] (ibidem, p. 950)

Visto que a distribuição dos capítulos desta tese se pauta pelas fases da obra

lírica de Patraquim, não poderíamos iniciar nossas leituras senão acatando esta primeira

divisão que aponta, com o aval do poeta, para uma tríade poética.

2.1. A descoberta dos ventos: Monção, “livro de começo”

Suas ondas chegam cheias de vento e maresia à beira-página.

(“Pasárgada, Inhambane”. Marco Lucchesi)11

A “[...] sua poesia responde, directamente, à urgência de escrever sobre o amor

no Moçambique de hoje. Responde, sobretudo, à urgência de fazer poesia” (DUARTE,

1983, p. 6). Assim, António Duarte justificaria o primeiro livro de Luis Carlos

Patraquim, na reportagem intitulada “É importante escrever sobre o amor em

Moçambique” (PATRAQUIM. Idem, ibidem), trazida a público nas páginas do Jornal

de Letras, de Lisboa, em 1983.

11

LUCCHESI. In: PATRAQUIM, 2009, p. 7.

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Com uma tiragem de 2000 exemplares, concebida pela já mencionada iniciativa

editorial estabelecida entre o INLD – Instituto Nacional do Livro e do Disco –, de

Maputo e a lisboeta Edições 70, Patraquim vem a público, em 1980, com “trinta poemas

por dentro da Monção” (PATRAQUIM. In: MEDINA, 1987, p. 76).

Em setembro de 2011, por ocasião do XXXIII Congresso da ABRAPLIP, em

São Luís do Maranhão, encontramo-nos com o poeta. O que deveria ter sido uma

entrevista entre uma doutoranda e seu „objeto de estudo‟ acabou por se transformar em

uma aprazível conversa entre um poeta e uma leitora de poesias. Falávamos sobre

Monção quando nos confidenciou Patraquim que, se tivesse dado ouvidos às críticas

recebidas na ocasião do lançamento de seu primeiro livro, teria terminado, ali mesmo, a

saga do novo ofício ao qual se atirava. A recepção da obra no país fora lastimável.

Execrada nas páginas da Revista Tempo por um artigo de opinião, assinado pelo

pseudônimo Jorge Sampaio, a poesia proposta pelo livro, segundo a crítica da época,

não correspondia aos valores prezados pela ideologia revolucionária que ainda imperava

em Moçambique. Em resposta a alguns questionamentos por nós levantados sobre esse

fato, enviados a Patraquim por mensagem eletrônica, o poeta rememorou:

Aquilo [o artigo censor publicado em Tempo] era quase uma denúncia. Qualquer

coisa como “o que escreve, para quem escreve e como escreve Luís Carlos

Patraquim” [...] A argumentação era básica: não se percebem os versos, complicados

de propósito para “baralhar o ovo”, lirismo pequeno-burguês e recusa de alinhar na

onda, que era a poesia de combate: a glorificação da luta armada, os guerrilheiros,

etc., etc.” (PATRAQUIM. Entrevista [e-mail], 16/10/2011).

Acusada de “desmassificação” e de eximir a “noção de coletivo” pelas

impiedosas palavras do artigo intitulado “Para quem escreve Luis Carlos Patraquim?”, a

publicação de Monção foi considerada, no mínimo, um equívoco: “falou-se no

hermetismo, numa não preocupação com o discurso revolucionário [...]”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 914), críticas que, consoante o poeta, “foram

[até] estimulantes” (idem, ibidem). Apesar das inevitáveis especulações, Patraquim

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finalizou a questão: “ainda hoje não sei quem foram os quatro ou cinco que se juntaram

para escrever aquilo. Nem estou interessado” (PATRAQUIM, Entrevista [e-mail],

16/10/2011). Motivado a seguir em frente, o poeta já trazia consigo a certeza de que

“quem escreve, arrisca” (PATRAQUIM. In: MEDINA, 1987, p. 70).

Na contramão das expectativas, Patraquim anteviu o exato instante de promover

uma mudança de foco, um redirecionamento de olhares sobre a realidade de seu país,

reconvocando, pelos versos de Monção, o lirismo individual que havia sido relegado à

margem da cena literária moçambicana com o advento da guerra colonial.

Anunciavam seus versos que

nosso é o tempo do canto

conquistado a sangue

e terra

sobre o vibrato dos dias

alguma voz

são todas as vozes

este rosto etéreo a meu lado

e musgo nas marés do corpo

o sorriso de ser mundo

a noite nua

fremente

nosso é o tempo do canto

sobre o lugar

na descoberta palmo a palmo

de mais sol

o tempo amante

a voz da amada

o escrutínio deste sexo fundo

com palavras

(PATRAQUIM, 1980, p. 33)

Observou Michel Laban que a composição acima compreende um poema de

plenitude em que podemos destacar a afirmação do indivíduo, a presença do ser amado,

a harmonia do mundo que o faz destoar dos demais poemas do livro (LABAN, 1998, p.

934). Em concordância com o amigo, Patraquim complementou que a perceptível

plenitude consistiu na proposta de uma releitura da poesia da vitória: “era para dizer que

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não é „as grilhetas de cinco séculos de exploração e eu, pelo mato, com uma kalash”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 934).

Por significar uma iniciativa que precisou dosar ousadia, resistência e inovação,

lemos na quarta capa da obra que “Monção é livro de começo”. O contexto em que esta

obra veio a público permite-nos reescrever essa consideração: Monção é, sobretudo,

livro de reinvenção. E o tão aguardado tempo do canto redelinearia os caminhos.

Reavaliou o poeta o percurso até a efetiva mudança de rumo da poesia moçambicana:

Houve um único momento, que nós chamamos de interregno, que foi o de

assunção da independência, da luta armada de libertação e euforia da

proclamação da independência, que levou à chamada “poesia de combate”,

muito redutora. Eu não estou contra a poesia militante, acho que toda poesia

é militante em primeiro lugar, mas se feita no viés de poetas como Pablo

Neruda. Outra coisa é uma poesia redutora, pobre semanticamente, dirigida a

um único referente, com palavras-chaves, estereótipos que todos nós

conhecemos. Isso empobreceu toda uma gesta poética que estava a acontecer,

e que a geração de 80 vai renegar e retomar outra vez, com preocupações de

construção da tal moçambicanidade12

[...], e vai retomar aquelas que são as

preocupações do mundo e dos poetas do mundo. (PATRAQUIM. In:

ALEIXO, 1999, p. 3)

As reinvenções levadas a efeito em Monção são igualmente perceptíveis no

campo lexical. Referimo-nos à neologia, processo de experimentação vocabular, usado

como artifício desta nova expressão lírica. Já que “nem o poeta mata a poesia”

(PATRAQUIM, 1980, p. 30), Patraquim concede asas à sua “invenlírica” (idem,

ibidem) e embriaga13

os poemas, a fim de celebrar a liberdade da nova escrita. Dos

„invenlirismos‟ patraquimianos, destacamos alguns verbos e substantivos que irão

compor o novo acervo de palavras recriadas pelo poeta: “epicograma” (ibidem p. 22);

“eroniciar” (ibidem, p. 25); australírica (idem, ibidem); litanistórica (idem, ibidem);

“invenlírica” (ibidem p. 30); “efabulírica” (ibidem p. 48); “musicatório” (ibidem p. 49);

“dermetério” (ibidem, p. 51).

12

Sabe o poeta que “essa moçambicanidade é qualquer coisa que, até hoje, continua indefinível”

(PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 3). 13

Observa o poeta que “o ritmo está bêbado” (PATRAQUIM, 1980, p. 30).

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2.1.1. Tatuagens textuais

A obra se descortina pelos versos de uma dupla de epígrafes que já anuncia, em

1980, laços intertextuais bastante caros ao poeta, cujos ecos serão perceptíveis ao longo

de toda sua produção literária: José Craveirinha e Pablo Neruda.

Se uma epígrafe funciona como um pórtico de entrada, adentramos em Monção,

destrancando uma fechadura de duplo segredo. Por um lado, sugere Craveirinha: “E

deixem em nós gerar-se / irresistível a prole das sementes do beijo / consanguíneo do

grande dia / SIA-VUMA!” (CRAVEIRINHA. In: PATRAQUIM, 1980, p. 9). Por outro,

nos dita Neruda que “Para sobreviver forjei-te como arma, / como uma flecha no meu

arco, como uma pedra na minha funda. / Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te, /

corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme” (NERUDA. In: PATRAQUIM, 1980,

p. 11).

Atentos à etimologia do termo „epígrafe‟, oriundo do grego, somos levados ao

entendimento de uma escrita que se apresenta como introdutória de outra. Paulino,

Walty e Cury acrescentam à epigrafia uma função essencial no campo da significação:

segundo os linguistas, toda epígrafe compreende um texto que é, simultaneamente

modificado e modificador, visto que se trata de um recorte alheio que altera o sentido do

texto a que está agregado, na medida em que acrescenta a ele novos significados

(PAULINO et alii, 1998).

Para Antoine Compagnon, a epígrafe “é a citação por excelência”

(COMPAGNON, 1996, p. 120). Consiste em um símbolo – ao estabelecer uma relação

entre textos –, em um índice – ao determinar a relação do texto com um autor antigo –, e

em um ícone, por significar uma entrada privilegiada na enunciação: “é um diagrama,

dada a sua simetria com a bibliografia de que é precursora [...]; mais ainda, é uma

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imagem, uma insígnia ou uma decoração ostensiva no peito do autor” (idem, ibidem).

Posiciona-se em um lugar do texto, em que nada em volta a protege. Sozinha, no meio

da página, na linha de frente do iminente combate textual, a epígrafe representa o

próprio livro, infere-o, resume-o (idem, ibidem).

Trata-se de um recorte que traduz tanto uma visão do autor quanto um detalhe de

sua biografia (ibidem, p. 119). Desabotoando seu primeiro livro com versos de dois

nomes representativos das literaturas moçambicana e chilena, Patraquim não só torna

pública sua admiração pelos poetas retomados, como ainda manifesta sua indubitável

filiação ao lirismo intimista e existencial.

Notemos, primeiramente, que os versos do moçambicano escolhidos por

Patraquim para impulsionar suas monções foram retirados de Karingana ua karingana

(1982), de José Craveirinha, obra que traz em seu título uma expressão da oralidade

ronga, usada à guisa de fórmula de abertura, isto é, uma espécie de „pedido de

permissão‟ para se penetrar no universo das histórias tradicionais.

Os versos de Craveirinha funcionam tal qual a mesma fórmula para os poemas

de Monção. Não apenas anunciam a necessidade, mas também solicitam o

consentimento para que se torne finalmente lícita uma irresistível nova geração: a da

“prole das sementes do beijo consanguíneo do grande dia” (CRAVEIRINHA. In:

PATRAQUIM, 1980, p. 9). A expressão “Sia-vuma!”, equivalente ao “amém” ou “que

assim seja!”, finaliza o recorte selecionado para a epígrafe: a voz poética, em tom

interjetivo, que bem poderia nos trazer à memória uma espécie de aclamação litúrgica,

exprime firme anuência quanto à certeza de que é chegada a vez de reinventar o canto

poético em Moçambique, instante já sugerido e prenunciado por Craveirinha, antes

mesmo do advento da independência em seu país.

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E se toda epígrafe funciona como elemento de continuidade (PAULINO et alii,

1998, p. 26), Neruda, que assina a segunda voz-guardiã de Monção, extraída de seu

Veinte poemas de amor y uma canción desesperada (1924), complementa a mensagem

legada por Craveirinha. O poeta chileno subverte as noções usuais de „arma‟ e

„vingança‟, elegendo o amor e o desejo, aguçados por um “corpo de pele, de musgo, de

leite ávido e firme” (NERUDA. In: PATRAQUIM, 1980, p. 11), como as últimas

cartadas em um jogo pautado por novas experimentações poéticas e, sobretudo,

humanas.

Veinte poemas de amor y uma canción desesperada (1924) prezou um lirismo

capaz de conjugar o erotismo que celebra o corpo feminino com o enaltecimento da

natureza, marcas que apontam peculiaridades do estilo de Neruda e que também

consistirão em valores poéticos bastante caros a Patraquim, já manifestos nos versos de

Monção (1980). O bardo de Parral já fazia parte das referências que o poeta de Maputo

trazia de sua primeira biblioteca, ainda nos tempos de infância.

Rendendo-se às regras do jogo impostas pelas epígrafes, Patraquim “dá sua

alfinetada” (COMPAGNON, 1996, p. 121): soa uma espécie de alarme para a chegada –

tardia, embora bem-vinda – dos novos tempos em Moçambique. Eis aí a chave deixada

pelos excertos poéticos introdutórios que, na visão de Compagnon, significam bem mais

que uma palavra inicial: funcionam tal qual “um grito, [...] um limpar de garganta antes

de começar realmente a falar, um prelúdio ou uma confissão de fé” (idem, ibidem).

Como uma rampa, um trampolim, uma “plataforma sobre a qual o comentário ergue

seus pilares” (idem, ibidem), as citações introdutórias agem como paratextos

propulsores do caminho poético a ser trilhado por Patraquim.

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E já que a função principal da epígrafe é a de “tatuagem” (idem, ibidem), como

coloca Compagnon, as vozes de Craveirinha e Neruda aparecem impressas, indeléveis,

sobre a pele de Monção (1980).

2.1.2. A “morna geografia do ventre”14

: a paisagem dos desejos

Desvelado o mecanismo das epígrafes, passamos à percepção de que Monção

(1980) consiste em um livro elementar. Nossa escolha por esse predicativo justifica-se

pelo duplo significado que esse qualificativo engendra; primeiramente, porque, como já

vimos, trata-se de um livro essencial, no sentido basilar para a reconstituição da lírica

moçambicana de feição subjetiva15

. Contudo, é também elementar no sentido mais

imediato do termo – “relativo ou pertencente a elemento(s)”, que, para a cosmogonia

tradicional, se refere(m) à terra, à água, ao ar e ao fogo.

Se precisássemos apontar apenas um dos alvos líricos deste livro, diríamos

convictos de que Monção (1980) tem por mote maior a paisagem, ponto de partida de

suas elocuções poéticas.

A começar pelo título, podemos depreender o primeiro dos quatro elementos

integrantes da natureza presentificados no livro: o ar. Representado com maior

evidência pelo vento, que compõe o fenômeno que dá nome ao título, o ar a que alude a

poética de Monção (1980) é essencialmente externo.

O elemento aéreo se insinua sob diversificados aspectos a cada poema neste

livro: como canal através do qual ecoa a “intermitência dos sons que circundam o

perímetro da palavra” (PATRAQUIM, 1980, p. 13) ou ainda como o “adjacente sopro”

14

PATRAQUIM, 1980, p. 25. 15

Embora seja a reconstituição da subjetividade uma característica evidente desta obra, não podemos nos

esquecer de que Monção (1980) foi escrito no calor da euforia da independência moçambicana. Ao lado

de poemas inegavelmente subjetivos figuram outros, alinhados ao compromisso revolucionário que

comemora a independência política.

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(ibidem) da nova poesia; como espaço por onde circula a ave que se confunde ao canto

poético (ibidem, p. 15) ou como canal por onde ecoam “a voz e o vento” (ibidem, p. 16).

Além de constituir uma força elementar, a monção é um fenômeno eólico

sazonal: demarca um período provisório, como, aliás, nos esclarece a etimologia da

palavra que advém do árabe mawsin e significa „temporada‟, „estação do ano‟. No

verão, sopra do mar para o continente, assinalando o período das monções marítimas,

favoráveis à navegação. No inverno, os ventos partem à contramão: é o fôlego da terra a

expirar para o oceano, constituindo a monção continental, benéfica à colheita porque

dessaliniza a atmosfera. De um modo ou de outro, o ar simbolizado pelas monções

sinaliza uma incontestável mudança, uma alteração significativa de paradigma para a

natureza. Nesse sentido, o primeiro livro de Luís Carlos Patraquim não poderia ter

recebido título mais oportuno, haja vista a intensidade da transformação que sua poética

pretendeu implementar. Eis uma obra que demarcou o início de uma outra estação

literária em Moçambique. Indubitavelmente, uma monção lírica.

Embora a presença do signo aéreo seja relevante nos primeiros poemas de

Patraquim, publicados em 1980, o ar não consistia ainda em um capital elemento de sua

obra, como verificaríamos vinte e nove anos mais tarde em Pneuma (2009). Nossa

leitura é um convite à observação de que a poética de Monção está entre a terra e a

água: versos anfíbios, porque dotados da condição daqueles que necessitam reinventar

mais de uma possibilidade de existência.

Obstinado em traçar uma nova geografia ou – no sentido strictu da palavra de

origem grega, uma nova „escrita da terra‟ –, o poeta institui “a morna geografia do

ventre” (PATRAQUIM, 1980, p. 25). Em Monção (1980), o erotismo prevalece como

seara fértil à semeadura lírica.

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Sendo a paisagem uma “vista possível” (CLAVAL, 2004, p. 14), o que emerge

como possibilidade mediante o olhar do poeta é uma terra que também se quer como

corpo. Elegemos “afasto as cortinas da tarde” como um dos poemas de 1980 mais

representativos dessa particularidade. Ouçamos os versos:

afasto as cortinas da tarde

porque te desejo inteira

no poema

e passas de capulana

teu corpo como as dunas

plantadas de pinheiros16

rumorejando perto

a fúria das ondas

caindo brandas

no meu gesto

(PATRAQUIM, 1980, p. 38)

Ao promover a abertura das possibilidades temáticas, os poemas de Monção

(1980) iniciarão a escrita da terra pela captura das paisagens exteriores.

Já que “a paisagem é, de fato, uma maneira de ver” (COSGROVE, 2004, p. 98),

detectamos, na primeira obra de Patraquim, uma característica que, aliás, se tornará uma

marca de seu olhar sobre a paisagem natural de seu país. Adotando um modo bem

peculiar de captar sua terra, o poeta a vê como um elemento marcadamente feminino,

proporcionando a confluência de dois materiais líricos capitais em sua poesia: a terra e a

mulher.

Olhar para a terra já não significava meramente apreendê-la, mas, antes,

ressignificá-la. Patraquim filia-se a uma nova noção de geografia, composta por uma

paisagem para a qual confluem os desejos; lugar em que se fundem – e se confundem –

a silhueta do corpo fêmeo do país à semelhança dos contornos paisagísticos.

16

Grifo nosso. O poeta concebeu uma nova versão desse mesmo poema, optando por substituir

“pinheiros” por “casuarinas”. Apenas em Monção o termo “pinheiros” é usado. Visto que as linhas desse

capítulo discorrem acerca dessa obra, preferimos jurar fidelidade à escrita da poesia do modo como veio a

público em 1980.

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Sob a capulana, o corpo feminino da terra assume proporções camaleônicas, uma

vez comparado às dunas, formas movediças que representam uma paisagem assinalada

pelo dom da metamorfose: a cada sopro dos ventos se apresentam ao mundo sob uma

nova forma. Constituída essencialmente por areia, as dunas assumem uma acolhedora

conotação feminina: passível de ser penetrada e plástica, a areia abraça as formas que a

ela se moldam. E à luz desse aspecto, simboliza a matriz, o útero (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 79). Assim, o olhar lírico apreende a mulher como símbolo

de um amálgama que reúne sexualidade, acolhimento, fertilidade e origem: um

manancial; lugar para inícios.

A poesia nos conduz por uma terra conjugada ao ser. Para Augustin Berque

(BERQUE, 2004, p. 10), geógrafo da Escola Superior de Estudos em Ciências Sociais

de Paris, toda paisagem é integrada ao sujeito para o qual a paisagem existe.

Percebamos que, na poesia de Patraquim, paisagem e sujeito, habitat e habitante,

existem um para o outro, de modo a estabelecerem entre si uma relação comutativa e

complementar.

Relembremos Michel Collot que concebe a paisagem intrínseca ao sujeito, ao

modo de um “espaço ao alcance do olhar e à disposição do corpo” (COLLOT, 2010, p.

206). Habitada, vivida e saboreada17

pelo sujeito, a paisagem pode ser definida não

apenas por nosso raio de visão, mas também por nosso raio de ação: já que “a costa é

vista como para escalar, o campo como para ceifar, o pomar como para consumir”

(idem, ibidem), acrescentamos a esse conjunto de ideias que a areia, à feição das dunas,

pode ser vista como para amar, uma vez que o poema remonte essa superfície como solo

propício à fruição dos sentidos.

17

“Saborear a paisagem”, no sentido de que esta compreende um lugar de e para experimentações.

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Ressaltemos, pois, que, na paisagem dos desejos, não é o lugar que se assemelha

ao corpo. Trata-se, antes, da inversão: deparamo-nos com um corpo que o olhar lírico

equipara à paisagem. Para quem defenda o princípio de que as ordens das comparações

não alteram a significância da mensagem poética, explicitemos: em Monção (1980), no

lugar de uma paisagem personificada, encontramos corpos paisagísticos.

A abertura das possibilidades temáticas promovida pela retomada e intensificação

do lirismo existencial nos anos 1980, em Moçambique, encaminha-nos para a questão

da redescoberta do corpo pela poesia moçambicana, a partir das produções líricas de

Patraquim.

2.1.3. “a sul implanto uma cartografia sem limites”18

Já em seu primeiro livro, o poeta adere a inusitadas “noções de geografia”

(PATRAQUIM, 1980, p. 46), subvertendo o magnetismo de sua bússola poética, cuja

agulha passa a apontar para o sul em

Noções de Geografia

a sul

implanto uma cartografia sem limites

traço e compasso

depois da madrugada

de ti um rosto iridiscente

alastra o voo claro

das mãos

a sul

descobrimos vozes abertas

sem oclusão

e mastigamos água

(PATRAQUIM, 1980, p. 46)

18

PATRAQUIM, 1980, p. 46.

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A cartografia consiste em uma representação que delimita espaços territoriais e,

portanto, impõe limites. Todavia, sabe o poeta que à função poética da linguagem é

permitido implantar uma cartografia ilimitada, alargando os preceitos geográficos.

A escolha pelo sul também revela um olhar poético que busca ressignificar a

referência austral: de mero ponto cardeal, o sul é elevado à condição metafórica de

ponto de partida, ou melhor, um ponto para partidas, no sentido de um lugar de abertura,

propício ao alçar de novas possibilidades.

Em Epistemologias do sul (2010), Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula

Meneses concebem metaforicamente o sul como “um campo de desafios epistémicos,

que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na

sua relação colonial com o mundo” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19). Segundo os

pesquisadores, tal concepção do sul se sobrepõe parcialmente ao sul geográfico, que

engloba a maioria das regiões do mundo submetidas ao colonialismo europeu e que,

com raras exceções, não atingiram, até a atualidade, níveis de desenvolvimento

econômico e social semelhantes ao do hemisfério norte. No entanto, reconhecem a

parcialidade dessa sobreposição: no interior do norte geográfico podemos encontrar

classes e grupos sociais que foram sujeitos à dominação capitalista e colonial (como é o

caso de trabalhadores, mulheres, indígenas, afro-descendentes e muçulmanos), assim

como no interior do sul geográfico podemos depreender “pequenas Europas”

(SANTOS; MENESES, 2010, p. 19), sob a forma de elites locais que tanto se

beneficiaram da dominação capitalista, como da colonial e que, depois das

independências, continuaram a exercer um status de poder contra classes e grupos

sociais subordinados (ibidem, p. 19)19

. Destarte, explicitam Santos e Meneses o que

significam as epistemologias do sul: “são o conjunto de intervenções epistemológicas

19

Há muito o sul vem sendo problematizado pela antropologia, sociologia, geografia, história e literatura.

Anteriores ao estudo reflexivo de Santos e Meneses, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda,

Ruy Duarte de Carvalho, Pepetela, dentre outros, já clamavam pelo sul.

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que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e

investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos” (ibidem, p. 19),

diálogo esse a que Boaventura de Sousa Santos chamará de “ecologia de saberes”

(ibidem, p. 11).

A epistemologia consiste em um conjunto de conhecimentos que busca explicar

e sistematizar os condicionamentos do estudo científico – dentre eles as interferências e

contribuições dos campos histórico e social. Embora não se paute pelo mesmo objeto, a

ótica da poesia apresenta pontos de interseção com a ótica epistemológica, visto que,

embasados por Adorno, cremos que lírica e sociedade constituem instâncias

interpenetráveis (ADORNO, 2003, p. 65).

O sul metafórico e metonímico evocado pelos versos de Patraquim simboliza seu

próprio país, Moçambique, localizado na África austral, lugar finalmente propício à

descoberta de “vozes abertas / sem oclusão” (PATRAQUIM, 1980, p. 46), sobrepondo-

se, dessa maneira, ao sul geográfico mencionado por Santos e Meneses.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, “uma epistemologia do Sul assenta em

três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul e aprender a partir

do Sul e com o Sul” (SANTOS. In: SANTOS et alii, 1995, p. 508). Em consonância à

leitura proposta por Santos, evocamos as ideias de Edgar Morin. No ensaio “Para um

pensamento do Sul” (MORIN, 2010, p. 21), o filósofo francês propõe o despontar de

um movimento para uma forma outra de pensar que ofereça ao mundo uma nova

proposta política de civilização.

Morin demonstra que, por séculos, o Ocidente tentou „nortear‟ o mundo,

direcionando-o por caminhos que não se mostraram viáveis à humanidade, ao longo das

eras. E já que „nortear‟ não havia sido a saída, quem sabe se „sularizar‟ viesse a ser a

chave? Ao sugerir o Sul como lugar para (re)delinear uma “cartografia sem limites”

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(PATRAQUIM, 1980, p. 46), de cujo traçado também despontasse a silhueta de um

“rosto iridescente” (idem, ibidem) que “alastra[sse] o voo claro das mãos” (idem,

ibidem) e no qual descobriríamos “vozes abertas sem oclusão” (idem, ibidem),

Patraquim inovou, em 1980, ao propor a inversão das polaridades, questionando e

subvertendo a hegemonia há muito instituída.

A fim de oferecer ao mundo, por intermédio de sua poesia, inusitadas “noções de

geografia” (idem, ibidem), o poeta lança, no cerne da poesia moçambicana, as bases

para um redirecionamento dos olhares ao Sul20

. Ousou, ao pretender que essa mudança

de foco partisse não apenas do próprio Sul, mas, sobretudo, da África. Nossa tese é

também movida pelo desejo de evidenciar que a poesia de Luis Carlos Patraquim

ratificou precedentes para se retomar o pensamento do Sul, revalidando, assim,

propostas líricas anteriores, em Moçambique, como a do poeta Virgílio de Lemos.

2.1.4. As paisagens da memória

Simon Schama nos ensinou que paisagem e memória constituem instâncias

indissociáveis. Sendo a paisagem uma exímia guardiã de memórias, à crosta dos

versos, irrompem imagens poéticas que compõem as paisagens da memória.

A evocação dessas paisagens promove, na poesia de Patraquim, a reavaliação do

processo histórico e social a que estas pertencem, ora expurgando o legado de traumas,

ora recriando um quadro cultural que necessita ser preservado.

Os versos de “Metamorfose”, dedicado a José Craveirinha, ilustra a poética que se

dedica ao canto das paisagens remontadas pelas memórias. Ouçamos a voz dos versos:

quando o medo puxava lustro à cidade

20

Patraquim segue o rastro deixado pelo poeta conterrâneo Virgílio de Lemos, que, entre meados dos

anos de 1940 e a década seguinte, propusera um olhar para o Sul, redimensionando o foco da literatura

moçambicana.

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eu era pequeno

vê lá que nem casaco tinha

nem sentido do mundo grave

ou lido Carlos Drummond de Andrade

os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens

e flores vermelhas

e nem lustro de cera havia

para que o soubesse

na madeira da infância

sobre a casa

a Mãe não era ainda mulher

e depois ficou Mãe

e a mulher é que é a vagem e a terra

então percebi a cor

e a metáfora

mas agora morto Adamastor

tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada

das mambas cuspideiras nos trilhos do mato

falemos dos casacos e do medo

tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes

e as espigas de bronze

as rótulas já não tremulam não e a sete de Março

chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia

de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando

a natureza e o chão no parnaso das balas

falemos da madrugada e ao entardecer

porque a monção chegou

e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos

num silêncio de rãs a tisana do desejo

enquanto os tocadores de viola

com que latas de rícino e amendoim

percutem outros tendões de memória

e concreta

a música é o brinquedo

a roda

e o sonho

das crianças que olham os casacos e riem

na despudorada inocência deste clarão matinal

que tu

clandestinamente plantaste

AOS GRITOS

(PATRAQUIM, 1980, p. 27-8)

Verificamos que o lirismo vai ao encontro de um outrora, “quando o medo puxava

lustro à cidade”21

, tempo marcadamente passado, visto que “os jacarandás explodiam na

alegria secreta de serem vagens / e flores vermelhas” e “a Mãe não era ainda mulher”.

Somos conduzidos ao encontro de um poeta ainda menino, “que nem casaco tinha / nem

21

Referência explícita ao verso de José Craveirinha “de joelhos o medo/puxa lustro à cidade”, do poema

“Lustro”, do livro Cela 1 (1980).

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sentimento do mundo grave / ou lido Carlos Drummond de Andrade”. O tempo da

infância, evocado pelas duas primeiras estrofes, testemunhou uma época assinalada por

escassez, medo, censura e inocência.

Na terceira estância do poema, a metamorfose, ocasionada pela revolução e pelo

advento da independência, se estende à perspectiva temporal: migra-se do pretérito ao

presente, tempo em que Adamastor, símbolo maior do colonialismo português, não mais

vive. O desconcerto do mundo contemporâneo anuncia o início de uma era tão

adversativa quanto a conjunção que encabeça o verso. E “[...] porque a monção chegou

[...]”, é tempo de inadiáveis metamorfoses moçambicanas e, acima de tudo, humanas.

Sob pena de não esquecer as sombras da história, exige a poesia a necessidade de falar

do medo em meio ao “parnaso das balas”.

O teor social das paisagens da memória deslinda uma incontestável dimensão

crítica. A lucidez emanada desse lirismo não se admite à margem do referencial

histórico. A subjetividade, relegada aos bastidores, nos anos em que versos e fuzis

confluíam seus propósitos, subia novamente ao palco. Nos versos patraquimianos, o eu

não aporta em solidão: está agora “impregnado de povo”, como observou Cremilda

Medina (1987, p. 69).

Intencionalmente indiferente a clássicas distinções entre épica e lírica, Patraquim

transforma a história em material poético. É o que verificamos no poema “Canto em

Setembro sobre o Índico” (PATRAQUIM, 1980, p. 53-4). As “veias em fúria da

memória” (ibidem, p. 54) evocam a liderança revolucionária do “poeta deitado na

presidência do amor”, numa explícita referência a Agostinho Neto, personagem

histórica que, embora angolano, se transformou em exemplo para toda a África de

colonização portuguesa. “Como pensar na tua morte / se é inteiro o rosto da vida”

(idem, ibidem), questionam os versos de Patraquim a zelarem pela perpetuação do herói

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falecido em setembro de 1979, que, mesmo fora de Moçambique, “estava muito dentro”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 931).

Semelhante função poética – a de arejar as reflexões históricas – percebemos

também nos versos de “Catalunha em Maputo” (idem, 1980, p. 23), em que as paisagens

da memória recordam o cenário da Guerra Civil Espanhola, “uma das últimas guerras

românticas”, na opinião de Patraquim (idem. In: LABAN, 1998, p. 927).

Reavivando os motivos que justificam a atração de seu lirismo pelas sinuosidades

da história, confidenciou o poeta que

uma coisa que me fascinou desde miúdo foram as situações limite. E a

situação de guerra é em si uma situação limite em que se põe a nu o bom e o

mau daquilo que constitui as pessoas, as sociedades, os interesses. [...]

Digamos que é um pouco por aí, por ler o Orwell, por ler o Bernanos, por ler

o Hemingway, por ler os clássicos sobre a Guerra de Espanha, que nasce esse

poema, e a percepção da guerra civil que já estava a haver lá dentro [em

Moçambique]... (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 927).

Afinal, estavam “todos em guerra civil / ferindo o antigo” (PATRAQUIM, 1980,

p. 24), como anunciam os derradeiros versos que estabelecem uma Catalunha

maputense.

Coexistindo com as memórias históricas, em Monção, estão também as

memórias íntimas. Interpelado acerca do exílio, o poeta confessou que, antes mesmo da

partida para Estocolmo, “já havia o tal exílio interior [...] que é o que todos estamos a

viver” (idem. In: LABAN, 1998, p. 933). O poema “Reminiscência” ilustra essa

percepção: “às vezes o exílio / é uma árvore aberta / na imponderável noite”

(PATRAQUIM, 1980, p. 45). Patraquim observa que Maputo, principalmente pela

condição portuária, desde os idos em que a capital ainda intitulava-se „Lourenço

Marques‟, sempre foi “uma cidade de descentramento: havia ali uma nostalgia de uma

grande evasão” (idem. In: LABAN, 1998, p. 932), colaborando com a necessidade de se

recorrer a exílios dentro de si mesmo.

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As paisagens mnemônicas não resistem à sedução dos sentidos físicos.

Ilustramos nossa asserção por meio do poema sem título, iniciado por “era a casa

baloiçando em teus cabelos” (PATRAQUIM, 1980, p. 36), em que índices repletos de

erotismo proporcionam o compartilhamento de propósitos entre a paisagem, a memória

e o desejo: “era o plâncton e a espuma / na exuberância das marés // era, meu amor, o

tacto / de nós tão assim completo / tão assim exacto / que nas flores nasciam e se davam

/ na água do momento” (idem, ibidem).

As ideias propostas por Simon Schama oferecem-nos, sobretudo, “um modo

alternativo de olhar” (SCHAMA, 1996, p. 24). De acordo com o autor de Paisagem e

memória (1996), é necessário também saber redescobrir o que já possuímos ao nosso

redor, “mas que de alguma forma escapa-nos ao reconhecimento e à apreciação” (idem,

ibidem). Ciente dessa constatação, a lírica patraquimiana, em meio à ótica dos traumas,

à perspectiva histórica e às memórias íntimas, busca recriar paisagens mítico-culturais

de seu país.

Em Monção (1980), deparamo-nos com uma expressão cultural pinçada dentre

as tradições moçambicanas, o nyau. Em um ritmo eloquente de imagens que parecem

saltar diretamente do olhar do poeta para a página, o poema “Variação de nyau” é como

um convite para que testemunhemos o ritual por intermédio das palavras:

e os faunos bateram o som a pele fremente das planícies abertas o vento

corria vermelho por dentro e as mulheres acordaram batendo mordendo o

sumo dos cajueiros com largas mãos acesas na noite a monção agônica nos

tandos espermáticos do olhar seios espigas verdes escorrendo leite então o

grito a alegria batendo alguém trouxera máscaras e as gazelas húmidas sob

a lua e o nervo das planícies abertas quando os faunos bateram o som

(PATRAQUIM, 1980, p. 26)

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O nyau consiste em uma dança ritualística praticada na província de Tete, ao

norte de Moçambique. Juntamente com a timbila22

, instrumento musical que também

agrega o valor de expressão cultural tipicamente moçambicana, o nyau foi proclamado

“obra-prima do patrimônio oral e imaterial da humanidade”, pela UNESCO, em 25 de

novembro de 2005.

Fig. 4 Nyau: dança ritualística praticada apenas por homens, na província de Tete, ao norte de

Moçambique.

Também conhecido como gule wankulu, o nyau, é praticado apenas por homens,

segundo prescrevem os ditos milenares, por meio de ritmos rápidos e estonteantes dos

tambores e das canções tradicionais entoadas por um coro essencialmente feminino. Os

dançarinos, com vestes ornamentadas por materiais extraídos da natureza, portam

máscaras e se apresentam com o corpo besuntado de cinza, lama vermelha ou branca,

cores que agregam notáveis valores simbólicos. A evocação desse ritual ocorre, apenas,

em especialíssimas ocasiões, como ritos de iniciação, funerais e festas tradicionais.

22

A timbila é um instrumento musical de percussão, parecido com um xilofone, tradicional dos chopes do

sul de Moçambique, grupo linguístico bantu que se estende pelo norte da província de Gaza e pela

província de Inhambane.

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Os dançarinos representam figuras zoomórficas: são “os faunos”, aos quais o

poeta se refere em “Variação de nyau” (PATRAQUIM, 1980, p. 26). Imitam o som do

animal que simbolizam e as mulheres, ao reconhecerem o som, respondem em coro,

cantando canções específicas do animal representado. As cantigas são de profundo

significado erótico e emocional; transmitem uma série de ensinamentos da vida da

comunidade.

No ensaio “Visões e percepções tradicionais” (AGUESSY, 1977, p. 95),

Honorat Aguessy cita os jogos, os provérbios, a arte, a religião e os mitos como

exemplos de manifestações culturais tradicionais, pelos quais podemos investigar e

apreender a concepção de mundo de um determinado povo. Embora o africanista não

tenha inserido a dança em sua análise, seu texto confere a possibilidade de elevarmos

esse tipo de expressão corporal a uma forma de percepção de mundo, bem como a um

veículo de transmissão dos ensinamentos tradicionais. Podemos inferir, por exemplo,

que, de acordo com as etnias que o praticam, o nyau garante o (bom) funcionamento da

estrutura de toda a comunidade e a perpetuação de suas tradições.

A poesia de Patraquim, ao revisitar o nyau, “sob a capa superficial do

contemporâneo, [sabe que esse processo] equivale a perceber, intensamente, a

permanência dos mitos essenciais” (SCHAMA, 1996, p. 27).

Com base em leituras teóricas oriundas do campo da geografia cultural,

deparamo-nos com uma enriquecedora contribuição para nossa tese: o olhar geográfico,

que paira entre a subjetividade da interpretação de mundo e a objetividade investigativa,

também considera a paisagem como um texto cultural. Instância essencialmente

humana, observa Denis Cosgrove que, há muito, a paisagem vem sendo associada à

cultura (COSGROVE, 2004, p. 100).

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Advém, aliás, desse geógrafo a certeza de que “os significados na paisagem

cultural exigem a habilidade imaginativa de entrar no mundo dos outros de maneira

auto-consciente e, então, re-presentar essa paisagem” (idem, ibidem, p. 103). Assim o

procede Patraquim: (re)presentifica um dos textos culturais que compõe o caleidoscópio

cultural moçambicano. O poeta não necessita de permissão, pois não penetra „no mundo

dos outros‟, mas, em seu próprio mundo. Nesse sentido, não devemos falar de violação,

e, sim, de (re)descobertas: o poeta vai ao encontro de motes ancestrais de sua cultura, há

muito silenciados pelas prioridades políticas da poesia.

Schama alertou-nos para o fato de que

se toda história da paisagem no Ocidente de fato não passa de corrida

insensata rumo a um universo movido a máquina, sem a complexidade de

mitos, metáforas e alegorias, no qual o árbitro absoluto do valor é a medição

e não a memória, no qual nossa inventividade constitui nossa tragédia, então

realmente estamos presos no mecanismo de nossa autodestruição.

(SCHAMA, 1996, p. 24)

Atenta a isso, a poesia patraquimiana nos mostra que, no avesso das imposições

da história, – especialmente num país como Moçambique, em que as crianças crescem

perguntando quanto um mero chocolate custa em dólar (PATRAQUIM. In: LABAN,

1998, p. 933) –, as manifestações culturais podem – devem – significar a retomada do

fio de uma meada já quase esquecida, há muito silenciada, repleta de outras histórias

moçambicanas que valem a pena ser ouvidas.

Desde seus primeiros poemas esparsos, anteriores a Monção, Patraquim

confidenciou a Laban que já buscava a interioridade nos poemas; aquele “já era um

tempo [seu] de viagem interior”, muito embora ainda não pudesse dizer o mesmo em

relação a seu país (idem, ibidem, p. 913): “[...] estou sempre em viagem!”, garantiu o

moçambicano ao entrevistador (idem, ibidem, p. 950).

Acreditamos que ser poeta exige, aliás, este pré-requisito: ser também um

viajante interior. Assim como a poesia, o poeta não é um turista. E nisso há grande

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diferença. “O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O

viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso”

(BORRALHO, 2011, p. 4).

Logicamente, um discurso que se pretende poético engendra viagens – “viagens

sempre no sentido da experiência interior”, especifica Patraquim (PATRAQUIM. In:

LABAN, 1998, p. 923). No entanto, o que buscamos mostrar aqui é que a interiorização

a que se lançou o poeta entre 1978 e 80 – e mesmo mais tarde, em 1985, quando da

publicação de A inadiável viagem –, não atingiu o grau de intimismo que sua

perspectiva lírica alcançou ao fim do ciclo de sua trilogia, em 1991. Muito menos pode

equiparar-se ao nível de profundidade para o qual imigraria seu percurso poético até

aportar às margens de seu mais recente livro, O escuro anterior, em 2011. Percebemos

que, em Monção (1980), a percepção lírica parte de seus redores, da dimensão externa.

Com a palavra, o sujeito desse olhar: “Monção tem a ver com o que eu começo a

perceber do lugar geográfico a que pertenço: aquela costa, as monções realmente

passam por ali” (idem, ibidem).

Ana Mafalda Leite, desde o primeiro de seus textos acerca da poesia

patraquimiana – uma recensão crítica de Monção (1980) publicada na revista Colóquio

Letras, em 1982 –, assinala a metáfora do percurso como um determinante na obra do

poeta, marca intransponível de seu desejo de navegar (LEITE, 1982, p. 94-5). Não

discordamos de seu apontamento, visto que flagrante é a condição nômade do olhar

lírico de Patraquim. Em Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991),

será ele mesmo a se proclamar um “marinheiro em terra com palavras de espanto”

(PATRAQUIM, 1991, p. 46). O poeta segue, desde 1980, em permanente busca por

novas possibilidades líricas que marquem um estilo próprio, mas que, por extensão,

signifiquem, também, uma nova tendência para a literatura moçambicana.

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Embasados em Compagnon (1996), sabemos que o título de uma obra funciona,

principalmente, como uma referência e, para além de apenas denotar, é dotado de um

sentido (ibidem p. 106-7). Retomamos, assim, ao título da obra aqui em evidência, para

entender que, além de significar „ventos favoráveis‟, as monções representam uma

estação de chuvas torrenciais que, por meses a fio, impedem a partida das embarcações.

Consciencioso dessa via de mão dupla que é o título de seu livro primogênito, o poeta

explicou para Michel Laban como se deve entendê-lo: “É tempo da fertilidade ou o

tempo do bom navegar e o tempo do ficar em terra e de ir acumulando saber, as

experiências e, sobretudo, a oficina poética, dizendo-a, fazendo-a...” (PATRAQUIM.

In: LABAN, 1998, p. 923).

A monção patraquimiana profana também o simbolismo dos ventos que aludem

à ideia de movimento, ao impulsionarem as naus por sobre um oceano aberto de

possibilidades. Ao invés disso, oferece-nos a alternativa do ficar. Daí a “poética anfíbia”

recorrente nesta obra: entre a terra e o mar; o corpo e a paisagem; o percurso e o porto.

Sabe bem o poeta que “a poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela

realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar” (BOSI A., 2000, p. 227). Pela

potência da palavra em seu estado lírico, esse ficar significará, também, ponto de partida

para o resistir.

Ao estudarmos o conjunto da obra poética de Patraquim, verificamos que, a partir

da década de 1990, sua poesia se renderá aos efeitos da distopia e da indignação. A

corrosividade de seu olhar lírico marcará as fases vindouras de sua produção poética.

Contudo, ainda em 1980, as sementes disseminadas pelos poemas de Monção,

pretenderam refecundar o chão moçambicano, dilacerado pelas consecutivas guerras e

pelo conturbado – e meteórico – processo histórico de seu país.

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Para construir a fundação de uma casa, se faz necessário, primeiramente,

implantar profundos pilares de sustentação. Por extensão simbólica, o mesmo deve

ocorrer para se fazer a sólida fundação de um país: fincar na terra, com firmeza, rígidas

vigas que suportem “o peso da vida” a que se refere Ítalo Calvino (CALVINO, 1995, p.

19) e que “está em toda forma de opressão” (idem, bidem). Ao nos apresentar as suas

Seis propostas para o próximo milênio (idem, ibidem), observou o crítico que

Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim

mesmo que eu devia voar para outro espaço. [...]. Quero dizer que preciso

mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma

outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle (idem,

ibidem).

Eis aí o maior legado da poética inaugural de Patraquim: o oferecimento de uma

mudança de ponto de observação.

2.1.5. Direito de resposta

Em 1983, o poeta concedeu uma entrevista a António Duarte, “à volta de uma

garrafa de vinho do Porto” (DUARTE, 1983, p. 6), tal qual descreveu o jornalista

português, de modo a salientar a informalidade do encontro. A conversa, em casa do

também poeta Gulamo Khan, foi publicada nas páginas do “Dossier Moçambique”, do

lisboeta JL. “Patraca”23

, falando pausadamente, como mesmo observou o repórter,

explicou “sem sentimentos de culpa” (idem, ibidem):

Neste momento, em Moçambique, para lá da euforia da vitória, as pessoas

esquecem-se, de certa maneira, de si próprias para exaltar o todo colectivo. O

que acontece é que as pessoas demitiram-se de si próprias. Mas isso não quer

dizer que eu defenda a poesia intimista como tal. Acho que a poesia é poesia.

(PATRAQUIM. In: DUARTE, 1983, p. 6)

23

Forma como Patraquim é conhecido em círculos íntimos de convivência.

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“Monção‟, o seu primeiro livro. Outra dimensão para a jovem poesia

moçambicana [...]” (DUARTE, 1983, p. 6) – provocou o mediador para que o próprio

poeta avaliasse a função de sua obra frente ao novo cenário poético moçambicano:

“Monção” uma tempestade de conhecimento – conhecimento deste tempo,

deste lugar, das vivências vividas nesta época e neste lugar, vivência de

situação, sobretudo, porque a moçambicanidade é qualquer coisa que é feita

de sínteses e tem de se descobrir. Eu poderia adoptar a retórica do discurso

político, com um projecto cultural com o qual estou de acordo e assumo, mas

quando se diz que Moçambique tem oito anos de independência, acho que

essa descoberta é de cada um de nós. A nação moçambicana será cada um de

nós. (PATRAQUIM. In: idem, ibidem)

Mais um gole de vinho do Porto e outra provocação: “Luis Carlos Patraquim,

individualista?” (DUARTE, 1983, p. 6). O poeta pareceu reivindicar, enfim, seu diretio

de resposta às endurecidas críticas recebidas três anos antes: “considero-me defensor da

liberdade criativa individual” (PATRAQUIM. In: idem, ibidem).

“Há solidão nesta liberdade?” (DUARTE, 1983, p. 6) – retrucou o interlocutor.

“Há também, um pouco de solidão...” – confessou o entrevistado – “Em todo o homem

há uma solidão essencial no sentido de uma aventura, de uma relação com os outros e

consigo próprio.” (PATRAQUIM. In: idem, ibidem)

“O poeta é um eleito? Diferente?” (DUARTE, 1983, p. 6). Patraquim recusou

imediatamente o pedestal:

Acho que cada pessoa é diferente; não é o poeta que é diferente das outras

pessoas. Cada um de nós tem de conquistar e viver essa dimensão de espanto,

de permanente perplexidade perante o mundo, perante as coisas. Não

interessa o estatuto de poeta. Neste país acredito neste projecto de descoberta.

Não acredito é em dicotomias, em maniqueísmos. (PATRAQUIM. In: idem,

ibidem)

“Compreende-se a pergunta: „Para quem escreve Luis Carlos Patraquim?”. Mas

não se compreende a crítica. Porque reflecte um preconceito” (DUARTE, 1983, p. 6) –

aludiu o entrevistador ao polêmico artigo anônimo, publicado na Revista Tempo,

refratário à poesia de Monção (1980). Concedia-se, assim, ao poeta a chance de

publicizar sua réplica:

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Estou preocupado com as críticas ao meu livro, no sentido da vivência

cultural e da criatividade em Moçambique. É preciso quebrar com certos

preconceitos de que a literatura é qualquer coisa de apoteótico, de vitorioso –

a literatura como imitação, a mimese absoluta do real. Acho que a literatura

cria o real onde ele não é dito (PATRAQUIM. In: idem, ibidem).

Ao fim do „bate-papo‟ ali transcrito em molde de entrevista, António Duarte

referiu-se à continuação da carreira poética do então apenas “jornalista” moçambicano

Luis Carlos Patraquim:

Desconcertante, Luís Carlos Patraquim considera a publicação de um livro

“um trabalho”: “é como amar ou ter um filho... Se amar é trabalho? Amar

pode ser trabalho...” Amar a viagem. Vai chamar-se “A Inadiável Viagem” o

seu próximo acto de amor. Viagem a onde? O último gole. (DUARTE, 1983,

p. 6).

E o poeta revelou as novas coordenadas de um azimute que viria a público dois

anos depois, em 1985:

“A tudo. A inadiável viagem é, realmente, a urgência de conhecimento. É

uma descoberta permanente. É aí que eu estou: na descoberta. Em suma,

estou numa determinada memória de infância, na descoberta e na sua

vivência – uma certa inocência que eu exijo aqui, em Moçambique. Porque a

nação, a política, a gente sabe, tem os argumentos todos.” Fim da garrafa do

Porto. (PATRAQUIM. In: idem, ibidem)

2.2. Ainda, a descoberta: um poeta em viagem

[...] estou sempre em viagem!24

(Luis Carlos Patraquim)

Vimos que Monção (1980) compreendeu um livro seminal. Seus poemas servem

de metonímia às primeiras percepções líricas do espaço moçambicano, após a

independência do país. O reconhecimento da paisagem índica como lugar propício à

poiesis realocou o intimismo no improvisado cenário literário que ali se descortinava

ainda tímido, em 1980. Se, para o próprio poeta, sua obra primogênita representou “a

descoberta dos ventos” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 950), ousamos dizer que

24

Patraquim. In: LABAN, 1998, p. 950.

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seu segundo livro significou a descoberta da rota que levaria Luis Carlos Patraquim à

condição de um poeta em viagem.

Impulsionadas as velas da poesia pela potência eólica de Monção, os versos de A

inadiável viagem se puseram a singrar em outubro de 1985. Com uma tiragem de 3000

exemplares, foi o quinto título publicado pela coleção “Timbila”, da AEMO,

Associação dos Escritores Moçambicanos.

Um fragmento extraído de uma recensão crítica de Ana Mafalda Leite, publicada

no número 65 da revista Colóquio Letras, em 1982, dedicada à reflexão da escrita

poética de Patraquim, recepciona os leitores neste novo título. Laudatórias, as palavras

da respeitada pesquisadora reafirmam, com regozijo, a necessidade de uma renovação

estética pelas “novas formas de escrita” (LEITE, 1982, p. 94) que despontavam, de

maneira oportuna, no cenário poético moçambicano, naquele início dos anos 1980. Para

Ana Mafalda, Patraquim emergia como qualificado representante dessa reviravolta

lírica, reinventando toda uma anterioridade literária:

Passados os anos conturbados da presença colonial onde germinou, entre

outra, uma necessária poesia de denúncia, é tempo de encontrar novas formas

de escrita, o diverso território a sulcar e a descobrir. Assim, a novidade desta

poesia baseia-se na feliz isotopia do percurso e da navegação e manifesta-se

na especificidade da linguagem utilizada, vaivém atento, reinventado, de

linguagens poéticas anteriores. (LEITE. In: PATRAQUIM, 1985, p. 5)

A citação de abertura não foi escolhida gratuitamente: a venerável opinião de

Ana Mafalda Leite, que apontou Patraquim como um arauto da nova poesia

moçambicana, servia, outrossim, e sobretudo, de justificativa para a publicação da

segunda obra de um poeta severamente criticado cinco anos antes, aquando do

lançamento de seu livro de estreia.

Conforme considerou o próprio poeta, os versos de A inadiável viagem

consistem em um percurso iniciático, cujo itinerário dá continuidade a momentos

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favoráveis e desfavoráveis da monção de 1980 (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p.

950).

Anteriores à consolidação da própria escrita, as viagens figuram como tema

literário, seja em sentido referencial ou metáfórico. Retrabalhadas incessantemente

pelos povos como formas de descobrir o outro e a si, as viagens – reais ou imaginárias –

se destinam a ultrapassar fronteiras, ora dissolvendo-as, ora recriando-as. Abarcando

significações e conotações que se complementam à medida que se contradizem, as

viagens podem demarcar tanto diferenças quanto semelhanças; alteridades quanto

subjetividades; universalidades quanto singularidades; taciturnidades quanto

ressonâncias. Compreendem travessias que recriam – ou, no mínimo, reafirmam –

identidades, visto que, ao inventarem o outro, reinventam a si mesmas.

Emblemático ou factual, o viajante consiste sempre em um eu nômade, em

permanente busca. No ensaio “A metáfora da viagem”, o cientista social Octávio Ianni

elucida que

Ainda que haja muitos [caminhos] desenhados nas cartografias, emaranhados

nos atlas, todo viajante busca abrir um caminho novo, desvendar o

desconhecido, alcançar a surpresa ou o deslumbramento. A rigor, cada

viajante abre seu caminho, não só quando desbrava o desconhecido, mas

inclusive quando redesenha o conhecido. (IANNI, 2003, p. 29)

Considerando que todo poeta empreende algum tipo de viagem, Patraquim

convida-nos a embarcar em uma nau, cujo percurso visa a redescobrir Moçambique, ora

por caminhos ainda não traçados, ora por paisagens redelineadas por seu olhar.

A jornada patraquimiana de 1985 se divide em quatro paragens tão inadiáveis

quanto aquela viagem poética. Nelas, a paisagem – neste livro, perceptivelmente mais

interiorizada do que nos poemas de Monção (1980) – é invadida por imagens que

remontam ao amor e ao erotismo, suscitam a metapoesia, promovem intertextos,

despontam reflexões sociais, retomam seletas memórias individuais e coletivas. E já que

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“viver não tem volta”25

, como bem nos ensinou o lirismo do poeta cantor e compositor

brasileiro Arnaldo Antunes, o desafio lançado em 1980 fora aceito: enfim, um livro

sobre sensibilidades.

A inadiável viagem (1985) se inicia com um poema que, isolado, antecede à

primeira parte da obra: “obscuro me sou / por esta viagem com o relâmpago / que no

lugar da morte / se modelou” (PATRAQUIM, 1985, p. 7).

Recusamo-nos a considerar tais versos como um caso de epigrafia. Discorremos

na seção anterior acerca dos trabalhos de uma epígrafe e constatamos que o poema

supracitado não compreende uma citação, um recorte alheio agregado ao texto para

modificar-lhe o sentido ou acrescentar-lhe novos significados. Não se trata de uma

“intertextualidade explícita” (KOCH et alii.,2008, p. 28), mas de um poema de abertura,

cujo enunciador é o próprio poeta. Funcionando à feição de “ponto de partida”, emerge

ao início da obra como uma espécie de „porto original‟, de onde parte a nau

patraquimiana rumo aos quatro outros portos simbolizados pelas demais partes em que

o livro se divide. Tais versos não pretendem representar o próprio livro, nem resumi-lo,

como estabelece Compagnon, ao discernir as funções primordiais de uma epígrafe

(COMPAGNON, 1996, p. 120). Antes, se referem ao sujeito por detrás da viagem

poética, travessia iniciática para um „eu‟ que se reconhece „obscuro‟, porque sente que,

ao longo do percurso, não somente se encontra, mas se reencontra, descobrindo a si

mesmo bem diferente daquele „eu‟ de outrora, à ocasião da partida. E, se o „eu‟ já é

„outro‟ é porque assim também o é o lugar que o contém: no lugar da morte, modelou-se

um relâmpago – expressa o poema – com a pretensão de anunciar que inadiável é

também a mudança requerida por seu tempo, em Moçambique.

25

“Viver não tem volta”: verso da canção “17 Arnaldos”, de Arnaldo Antunes.

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A primeira „parte-porto‟ da viagem recepciona os viajantes – poeta-marujo e

leitores-tripulantes –, conferindo dois abraços, à maneira de epígrafes: um, em Herberto

Hélder e outro em Vatsyayana. Colhido das páginas de Poesia toda, o verso em que se

ouve a voz do poeta português nos confidencia uma inquietude: “Deito-me, levanto-me,

penso que é enorme cantar” (HÉLDER. In: PATRAQUIM, 1985, p. 11). A segunda

citação vai ao encontro do filósofo indiano a quem é atribuída a autoria do renomado

texto Kama Sutra: “Portanto, e em resumo, nada mais susceptível de estimular o amor

do que as marcas das unhas e dos dentes” (VATSYAYANA. idem, ibidem). Figurando

como bibliografias precursoras, na medida em que determina relações intertextuais

explícitas, as epígrafes prenunciam os materiais líricos que serão trabalhados pelos

poemas da primeira parte de A inadiável viagem: a metapoesia e o erotismo. A poesia

moçambicana consolidava-se, enfim, como canal para se falar de amor.

Hélder reconhece a vastidão do canto poético, bem como sua inevitabilidade,

enquanto Vatsyayana confere ao amor físico tamanha ferocidade – com o intuito de

aguçar os sentidos e alcançar o ápice do prazer carnal –, ao ponto de defender o

princípio de que o amor deve deixar marcas (atribuindo uma significação literal ao

termo em destaque).

Entre o cantar e o amar: eis as duas margens por entre as quais o poeta singra sua

inadiável travessia poética. Embora tenhamos nos referido a ambas as temáticas como

“margens”, não constituem abordagens poéticas paralelas, sem pontos de interseção.

Amor e metapoesia são temas confluentes neste livro, visto que desembocam numa

mesma foz: o corpo. Tal qual um poeta marinheiro, Patraquim navega pelo corpo da

amada assim como singra pelo corpo da escrita. À medida que a voz lírica estimula os

sentidos – tanto os físicos, quanto os lexicais –, propõe o que Lucia Castello Branco

intitulou de “erografia” (CASTELLO BRANCO; BRANDÃO, 2004, p. 57), ao referir-

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se ao erotismo da escrita. Já nos versos inaugurais da primeira parte da obra,

testemunhamos o reconhecimento da essencialidade desse corpo-foz: “Como do poema

os sinais / a noite Amor desdobro / na palavra corpo / com o júbilo das trompas ao redor

da chuva” (PATRAQUIM, 1985, p. 12).

Não podemos tratar do erotismo na literatura moçambicana da década de 1980

sem, antes, considerarmos a história de sua repressão. Destituído de desejos e impulsos

por ocasião da guerra colonial e da literatura de combate, o corpo – tanto o literário,

como o dos amantes – passou por um longo período à beira da inexistência, camuflado

por um discurso que mesclava estratégias de controle da subjetividade, em nome da

causa política. Em entrevista a Michel Laban, o poeta Eduardo White, conterrâneo e

contemporâneo de Luís Carlos Patraquim, vivenciou a mesma necessidade de „despir o

amor‟, motivo para a publicação de seu primeiro título, Amar sobre o índico (1984),

pela AEMO. Rememorou o poeta que, mesmo após a independência, Moçambique

insistia na letargia dos afetos, em prol da reconstrução nacional:

Porque houve muitos tabus neste país, sobre a relação a dois. [...] muitas vezes – eu

ainda namorava com a minha actual mulher –, passávamos de mãos dadas e éramos

ameaçados, em frente da Emigração, ameaçados com a arma apontada – que era

proibido passar ali de mãos dadas! [...] Isso foi em 79– 80– 81. Era proibido beijar-

se na via pública! (WHITE. In: LABAN, 1998, p. 1182).

Em contextos históricos em que se impõe a repressão da sexualidade – tal qual

ocorreu em Moçambique – observa Lucia Castello Branco que o corpo é reduzido ao

estado de corpus, “cadáver”, em latim, condição a que, a ele, se atribui absoluta inércia.

(CASTELLO BRANCO; BRANDÃO, 2004, p. 46-8).

Apesar do “chão remoto e sem memória” (WHITE, 1992, p. 13) de

Moçambique, a que refere White em um poema de 1992, “o corpo ainda está quente e

os pulmões respiram” (ibidem, p. 13). A persistência de Eros sempre acaba por

descobrir uma maneira de burlar o poder repressor vigente, de modo a mostrar que o

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corpus pode, em tempo, significar um corpo. “Adormecido, talvez. Mas não

definitivamente morto” (CASTELLO BRANCO; BRANDÃO, 2004, p. 55).

2.2.1. “Inaugural país de folhas nuas”: princípios de geo(ero)grafia

O amor é meu país

(Ivan Lins)

Eis a mensagem primordial que a erografia patraquimiana pretende cantar em A

inadiável viagem (1985): o Amor (pretensiosamente grafado em letra capitular) será,

enfim, desdobrado na palavra corpo, que, por sua vez, também é passível de

desdobramentos. Ao “corpo da amada” e ao “corpo da escrita poética” junta-se o “corpo

da paisagem”, fincando os pilares de uma geo(ero)grafia.

Presenciamos este amálgama entre a escrita de Eros e a escrita da terra nos

versos de “Acontecimento”: “sobre as espigas trémulas / os pássaros migram / para os

meridianos virgens / do teu rosto no vento / a densidade da boca” (PATRAQUIM, 1985,

p. 14).

O corpo erotizado da paisagem é igualmente evocado nas imagens suscitadas

pelo poema sem título, que se inicia pela voz de Paul Éluard a nos advertir, à guisa de

epígrafe, que “o mundo inteiro depende dos teus olhos” (ÉLUARD. In: ibidem, p. 16).

Ao estabelecer um intertexto com o verso do poeta francês, Patraquim pretende nos

mostrar que, para erotizar a terra, é necessário, a priori, erotizar o próprio olhar, uma

vez que o erotismo também consiste em um modo de ver.

Ouçamos o poema:

penso as tuas mãos como guelras no mar

as tuas mãos de sons respirando

e um cardume de peixes em scherzo penso

todas as formas são arquipélagos em movimento

e tu vens inaugural país de folhas nuas

ao ritmo prismático com que ardem os tendões

da terra variegando obsessivas

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ó guelras apneicas! as tuas mãos

que enlouquecem os rios

e esculpem a geografia do mundo.

(PATRAQUIM, 1985, p. 16)

Sentimos a pulsação da poesia. A vivacidade das referências de que se valem os

versos – as mãos-guelras (comparação que amplifica os sentidos, atribuindo ao tato a

essencialidade da respiração ou conferindo ao pulmão a sensibilidade táctil); os sons (a

musicalidade alegre e rápida do scherzo); a respiração (que também é ritmo); a

ambientação líquida: tudo aqui é vida. E já que o mundo depende de seus olhos, suas

líricas retinas propõem uma geo(ero)grafia, apreendendo uma paisagem, em cuja terra

dotada de tendões, tudo está em movimento.

Exclamativamente, também se comemorou o ensejo de poder ser a dois, como

lemos em “Um pirilampo em teus olhos”: “a possibilidade secreta de ser / da salsugem à

construída voz de nós / e um pirilampo em teus olhos / nómadas meu amor!” (ibidem, p.

19). O amor, enfim anistiado, transfigurava o seu sentido de “possibilidade secreta”:

abandonava a condição que remetia à clandestinidade dos afetos, e passava a assumir o

teor confidencial da intimidade.

Assim como o amor, a noção de coletividade tornou-se passível de novas

leituras, como se alude em “construída voz de nós” (ibidem, p. 19). Compreendido sob

o viés erótico, o poema nos leva à visualização de uma fórmula em que lemos: [nós =

(eu + um)], cujo somatório equivale à ideia de um duplo amoroso. Entretanto, ao

discorrer sobre a metáfora da viagem, Octavio Ianni adverte que “há sempre algo de

coletivo no movimento da travessia” (IANNI, 2003, p. 28). Ensinou-nos o sociólogo

que “o caminhante não é apenas um „eu‟ em busca do „outro‟. Com frequência é um

„nós‟ em busca dos „outros” (idem, ibidem). Nesse sentido, a viagem poética de

Patraquim faz ressoar os ecos dessa “voz de nós” (PATRAQUIM, 1985, p. 19), em

consonância com um canto tão plural, quanto o mundo que se pretende transmutar.

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Dialogamos, aqui, com a mensagem de “Poema”, dedicado a Heliodoro Baptista, cujos

versos nos ditam: “e verto onde fogo / a Sul este rosto / me impede à lava / de nenhum

deus / a geologia do canto / plural transmutação / do mundo” (PATRAQUIM, 1985, p.

23). A geologia do canto patraquimiano pretende nos dizer que, para além das dicções

do eu e da amada, esse „nós‟ é também constituído pelas vozes de seu país e da

humanidade.

Sabemos que a poesia moçambicana dos anos de 1980, da qual A inadiável

viagem (1985) também se faz representante, busca investir em um ideário que celebre o

novo tempo. Com isso, imagens que remetam aos conceitos de início, união e encontro

são atrativas para os poetas. No poema “Canção”, dedicado à esposa, Paula, a voz lírica

de Patraquim personifica a fala do amor, de modo a anunciar as diversificadas formas

assumidas por sua chegada:

chegarei com as árvores

meu amor ao som do sangue

às catedrais do puro gesto

com o grito e as aves

marítimas dentro das sílabas

ao breve cume da espuma

mãos nas mãos chegarei

chegarei com as espadas

areia verde da planície

ao tutano meu amor da fome

com os frutos nos teus olhos

amante vento à espera

ao sexo nuclear do mundo

nervo a água chegarei

chegarei nas manhãs suadas

da voz meu amor liberta

à nocturna onda do poema

com as aves dentro do grito

ou só marítimo eco

à raiz exígua dos cristais

morte a morte chegarei

chegarei de pé ao silêncio

que vaza meu amor nos rios

remo a canto deslumbrados

contigo ao princípio chegarei

(PATRAQUIM, 1985, p. 21-2)

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A canção escrita para Paula traduz a linguagem do desejo: comemora-se, enfim,

a possibilidade de um Eros verbalizado, dando a conhecer os indícios de como e quando

chegará.

Vivenciando um período de experimentações sensíveis e poéticas, o poeta não

hesitou em reconhecer que o corpo fala (WEIL; TOMPAKOW, 1986), instituindo,

paralela à erografia, uma erofonia, como fica evidente no poema “Eros fonético”: “a

dicção do teu corpo / desnudo-a no pólen / quando húmida vibra / e fendida frenética /

mordemos as escamas / vermelhas das vogais” (idem, ibidem, p. 15).

2.2.2. Os sentidos da paisagem e a (re)invenção de Maputo

A segunda paragem do livro, composta por seis poemas, tem como porto poético

a cidade de Maputo. Como pórtico, uma epígrafe de Craveirinha, cujos versos,

questionam: “mas quanto custa, afinal / quanto custa uma quinhenta de amendoins / do

negrinho de faces tatuadas / de ranho seco?” (CRAVEIRINHA. In: PATRAQUIM,

1985, p. 27). A indagação incitada pelo fragmento epigráfico excede qualquer acepção

concernente a valores monetários. Remete-se, primeiro, ao custear de valores humanos

aí engendrados. E, assim, o questionamento instaurado por Craveirinha dilata-se;

propaga-se em ecos de reflexão social, provocando inadiáveis viagens críticas acerca do

lugar de pertencimento: quanto custava viver em Maputo, afinal? Quanto custava ser

moçambicano àquela altura dos acontecimentos?

Embora a escolha dessa epígrafe aponte para a conscientização das asperezas

cotidianas reservadas aos maputenses, o olhar poético patraquimiano, em 1985, capta

uma urbe digna de servir de mote a seu lirismo; uma paisagem depositária de afetos,

como, aliás, nos confidenciam as duas estrofes de “Algumas palavras”: “mágicas me

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são e faço / algumas palavras / pura barriga à tarde / com a cidade próxima / o que

oferto delas // outra voz ou na sombra / que a expende o rosto / lívido e não do lugar /

mágica morte de ser / amor da terra e do mar” (PATRAQUIM, 1985, p. 28).

O amor, em evidência na primeira parte do livro, segue seu curso à feição de fio

condutor da poesia de A inadiável viagem (1985). Desta vez, direcionando as flechas de

Eros para o marco zero de suas vivências, o amor pela cidade se traduz naquilo que o

historiador francês Pierre Nora chamou de “les lieux de mémóire” ou “os lugares de

memória” (NORA, 1984) retomados pelos poemas desta segunda seção.

De acordo com um dos fundadores da Nova História, “mesmo um lugar de

aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória, se

a imaginação o investe de aura simbólica.” (NORA 1993, p.21-2. Grifos nossos).

Observemos que Patraquim reinventa sua cidade natal, ressignificando-a

simbolicamente, (re)cartografando o mapa de Maputo, cujos contornos foram traçados

segundo as vontades de suas memórias.

Simon Schama, em Paisagem e memória (1996), na medida em que se propõe a

desvelar lembranças, mitos e outros complexos significados que os homens associam às

suas paisagens desde tempos imemoriais, defende o desígnio de que as paisagens atuais

são indissociáveis de resíduos de passado. Embora estejamos habituados a situar

“natureza” e “percepção humana” em dois campos distintos, alerta-nos o pesquisador

para o fato de que, na verdade, ambas estabelecem entre si uma relação complementar

indissolúvel. (SCHAMA, 1996, p. 17). Se fosse possível desenvolver uma expressão

matemática que sintetizasse sua proposição em Paisagem e memória (1996),

visualizaríamos seu pensamento ao estabelecermos a seguinte equação: [Paisagem =

(camadas de lembranças) + (estratos de rochas)] (idem, ibidem). Semelhante raciocínio

algébrico extraímos da poesia de Patraquim no segundo movimento de A inadiável

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viagem. Seus versos recriam paisagens constituídas principalmente por acúmulos de

memórias.

A Rua de Lidemburgo, endereço que remonta à casa da infância, emerge como

índice primeiro para o “refazimento” da memória, que reconstitui alguns de seus ícones

indeléveis:

da infância refaço esta clave nua / a fisga de a sorver tão perto / as goiabas

rubras trazidas ao riso / deste fermento que ora traduzo / porque espero e no

chão incorruptível / a ternura dos dedos entreteçam o sono / à sombra de um

sinal que apeteça / e outra vez na falésia da noite / a metamorfose da água

permaneça (PATRAQUIM, 1985, p. 29)

O próprio sujeito lírico escolhera o verbo „refazer‟ para se referir à eclosão de

cenas de um outrora que, uma vez evocadas, voltam a pulsar junto aos versos.

Da infância revolvem elementos como a atiradeira, as frutas e a galhofa gratuita

da meninice. No entanto, a maturidade do olhar que adiciona à receita da memória o

“fermento que ora traduzo” (idem, ibidem) já não pode negligenciar ingredientes outros.

Referimo-nos a imagens tatuadas no avesso de uma inocência pueril, que aguçam os

sentidos de modo a despontar uma outra viagem inadiável: a da reflexão social do

tempo passado. Perceptíveis são, também, a aspereza d‟“as vértebras do caniço seco”

(ibidem, p. 30), a flacidez dos “músculos poucos a fome” e a estridência d‟“o riso golpe

de faca / no corpo à noite maheu26

” (idem, ibidem). Tais referências compõem o poema

“LM Componde”, cujo título, elucidado pelo próprio poeta em entrevista concedida a

nós, por e-mail, significa:

LM é Lourenço Marques. Componde é aportuguesamento, como se dizia e

diz, de compund, a fileira de casas, precárias, dos dannés de la terre, fossem

os magaíças (mineiros) nas minas do Rand (South Africa), fossem os

deserdados dos muitos subúrbios, fossem as prostitutas a servirem os magalas

do exército colonial [...] era a cidade maniqueísta, cheia de fronteiras

invisíveis, algumas porosidades. (PATRAQUIM. Entrevista [e-mail],

14/01/2013).

26

Maheu: bebida feita à base de farinha de milho, brevemente fermentada. Espécie de “iorgurte”;

alimento para crianças e adultos.

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E já que “a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que

a literatura nos importa” (BARTHES, 2007, p. 18), Patraquim transcende o teor

referencial do olhar geográfico, acrescentando a ele outra visibilidade, pautada pela

função poética da linguagem. Legitimamos, portanto, a concernência da Geografia em

nosso trabalho, visto que o poeta precisa tomar de empréstimo algumas noções desse

campo de conhecimento para poder propor uma nova geo-grafia, ou melhor definindo,

uma nova „escrita da (sua) terra‟.

Justificamos, assim, a importância de adentrarmos no conceito de paisagem, a

fim de situá-lo e submetê-lo, enfim, ao texto literário.

Ao escavarmos as camadas da língua portuguesa em busca da etimologia da

palavra “paisagem”, deparamo-nos com sua origem latina. Derivada da raiz [land],

compartilha dos mesmos primórdios lexicais que geraram o vocábulo “país”, termo

originalmente italiano, responsável pela forma francesa pays. Paysage, também oriundo

do francês, denota “a vista possível” do conjunto de uma extensão do pays (CLAVAL,

2004, p. 14).

Anne Cauquelin nos fala que “autores confiáveis” (CAUQUELIN, 2007, 35)

situam o termo (e a noção de) „paisagem‟ na Holanda, por volta de 1415. O conceito

transitaria pela Itália para, então, instalar-se, definitivamente, em nossos espíritos, e

passando a exisitir por si mesma, driblando seu papel decorativo e ocupando a boca da

cena (idem, ibidem): “a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além

do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao paso que, de início, era

apenas uma parte, um ornamento da pintura” (ibidem, p. 37).

Concebida e reproduzida como um equivalente da natureza, a partir de um

gênero pictórico surgido na Renascença, a noção de paisagem associava-se,

primeiramente, ao que se via para além das janelas em que se pintavam ambientações

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bucólicas. Para o filósofo francês Alain Roger, especialista em estudos da paisagem, a

invenção da janela foi decisiva para a história da paisagem no Ocidente:

A janela constitui um enquadramento, um quadro no quadro, que, isolando-o,

encaixando-o, institui o pays na paisagem. Só a passagem por essa veduta (a

vista pela janela), aparentemente paradoxal porque ela se deve a uma

redução, ou seja, a uma miniaturização do pays, permite afastá-lo da cena

religiosa, que geralmente ocupa a frente da cena e, ao laicizá-lo, o transforma

em paisagem autônoma. (ROGER. Apud: CLAVAL, 2004, p. 14)

Em meio a tantos adventos favoráveis despontados no período renascentista,

como a cartografia, a astronomia, a arquitetura, a pintura, dentre outras manifestações

artísticas e científicas do século XVI – época em que se vivenciava uma revolução,

devido à aplicação de regras formais matemáticas e geométricas provindas de Euclides

–, o emprego do termo paysage passou a ser verificado a partir de 1549, “para indicar

uma nova relação entre os seres humanos e seu ambiente” (COSGROVE, 2004, p. 98).

A invenção da perspectiva linear talvez tenha sido a marca mais evidente de um

pensamento que, pautado pela razão, acreditava que tais regras devolveriam às artes e à

ciência o estatuto da perfeição: “a perspectiva – que é passagem através, abertura (per-

scapere) – alcança o infinito, um „além‟, que sua linha evoca. Mas é um além nu, uma

geometria, o número de uma busca” (CAUQUELIN, 2007, p. 36). Observou Cauquelin

que, “tomada exclusivamente no contexto da pintura, a paisagem se reduziria, pois, a

uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilsão

de perspectiva” (ibidem, p. 37).

O Classicismo foi um período de construções paisagísticas: o espaço terrestre

racionalmente mapeado em quadrículas cartográficas somava-se às paisagens humanas

erguidas em capitais, como Roma e Paris, e nos territórios coloniais conquistados além-

mar.

Empreendemos essa viagem filológica pela história do termo „paisagem‟, a fim

de averiguar que o significado desse termo pressupõe um conceito empregado para

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atender à necessidade humana de recriação do espaço que habita e, inevitavelmente,

transforma.

Após o fim da guerra colonial, o início de uma história independente e de outra

guerra, desta vez interna, a primeira metade da década de 1980 despontou como uma

fase de reconstrução de perspectivas e reinvenções de paisagens em Moçambique. Eis o

instante histórico em que Patraquim não somente se lançara à poesia, como também

escreve seu segundo livro, A inadiável viagem (1985).

Mia Couto, ao discorrer sobre a Beira, sua “cidade líquida” ou “água natal” no

texto de opinião “Águas do meu princípio”, em Pensatempos (2005), observa que “a

cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à procura de retrato”

(COUTO, 2005, p. 145). No encalço de uma representação para sua Maputo, é urgente

que o poeta enxerte imagens para suprir essa ausência envolta por uma moldura urbana

a que bem se referiu Mia. Em 1985, Moçambique ainda não sabia, ao certo, se a

ausência de um retrato para a moldura de Maputo se tratava de lacuna ou de uma espera.

Em meio ao impasse em que se via a história do país àquela altura dos acontecimentos,

Patraquim decidira oferecer paisagens subjetivas, a fim de preencher o vazio de uma

efígie para sua cidade e capital.

O poeta confere às paisagens urbanas a qualidade de um lugar

plurissignificativo, “refazendo-as” repletas de indícios mnemônicos que endossam

traços históricos, marcas culturais, centelhas eróticas e sinais afetivos.

Ensinou-nos Michel Collot que, no debate contemporâneo acerca da paisagem, a

literatura tem sua palavra a dizer, pois é ela que nos fornecerá a mais forte expressão

deste “espaço vivido” (COLLOT, 2013, p. 15). E se a paisagem suscita um tão grande

interesse por parte das ciências humanas na atualidade, “é porque não apenas dá a ver,

mas também a pensar.” (ibidem, p. 17). Concebendo a paisagem como uma “unidade

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aberta de sentido” (COLLOT, 2010, p. 214) e, por isso, uma instância absolutamente

propícia ao livre trânsito da função poética da linguagem, recorremos aos preceitos de

Michel Collot. O especialista nos ensinou que uma paisagem é composta, sobretudo, de

„sentidos‟ que emergem dentro de um espaço (i)limitado pelo „horizonte‟, linha essa que

o pesquisador considera um integrante essencial da totalidade paisagística. Afirma o

Professor francês que a percepção de toda paisagem parte de um „ponto de vista‟ único,

descortinando para o olhar uma certa „extensão‟ que, embora corresponda a apenas uma

„parte‟ do país, acaba por constituir um „conjunto‟.

Seguindo o rastro de seu raciocínio, acrescentamos que, por ser originada por

um ponto de vista, a paisagem compreende o „produto de um olhar‟, sendo, assim,

flagrante o „teor de subjetividade‟ que a compõe:

É o olhar que transforma o local em paisagem e que torna possível sua

„artialização‟ [...]. O olhar constitui uma primeira configuração dos dados

sensíveis; à sua maneira, é artista, „paysageur‟ antes de ser paisagista. É um

„ato estético‟, mas também um ato de pensamento. (COLLOT, 2013, p. 18)

Por outro lado, concedendo-nos uma extensão que se prolonga de nosso corpo

até o horizonte, a paisagem oferece-nos espaço suficiente para que possamos desdobrar

os poderes de nossa existência. Sendo o sujeito inseparável de seus redores, como

observou Collot (2010, p. 207), a extensão paisagística que se abre mediante nosso

olhar é exatamente o lugar em que confirmamos nossa presença no mundo. Ao evocar

imagens de sua cidade, Patraquim pretende não apenas confirmar sua presença nesse

novo tempo que promete descortinar-se para Moçambique na década de 1980, como

também almeja firmar, enfim, a presença de Maputo no mundo.

Mnemosyne, a Memória, quinta esposa de Zeus e irmã de Cronos, preside à

função poética, nos diz Lúcia Castello Branco (CASTELLO BRANCO; BRANDÃO,

1995, p. 133). Os passeios guiados pela deusa titã conduzem o poeta à condição de

viandante urbano. Trilhando uma espécie de via mnemes (ou o seu “caminho da

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memória”), o andarilho das memórias percorre oito estações sinalizadas por pronomes

demonstrativos, cuja função é a de indicar o que significa, para o olhar lírico, “agora, a

cidade”, metonímica capital do país. (PATRAQUIM, 1985, p. 31). História, memória,

paisagem, erotismo e poesia constituem lugares para e por habitar no instante em que se

escreve o poema, tempo em que também se pensa a reconstrução nacional

moçambicana.

Presentificado na paisagem, “preso em suas dobras” (ibidem, p. 209), pontuou

Collot que o sujeito consegue ver apenas parte dela, como, aliás, é também o que

percebemos na poesia de Patraquim: sua inadiável viagem a Maputo consiste em

revisitar esparças porções da cidade que persistem em suas memórias.

Para Collot, embora consista em uma parte, a paisagem acaba por se manifestar

como uma totalidade coerente: eis o “conjunto” a que se refere o estudioso da paisagem.

O pedaço de país torna-se um todo; o horizonte, um fechamento; “o olho torna-se

artista, e a paisagem „faz o quadro” (ibidem, p. 213). Assim, pedaços de Maputo

afloram nos versos de Patraquim à semelhança de retalhos que, uma vez cosidos a si

mesmos, dão forma à capital do país.

A penúltima parte da paisagem urbana revisitada dá nome ao poema que

representa: “Bar Tropical”, dedicado a seis dos amigos pessoais do poeta à época,

inspirado em um bar homônimo situado em Maputo, “onde a gente ia para a tertúlia”,

conforme confidenciou o poeta a Michel Laban (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p.

946).

O bar, lugar de encontro de um “nós” bem diferente daquele que antecedia a

independência nacional, emerge tal qual um cenário-testemunho de que, agora,

“nenhuma lágrima / cresta as notícias que lastramos / ante as estrelas na cidade”

(ibidem, p. 32). Eis um “desolado templo sem heróis”, que, assim como a cidade,

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também serve de metonímia para o país. Ali, maputenses antideuses “[entardecem] à

mesa suspensa” (idem, ibidem) de um “Olimpo incerto” (idem, ibidem), bebendo ao

“obscuro oráculo” (idem, ibidem).

Daríamos, aqui, por encerrada nossa interpretação do poema “Bar Tropical”, não

fosse uma das (afortunadas) casualidades que, por vezes, despontam nos percursos

acadêmicos. Percorríamos o caminho trilhado pelas leituras de Giorgio Agamben,

quando nos deparamos com um ensaio interessante, até então desconhecido para nós,

cujo título curioso chamou-nos a atenção: “O amigo” (2009). Tratava-se de uma

releitura da Ética a Nicômaco de Aristóteles, de modo a estabelecer um estatuto para a

amizade. Segundo o filósofo italiano, a sensação de existir insiste em uma “outra

sensação especificamente humana, que tem a forma de um com-sentir

(synaisthanesthai) a existência do amigo” (AGAMBEN, 2009, p. 89). Percebemos que,

ao optar pelo termo “com-sentire” em seu idioma, propositalmente grafado com hífen, o

pensador sugeria, não gratuitamente, um jogo de significâncias entre “consentir” e

“com-sentir”, almejando aludir a um duplo de ideias simultâneas: com-sentir a

existência de um amigo equivaleria, assim, a dar um consenso, uma aprovação e, ao

mesmo tempo, sentir com o outro.

Agamben refuta a ideia de que a amizade seja uma relação intersubjetiva, o que

julga ser uma “quimera dos modernos” (idem, ibidem): “não há aqui nenhuma

intersubjetividade, [...] nenhuma relação entre sujeitos: em vez disso o ser mesmo é

dividido, [...] e o eu e o amigo são as duas faces – ou os dois pólos – dessa com-divisão”

(idem, ibidem). Sobretudo, a amizade compreeende uma potência política, uma

“condivisão que precede toda divisão porque aquilo que há para repartir é o próprio fato

de existir, a própria vida.” (ibidem, p. 92).

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Ao ler este ensaio, notamos que, dos seis poemas que compõem esta seção, “Bar

Tropical” seria o único a disponibilizar o sujeito lírico como parte de um “nós”. No bar,

o poeta, que, até aqui, percorreu uma solitária travessia urbano-mnemônica, menciona

estar, enfim, em companhia de outrem.

O „nós‟ presente no poema “Bar tropical” já não significa o conjunto dos

companheiros da luta de outrora, aos moldes da noção de coletividade concebida

segundo a ideologia dos tempos que antecederam a independência. Em meados da

década de 1980, uma vez elucidados pelas reflexões agambenianas, percebemos que o

“nós” representa um grupo de amigos, de acordo com o estatuto de amizade apresentado

pelo filósofo. No bar, não há trocas, marcas de relações intersubjetivas entre os

integrantes desse „nós‟. Seus frequentadores são amigos por com-dividirem suas

existências em meio a um contexto histórico-social frustrante; por serem cúmplices de

uma “partilha sem objeto” (AGAMBEN, 2009, p. 92), conforme designou Agamben. À

mesa do bar, os amigos moçambicanos com-sentem – no sentido de darem consenso, ao

mesmo tempo em que sentem com o outro – a falência de perspectivas favoráveis para

alavancar o país. Enfim, com-sentem o esvaziamento das utopias.

Ao alcançarmos o último poema desse segundo movimento da obra, colocamo-

nos à frente de um cais. Embora seja esse um lugar de partidas, é também e, sobretudo,

o lugar em que se aporta. Nele, ancora-se. Pelos escassos versos do derradeiro poema,

intitulado “Cais”, sentimos quão ancorada se encerra a viagem pela cidade de Maputo.

“E é incrível que ainda haja esta capacidade de resistência infinita”, admira-se o

próprio poeta, em entrevista a Laban (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 946),

reconhecendo em si a latente manifestação de um “lado pessimista ou sei lá o que”

(idem, ibidem) em “Bar Tropical” e “Cais”. O tom menor emanado de ambos os poemas

aponta para “outro processo de esquizofrenia” (idem, ibidem) vivenciado àquela época

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pelo poeta, um “drama pessoal” (idem, ibidem) confessado a Laban: “tudo dá a entender

que há massinguita, qualquer mau olhado ou feitiço que não está a querer deixar que

este projecto aconteça.” (idem, ibidem). Referindo-se ao projeto de construção nacional,

o desabafo de Luis Carlos Patraquim nos dá a dimensão da angústia daqueles que

começaram a ter de encarar a distopia, apenas dez anos após a proclamação da

independência do país. Ancorado no cais da poesia e da história moçambicana, está o

“homem de ganga / exausta às costas / a guelra do porto / ele é quem estiva o mar / do

sal que o corrói / o que esteve morto / e nos constrói” (PATRAQUIM, 1985, p. 33),

como nos dita a curta poesia. Símbolo do trabalhador a edificar penosamente o país, a

imagem do estivador é evocava ao cabo dessa parte, de modo com que se feche aí um

ciclo de reflexão iniciado pela epígrafe de Craveirinha. Será ele, o homem de ganga,

corroído, herói desventurado a representar a desdita de seu povo, o único capaz de dizer

quanto custa, afinal, a “quinhenta de amendoins / do negrinho de faces tatuadas / de

ranho seco” (CRAVEIRINHA. In: PATRAQUIM, 1985, p. 27). Será ele o único

realmente capaz de dizer quanto custa ser moçambicano no pós-independência. “Porque

os trabalhadores sabem que a lógica implacável do lucro, dos empresários privados, é

exercida à sua custa” (KI-ZERBO, 2006, p. 26).

2.2.3. Reinventários culturais

A terceira paragem de A inadiável viagem (1985) inicia-se pelo manifesto de um

desejo de Ricardo Reis: “quero dos deuses só que me não lembrem”. (REIS. In:

PATRAQUIM, 1985, p. 37). No entanto, o apelo deixado pela voz heteronímica parte

de uma impossibilidade: ser esquecido pelos deuses já não é, no caso moçambicano,

uma opção. Compreendemos que a epígrafe justifica-se pela certeza de que, àquela

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altura dos acontecimentos, era mais do que chegada a hora de tornar a ausência uma

presença: Moçambique já não tinha o esquecimento por escolha; deveria firmar sua

existência não apenas perante o mundo, mas, antes, frente a seu recém-instituído país. E,

para tanto, sabe o poeta que nenhuma outra instância, talvez, viesse a se mostrar tão

eficaz à evocação da memória coletiva do que a cultura, pois só ela cumpriria a

exigência de “cuidar da memória dos mortos para os vivos de hoje” (GAGNEBIN,

2006, p. 27).

O Amor, a poesia, a cidade de Maputo não são, aqui, esquecidos; permanecem

como temas implícitos neste terceiro movimento da obra. Em conversa com Luis Carlos

Patraquim, Michel Laban disse ter visto nessa parte um panorama cultural em que

transparecem as preocupações vigentes àquela época em Moçambique (LABAN, 1998,

p. 943). Embora não discordemos do pesquisador francês, ousamos complementar seu

ponto de vista: se pudéssemos apontar um núcleo temático comum aos doze poemas que

constituem a presente seção, apontaríamos as marcas moçambicanas que não podiam ser

legadas ao esquecimento em meados da década de 1980. Aliás, observamos que o

lembrar, na contramão da mensagem de Reis eleita por epígrafe, constitui a tônica deste

terceiro porto poético de A inadiável viagem (1985).

Estabelecendo um jogo intertextual com Jorge de Sena, explícito já no título do

primeiro poema – “Lendo Jorge de Sena” (PATRAQUIM, 1985, p. 38) –, Patraquim

aclara uma série de referências que não poderiam ser negligenciadas pela nova poesia a

que se lança como representante.

Depoente de um lirismo afetivo – “soberano Amor me ronda” (idem, ibidem) – e

assertivo quanto à fertilidade da palavra poética – “em gestação é que vagueio” (idem,

ibidem), sabe o poeta ainda reconhecer que, embora sejam moçambicanos seus versos,

estão eles aportados no mesmo cais multicultural da “ancorada nau das canções de

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Babel e Sião” (idem, ibidem). Sua é também a língua portuguesa, cujas referências

culturais remetem a um fadário ocidental simbolizado pelo “campo das regadas areias /

onde Heitor apodreceu / que uma sepultura em Creta acolherá / dos deuses o corpo que

lhe morreu” (idem, ibidem). Ciente de que na encruzilhada cultural moçambicana

também estão intrínsecas as referências ocidentais, o poeta alude, com constância, a

índices culturais gregos que, aliás, perpassarão sua obra.

Em uma entrevista a nós concedida por mensagem eletrônica, em 9 de janeiro de

2013, inquirimos do poeta uma explanação acerca das recorrentes menções a elementos

pontuais da antiguidade clássica em sua poesia: Heitor, Eros, Telésis, Sísifos, ode,

epopeia, elegia. “Como você explicaria essa frequente alusão a esses elementos

culturais gregos? Herança das leituras que lhe fazem companhia desde a infância?”,

perguntamos a Patraquim, a fim de compreendemos sua alguma simpatia pela cultura,

história e literatura helênicas. Suas memórias revestiram-se de resposta:

O que me perguntas, como sempre, já traz a resposta. Estás atentíssima!

Passa pelo que dizes, claro. Mas podes também ir ver um poema do João

Fonseca Amaral sobre a herança multicultural em Moçambique, Maputo etc.

Na escola havia de tudo: hindus, maometanos, chineses, crioulos disso tudo,

negros. [...] O padeiro, vizinho da minha casa, no Alto Maé, era cipriota

grego. A deusa Ceres estava ali ao lado aloirando o pão do forno do senhor

Georgus (Jorge) Kristos, por exemplo. Depois havia os deuses das

tempestades, estórias que eu ouvia, garoto, dos trabalhadores do senhor

padeiro, que viviam no recinto da padaria, sempre lá atrás, em umas

dependências no quintal, junto ao muro. Enfim... mundos. (PATRAQUIM.

Entrevista [e-mail], 09/01/2013)

Ao conceber Moçambique como um lugar de acentuados entrecruzamentos

culturais, Patraquim convidou ao tablado dos versos o poeta Jorge de Sena. Rota

estratégica de confluências étnicas favorecidas pelas próprias condições geográficas, a

“ilha errante” (PATRAQUIM, 1985, p. 38), à época das grandes navegações, o país

consistiu em um porto obrigatório para que as frotas lusas levassem a efeito o

expansionismo que assinalou suas armas e seus barões a caminho do Oriente. Lugar

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onde Diogo do Couto encontrara um mísero Luís de Camões a “comer de amigos” e

que, quatrocentos anos depois, “do lado da Contracosta” (SENA, 1978, p. 265),

“queixoso e triste” (idem, ibidem), agasalhando-o no poema “Camões na Ilha de

Moçambique”, também o encontrou Jorge de Sena, em uma visita à Ilha, em 1972.

Ao convocar a leitura de Sena já no título do poema, Patraquim pretendeu bem

mais do que apenas estreitar um diálogo com outra voz literária irmanada pela língua

portuguesa. Declara o poeta moçambicano que “Não eu hausto na ilha errante / da

intumescida voz à míngua / dos seminais lugares da esperança” (PATRAQUIM, 1985,

p. 38), posicionando-se na contramão das exploratórias rotas náuticas portuguesas.

Assim como Jorge de Sena, que, amigo verdadeiro de Camões, não deu dinheiro para

que o bardo de Os Lusíadas regressasse à pátria, como confidenciou aos versos de

“Camões na Ilha de Moçambique” (SENA, 1978, p. 265), Patraquim, amigo verdadeiro

de sua pátria, não a sorverá para que regresse aos capítulos da História como lugar de

“extrema peregrinação nenhuma / de visão mais torturada” (PATRAQUIM, 1985, p.

39); “[...] porque senão de angústia nos armamos / da exposta lança” (idem, ibidem),

elucida o poema moçambicano.

Assim, o fio intertextual enlaçado com Sena se justifica por aquilo que vale a

pena lembrar: uma visão da paisagem moçambicana que antecede os tortuosos legados

da história colonial. Eis a sugestão da epígrafe eleita por Patraquim, versos senianos de

“Sete Sonetos da Visão Perpétua”: “Que tudo seja como outrora eu vi: uma figura ao

longe recortada” (SENA. In: PATRAQUIM, 1985, p. 38).

Nos demais poemas desta segunda seção, para além da percepção do obscuro

“casco de mim” recolhido pelo poeta nos versos de “A montanha mágica”

(PATRAQUIM, 1985, p. 40) e de “rios que só a ausência diz”, evocados por “Old man

river” (ibidem, p. 42), de sob os escombros da “oscilante memória” (ibidem, p. 44), são

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resgatadas imagens outras, igualmente indeléveis para a voz lírica. No poema “Algumas

ruínas” (idem, p. 43), o poeta “margin[a] de som algumas ruínas quando / o silêncio

desce irreprimível / ébrio de pedra e sal o canto” (ibidem, p. 43). Ao lado de lembranças

íntimas que insistem em aguçar a sensibilidade do poeta, como a “madeira lisa”, o

“corpo próximo” (idem, ibidem) e os “pássaros na respiração da noite” (idem, ibidem),

de sob as ruínas são, em tempo, extraídas memórias sociais, bem como a certeza de

“que dos signos resta / a infância advertida” (idem, ibidem).

Também a cultura moçambicana emerge dos escombros escavados pelo poeta.

Os entalhes como “cicatrizes” (ibidem, p. 41) nas máscaras de nyau, metonímias das

marcas culturais que o poeta se recusa a exilar no esquecimento, voltam a habitar a

poesia patraquimiana, dessa vez em um breve poema intitulado “Máscara de Nyau”

(ibidem, p. 46). O nyau, dança ritualística que já havia servido de mote à poesia em

Monção, foi retomado em A inadiável viagem (1985) em um novo poema, intitulado

“Máscara de nyau”, dessa vez dedicado à Ana Mafalda Leite, amiga que crescera em

Tete, província moçambicana em que o rito é praticado. Os versos de “Máscara de

nyau” (ibidem, p. 46) empreendem uma espécie de escavação (cf. SCHAMA, 1996, p.

25) para além de nosso nível convencional de visão, de modo a recuperar os “veios de

mito e memória” (idem, ibidem) assentados na paisagem moçambicana. Ouçamos a

poesia:

eis a noite verde

esculpida

onde jugulada ao fogo

a mão a embosca

na voz para o rosto

permeável da terra

(PATRAQUIM, 1985, p. 46)

Aprendemos com Adorno que o teor de um poema não é mera expressão de

emoções e experiências individuais. Ao contrário; a subjetividade só se eleva à condição

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artística quando conquista sua participação no “universal” (ADORNO, 2003, p. 66), isto

é, quando lírica e sociedade se tornam esferas em intersecção. Adverte o crítico que a

busca pelo universal não constitui uma exclusividade da arte: é, antes, uma exigência da

linguagem (ibidem, p. 67). Adorno tece sua palestra em defesa da “essência social”

(ibidem, p. 69) do texto lírico, cuja potência estética é capaz de derrubar os “muros da

individualidade” (idem, ibidem). A „verdade‟ da lírica, bem mais do que uma expressão

individual, representa, antes, e sobretudo, a “voz dos homens” (ibidem, p. 89).

Atribuindo um novo sentido às águas de Hipocrene, como o fez Adorno, a poesia

patraquimiana sabe que a universalidade do teor lírico é essencialmente social (ibidem,

p. 67). Já em seus primeiros poemas, em 1980, constatamos que o teor social figura

como instância intrínseca à expressão subjetiva de Luis Carlos Patraquim, percepção

essa que, aliás, constitui uma das principais marcas de sua obra.

Consoante Adorno, aquilo que entendemos por “lírica”, por mais “pura”27

que

seja a subjetividade, contém em si mesmo o “momento da fratura” (ADORNO, 2003, p.

70). Em A inadiável viagem (1985), lírica e sociedade caminham ombro a ombro desde

os primeiros versos do livro. Entretanto, observamos que, pelo desconcerto da voz

poética em “O deus morto da planície” (PATRAQUIM, 1985, p. 48), o lirismo social de

Patraquim alcançará o exato instante da „fratura‟ a que se referira Adorno, quando são

estilhaçadas as fronteiras entre indivíduo e sociedade. Deixemos falar o poema:

a raiz dos cajueiros interior

aos ossos e as mãos

exangues da pátria interrompida

retiramo-nos como do vento

as vogais agora número

percutor do milho

seco o sexo dos rios ainda

rangendo nas luas de ndzembele

– ó túmidas bocas alucinadas!

e espasmos todos do deus

morto da planície

27

A “pura subjetividade” para Adorno equivaleria a “aquilo que [nas composições líricas] parece

harmônico e não fraturado” (ADORNO, 2003, p. 71).

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(PATRAQUIM, 1985, p. 48)

Escrito em 1985, o poema promove uma revisão crítica dos dez anos de

independência política. A raiz dos cajueiros, mais do que meramente arraigada à terra,

penetrou no interior dos ossos, numa clara alusão de que Moçambique, agora, se fazia

sentir dentro de suas gentes. As mãos, um dos símbolos da condição humana, uma vez

sem sangue nas veias, alertam para um país em estado de suspensão: uma “pátria

interrompida”, como dita o verso. O „nós‟, retirado de cena, tornou-se cúmplice da

aspereza do real: “seco o sexo dos rios”, o que resta é uma terra estéril, principalmente

de expectativas. A voz poética, em riste, propõe o balanço de uma década de

independência em Moçambique, a fim de evidenciar que a construção nacional havia

passado da condição de utopia à de desejo adiado. A escassez generalizada de recursos e

sonhos assinalava, em 1985, um país “ainda rangendo nas luas de Ndzembele”.

Segundo elucidou o poeta a Michel Laban, ndzembele consiste em uma raiz do mato

que serve de alimento, embora seja “absolutamente execrável” (PATRAQUIM. In:

LABAN, 1998, p. 944): “[...] dá diarréias incríveis, mas era a única coisa para se

comer” (idem, ibidem).

A lírica, tomada de aclarado fôlego social, revestiu-se de denúncia, como, aliás,

reconhece o próprio poeta, ao revisitar os versos de “O deus morto na planície”:

É um poema muito pequeno mas que denuncia o que aconteceu depois, que já

estava a começar a acontecer. “O deus morto na planície”, na metáfora ou na

metonímia daquela gente [...] era aquele povão todo; era a mãe terra, o

camponês, a africanidade, e tudo aquilo, a aliança operária camponesa [...].

Esse deus morreu, toda a gente o matou – a todos os níveis –, o KGB, a CIA,

o SNAP, a política seguida, a África do Sul: esse deus está morto, vai

renascer agora das cinzas, se calhar. Se renascer. [...] “O deus morto na

planície” é Sísifo ferido, o nosso Sísifo africano. (idem, ibidem)

Após ter-se atestado, em grande parte, a falência múltipla da história nacional

moçambicana, seguem outros cinco poemas, deixados à guisa de bens post mortem pelo

deus jacente da planície. O inventário arrolado pela poesia patraquimiana inicia seu

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lírico registro pela perene sensação de “ainda o circuito incompleto”, nos versos de

“Algum inventário” (PATRAQUIM, 1985, p. 49). Em meio a “este recomeço grave tão

nu” (ibidem, p. 50), o poeta também se preocupa em averbar o lugar da nova poesia

moçambicana. Nos versos de “Lugar” (idem, ibidem), a voz lírica anuncia sua escolha:

“se é para dizer digo poesia” (idem, ibidem). A voz poética, a mesma “que acrescenta

donde devenho / à indistinta sombra / ao dia” (idem, ibidem), segundo confessam os

versos, aflora como um lugar simbólico, propício à ressignificação dos sentidos: “se é

para dizer eu escrevia / dentro do teu corpo este lugar / onde o sentido principia” (idem,

ibidem).

Em “Reinventário para amanhã” (ibidem, p. 51), Patraquim não se propõe a

lançar as bases para um novo inventário. O título do poema resguarda um neologismo

que nos remete ao verbo reinventar, ação necessária para uma “pátria interrompida”

(ibidem, p. 48), cujo deus está morto, e para um „tu‟ moçambicano, estático, frente à

“orla do vento anterior / aos deuses que te criaram inventando-os / hoje mais nu

ambíguo devagar” (ibidem, p. 51), deserto de si mesmo que “nenhuma solidão se te

assemelha / ou trespassa” (idem, ibidem).

A experimentação neológica permanece no título do poema seguinte:

“Imarginália”. Em seus versos, ocorre a menção a um elemento simbólico de sua

paisagem matriz: a umbila, tipo de madeira, cujas conotações escapam a um leitor não

moçambicano. Ouçamos a poesia: “de umbila a mesa / veio e seiva / que foi árvore /

matéria sem mortalha / ou morto serei um dia?” (PATRAQUIM, 1985, p. 52). Embora

não seja adepto a “explicar poemas”, conforme confessou a Michel Laban

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 943), o poeta elucida que a umbila, a “seiva que

foi árvore”, como nos dita sua poesia, “é aquela madeira boa, com a qual se pode

construir uma boa cadeira, um bom soalho de mesa, um bom objecto” (idem, ibidem).

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Nas suas líricas “imarginálias”, o poeta deixa em registro a percepção de que tudo se

transforma: “o necessário, realmente, é saber fazer a boa metamorfose da madeira em

objecto estético, em objecto de discurso ou de linguagem”, explica Patraquim a Laban

(idem, ibidem. Grifos nossos.). A umbila, índice metonímico de Moçambique, suscita

conotações que excedem a mera evocação de um panorama cultural do país, por se

tratar de uma árvore tipicamente moçambicana. Das entrelinhas dos significados da

umbila emergem rastros para a leitura de uma história nacional em processo de

transformação, cujo segredo para a reconstrução nacional estaria em “saber fazer a boa

metamorfose” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 943).

Por fim, o derradeiro poema da terceira parte-porto desta inadiável jornada

patraquimiana de 1985, sem título, abre sua mensagem pela reflexão do poeta espanhol

Jorge Guillén: “Soy, más, estoy. Respiro.” (GUILLÉN. In: PATRAQUIM, 1985, p. 53).

E já que o terceiro movimento da obra refere-se àquilo que não se pode esquecer, além

– e apesar – do “deus morto da planície”, era também preciso lembrar de “durar fazer

afluente / a única mansarda / doá-la / vigiar no som os olhos / e a água / motinar o

amor” (PATRAQUIM, 1985, p. 53). Em 1985, a lírica insistia: a „boa metamorfose‟,

chave para desobstruir os caminhos interditos de sua “pátria interrompida” (ibidem, p.

48), estava, sobretudo, na persistência dos afetos e da subjetividade. Afinal, seguindo a

esteira de Guillén, Moçambique era, mas estava. Respirava. Ainda valeria a pena durar

e tornar afluente a mansarda moçambicana.

2.2.4. Das coisas que existem

“Hablo de cosas que existen. / Dios me libre de inventar / cosas cuando estoy

cantando!” (NERUDA. In: PATRAQUIM, 1985, p. 57): eis o pórtico de entrada do

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quarto e último porto de A inadiável viagem (1985). A epígrafe estabelece um diálogo

com uma voz poética, que consiste em um permanente laço intertextual atrelado à lírica

patraquimiana: Pablo Neruda.

Após versar sobre o amor, a cidade e a memória, a quarta e derradeira paragem

da obra, ao longo de oito poemas, arrebata por mote a reflexão metapoética. Era mister

pensar o (novo?) lugar da poesia contextualizado ao instante em que ainda se fincavam

os pilares da casa moçambicana.

Àquela altura da história, Patraquim dedicava-se à escrita de “um poema como

quem planta / [visto que] a sílaba pressagia já fruto” (PATRAQUIM, 1985, p. 58).

O desenvolvimento de um discurso poético, em tom inegavelmente otimista,

propicia a aragem de seu olhar sobre sua terra. Era urgente ver “tanto azul mulher e

musgo / no tronco das mafurreiras” (idem, ibidem). Típica do bioma angolano e

moçambicano, da mafurreira tudo se aproveita: fornece frutos comestíveis, óleo e

madeira para construir firmes embarcações. Eis o canto da “mátria” (ibidem, p. 59),

como se refere o poeta a sua terra, misto de mãe, mulher e mar; eis o canto da vida – ou

do que é vivo – a bordo da nau-mafurra, a singrar pelas “indefiníveis águas” (ibidem, p.

59) da poesia moçambicana. Enquanto “o fôlego quilha iodo” (idem, ibidem), percebe o

poeta a necessidade de sua escrita: “se escrevo adio um pensamento / até a loucura”

(ibidem, p. 58). O erotismo, tão inadiável quanto suas líricas viagens, desvenda-se

“quando os deuses adormecem / [e] a tua voz acorda nos rios” (idem, ibidem), levando-o

a reconhecer “este o meu país na pedra / hímen diurno cinzel e nervo” (idem, ibidem).

Enfim, a voz poética insiste em perverter a direção hegemônica da rosa-dos-ventos;,

“nascemos hoje demasiado e vivos / e as tuas mãos desenham o Sul” (idem, bidem). Em

1985, era preciso, pois, que a poesia moçambicana, vigilante de tudo o que respira,

alertasse: havia, sobretudo, “manhãs ainda por amar” (idem, ibidem).

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Um novo tempo, motivo basilar do canto patraquimiano em seus dois primeiros

livros, precisa designar os agentes de sua própria história. Assim, nos diz o poeta que

“com a pátria inauguro / os nomes” (ibidem, p. 59) e “recolho as mortes inaugurais”

(ibidem, p. 60). Com o país, estreia também a propulsante inspiração de seus versos: “a

matéria cantante / dos teus pulsos” (idem, ibidem). Violadas serão as funestas “grutas do

poema” (ibidem, p. 61), no instante em que o lirismo se permite arrebatar pela força

erótica, operante em “Lira líquida” (idem, ibidem). A voz poética, sensível às nervuras

de sua mensagem, convida para que

cheguemos a um sentido fulvo

de nervo sem fadiga

a uma corola da tarde com pentelhos

quando os dias altos percutem

outra mesma fome inundada

e as mãos são estuário

e o mar é o impulso a que cheguemos

se fazemos a glote de que somos

angústia soletrada

como se houvesse o sol

e lúgubres fossem as grutas do poema

(idem, ibidem)

Moçambique, retalho cartográfico geograficamente posicionado tal qual uma

“janela para o oriente” (WHITE, 1999), não seria concebido por Patraquim, em 1985,

de modo desvencilhado da paisagem índica, na qual estão contidos o país e o poeta. Em

“Ode índica”, poema dedicado a Manuel Ferreira, português de nascimento que se

permitiu seduzir pelos índicos encantos, Patraquim clarifica quão inadmissível é, para

sua concepção lírica, desperceber “as húmidas [sic] aves [que] capulanam-lhe” a alma

moçambicana (PATRAQUIM, 1985, p. 63). De sua orla natal, confessa sentir “o tufo

ritmo salgado das monções” (idem, ibidem), herança, a cujo inventário ainda se

acrescenta um cofre de histórias seculares zelado pelas memórias do Oceano Índico.

Moçambique é ainda o mote dos dois derradeiros poemas de 1985: “A inadiável

viagem” (ibidem, p. 66) e “Elegia do sábado” (ibidem, p. 69), ambos dedicados a

referências pessoais do poeta. No primeiro, composição homônima ao livro, a voz lírica

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entoa seu canto em tom maior. Seus versos anunciam o ânimo de um „agora‟, cujo

olhar, imbuído de esperanças, ainda consegue alcançar a edificação nacional e subjetiva.

Repleto de indícios que apontam a crença numa terra por se fertilizar, o poema suscita

imagens moçambicanas mediadas por verbos de ação, o que atribui cinese à mensagem

veiculada pelos versos.

Desvendemos o que registra o lírico diário de bordo da impreterível jornada

patraquimiana:

agora vou com amendoins na língua ínsula

da boca e o gosto da terra

os jacarandás vermelham nos rios

e as aves revoam aos barcos ancorados

inteiros nos teus olhos

agora a pedra bate a voz e a construção

do sol precário mas sem morte

dentro das mãos a rirem-se

no Sul deste norte

agora Amêjoé vestiu a rua dobrou a esquina

e vem nua

com esta enxada da machamba28

e um prato

de folhas à espera

– que ventre cresça? que o poema nasça?

agora sou um homem que leva a alegria

e onde as raízes se engolfam

a guelras rugosas no círculo frenético

pensa o ritmo do corpo das planícies

eriçadas ao seu vento posto

agora frente a frente

rosto a rosto

(PATRAQUIM, 1985, p. 66)

O gosto da terra; a florescência dos jacarandás; a possibilidade do voo por sobre

as persistentes âncoras da história do país; o movimento a suplantar a imobilidade de

outrora, como a “pedra [que, agora,] bate a voz e a construção do sol”, “mas sem morte

dentro das mãos”, segundo adverte a poesia; o riso; a asserção do Sul; a memória da

“amêjoé”29

, as expectativas favoráveis que aproximam o simbólico ventre da palavra

28

Machamba: terreno agrícola, plantação. 29

A amêijoa, molusco comestível, no pregão das mulheres negras que o vendiam, percorrendo as ruas de

Lourenço Marques com lata à cabeça, pronunciava-se “amêjoé”. Segundo rememorou o próprio poeta em

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poética; crer em si como “um homem que leva a alegria”, capaz de perceber “o ritmo do

corpo” paisagístico, os novos ventos e, sobretudo, sentir-se preparado para estar “frente

a frente”, “rosto a rosto” com a realidade que deseja transformar: ao percorrermos todos

esses índices líricos, compreendemos o motivo pelo qual esse poema compartilha com o

livro o mesmo título. Suas quatro estrofes bem poderiam representar uma espécie de

síntese da mensagem poética que a obra se esmerou em traduzir nas suas quatro seções.

No desfecho da obra, o ânimo emanado pelo poema anterior converge para uma

mescla de sagacidade, acidez e ironia, característica, aliás, do estilo que pauta algumas

das reflexões críticas de Patraquim. Em “Elegia do sábado”, os versos, em tom de

súplica, aludem, a priori, à ideia de uma prece. Entretanto, ao intitular o poema como

“elegia”, gênero poético tomado por empréstimo de uma cultura originalmente pagã, e

pela recorrência do vocativo “senhor”, grafado propositalmente com inicial minúscula –

e cuja existência metafísica é considerada pelo sujeito lírico como “improvável” já na

primeira estrofe –, Luís Carlos Patraquim profana qualquer sentido religioso que

poderia ser atribuído às possíveis leituras do poema. Defendemos esse princípio,

embasados pelo conceito de “profanação”, desenvolvido por Giorgio Agamben.

Compreendamos, pois, a concepção teórica.

Escavando os estratos lexicais em busca das raízes do termo “profanar”, o

filósofo apresenta-nos um conceito que remonta à Roma Antiga, época em que sagradas

eram consideradas as coisas reservadas à propriedade dos deuses. Pelo fato de não

pertencerem à esfera terrestre, o que se tinha por sagrado era subtraído do uso ordinário

e do comércio dos homens: não podia ser vendido, afiançado ou concedido. Uma vez

violada ou transgredida essa condição de indisponibilidade das coisas sagradas,

cometia-se um sacrilégio.

uma das entrevistas concedidas a nós por e-mail, ao anunciarem o produto, entoavam a corruptela de

modo prolongado, “às vezes quase estridente, mas sempre em lengalenga bonita” (PATRAQUIM,

entrevista , 17 de abril de 2013).

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Se consagrar designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar,

por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens.

Pressupondo a existência do sagrado – que, ao retirar algo do uso comum,

promove um afastamento – “profanar”, cuja etimologia (= fano, do latim, fanum) aponta

para “tirar do templo”, denota “tocar no consagrado para libertá-lo do sagrado”

(AGAMBEN, 2007, p. 10). Assim, a profanação, além de constituir a restituição de

algo, compreende também uma “libertação”.

Para Agamben, o sagrado separa e petrifica. Cabe à profanação “abrir a

possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor,

faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007, p. 66). Adverte-nos o pensador que a

profanação não recupera, na íntegra, o uso antigo da coisa profanada, como se possível

fosse retomar o tempo durante o qual o objeto esteve ausente do uso comum. Prevê o

teórico que a passagem do sagrado ao profano pode-se dar por meio de “um uso (ou

melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado” (idem, ibidem). Assim, o

pensamento de Agamben pode ser evocado para respaldar nossa tese de que o ato de

profanar consiste, ao final, em uma forma inegável de recriação: “profanar não significa

simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo,

a brincar com elas” (ibidem, p. 75).

O lirismo de Patraquim exerce algumas profanações intratextuais no poema em

análise, como, por exemplo, quando viola o âmbito da significação sagrada do sábado,

sétimo e último dia da criação e, por isso, considerado pelo texto bíblico como símbolo

do descanso. Consagrado primeiramente a Jeová pelos hebreus e a Deus pela cultura

judaico-cristã, enquanto todos os demais dias da semana representam a mutabilidade das

criaturas, ou seja, suas fraquezas e seus progressos, no Antigo Testamento, o sabá

deveria obedecer a uma espécie de lei do repouso (CHEVALIER; GHEERBRANT,

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2001, p. 794). A elegia patraquimiana desconsagra o sábado, para que este não seja uma

reprodução do sétimo dia da criação, mas, antes, um dia para (re)criações: “[...] dá-nos a

humilde loucura do sábado” (PATRAQUIM, 1985, p. 70) – suplica a voz poética – ;

“[...] faça do sábado o único dia /e dilacera os outros que torturamos / e ainda traem as

nossas lágrimas / e são clandestino ácido dentro das casas” (ibidem, p. 69).

Em Moçambique, no pós-independência, instante em que “encontramo-nos cão e

sombra” (ibidem, p. 66), “[...] nós pagãos de livros no umbigo de todas as emoções [...]

imploramos o sábado despoletando o gume das horas” (ibidem, p. 69). Congruente às

súplicas, a voz poética reclama: “[...] em coro te exigimos o sábado” (ibidem, p. 70).

Destituindo o sétimo dia da ordem do divino, clamam os versos “para que a descoberta

da língua amanhã senhor / nasça da fornicação do sábado” (ibidem, p. 70), restituindo,

assim, o direito à “elemental nudez do sábado” (ibidem, p. 71), à esfera terrena, humana,

viva e, por isso mesmo, erótica:

assim seja senhor para nós filhos do sábado

trazidos pais e mães na corola da terra

sexo do seu sexo

construtores da exacta lírica dia-a-dia no presente

bípedes deste corpo de mato e cal

espasmo de amor no insurrecto útero sem fim

dos séculos que nos ladeiam

(ibidem, p. 70)

Na esteira do raciocínio agambeniano, a profanação consiste em uma ação

humana que também significa uma operação política, visto que “desativa os dispositivos

do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado” (AGAMBEN,

2007, p. 68). Nas linhas que prefaciam o livro do intelectual italiano, Selvino Assmann

observou que, talvez, “política” seja “o nome do livre uso do mundo” (ASSMANN. In:

AGAMBEN, 2007, p. 11). Eis, aliás, um dos pontuais desejos da voz elegíaca do poeta

moçambicano, ao apregoar que “não mais te invoquemos / e [que] os navios desfraldem

largas folhas bebendo a liberdade livre” (PATRAQUIM, 1985, p. 70).

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Consoante Agamben, a profanação implica uma neutralização daquilo que

profana. Para ser restituído ao uso comum, o que estava indisponível e separado – ou

seja, sacralizado – perde sua aura (AGAMBEN, 2007, p. 68). Profanando a si mesma, a

nova poesia moçambicana, da qual Patraquim se fez precursor, se autorressarcia:

obstinado em volver ao “uso comum” a reflexão crítica de uma história usurpada de

Moçambique pelos séculos de colonização e, àquela altura da década de 1980, pela

guerra de desestabilização, Patraquim neutralizava “a gesta épica que tinha nascido nos

santuários da revolução” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 915). Seu lirismo

recriava ou, em termos agambenianos, reusava a poesia de combate, contemporânea em

seu país.

Observa ainda o filósofo que a maior consequência da sacralização é a

impossibilidade do uso, que tem o seu lugar tópico no museu (AGAMBEN, 2007, p.

73). Para o pensador italiano, trata-se de uma expressão aberta e contextualizável: “[...]

tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a

exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência” (ibidem, p.

73). O teórico critica a “museificação do mundo”, esclarecendo-nos que se refere a

museu, no sentido de uma dimensão separada, reservada ao que era percebido como

verdadeiro, decisivo, e, agora, já não é. Desse modo, apropriar-nos-emos do conceito

agambeniano para apontar uma “museificação” da literatura moçambicana de combate,

anterior à profanação libertadora da poesia de Patraquim. Mais que isso, o lirismo de

Patraquim contesta a “museificação” de Moçambique, uma vez que seus versos

pretendem, antes, e sobretudo, profanar o país, de modo a mostrar que era possível

devolver a “mátria” aos moçambicanos. Assim sendo, entendemos a profanação como

um ato de resistência subjetiva e política.

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Em tempo, ressaltemos que Agamben considera o “poder profanatório da

linguagem” (AGAMBEN, 2007, p. 76) instaurado, quando a mesma se emancipa de

seus fins comunicativos e se abre à possibilidade de um novo uso, “de uma nova

experiência da palavra” (ibidem, p. 76). Ora, nossa tese se debruça sobre uma escrita

poética inaugural, seminal, precursora. Até aqui, encaminhamos nossas reflexões de

modo a evidenciar quão inovadora foi – e ainda é – a poesia patraquimiana para seu

tempo, em seu país e, por isso mesmo, dotada da força profanatória da linguagem.

Por fim, antes mesmo de profanar a linguagem e as ideias por ela veiculadas,

não poderíamos descuidar da profanação da forma elegíaca, do grego elegeía, “canto de

luto e tristeza”. Segundo Angélica Soares, em Gêneros literários (1986), o nome dessa

forma lírica fixa se deve à transcrição helênica do vocábulo armênico elegn, elegneay,

que significava “bambu” ou “flauta de bambu”, cujos acordes acompanhavam os cantos

lutuosos. Em geral, seu tema remonta o lamento e o pranto pela morte de outrem. Para

além de doloroso, o canto elegíaco apresenta uma feição sentenciosa, transmissora de

conceitos e máximas morais, que visam a fornecer regras para suportar os infortúnios

(SOARES, 1986, p. 32). Juntamente com o sábado, Patraquim profana a forma fixa

oriunda da Antiguidade Clássica, na medida em que a liberta do tom funesto que a

caracteriza. A elegia moçambicana de 1985 não mais pretende lamentar, visto que, em

1985, já era “inútil pranto / dos mortos habitantes de nós” (PATRAQUIM, 1985, p. 70).

Àquela altura da história social moçambicana, a voz lírica considerava a si mesma

pertencente a um “nós” que, assim, se reconhecia: “somos o cansaço desta espera nos

jornais de domingo / ilegíveis ainda de alguma letra / de nós o fôlego obstinado da rua”

(ibidem, p. 70). Era chegado o instante de olhar para frente, fazer acontecer;

dessacralizar Moçambique, restituindo o país a quem de direito. Que o único luto a ser

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entoado pelos versos elegíacos fosse em memória da morte de tudo o que obstruiu, até

ali, a inadiável viagem moçambicana:

e [que] no vento a cidade atropele a polpa dos frutos

agora que os dedos gesticulam o sumo da forma inacabada

e desesperam de um rosto capinzal de nimbo e música

e sabemos as tâmaras desta troca a dever por dentro

nenhuma rima consumada

(ibidem, p 70)

Aportamos juntos, leitores e poeta, sem âncoras, ao findar do último trajeto

percorrido por nossas leituras neste livro. Após singrarmos pelos trinta e sete poemas

desta segunda obra, compreendemos que o intuito da inadiável viagem patraquimiana,

cinco anos após a primeira de suas (muitas) partidas e dez anos após a proclamação da

independência moçambicana, foi o de ainda buscar portos possíveis, rotas navígeras

para seu país que, inegavelmente captado por um olhar intimista, permanecia como

ponto de convergência de suas reflexões críticas e como mote paisagístico de seu

lirismo subjetivo. Ao empreender viagens por sua terra, Patraquim deparou-se com a

certeza de que não havia caminhos prontos para Moçambique, afinal “no hay camino, se

hace camino al andar” (MACHADO, 1973, p. 158), já afirmava o verso do modernista

espanhol Antonio Machado, que bem poderia figurar como epígrafe das duas primeiras

sendas poéticas de Luis Carlos Patraquim.

Contudo, “quem viaja larga muita coisa na estrada. Além do que larga na

partida, larga na travessia. À medida que caminha, despoja-se.” (IANNI, 2000, p. 30). A

inadiável viagem (1985) não pretendeu ser um livro-porto de chegada. Sabia o poeta

que “nenhuma viagem é definitiva” (SARAMAGO, 1985, p. 233), como bem pontuara

Saramago no mesmo ano. Do percurso iniciado em Monção (1980), relevante parte

ainda precisaria ser percorrida, (re)vista, restituída, reusada, enfim, profanada. O

segundo livro significou apenas o fim de uma viagem, não o fim da viagem. E nisso há

diferença, pois

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O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi

visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão,

ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía,

ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que

aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir,

e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem.

Sempre. O viajante volta já. (SARAMAGO, 1985, p. 233)

E voltaria. Precisamente, seis anos depois.

2.3. As nervuras da poesia

Publicado em 1991 pela editora linda-a-velhense ALAC – África: Literatura,

Arte e Cultura Ltda. –, Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991)

compreende o terceiro título da coleção “Juntamon”30

. Àquela altura, após onze anos de

atividade poética e três livros, o nome de Luis Carlos Patraquim já figurava nas

respeitáveis páginas do JL de Lisboa como “uma das referências mais importantes da

poesia que se produz em Moçambique” (SAÚTE, 1992b, p. 16).

Coube à Ana Mafalda Leite a abertura da obra, com um texto prefacial intitulado

por um dos versos do poeta: “Escrevo, não obstante, um país solar” (PATRAQUIM,

1991, p. 34). Em linhas gerais, a pesquisadora reafirma Patraquim sob a condição de

fundador de uma nova tradição poética moçambicana, responsável por inaugurar

diferentes vertentes para a lírica de seu país. (LEITE. In: PATRAQUIM, 1991, p. 8).

Outrossim, a ensaísta confere relevância ao jogo da intertextualidade para o qual as

novas formulações patraquimianas nos convidam. (idem, ibidem, p. 8-10). Motivados

pelas considerações prefaciais, ao longo de nossas proposições, desembaraçaremos esse

emaranhado intertextual, definitivamente bem mais acentuado no livro de 1991 do que

no par de obras anteriores.

30

Em uma breve nota, ao pé da folha de créditos, lemos: “Juntamon‟ pertence ao léxico de Cabo Verde e,

essencialmente, emprega-se para designar um trabalho de entre-ajuda, voluntário e gracioso. A partir

daqui, as aplicações são várias. Como no caso presente. Nesta Colecção, caberão autores dos cinco países

africanos, cujas obras sejam consideradas um contributo válido para as literaturas daqueles países. E nela

se incluirão todos os gêneros: romance, conto, ensaio, estudo, teatro, poesia, história, antropologia etc.”

(Editora ALAC. In: PATRAQUIM, 1991, p. 6)

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Observou Ana Mafalda que a metáfora do trajeto havia percorrido, até ali, as três

obras do poeta (idem, ibidem, p. 8), o que, aliás, reforça a ideia de que, juntas, compõem

uma trilogia. Ciente da permanência dessa viagem simbólica, nossa tese recai sobre o

direcionamento dessa travessia. Se nos dedicamos a promover a leitura crítica do

percurso poético de Patraquim, é para defender a ideia de que seu trajeto migra rumo às

searas interiores, ao âmago da subjetividade.

Em entrevista a Nelson Saúte, trazida a público pelo JL por ocasião do

lançamento de Vinte e tal novas formulações (1991), Patraquim reconhece o fechamento

de um ciclo iniciado onze anos antes e considera essa uma obra de releitura dos livros

anteriores, em circunstância da própria viagem, “neste caso, uma viagem pela

interioridade” (PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 16). Esclarece o poeta:

Pela interioridade de uma consciência poética e do confronto entre essa

consciência poética com a realidade onde está inserida. Essa realidade é

Moçambique e onde estão implícitas também as utopias que foram ou não no

próprio país. (idem, ibidem)

Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991) foi o primeiro livro

de Patraquim a ser lançado após transferir-se de Maputo para Lisboa, em 1986.

Entretanto, preocupado com a especulação dos sentidos atribuídos à referida „viagem‟

em sua poesia, o poeta lançou uma advertência para que não concebêssemos essa ideia

“no sentido explícito da palavra” (idem, ibidem), o que, sabia ele, estava a causar “uma

confusão de muita gente” (idem, ibidem). Pretendia que a viagem aludida em seus livros

fosse lida conotativamente, conforme justificou a Saúte. Referia-se não à sua viagem

para Portugal, mas à da

realidade moçambicana [que] foi uma viagem de um determinado grupo de

gente, cada um com as suas referências culturais, históricas, étnicas, digamos,

com um lastro comum de referências onde seria possível criar uma

linguagem comum para todos e, portanto, foi nesse sentido que eu tentei

escrever o pouco que escrevi. (PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 16)

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Dentre “outros impulsos” (idem, ibidem, p. 17) que o impeliram, cinco anos

antes, a deixar seu país, mas que “não [vinha] ao acaso dizer” (idem, ibidem) naquela

entrevista, apenas um foi admitido: “também um desencanto” (idem, ibidem).

Confessou o poeta a Nelson Saúte:

Havia no meu imaginário outras coisas que eu precisava de ter e de fruir. O

universo que se vivia era de uma rarefacção muito grande ao nível da

expressão pública e havia implícita na consciência de todos uma autocensura.

Era um universo concentracionário que se vivia. (idem, ibidem)

“Foi também por rebelião a esse universo” (idem, ibidem,) que Patraquim

despediu-se do subúrbio natal. Contudo, embora já houvesse, naquele tempo, um

oceano apartando o poeta de seu país, o coração do primeiro continuava em sintonia

com o do segundo: as referências culturais de sua escrita poética ainda permaneciam

moçambicanas.

Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991), livro dedicado à

esposa, Paula, “moçambicana concha. Ilha, minha mulher” (PATRAQUIM, 1991, p.

15), convida-nos a penetrá-lo, esgueirando-nos, antes, por entre duas reflexões

epigráficas: a primeira, versos de António Ramos Rosa – “há um país na terra que a

mão tranquila alcança” (ROSA. In: idem, ibidem, p. 16) – e a segunda, jorro poético de

Rimbaud – “Deixa o poeta explodir, na sua procura desenfreada de coisas inauditas,

inomináveis” (RIMBAUD. In: idem, ibidem). Anunciam as vozes, convocadas à

abertura da obra, os materiais líricos capitais das novas formulações: o desejo de paz em

Moçambique e o extravasamento da experiência poética.

O olhar intimista de Patraquim que, até aqui, soube rastrear a paisagem natal, de

forma a aguçar todos os sentidos telúricos, almejaria, em 1991, captar uma terra sobre a

qual também se hasteasse a alva bandeira da paz. Dos dezesseis anos de independência

que, naquele ano, se inteiravam, quinze deles foram vivenciados em estado de guerra.

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Era urgente que a “mão tranquila” a que Rosa se referia na epígrafe alcançasse, em

breve, Moçambique.

Já os versos de Rimbaud não deixavam dúvidas quanto às expectativas das

novas formulações: era também tempo de arrebatamentos líricos. Deixar o poeta

“explodir” significaria expandir o entusiasmo lírico e vociferar a possibilidade da escrita

poética subjetiva.

Ao promover certa equivalência metafórica entre os conceitos de poesia e

formulação, Patraquim, mais uma vez, ousou profanar o templo da escrita lírica. As

“vinte e tal novas formulações” a que o título se refere, na verdade, compreendem 29

poemas distribuídos em três seções, respectivamente intituladas “A umbila sob as

palavras” (idem, ibidem, p. 17), “Os barcos elementares” (idem, ibidem, p. 39) e “Elegia

Carnívora” (idem, ibidem, p. 50).

2.3.1. A umbila sob as palavras

A umbila, “madeira boa” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 943), resistente

a cupins e apreciada pela marcenaria, referência cultural moçambicana de resistência

porque símbolo da “boa metamorfose da madeira em objecto estéctico, [e, por extensão

metafórica,] em objecto de discurso ou de linguagem” (idem, ibidem), é novamente

evocada pelo texto patraquimiano. Dessa vez, a árvore atribui conotações ao título da

primeira safra poética de suas Novas Formulações: “A umbila sob as palavras”

(PATRAQUIM, 1991, p. 17). Nessa seção, somos recepcionados por uma dupla de

citações. A primeira voz pertence ao “melhor dos poetas” (idem, ibidem, p. 25), segundo

Patraquim: José Craveirinha, cujo verso eleito para epígrafe interna reverbera a figura

do bardo como um feiticeiro ou um vate a pressagiar a tragédia moçambicana

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(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 952): “eu tocador de presságios nas teclas das

timbilas31

chopes” (CRAVEIRINHA. In: PATRAQUIM, 1991, p. 17).

Figura 5: Timbila, instrumento musical moçambicano

Irmanada à mensagem craveirinhiana, está também, mais uma vez, a voz de

Rimbaud. Coube ao poeta francês a segunda das epígrafes interiores do livro, cujo verso

clama para que agucemos nossa percepção de mundo: “Tens de ser vidente, digo-te eu,

tens de fazer de ti um vidente!” (RIMBAUD. In: idem, ibidem, p. 17).

Ciente de seu amadurecimento lírico e pessoal, reconhece Patraquim que, após

uma década de sua estreia literária, já “domina[va] um bocadinho melhor os materiais

com que faz[ia] as coisas – os materiais de complexidade com que somos feitos e da

própria linguagem” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 952). Para atingir “a umbila

sob as palavras”, sabia ele que o poeta teria de ser, no mínimo, um “tocador de

presságios”, dotado de uma vidência que só a atividade poética seria capaz de lhe

proporcionar.

31

A timbila (figura nº 5) consiste em um instrumento musical de percussão, parecido com um xilofone,

tradicional dos chopes de Moçambique, grupo linguístico bantu que se estende pelo norte da província de

Gaza e pela província de Inhambane.

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Publicado um ano antes da assinatura do Acordo Geral de Paz de Moçambique,

em Roma, em 4 de outubro de 1992, Vinte e tal novas formulações e uma elegia

carnívora, embora imerso no contexto social de um combate fratricida que debutava em

seu país, apresenta uma poesia acentuadamente erótica. Mirar a vida, em meio a uma

paisagem assinalada pelo massacre, não significa, todavia, uma contradição, segundo os

preceitos de Georges Bataille: para o intelectual francês, o erotismo compreende a

aprovação da vida até na morte (BATAILLE, 1987, p. 11). Daí, a possibilidade – quiçá,

a necessidade – de, apesar do vermelho associado à “hemorragia do medo”

(PATRAQUIM, 1991, p. 52) disseminada pela guerra, ser um poeta-vidente, capaz de

perceber que o tom encarnado também simbolizava o socialismo e que “verde vagem é

a noite / que em ti floresce” (idem, ibidem, p. 18). Reconhecia o eu-lírico que

“Respiramos. Em tua pele / é que singro, rasgado / grito em quilha / na areia do mundo”

(idem, ibidem, p. 20). O tempo moçambicano sobre o qual reflete sua poesia é também

passível de ser medido pelos impulsos de Eros: “Eis o tempo, objecto tangível, / tecido

em teu pulsar no vento; / o ventre que cresce – cavalo de crinas húmidas [sic] – / e sobre

o azul onde repousa / eis a voz ainda ovo” (idem, ibidem, p. 22).

À procura do inaudito e do inominável, segundo aponta a voragem dos versos de

Rimbaud na epígrafe, o poeta eriça os sentidos físicos. “Quero a táctil nervura do teu

corpo / e o ritmo das vozes penetrando-se / a galope sobre o verde.” (idem, ibidem, p.

26).

Para Barthes, o lugar mais erótico de um corpo está onde o vestuário se

entreabre, visto que lá há insinuação, ao invés de revelação: “é a intermitência que é

erótica”; “a encenação de um aparecimento-desaparecimento” (BARTHES, 2004, p.

15). O mesmo é perceptível com o corpo textual. Barthes não se refere ao prazer do

strip-tease ou ao suspense narrativo. Adverte o teórico que, em ambos os casos, não há

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um rasgo, mas uma revelação progressiva. Toda a excitação se refugia no desejo de ver

o sexo, como no sonho de um colegial, ou de conhecer o final da história, no caso da

satisfação romanesca (idem, ibidem, p. 15). O prazer do texto patraquimiano reside

também na ânsia de ver, ou melhor, na visibilidade dos sentidos sugeridos pela poesia.

Entendemos, pois, o conceito de visibilidade, de acordo com os valores a serem

preservados pela literatura, assinalados por Calvino em suas conferências de Harvard.

Se o autor de Seis propostas para o próximo milênio (1995) incluiu o referido conceito

em sua lista, “foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade

humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, [...] de

pensar por imagens” (CALVINO, 1995, p. 107-8). Em suma, o prazer do texto

patraquimiano consiste na procura de conseguir ver “a umbila sob as palavras”

(PATRAQUIM, 1991, p. 38).

A iminência de ritmos outros, como os dos corpos, quando arrebatados pelo

desejo, impelidos por uma „vaivência‟ sístole-diastólica – cuja adrenalina não mais seja

secretada pelo medo, mas pelo prazer –, anuncia a “urgência inconsútil das tardes /

mareadas de ti. Doutro ritmo. / Urgência do teu orgasmo, amor!” (idem, ibidem, p. 24).

Eleito como um modo de ver, o erotismo não opera, na poesia patraquimiana,

como forma de embaçar o foco da reflexão social. Uma das peculiaridades da lírica

patraquimiana é a confluência de olhares que miram tanto o desejo de uma realidade

como a sua constatação referencial. O mesmo poema que proclama a urgência do

orgasmo e de tardes inteiriças, sem remendos, mareadas de amor, também problematiza

o tempo histórico:

[...]

Oh, my boots, my roots, até a morte

no aurífero útero da terra.

É verdade, Maputo, o negreiro

mar aos borbotões, urgência

de porto na garganta rasgada?

E o silêncio do milho nos porões,

incandescentes, cerebrais?

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Que em ma-falo de Mafalala negra

é o Sul quem grita urgentemente?

A Pátria? Mártir matriz tatuada

ainda a caju e sêmen?

Urgência inconsútil das tardes

mareadas de ti, meu amor.

(PATRAQUIM, 1991, p. 24)

O olhar crítico de Patraquim, poeta-vidente, tocador de presságios – conforme

anunciaram as epígrafes –, cônscio de que “hoje, só o abismo nos espreita” (idem,

ibidem, p. 21) e de que, “por frio, regurgitamos [...] / o coice da angústia / no pão a

levedar as ondas belas” (idem, ibidem, p. 21). É, ainda, igualmente lúcido quanto à

necessidade de “em teu ventre adorme[cer] / a criança que a ternura ensanguentou”

(idem, ibidem, p. 21); mostra-se conhecedor de que “o lirismo amoroso não basta a um

poeta africano” (LARANJEIRA, 1994, p. 253).

Declarou Patraquim a Michel Laban, em 1993, que “para mim um poema tem

um sentido utilitário”, (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 931). Em prosa ou em

verso, uma das principais marcas da escrita patraquimiana reside na assídua

possibilidade de reavaliação histórico-social, que atravessa seu percurso literário e

aproxima, mais uma vez, nossas reflexões dos pressupostos teóricos de Theodor

Adorno. A crítica literária do pensador alemão apresenta-nos o inegável elo entre arte e

sociedade (ADORNO, 2003, p. 65), relação essa explícita na lírica de Patraquim, cujos

versos jamais afrouxaram as rédeas da resistência. Sua poética é dotada de visibilidade,

dosada em exata medida, ao ponto de saber constatar que

É aqui onde me estripam. Lugar.

Obsessivo sussurro de chegar.

Aqui. À hemorragia fremendo

das palmeiras com as vísceras

[...]

Hoje, nenhuma massala32

te diz

os seios no poema. A terra.

Porque é aqui onde me estripam

e tarde se confunde a manhã

nas gengivas da noite. O lugar.

(PATRAQUIM, 1991, p. 27)

32

Maboque: fruto do maboqueiro, comestível.

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Com afiadíssimo gume, o lirismo de Patraquim aguça a nervura crítica da poesia

e expõe as chagas da guerra que há muito se alastravam por sobre o corpo de seu país:

Sentam-se sob as acácias no asfalto roto

os mutilados com cigarros de embalar

Nenhum som os recorta

e todos os sentidos foram amputados.

Nem para a tarde crescem frustrados.

Esperam. Que inconclusa forma

os limita em fórmula de serração?

Que ameaça os delira? Nenhuma flor

explode, poeta, no coração?

Os mutilados sonharão? Suas pernas?

O desejo, fruto adubando. Outra mão?

Que triste palavra os baba

no cigarro morto! Vendem.

Nenhum incesto os estanca.

À revelia do sol, os mutilados

Montam banca.

(idem, ibidem, p. 28)

Sob as ruínas da História – e por “sob as acácias” –, persistiam os estilhaços da

memória que seus poemas não se permitiram esquecer ou evitar. Quando “todos os

sentidos foram amputados” e os mutilados exibem, “à revelia do sol”, o macabro

espetáculo das ausências de pernas e sonhos, é chegado o preciso instante em que a

mensagem poética se transfigura em grito e os versos, em canais de denúncia. Observou

a Professora Celina Martins que a poesia de Patraquim é assinalada pela capacidade de

restituir a voz a espaços que são, simultaneamente, impregnados de estórias e

dilacerados pela História (MARTINS, 2005, p. 140).

Patraquim ousou desadormecer as lembranças da chamada guerra de

desestabilização que, há uma década e meia, deixava, em retalhos, a esperança de sua

gente e, com cicatrizes, a história de Moçambique. A partir de Vinte e tal novas

formulações e uma elegia carnívora (1991), averiguamos que o poeta promove uma

abrasiva erupção textual, ao conclamar as paisagens do trauma, fazendo jorrar, por

sobre a crosta da poesia, uma torrente flamejante de imagens atrozes.

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Para decodificar o que só se é possível ler no avesso das versões oficiais da

História, o lirismo patraquimiano ganha nervos. O bardo-vidente se lança à escrita de

uma poesia com nervuras ou, tratando-se de uma lírica assinalada pelas paisagens, uma

poesia com relevos, tamanha a potência, a espessura e a aspereza das imagens evocadas.

Segundo Francisco Noa, os versos breves, acrobáticos, imprevisíveis e telegráficos da

poesia de Patraquim são atravessados por uma “centelha cerebralista e torturada” (NOA,

1998, p. 44), em cujas imagens são perceptíveis os efeitos trágicos das feridas

provocadas pela guerra, bem como “um certo pathos do exilado” (idem, ibidem).

Ressaltemos a pertinência das observações tecidas pelo pesquisador, visto que, meses

após a publicação de Formulações, Patraquim, em entrevista a Nelson Saúte para o

lisboeta JL, declararia:

considero-me um exilado – não imediatamente político, nunca fui objecto de

perseguição política –, mas sou tão exilado como neste momento exilados em

Moçambique andam uma data de escritores e outras gentes – para não falar

das tragédias de um país excêntrico. (PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p.

17)

País “excêntrico”, no sentido literal do termo aspeado: desviado ou afastado de

seu centro. “As novas gerações de agora [...] pedem à mãe um chocolate e perguntam

quantos dólares custa! Está tudo descentrado outra vez.” (PATRAQUIM. In: LABAN,

1998, p. 933), criticou o poeta, em 1993. “Este exílio está com toda a gente: não é

privilégio de um gajo que se diz intelectual ou poeta e tenta exprimir isso de alguma

maneira” (idem, ibidem), concluiu Patraquim.

Apesar de exilado – facultativamente – em Portugal, o poeta ainda sentia as

dores de Moçambique, às quais também sempre se mostrou sensível a poética

craveirinhana. Em um poema dedicado “ao Zé Craveirinha” (PATRAQUIM, 1991, p.

25), o lirismo patraquimiano apresenta-nos um dos muitos pontos de confluência

traçados entre seus versos e os do pai dos poetas moçambicanos: a permanência da

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“memória dos incêndios” contabilizados pela História de sua terra. Confessa-nos a voz

lírica:

Dói-me a casa nos pulmões. O teu nome

sobre as bibliotecas improváveis latejando

a memória dos incêndios. Este cigarro.

Duração de instantes, infinita

lição dos dias. [...]

Nkaringana que se discorre

entre impossíveis metáforas, em nenhum

mural de moral plasmadas? Só

circundo o que me dói. Na parede branca

um coágulo de alegria. O melhor

dos poetas. Aberto isoterismo

do sonho suturando o mundo.

(PATRAQUIM, 1991, p. 25)

Tendo Craveirinha por interlocutor – poeta maior, com quem Patraquim mantém

um estreito diálogo intertextual ao longo de sua obra –, a consciência da dor

moçambicana não constitui um lamento. Ao contrário. Adverte nosso poeta que só

circunda o que nele dói, numa clara alusão à casa moçambicana com a qual, de fato, se

importa e que ainda – e sempre – palpita(rá) dentro de si. A dor de Moçambique, por

extensão, sua também, “entre as impossíveis metáforas” (idem, ibidem, p. 25), eclode

como índice positivo frente às adversidades: fruto de estímulos de terminações nervosas

– mais uma vez o „nervo‟ colocado em questão –, a dor só ocorre naquilo que está vivo,

naquilo que ainda pulsa. Ao final, segundo nos garantiu o derradeiro verso dedicado a

Craveirinha, restará o sonho a suturar as úlceras do mundo.

No entanto, uma vez interpelado em entrevista sobre a abordagem literária da

realidade trágica vivenciada por Moçambique, Patraquim manifestou plena consciência

de que a literatura não tem a pretensão de salvar o mundo. Esse poder está na mão dos

homens e “cada gente que escreve fá-lo para se salvar a si.” (PATRAQUIM. In:

SAÚTE, 1992b, p. 16).

O que significaria, afinal, ser moçambicano em 1991? Embora não almeje

conceder respostas, reconhece a poesia que “Mil itinerários raiam, / exangues” (idem,

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ibidem, p. 29). Moçambique assiste a um processo histórico-social em stand by,

enquanto “calosas, supurando o silêncio, / sobram-nos as mãos, /o sexo, o medo, a geo /

grafia granular com a voz / na pátria arterial.” (idem, ibidem). “Quantas capulanas

fazem / a leiva do discurso? / Ou em olhos de fermento / à espera, quem / nos ensaia a

tragédia?” (idem, ibidem) – questiona a poesia. Embora “não em verso completo” (idem,

ibidem, p. 29), a voz lírica anuncia que, apesar das sobras, “só de Amor oferto / nossas

palavras possíveis, abertas a maheu e riso” (idem, ibidem). O maheu, bebida tipicamente

moçambicana, produzida à base de farinha de milho, serve de metáfora ao êxtase

provocado pela poesia em quem a escreve e em quem a lê.

Em Vinte e tal novas formulações (1991), “a evidencia do real esmaga o

desregramento egocêntrico” (LARANJEIRA, 1994, p. 253), conforme observou Pires

Laranjeira. De fato, sente-se o poeta “prisioneiro ainda / de sentido, como na Guernica o

touro, / compondo na cidade mítica / uma sintaxe de sombras, indagações / pergavantes

do sol.” (PATRAQUIM, 1991, p. 38). Todavia, ao comparar-se ao touro de Picasso,

símbolo ambíguo do painel cubista que tanto representa as atrocidades da Guerra de

Franco como a resistência do povo espanhol, percebemos que o sujeito lírico incide seu

olhar sobre a tragédia moçambicana, sem, no entanto, desvirtuar-se de uma das muitas

faces da resistência: da “melodia dos afetos em plena defensiva” (BOSI A., 2000, p.

167). Proclama o poeta que, “atento ao Amor, sou o que a atenção / consente de si”

(PATRAQUIM, 1991, p. 38). Para Alfredo Bosi, o discurso poético resiste a uma “falsa

ordem” (BOSI A., 2000, p. 167), representada pela barbárie e pelo caos: “esta coleção

de objetos de não amor”, traduzida pelas palavras de Drummond (DRUMMOND.

Apud: BOSI A., 2000, p. 169).

Aferrar-se à memória viva do passado é, para Bosi, também uma forma de

resistência, uma vez que, por meio dela, se refazem as “zonas sagradas que o sistema

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profana” (idem, ibidem), tais como o sonho, a infância, Eros, o rito e o mito. Profanando

a própria profanação exercida pelo sistema, o poeta moçambicano reencena o ritual de

nyau, restituindo-a ao uso comum.

O nyau, dança ritualística moçambicana, percorre todas as rotas traçadas pela

trilogia patraquimiana. É recriado, em Monção (1980), pelo poema “Variação de Nyau”

(idem, 1980, p. 26), de forma “dionisíaca”, conforme analisou o próprio poeta, em

entrevista a Michel Laban (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 952), como também o

é em A inadiável viagem (1985), nos versos de “Máscara de Nyau” (idem, 1985, p. 46),

evocado de forma “reflexiva” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 952). Já em Vinte e

tal novas formulações (1991) assume uma feição propositalmente agressiva. Eis o

massacre do nyau: Caliban invade a poesia. Afiramos a violência dos versos desta

“Segunda variação a Nyau” (ibidem, p. 30):

Ronda a máscara a carniça

das ideias e seu rosto que abomina

onde a pátria não cansa

e o peito doi.

Vociferante no texto,

Caliban ordena a degola do Nyau

ao ritmo da antiga noite

a exorcizar os dias

chamejantes.

(idem, ibidem)

Atentou Patraquim para o fato de que, embora traduzam diferentes perspectivas

do rito, as duas primeiras máscaras de Nyau acabam por confluir para o “sentido do

sangue” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 952), em evidência na terceira:

Porque é uma dança muito violenta, na zona de Tete, com umas máscaras que

metem medo e que é o domínio do homem, do macho sobre os elementos e a

mulher. Tentei fazer disso um certo símbolo, uma certa evocação de uma

violência que se abateu sobre aquela terra – não uma violência interior. Toda

a história daquela cidade é profundamente violenta. Houve um filme que eu

tentei fazer – estava a escrever o argumento com Camilo de Sousa, que é

sobrinho da Noémia –, que acabava por ser uma grande reflexão sobre a

violência, desde o tempo colonial. Não é só a violência no sentido da guerra,

ou das várias guerras: como é que as próprias sociedades se constituem, a

chamada sociedade tradicional. Ao fim e ao cabo todas elas são, mas

interessava-nos era aquela e depois encontrar as várias correspondências com

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as lógicas políticas ou do colonialismo ou das independências ou das elites

que depois subiram, que reproduziram as outras de outra maneira – tentar

fazer a leitura, por dentro, disso, num sentido quase baudelairiano dessas

correspondências de grandes instâncias de coisas que, afinal, estão ali

subjacentes àquilo tudo. (idem, ibidem, p. 952-3)

O filme a que Patraquim se referiu na entrevista a Laban nunca foi concluído.

Apenas algumas sequências foram rodadas, pouco tempo antes de o poeta viajar para

“esta desgraçada metrópole" (PATRAQUIM. Entrevista. [e-mail], 14/05/13), como nos

confidenciou o poeta em entrevista concedida por correio eletrônico, em 14 de maio de

2013: “Trouxe a papelada, mas tudo se perdeu ou o vento levou. Não sei se o Camilo

tem as gravações das conversas, talvez os papéis com as sequências. Passava-se em

Chicualacula, fronteira entre Moçambique e Zimbabwe. Uma reflexão sobre a violência.

O que há mais é projectos e filmes que se perdem.” (idem, ibidem).

Para além dos ritmos do nyau, o rumor das tradições moçambicanas também é

audível nos versos de “Alakavuma” (PATRAQUIM, 1991, p. 31). O título do poema,

dedicado ao poeta Fonseca Amaral, remete à designação moçambicana atribuída ao

pangolim (do malaio, pengguling, animal que se enrola), mamífero raro33

, de origem

asiática e africana, que se fecha em forma de bola ao sentir-se ameaçado (cf. figuras 6 e

7, à pagina 118). Segundo elucidou-nos o poeta em entrevista eletrônica, trata-se de uma

crença do sul de Moçambique. Embora nunca tenha presenciado o aparecimento dessa

espécie de lagarto mágico, Patraquim ouviu suas histórias ainda criança, em Maputo – a

província, não a cidade. Lendas de alakavuma também circundam a província de Gaza.

Acredita o poeta que na região de Inhambane pode haver crença análoga. Contudo, é

mister considerar, aqui, a questão da diversidade linguística. Alakavuma (grafado com

ou sem “h”) é uma palavra que pertence ao léxico das línguas Xi-Ronga e Xi-Shangani.

33

No glossário de Vinte e tal novas formulações (PATRAQUIM, 1991, p. 53), lemos que alakavuma

consiste em uma espécie de “lagarto”, embora a classificação taxonômica considere o animal como

pertencente à classe mammalia.

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Em Inhambane, provavelmente o animal recebe denominações outras, conforme nos

alertou Patraquim. Embora tenha notícia da crença apenas no sul de Moçambique,

acredita o poeta que, no resto do território moçambicano, deve haver manifestações

tradicionais relativas ao aparecimento do pangolim, em consonância com as

designações das respectivas línguas locais (PATRAQUIM. Entrevista [e-mail],

15/05/2013).

A aparição do halakavuma, em Moçambique, consiste em um notório

acontecimento. De acordo com as histórias tradicionais que circulam pelas províncias de

Maputo e Gaza, o animal nunca é visto mais de uma vez na mesma região e no mesmo

ano. Acreditam que esta rara presença se justifique pelo fato de que seres metafísicos

ancestrais não dispõem de muito tempo para falarem com os homens encarnados. Sendo

assim, quando um halakavuma aparece, um ritual deve ser realizado a fim de

decodificarem a mensagem por ele portada. Geralmente, o animal-mensageiro

prenuncia a falta ou o excesso de chuva, notícia geralmente relacionada à fartura ou a

problemas na produção agrícola. Há casos em que o animal anuncia boas novas,

especificamente, para a pessoa que o encontrou.

Fig. 6: Aparição do halakavuma (sul de Moçambique) Fig 7: halakavuma (sul de Moçambique)

Símbolo metonímico de resistência das tradições moçambicanas, as quais, assim

como o nyau, ainda atuam sobre o tablado cultural do país, a aparição de halakavuma é

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arrebatada pela poesia patraquimiana. O olhar lírico testemunha o instante singular em

que surge o mítico animal:

é, na praça, a crosta dos fantasmas,

“bateau îvre” por onde espreita

na cidade que o fisga e contrai-se;

impolui de negro a palavra presságio

na canícula à sombra das mafurreiras.

(PATRAQUIM, 1991, p. 31)

No glossário de Vinte e tal novas formulações, elucida-se que ao alakavuma se

associam poderes mágicos. Diz-se que, “surgido depois das chuvas, pressagia

malefícios para a comunidade” (PATRAQUIM, 1991, p. 53). Apesar do esclarecimento

oferecido pelo apêndice lexical, será, no bojo do poema, que encontraremos o sentido

maior de halakavuma, segundo memórias das tradições evocadas pelo poeta: “É uma

lagartixa suicidada de asfalto / de que a chuva, na voz, não cresta / e o exuma desta

língua estranha” (idem, ibidem, p. 31). Em seu último verso, constatou a poesia que, da

aparição de halakavuma, restou “só o murmúrio a fosforescer da infância” (idem,

ibidem).

O poema “Alakavuma” esmera-se em remontar uma paisagem cultural, cujos

elementos são dotados de inúmeras e complexas significações, visto que “transportam a

carga da história” (SCHAMA, 1996, p. 15). Ao defender a indissociabilidade entre a

paisagem e as memórias nela contidas, Schama oferece-nos um modo alternativo de

olhar e compreender o lugar geográfico, abordando a paisagem como um lugar cujas

significâncias excedem a apreensão da visão enquanto sentido meramente físico.

Considera o pesquisador a indubitável – e essencial – existência de uma visibilidade

maior, percebida pelos “olhos da mente” (SCHAMA, 1996, p. 14), tão transformadora

quanto fundamental para estabelecer a diferença entre matéria bruta e paisagem (idem,

ibidem, p. 20).

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Respaldados pelos olhos da memória, a visão interior a que se refere Schama

não remonta apenas à paisagem mítica em que protagoniza o lagarto mágico das

tradições moçambicanas. São também os “olhos da mente” (idem, ibidem, p. 14) os

responsáveis por recriarem a paisagem geopoética do Índico e da Ilha de Moçambique

na poesia de Luis Carlos Patraquim.

A Ilha de Moçambique aflora nos versos patraquimianos à feição de uma “ilha-

cordão umbilical que o gesto fundador de Patraquim reata com o imaginário

moçambicano ao clamar o seu nome matricial: Muhípiti.” (MARTINS, 2005, p. 140).

Aprendemos com Alfredo Bosi que uma das formas de resistência da poesia está

em (também) acender na consciência do leitor o desejo de uma existência outra, mais

livre e mais bela. (BOSI A., 2000, p. 227). Nesse sentido, a escrita de Luís Carlos

Patraquim, atenta a esse trunfo poético, oferece-nos, no primeiro movimento do poema

“Muhípiti” (PATRAQUIM, 1991, p. 33), uma paisagem moçambicana propícia ao

usufruto dos desejos:

É onde deponho todas as armas. Uma palmeira

harmonizando-nos o sonho. A sombra.

Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre

as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos

brincam aos barcos com livros como mãos.

Onde comemos o acidulado último gomo

das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.

Puros objectos naturais. Uma palmeira

de missangas com o sol. Cantando.

Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos

e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.

Golfando. Maconde não petrificada.

É onde estou neste poema e nunca fui.

O teu nome que grito a rir do nome.

Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.

E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.

Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.

(idem, ibidem)

Dentre os tipos de paisagens decodificados pelos estudos da geografia cultural,

citamos a contribuição do geógrafo francês Augustin Berque, cujos estudos identificam

um duplo papel da paisagem geográfica: o de “marca” e o de “matriz” (BERQUE. In:

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CORRÊA; ROSENDAHL, 2004, p. 84). Adepto à leitura semiótica dos lugares34

(idem,

ibidem, p. 85), Berque nos ensinou que toda paisagem constitui uma marca, uma grafia

impressa pelo sujeito na superfície terrestre, que reflete a natureza da sociedade que

realizou a geo-grafia, a escrita da terra. Por outro lado, o conceito de „paisagem-matriz‟

nos remete a um lugar anterior às marcas sociais inscritas na paisagem-marca. Em

“Muhípiti”, Patraquim reinventa a paisagem-matriz em detrimento da paisagem-marca:

“É onde somos inúteis” (PATRAQUIM, 1991, p. 33), afirma a voz lírica, cujo nome

está “anulado” (idem, ibidem): apenas se rende ao lugar que o contém.

No entanto, embora seus versos configurem um lugar apaziguado(r), oportuno

ao desfrute da liberdade subjetiva, a visão lírica de uma paisagem harmônica não

embaça o olhar poético de Patraquim, em permanente estado de vigília. As guerras em

Moçambique não renderam mutilações apenas nos corpos dos sujeitos contidos na

paisagem geográfica: o corpo da terra, vítima das atrocidades, também significou um

elemento em processo de cicatrização. A despeito da vontade de depor todas as armas,

no segundo movimento do poema, reconhece o poeta-vidente que, em Muhípiti,

É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos

naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar

nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.

É onde me confundo de ti. Um menino vergado

ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul

humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.

O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.

A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.

Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.

E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde

Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.

Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

(idem, ibidem)

Apesar das imagens sugeridas pelo primeiro movimento da composição, Muhípiti

não constitui uma dimensão de escape. Ao contrário, a Ilha de Moçambique emerge

como uma instância fértil à reflexão e favorável à manutenção da memória histórico-

34

Corrente de estudos arquitetônicos fundada por Pierre Boudon, professor titular da Universidade de

Montreal.

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social. A consciência da “maxila que sangra” e a autoproblematização do repouso

funcionam como evidências de que o espaço insular evocado pelo lirismo

patraquimiano não significa um lugar alienante. Consciente de que Muhípiti serve de

metonímia a Moçambique – “é onde estamos”, afirma o verso –, adverte-nos a voz

poética que é, também, a paisagem “onde os leopardos naufragam”.

Embora, desde Monção (1980), os livros de Patraquim compusessem retratos

líricos da paisagem moçambicana, a abrangência da área geopoética cingida entre o

Índico e a Ilha em sua obra dá continuidade a ecos literários anteriores, emanados,

dentre outros, por Alberto de Lacerda, Glória de Sant‟Anna, Orlando Mendes e Virgílio

de Lemos. (LEITE, 1999, p. 26).

O isleno espaço poético, revisitado por Patraquim em 1991, anuncia em seu

título um jogo intertextual com a “velha ilha” (KNOPFLI. Apud: SAÚTE, 1992a, p. 34-

5), lugar de “doloridas lembranças do tempo”, personificado com “trejeitos torpes de

cortesã decrépita”, “convertida em puta história”, por Rui Knopfli, no poema “Muipíti”,

de 1982. Nos versos knopflianos, a Ilha de Moçambique, retomada como uma paisagem

palimpsêstica, é composta por estratos de tempos sobrepostos e, por isso mesmo, um

lugar repleto de memórias e marcas de entrelaces culturais. Apesar de compartilharem

o mesmo título (ainda que com grafias distintas), a Muipíti recriada por Knopfli

estabelecerá fecundos diálogos com a Muhípiti revisitada por Patraquim nos poemas de

“Os barcos elementares”, a segunda parte de Vinte e tal novas formulações, cujas

composições serão objeto de interpretação na seção seguinte.

Tecer leituras críticas acerca das “novas formulações” patraquimianas, de

antemão, exigiu de nós o reconhecimento do dialogismo como uma das principais

marcas textuais da obra em questão. A começar pelo título do livro, uma espécie de

ponte „transamerica-luso-africana‟, que parte de Santiago, no Chile, atravessa Portugal e

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desemboca em Moçambique: em Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora,

depreendemos as presenças de Neruda e seus Veinte poemas de amor y uma canción

desesperada (1924), e de Grabato Dias e seus 40 e tal sonetos de amor e circunstância

(1970).

Segundo as considerações prefaciais de Ana Mafalda Leite, ao acrescentar ao

título o termo “formulações”, Patraquim ousou criar, isto é, regulamentar a escrita

poética moçambicana, de modo a dar continuidade a essa, reformulando-a, sem perder

de vista “um trabalho poético anterior reinvestido e recuperado de um eventual

esquecimento” (LEITE. In: PATRAQUIM, 1991, p. 9). Nos versos de

“Drummondiana”, confessa o próprio poeta que “em seu rosto acrescento / a dissonante,

vaga luz do lume informulada / poesia” (PATRAQUIM, 1991, p. 34). Adentremos,

pois, pelas searas da linguística textual, a fim de compreender o dialogismo

patraquimiano.

“Indecifráveis livros na estante / me esperam” (PATRAQUIM, 1991, p. 38),

confidencia-nos o poema dedicado a Sebastião Alba. Recorremos a Julia Kristeva

(1974) para afirmar que de muitos livros se constituem os livros de Patraquim.

Aprendemos com a crítica literária búlgaro-francesa, responsável pela introdução do

conceito da intertextualidade, na década de 1970, que cada texto constitui um intertexto

numa sucessão de textos já escritos ou ainda por se escrever. Embasada pelo princípio

bakhtiniano do interacionismo textual (1929), Kristeva parte do pressuposto de que

nenhum texto pode ser compreendido isoladamente: “[...] para Bakhtine, saído de uma

Rússia revolucionária, preocupada com problemas sociais, o diálogo não é só a

linguagem assumida pelo sujeito, é uma escritura onde se lê o outro” (KRISTEVA,

1974, p. 67). E uma vez que um texto sempre esteja em diálogo com outros textos, “[...]

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o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e

como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade” (idem, ibidem).

Concordamos com Bakhtin, ao afirmar que

O texto só ganha vida em contato com outro texto. Somente neste ponto de

contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como

o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é

um contato dialógico entre textos... por trás desse contato está um contato de

personalidades e não de coisas (BAKHTIN, 1986, p. 162)

Para reformular sua (já rouca) “língua que soluça em sintagmas antigos”

(PATRAQUIM, 1991, p. 34), Patraquim nos oferece uma produção poética tributária de

diálogos com outras obras e, sobretudo, com outros poetas.

Em Vinte e tal novas formulações, os versos materializam alguns dos encontros

promovidos entre o poeta moçambicano e suas “afinidades electivas” (LEITE. In:

PATRAQUIM, 1991, p. 8), conforme se referiu Ana Mafalda Leite, parafraseando

Göethe35

, no prefácio do terceiro livro de Patraquim. A pesquisadora observou a

existência daquilo que chamou de “duas fortes redes de „correspondências‟” (idem,

ibidem), ao longo da trilogia de Patraquim: uma “fundadora” (idem, ibidem), constituída

pelos precursores do poeta, no espaço literário nacional moçambicano e outra,

“integradora” (idem, ibidem), composta por nomes da literatura que remetem para além

de sua fronteira natal (LEITE. In: PATRAQUIM, 1991, p. 9). Interpelado por Laban

sobre quais seriam os nomes literários que contam para si, Patraquim não titubeou para

elencar suas grandes referências moçambicanas: Craveirinha, Knopfli e Fonseca

Amaral. Da literatura brasileira, dois ícones: Drummond e João Cabral. E da poesia

portuguesa, Ramos Rosa, Herberto Hélder “e algum Eugénio de Andrade”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 961). Mostrou-se, ainda, plenamente ciente

quanto ao fato de que

nós todos estamos a ser herdeiros da grande tradição literária da literatura em

língua portuguesa. Não devemos pensar que, porque somos moçambicanos

35

Göethe escreve, em 1809, As afinidades eletivas.

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ou porque politicamente se fez a independência, estabelecemos a ruptura, ou

que somos total e completamente diferentes dos outros, ou temos que ter ódio

daqui. Temos que ter consciência de que pertencemos a esta família. (idem,

ibidem, p. 965)

Sabe o poeta que, devido a sua pesada bagagem intertextual, “nós todos somos

muitas coisas” (PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 2). E reconhece o importante

papel de nosso idioma neste processo: “a língua portuguesa tem uma grande influência

nisso porque é uma língua aglutinadora.” (idem, ibidem). Moçambique possui cerca de

onze grupos linguísticos que, por sua vez, ramificam-se em inúmeras variantes. Ciente

desta multiplicidade, Patraquim considera a língua portuguesa “uma maneira de fazer o

cimento desta diversidade toda” (idem, ibidem).

No entanto, sabemos que, para além do vernáculo, muitas são as referências

presentes na poesia de Patraquim. Lúcido quanto ao jogo dialógico a que submete sua

escrita lírica, a Michel Laban reconheceu:

[...] parece que a gente vai por iluminações que nos acontecem. Jogar em

todos estes planos: o que li, o que deixei de ler, o que acho que é, a

consciência do próprio texto poético, do verso. Um gajo só pode atrever-se a

escrever um verso se conhecer os bons versos todos que foram escritos para

trás, e ter o grande pudor de saber que só vai fazer lixo, mas que tem que

fazer porque está vivo e se calhar alguma coisa fica. E depois também posso

interrogar: “Mas fica pra quê? Por que não quer morrer?” Tudo isso está em

jogo: este amálgama permanente, este fogo incandescente é que faz com que

um gajo ainda tenha a maluqueira de querer fazer versos, que é a coisa mais

maluca, sobretudo nos tempos que correm! (idem, ibidem, p. 959-60)

Examinou Leite que ambas as redes, fundadora e integradora, uma vez

entremeadas na poesia patraquimiana, funcionam de modo a atualizar o presente

literário moçambicano com a leitura hibridizada das vozes que configuram sua

anterioridade poética, conquistando, assim, “direitos de genealogia” (LEITE. In:

PATRAQUIM, 1991, p. 9). E já que o fenômeno da intertextualidade aponta para a

necessária presença do outro naquilo que dizemos, escrevemos e lemos (KOCH et alii.,

2008, p. 9), elegemos duas personalidades emblemáticas presentes nas “novas

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formulações” de Luis Carlos Patraquim: Roberto Chichorro e Carlos Drummond de

Andrade.

Com o primeiro, amigo e conterrâneo, poeta-pintor “do outro lado da cidade”

(PATRAQUIM, 1991, p. 32), como bem situa a dedicatória, Patraquim estabelece um

vínculo dialógico em várias de suas obras que, de acordo com a linguística textual,

compreenderia um tipo de intertextualidade stricto sensu explícita (KOCH et alii., 2008,

p. 28).

A Chichorro, Patraquim oferecerá uma das últimas composições de “A umbila

sob as palavras”. A trova, sem título, como muitas das telas do pintor, trata de

Moçambique e das plurais sensibilidades exigidas para se entender o país, cujas

paisagens sempre serviram de mote lírico às cores de um e aos versos do outro.

Não sei de outra rima que não

a sangrar os dedos nas violas de lata,

o cósmico n‟goma36

em falagem de “Xirra!”

com cinco chagas da minha terra

e a pele vermelha das barreiras

para sempre excrecendo-se no hálito

a canho das palavras: assim tacteio

meu poema que singra, sinuoso de bosque,

inscrição de silêncio na pedra

líquida, com os amigos hoje ainda

a carros de rolamentos na derrapagem

alquímica do tempo e, pelas mãos

a nembo dos filhos, outra vez a soletrarem,

ermos de sonho, o trilho azul

dos gala-galas37

(PATRAQUIM, 1991, p. 32)

Fig. 8: N’goma Fig. 9: “Gala-gala”

36

N’goma: tambor típico encontrado em toda a África bantu, construído com uma pele de animal esticada

sobre um cilindro de madeira. 37

Agama: pequeno lagarto africano de cauda longa e insetívoro, chamado em Moçambique de “gala-

gala”. Seu habitat original é a savana, mas hoje ele também vive dentro de aldeias e cidades.

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O poema dedicado a Chichorro reconhece um possível entrelace entre diferentes

experimentações sensíveis38

. A poesia intrínseca às cenas suburbanas de Maputo impele

o poeta a admitir: “Não sei de outra rima que não / a sangrar os dedos nas violas de lata”

(idem, ibidem), instrumentos, aliás, bastante recorrentes nas pinturas de Chichorro. O

som dos tambores n’goma transfiguram-se em imagens que apenas as retinas da função

poética da linguagem são capazes de captar. Não basta estar em Moçambique para

compreender os hábitos da terra. É mister saber senti-los.

Aos versos, coube enfatizar a acuidade dos sentidos: deparamo-nos com a

persistência do tato e o convite à audição “a sangrar os dedos nas violas de lata” e a

ressoar “o cósmico n’goma em falagem de „Xirra!‟. “[...] assim tacteio meu poema que

singra”: anuncia a voz lírica, oferecendo-nos outros modos de percepção, incitando-nos

a conhecer Moçambique pelas sinuosas veredas da sensibilidade. De mãos dadas com as

nervuras insólitas do poema, está a textura tátil das pinceladas de Chichorro, cuja visão

também sabe apreender a singular “inscrição de silêncio na pedra líquida” de sua

paisagem natal, “os amigos hoje ainda a carros de rolamentos na derrapagem alquímica

do tempo” (idem, ibidem), os “ermos de sonho” e “o trilho azul dos gala-galas”,

instantes líricos apenas perceptíveis na íntegra para corações genuinamente

moçambicanos.

Ao estudarmos o dialogismo textual pelas linhas teóricas de Bakhtin e Kristeva,

concluímos que todo texto funciona como uma espécie de porto: dele partem (ou nele

aportam) textos outros, seja para dar-lhe origem, predeterminá-lo, retomá-lo (ou por ele

ser retomado), reafirmá-lo ou contrariá-lo. Assim como as pinturas de Roberto

Chichorro aportam no texto-porto patraquimiano, outra significativa nau poética, dessa

vez brasileira, atravessará o Atlântico para aproar no mesmo cais moçambicano. Ao

38

Discorreremos acerca do tema da correspondência das artes no capítulo seguinte, ao abraçarmos a

análise interpretativa da quarta obra de Patraquim, Mariscando Luas (1992).

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invés de uma pedra no meio do caminho, tinha uma ponte entre Maputo e Itabira,

permanentemente erguida ao longo de toda a trajetória literária do poeta de Alto Maé.

No emaranhado de suas “novas formulações” estão os fios dialógicos explícitos a

compor uma teia entretecida pelos versos de Patraquim e Carlos Drummond de

Andrade: segundo acredita a própria poesia, José e Macuácua “fazem um nome”

(PATRAQUIM, 1991, p. 34).

Em Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991) dar-se-á a

consolidação de uma experimentação textual que, a passos tímidos, já se anunciava

desde Monção (1980): o alargamento das bordas intertextuais. Ao exceder as fronteiras

de sua literatura natal, Patraquim traceja o contorno de um território maior,

reivindicando, como pátria sua, a imensa nação de língua oficial portuguesa, “rouca a

língua que soluça em sintagmas antigos” (PATRAQUIM, 1991, p. 34).

A canção patraquimiana afro-euro-sul-americana admite-se especificamente

como (também) “drummondiana”, confissão essa, aliás, que intitula o poema dedicado

ao amigo, escritor e jornalista moçambicano Gulamo Khan (PATRAQUIM, 1991, p.

34).

Em resposta a Drummond, que, em 1945, em A Rosa do povo, nos alertou sobre

a genuína “Procura da poesia” – para que não tirássemos a poesia das coisas, visto que

“A poesia [...] elide sujeito e objeto” (DRUMMOND, 2012a, p. 11), – Patraquim

reconhece quão vastos são o mundo e as memórias, perante os quais também se rendera

tantas vezes o poeta das sete faces:

Já não elido, fiel amante da enunciação,

o mundo durando. Carrego a mina no peito

se abrindo – nenhuma dor maior –

entre casuarinas que acenam da infância.

Meus versos se despiram. A noite,

a inenarrável, a que espera sem iludida

elisão rasgar este poema, sorri dos muros

circum-navegando a casa.

(PATRAQUIM, 1991, p. 34)

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Ao reencontrar-se com suas memórias, Patraquim conscientizou-se de que não

optara por seguir de “mãos dadas” (DRUMMOND, 2012b, p. 53), conforme sugerira a

inspiração drummondiana, em Sentimento do mundo (1940). Ao contrário, admitiu, com

ares lamentosos, a voz lírica moçambicana: “Como plantei muros!” (PATRAQUIM,

1991, p. 34), trazendo consigo a implícita certeza adquirida nos versos de “A flor e a

náusea” (DRUMMOND, 2012a, p. 13): a de que “os muros são surdos” (idem, ibidem).

Possuidor assumido de um “coração [que] não é maior que o mundo”

(DRUMMOND, 2012b, p. 69), Drummond vê-se entorpecido pelo “Mundo grande”

(idem, ibidem), embora saiba que “o grande mundo está crescendo todos os dias, / entre o

fogo e o amor. / [e que] Então, [s]eu coração também pode crescer.” (idem, ibidem). Do

mesmo modo, Patraquim deixa-se arrebatar pela grandeza dos afetos, afirmando que

“nenhum anjo é maior do que o [s]eu amor”. (PATRAQUIM, 1991, p. 34).

A „con-versa‟ (aqui considerada, sobretudo, como o „ato de versar em conjunto‟)

estabelecida entre os bardos moçambicano e brasileiro também contempla a reflexão

metapoética. Eis o lutar com palavras a que se referiu Drummond, em “O lutador”

(DRUMMOND, 2001, p. 243), embate vão, porém vital, conforme atestam a

“Drummondiana” de Patraquim: “Em seu rosto acrescento / a dissonante, vaga luz de

lume, informulada / poesia. Só ainda a funda música se estrutura, / pura, líquida

substância desde as veias, / esgueirando-se de sílabas, verbos, lívidas vogais”

(PATRAQUIM, 1991, p. 34)

E, já que seus versos se despiram, é chegada a vez de o poeta despojar-se para

experimentar “dificílimas dangerosíssimas” (DRUMMOND, 1978, p. 22) viagens

interiores: “aqui, sem marketing para viagens lunares, / componho esta planície infensa

aos escrúpulos / da morte” (PATRAQUIM, 1991, p. 34). Em consonância à mensagem

crítica do poema “O homem, as viagens” (DRUMMOND, 1978, p. 20-2), ao invés de

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“roupa insiderável de viver no sol”, Patraquim investe na escrita de “um país solar”

(PATRAQUIM, 1991, p. 34), constituído por “corpos, em sôfrego, [que explodem em]

misteriosos abraços de máscaras e caniço”, por meninos com barrigas pesadas como de

granito e por uma língua com sintagmas antigos. “A memória é isto”, resume a poesia.

A drummondiana interlocução de Vinte e tal novas formulações chega a seu

derradeiro movimento. O “São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval”

(DRUMMOND, 2001, p. 66) que habitava as memórias do poeta brasileiro em

“Confidência do itabirano” (idem, ibidem) já não faz parte das lembranças deixadas na

confidência do maputense: “Também tenho um quarto, nenhum S. Benedito”

(PATRAQUIM, 1991, p. 35). No entanto, as engrenagens de “A máquina do mundo” e

alguma rosa cantada por Carlos Drummond de Andrade deixariam rastros indeléveis na

poesia de Luis Carlos Patraquim: “Do mundo a máquina chegará / com a máquina – este

avião de trigo, sujeito / e objecto sem interrogações. [...] / A tua flor anuncio,

orquestração, maravilha, / com o meu sêmen, o frágil milagre” (idem, ibidem).

“Mas já não elido” (idem, ibidem), reafirmou o drummondiano de Maputo, na

última estrofe de seu poema. De fato, o lirismo trazido a público pelos versos de Vinte e

tal novas formulações, em 1991, representou uma seara fértil às experimentações

literárias, aos acréscimos, não às elisões. Inspirado pela herança poética brasileira,

Patraquim aceitou a sugestão do gauche das Minas Gerais e fez de sua trajetória lírica a

procura da poesia moçambicana: chegou mais perto e contemplou as palavras. Percebeu

que cada uma, de fato, tinha mil faces secretas sob a face neutra. Afinal, dotado de um

olhar lírico singular sobre suas paisagens natais, sabia ele o exato modo de captar a

umbila sob as palavras. A resposta? Sim, Patraquim trouxera a chave.

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2.3.2. “Os barcos elementares”

Após desvelar a umbila sob as palavras, o poeta segue seu rumo ao reencontro

das paisagens moçambicanas. E já que todo barco – símbolo maior da viagem – anuncia

uma travessia (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 121-2), Patraquim empreende

a sua, a bordo da mesma nau poética em que embarcara em 1980. Todavia, ao longo de

oito poemas em prosa reunidos sob o título de “Os barcos elementares” (PATRAQUIM,

1991, p. 39), traçará o poeta uma nova rota, „virando de bordo‟ seu olhar, o que

significaria revolver o leme de sua poesia à popa dos acontecimentos, de modo a mirar

no presente marcas legadas pelo passado.

Observou Ana Mafalda Leite, nas linhas prefaciais de Vinte e tal novas

formulações e uma elegia carnívora (1991), que, para além da carga afetiva das

dedicatórias oferecidas por Patraquim, está a necessidade de rememorar um percurso

poético anterior ao seu, eleito intencionalmente pelo poeta como tradição, da qual se

quer como herdeiro (LEITE. In: PATRAQUIM, 1991, p. 10). Em entrevista a Saúte, em

1992, foi a vez de o próprio poeta reconhecer que não se lançou propriamente a um

exercício de intertextualidade, segundo os sentidos da teoria literária. Antes, Patraquim

atribuiu a tessitura de sua teia intertextual a uma espécie de “empenhamento cívico”

(PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 16). “A mim, parecia-me que me cabia esta

tarefa” (idem, ibidem), confessou: a incumbência de fazer justiça a uma cara

anterioridade poética moçambicana e universal. Dos precursores escolhidos por

Patraquim, apontamos a presença de Rimbaud e Neruda já no título desta segunda parte

do livro: nos cascos dos barcos de Patraquim estão também impressas as ranhuras de

“Le bateau îvre” (1871), do poeta francês e de Odes elementares (1954), do bardo

chileno.

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Aprendemos com Ana Mafalda Leite que as malhas intertextuais na obra de

Patraquim funcionam como lugar de reconhecimento e abrigo identitário, uma espécie

de “rede umbilical a criar sua teia palimpséstica” (LEITE. In: PATRAQUIM, 1991, p.

10). É nesse sentido que sublinhamos o nome de Rui Knopfli como uma pontual

referência no itinerário poético de Patraquim. Pelos versos de “A ilha de Próspero”, à

guisa de epígrafe, iniciamos nossa jornada a bordo de “Os barcos elementares”:

Quando voltou a surgir,

raiava o sol e a Ilha estava no céu,

reclinada entre nuvens e azul,

o insuportável diamante irisdiscente

de que ainda hoje guarda o resplendor

(KNOPFLI. In: PATRAQUIM, 1991, p. 40)

O excerto de abertura canta a paisagem que servirá de mote para a segunda parte

da obra: a Ilha de Próspero ou Ilha de Moçambique, “primeiro tema para cantar”

(PATRAQUIM, 1991, p. 41), sem a qual não se compõem as novas formulações

patraquimianas. Ouçamos com atenção a voz de Knopfli ao anunciar uma Ilha

redescoberta pela poesia: dessa vez, não estava na terra, mas “no céu [...] entre nuvens e

azul” (idem, ibidem). Eis o instante, pois, de realocar as paisagens ou, ao menos, o olhar

que sobre elas recaem, de modo a ressignificá-las.

“Afagar a terra / conhecer os desejos da terra / cio da terra, a propícia estação / e

fecundar o chão”: eis os versos finais de “O cio da terra” (1977), composta por Chico

Buarque e Milton Nascimento, que bem poderia ter sido escrita para ilustrar uma das

inspirações capitais da poesia de Patraquim: a terra. Não pensaríamos em outros versos

senão os dessa canção para iniciarmos o debate acerca dos poemas de “Os barcos

elementares” (PATRAQUIM, 1991, p. 39).

Deixemos singrar o primeiro poema:

Ilha, corpo, mulher. Ilha, encantamento. Primeiro tema para cantar. Primeira

aproximação para ver-te, na carne cansada da fortaleza ida, na rugosidade

hirta do casario decrépito, a pensar memórias, escravos, coral e açafrão.

Minha ilha/vulva de fogo e pedra no Índico esquecida. Circum-navego-te,

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dos crespos cabelos da rocha ao ventre arfante e esculturo-te de azul e sol.

Tu, solto colmo a oriente, para sempre de ti exilada. (idem, ibidem, p. 41)

Ilha, substantivo feminino. No entanto, mais do que um gênero, Patraquim atribui

à palavra um sexo: centrada numa “ilha/vulva”, se dá a confluência de três materiais

líricos capitais em sua poesia: a terra, o corpo e a mulher. Ao apropriar-se do objeto

telúrico, seu lirismo ressoa o cio da terra e penetra uma ilha erótica, personificada pela

carne cansada das fortalezas de outrora e pelas rugas do casario decrépito transbordante

de histórias.

“[...] solto colmo a oriente”, tão à deriva quanto o ébrio barco de Rimbaud, a Ilha,

esquecida nas águas índicas, cumpre o insular destino fadado à saudade: para sempre

exilada de si mesma.

Aprendemos com Simon Schama que uma paisagem deve ser lida, levando-se em

conta a complexidade de mitos e metáforas que a ela atribuem múltiplos significados

mediados pela memória (SCHAMA, 1996, p. 17).

“[...] a pensar memórias, escravos, coral e açafrão” da velha Muhipíti, o lirismo de

Patraquim evoca o passado moçambicano como um de seus barcos elementares. No

artigo “Da poesia como desencontro com a História” (PATRAQUIM. In: RIBEIRO,

2008, p. 251), embora traga consigo a certeza de que Clio, a musa da , “na verdade não

estava ali para nos saudar” (PATRAQUIM, 2008, p. 215), não escapa ao olhar do poeta

a sensibilidade de que “Todas as cidades, mesmo as mais recentes, têm a sua “cidade

velha”. Também assim Maputo, ex-Lourenço Marques.” (idem, ibidem).

Singrando ao reencontro das origens a bordo da nau da história, em interlocução

com a Ilha, a poesia rememora o tempo em que

Foste uma vez a sumptuosidade mercantil, cortesão impossível roçagando-se

nas paredes altas dos palácios. Sobre a flor árabe a excisão esboçada com

nomes de longe. São Paulo. Fadário quinhentista de “armas e barões

assinalados”. São Paulo e o rastilho do evangelho nas bombardas dos

galeões. São Paulo rosa, ébano, sangue, tinir de cristais, gibões e espadas,

arfar de vozes nas alcovas efêmeras. Nas ranhuras deste empedrado com torre

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a escandir lamentos dormirão os fantasmas? Almas minhas de panos e

miçangas gentis, quem vos partiu o parto em tijolo ficado e envelhecido?

Ilha capulana estampada de soldados e morte. Ilha elegíaca nos monumentos.

Porta-aviões de agoirentos corvos na encruzilhada das monções. De oriente a

oriente flagelaste o interior da terra. De Calicut a Lisboa a lança que o vento

lascivo trilhou em nocturnos, espasmódicos duelos e a dúvida retraduzindo-se

agora entre campanário e minarete. Muezzin39

alcandorado, inconquistável.

Porque ao princípio era o mar e a Ilha. Sindbad de Ulisses. Xerazzade e

Penélope. Nomes sobre nomes. Língua de línguas em Macua matriciadas.

(PATRAQUIM, 1991, p. 42)

Ao ouvirmos as memórias monumentais da Ilha mestiça pela voz de Patraquim,

lembramo-nos da “Ilha dourada”, de Knopfli, a cantar a mesma “fortaleza [que]

mergulha no mar / os cansados flancos / e sonha com impossíveis / naves moiras”

(KNOPFLI. Apud: SAÚTE, 1992a, p. 50). Nessa ínsula, “tudo mais são ruas

prisioneiras / e casas velhas a mirar o tédio” (idem, ibidem). Vendo a Ilha “adormecer

na distância” (idem, ibidem) como um lugar propício a nostalgias, já que ali “as gentes

calam na voz / uma vontade antiga de lágrimas”, Knopfli dedicou a ela “versos / de sal e

esquecimento” (idem, ibidem), que, anos mais tarde, seriam retomados em diálogo com

os poemas de “Os barcos elementares” (PATRAQUIM, 1991, p.39).

Reconheceu, certa vez, Mia Couto que “Moçambique é um caroço que está

sempre inventando o fruto em seu redor. Quando acreditamos ter adivinhado a sua

identidade, surge uma dimensão inesperada” (COUTO, 2000, p. 4). A poesia de

Patraquim coaduna-se com semelhante consciência de pertencimento a um lugar

assinalado pelo hibridismo cultural.

Banhado por águas índico-mestiças, Moçambique equivale, em termos

geográficos, a uma encruzilhada de culturas em que se interpenetram algumas presenças

étnicas basilares: os bantu; os árabes, instalados no litoral e na Ilha de Moçambique

entre os séculos VII e XIV; os indianos, que dominaram o comércio em terras

moçambicanas; e os colonizadores portugueses, que aportaram na Ilha em 1498.

39

Muezzin: mouro que anunciava em voz alta, do alto de um minarete (torre da mesquita), a hora das

preces.

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Após expulsarem os mouros, as armas lusas priorizaram a extração de ouro e

marfim em Moçambique. Conta-nos a história que, entre os anos de 1750 e 1860, a

administração da colônia afro-austral passou à responsabilidade de Goa, quando os

interesses da Metrópole voltaram-se ao tráfico negreiro. E assim, os ritmos, as cores e

os sabores africanos recebiam novos tons e temperos, em vista da diversidade de saberes

e aromas indo-arábicos, além de todo o legado ocidental trazido pelas naus luso-

atlânticas.

Consoante Schama, para apreendermos os plurais significados de uma dada

paisagem, é mister concebê-la indissociável da “pesada bagagem cultural que

carregamos” (SCHAMA, 1996, p. 17). O autor de Paisagem e memória (1996) nos

ensinou que toda tradição – um produto cultural – trata-se de uma construção erguida a

partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões. (idem, ibidem, p. 24). As

paisagens poéticas a que se devota Patraquim emergem à feição desse depositário,

arrebatadas pelo despertar de memórias históricas, culturais e sociais.

No encalço da matriz macua, uma das etnias mais antigas em Moçambique,

Patraquim posiciona-se de modo lúcido quanto à impossibilidade de definir a paisagem

natal de forma homogênea. Sabe o poeta os “tantos continentes na iridiscente índica

vulva ancorados!” (PATRAQUIM, 1991, p. 47). O leme de seu barco elementar põe a

prumo aquela que lhe parece a única rota possível de ser percorrida: a da reinvenção

deste mosaico de traços culturais, visto que antes de consistir em um repouso para os

sentidos, a paisagem é também uma obra da mente (SCHAMA, 1996, p. 17).

Concordamos com a Professora Doutora Celina Martins (2005, p. 140), ao

observar que Patraquim redimensiona a viagem vertiginosa do “Bateau îvre” de

Rimbaud. À sua jornada, o poeta acrescenta um itinerário pontuado pela “iluminação do

desejo” (PATRAQUIM, 1991, p. 46) a cruzar o corpo-ilha da amada; o corpo-paisagem

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de uma “mulher onde eram as ondas e os pássaros e os barcos elementares” (idem,

ibidem, p. 43) ou ainda o “corpo/barco” (idem, ibidem, p. 46) a singrar pelas vagas dos

sentidos, elevando o poeta-amante à patente de “marinheiro em terra, com palavras de

espanto” (idem, ibidem).

A bordo de sua ébria nau poética, a voz lírica invoca, em tempo, sua “mestiçagem

literária” (MARTINS, 2005, p. 139), que se estende do campanário ao minarete, de

Calicut a Lisboa, das Mil e uma noites à Odisseia, de modo a também experimentar a

mesma “lentura brâmane (ou muçulmana?) durando no ar; / no sangue, ou no modo

como o sol / tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho / com a luz da eternidade”

(KNOPFLI. Apud: LEITE, 1999, p.22), sentida por Rui Knopfli, quando sempre

(re)visitava “A Ilha de Próspero”. Ao permitir a confluência das tessituras de Xerazade

com as de Penélope, a poesia de “Os barcos elementares” (PATRAQUIM, 1991, p. 39),

ciente dos “tantos continentes na iridiscente índica vulva ancorados” (idem, ibidem, p.

47), imprime novas estampas à metonímica capulana. Patraquim “reflecte a sua

vaivência entre o centro e as margens, Ocidente e Oriente” (MARTINS, 2005, p. 140),

celebrando a força do múltiplo cultural de nome Moçambique, lugar onde se

entrecruzam – convivem, de modo a estabelecer uma espécie de fraternidade

intercultural – “adufe, tufo persa, arábia das noites à deriva, memória do sal, langor

plasmando-se em marítimas vozes sensuais”. (PATRAQUIM, 1991, p. 47).

A Ilha, “grávida das minhas bebedeiras na noite esquecida” (idem, ibidem, p. 47),

conforme nos confidencia o poeta, constituída por estratos de memórias subjetivas e

históricas, nos poemas de “Os barcos elementares” (idem, ibidem, p. 39) atua como

ponto de confluência de marcas árabes, indianas, portuguesas e, principalmente, bantas.

Seus versos se rendem ao odor do n’durre40

, à noite dos espíritos inaugurais, ao

40

N’durre: bebida alcoólica fermentada, feita à base de caju.

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concerto de timbilas, à máscara de m’siro41

(idem, ibidem, p. 46) e ao “n’sope42

que só

quer brincar” (idem, ibidem, p. 47), que seguem “significando os séculos, as

linguagens” (idem, ibidem, p. 46). “Em meus silêncios me canto e em batuque me faço.”

(idem, ibidem), garante a voz lírica. Seu olhar, afetivo, reconfigura a Ilha “corpo

nostálgico” (idem, ibidem, p. 47) de Moçambique, certo de que a paisagem insular

compreende uma extensão de si mesmo, conforme, aliás, defende Michel Collot (2010,

p. 205) e o lirismo de Patraquim, que nos diz que “nesta superfície te dou teu rosto que

me completa” (PATRAQUIM, 1991, p. 46).

Fig. 10 e 11: máscara de m’siro ou m’shiro, usada em dança n’sope

E já que uma das formas de resistência da mensagem poética é a memória do

passado (BOSI, A., 2000, p. 169), resistente é o casco do barco poético patraquimiano,

cuja bêbada “vaivência” (idem, ibidem) também se faz perceptível no âmbito temporal:

os versos oscilam entre o pretérito e o presente, que na Ilha coexistem de modo a

inaugurar um novo tempo, híbrido, porém petrificado “neste articulado silêncio de

arquitecturas que em quotidiano caminhar [o poeta] cruz[a]” (PATRAQUIM, 1991, p.

43). As mesmas “ruas vagarosas” – “caminhos sempre abertos para o mar” –

41

M’siro ou m’shiro: pó de origem natural, extraído dos ramos de Olax dissitiflora, um pequeno arbusto

da família das Olocaceae. O pó branco resultante da extração é misturado com água de modo a alcançar o

ponto de uma massa. Usado exclusivamente por mulheres, sua aplicação possui valor estético: recorre-se

ao m’siro para se obter maciez na pele. 42

N’sope: dança tradicional moçambicana, também conhecida por "dança da corda", praticada por

mulheres que pintam as seus rostos com mussiro, creme natural para a pele, feito a partir do caule de uma

planta conhecida pelo mesmo nome.

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(KNOPFLI. Apud: LEITE, 1999, p. 22), retomadas “devagarinho” (idem, ibidem) por

Knopfli em “A Ilha de Próspero”, são revisitadas por Patraquim:

Agora percorrro-te pelas artérias de poeira e branco encardido. Pedra obsessiva,

vazia, petrificando o tempo. [...] E agora fotografo-te [...], em variações batidas pelas

veias abertas do teu segredo violado. Usurpado. Acrescentado. Agora, sobre os dias

de tédio martelados a luz, de partos povoando-se, da epiderme em grito contra a

pedra. [...] (idem, ibidem)

A voz lírica é clara quanto aos três estágios de seu itinerário na ínsula paisagem:

“percorro-te”, “possuo-te” e, por fim, “perco-te”, deixando a Ilha tão à deriva quanto o

barco de Rimbaud. Anunciado é, portanto, o “naufrágio [...] guerrilhando-te os afectos,

[enquanto] os amantes [permanecem] em rotação de geografias [...]” (idem, ibidem).

Francisco Noa pontua como uma das marcas da nova poesia moçambicana a

“afirmação da liberdade subjectiva com efeitos no sujeito da escrita, na própria escrita e

nos destinatários, reformulando consequentemente os códigos da recepção.” (NOA,

1998, p. 42). Patraquim posiciona-se como requerente dessa liberdade intimista e, ao

exercer tal direito, manifesta-se cônscio de que a paisagem natal, mais do que um lugar

para apenas „estar‟, é onde é possível „ser‟: “agora eu, moçambicana concha, [...] índica

miçanga perdida, sobre o teu corpo, minha mulher, minha irmã, minha mãe, percorro-te.

Sou.” (idem, ibidem). Notemos o estabelecimento de vínculos cognatos com a Ilha, a

qual é evocada à feição de mulher, irmã e mãe. A estreiteza de laços entre o sujeito e a

paisagem que serve de mote à poesia evidencia a liberdade subjetiva a que se refere

Noa.

Julgamos, pois, pertinente evocar as contribuições de Michel Collot, para quem

a paisagem é concebida em conivência com os sentidos e, por isso mesmo, dotada de

carga subjetiva. Embasados pelo ensaio “Do horizonte da paisagem à paisagem dos

poetas” (COLLOT, 2010, p. 205), percebemos que do horizonte da paisagem

moçambicana ao horizonte da poesia de Patraquim se abre uma dimensão ímpar,

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plurissignificativa e, em vista disso, ilimitada, que, segundo o estudioso francês,

compreende um lugar em que “um sentido emerge” (idem, ibidem). A perspectiva

horizontal apresentada por Collot alarga-se e verticaliza-se, quando a ela acrescentamos

uma profundidade de leituras empreendidas pelos trabalhos da função poética da

linguagem.

Ao definir o termo sobre o qual se debruça, o ensaísta conceitua „paisagem‟

como uma “falha entreaberta entre céu e terra” (idem, ibidem). Concebida como uma

espécie de brecha, podemos apreendê-la sob a condição de um lugar propício a ser

preenchido pelo olhar. Mais do que apenas vista, adverte-nos Collot que a paisagem é

habitada (idem, ibidem, p. 206). Essa relevante consideração pode também ser

observada com relação à poesia de Patraquim, cujas paisagens líricas não aparecem

dissociadas da presença subjetiva. Sujeito e paisagem estão permanentemente atrelados

nos versos do poeta moçambicano e nas reflexões do pesquisador francês.

Concordamos com Collot ao defender a tese de que, pelo fato de partir de um

ponto de vista, a paisagem consiste, por natureza, em um produto subjetivo. O estudioso

chega a considerar a existência de um vínculo de solidariedade entre o lugar e o olhar,

uma vez que, quando o horizonte parece caber em nosso campo visual, passamos a ser,

de certa forma, “a fonte absoluta da paisagem” (idem, ibidem).

Ao ponderar o olhar como um fator condicionante da paisagem e ao concebê-la

como instância intrínseca ao sujeito, justifica o ensaísta que a paisagem pressupõe uma

extensão, cuja distância “é o palmo de nossa presença no mundo, este batimento do

próximo e do longínquo que é a própria pulsação de nossa existência” (ibidem). Collot

sente a paisagem como um prolongamento do espaço pessoal, embora não a considere

uma instância subordinada ao sujeito. Observa o intelectual que, assim como a

paisagem só toma consistência a partir de um olhar, o indivíduo, por sua vez, só possui

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existência quando inserido em um determinado lugar (ibidem). Desse modo, sujeito e

paisagem estabelecem, antes, uma relação de complementaridade: são interdependentes

e estão em permanente interação.

Constatamos o que as reflexões de Michel Collot significam quando aplicadas na

poética de “Os barcos elementares” (PATRAQUIM, 1991, p. 39-48). Em primeira

pessoa, tal qual também o fizera Rimbaud ao dar voz a seu estonteado barco 120 anos

antes, Patraquim assume a condição îvre da paisagem insular, personificando a sina de

quem sabe que a solidão consiste em “uma ilha com saudade de barco” (FALCÃO,

2001, p. s/n). Sobrevivente numa “Ilha de mim” (PATRAQUIM, 1991, p. 44), cabe

também ao sujeito lírico cumprir o ebrioso e náufrago destino em um Índico particular:

Esqueçam-me, anónimo, sem história, aqui peixe emerso, cardume denso fazendo-

me no dia a dia imperativo de meus plânctons inglórios. Em minhas próprias águas

me navego. Ilha de mim me vou em vôo, meu rosto [...] beijando o azul, a Mossuril,

Cabeceiras plurais de antigos nomes. Allá grande espreitando-me contente. [...]

E dono me faço dos ventos. Sei as circunvalações das vidas que fui, cúmplice de

senhores mas escravo, coral que me perderam. Meus peixes de mim me esperam.

Enfuno as velas, mergulho. Ando andarilho destas planícies até à ilha a que mágico

mar me obriga a voltar. Dolente. Cantando. Soluçando de fome e sombras. Peixe de

mim conciliado. (idem, ibidem)

Aprendemos com John Berger, em Modos de ver (1999), que “nunca olhamos

para uma coisa apenas; estamos sempre olhando para a relação entre as coisas e nós

mesmos” (BERGER, 1999, p. 11). Patraquim não pretende apenas ver a Ilha de

Moçambique; mas, antes, ver-se nela, bem como descobrir uma outra história. Para

além de figurar como mero integrante do cenário típico que compõe o enquadramento

da islena paisagem, com seus panos pendurados às janelas, o sujeito lírico almeja

entranhar-se nele, a fim de olvidar-se das imposições mundanas: “porque aqui me

esqueço do que me querem” e “da história que me fizeram e fui” (PATRAQUIM, 1991,

p. 45). Convidam-nos os versos a sentir a respiração das paredes numa Ilha

redesenhada pelo traço das prosopopeias e repleta de estórias “às avessas da história”

(idem, ibidem).

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Eis as casas. Grutas de sal a céu onde me descubro. Eu sou nome ou reboco

do dia que se extenua e sonha, vento marítimo que me leva às praias

fulgurantes que faltam nos livros. Aqui me deito, peixe, memória, homem,

contigo e a chuva e o iodo e o som das casuarinas circulantes, teu verde

escuro açoitado de desejo. O bosque.

Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagem de despudor sem

mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram

e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso

esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo

gerúndio doutra estória às avessas da história, onde não me vissem mais,

quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.

(idem, ibidem)

Nos dois primeiros títulos da trilogia patraquimiana, ambos publicados na década

de 1980, em meio à eclosão da subjetividade tal qual um convite à poesia, observamos a

reivindicação do „eu‟ como ação prioritária da escrita lírica desse período. Já em Vinte e

tal novas formulações, percebemos uma inversão na ordem dos fatores que compõem

essa perspectiva: constatamos que a abordagem promovida pelo lirismo do livro de

1991 recria as paisagens como extensão do indivíduo. Eis uma mudança significativa de

foco em relação aos vínculos mantidos entre sujeito e paisagem: se nos anos oitenta é

notória a presença do „eu no lugar‟, nos anos noventa flagramos a necessidade de „um

lugar para o eu‟, num país cuja guerra interna isolava há muito os moçambicanos de si

mesmos. Para Francisco Noa, ao evocar a terra – em particular a Ilha –, a poesia de

Patraquim dá voz à História e às estórias de Moçambique num espaço que atua como

metáfora da insularidade existencial do sujeito (NOA, 1998, p. 44).

Ser ilha ou náufrago: basicamente, eram essas as opções que se abriam, à feição

de dilema, aos moçambicanos na década de 1990. Interpelado pelo lisbonense JL, em

1992, anuiu Patraquim acerca de uma notória perda de referências nacionais e

consequente crise identitária em Moçambique àquela altura: “mas parece-me que numa

grande parte de toda esta tragédia que se vive já está implícito isso – crise de várias

identidades. Por isso é que se chegou onde chegou” (PATRAQUIM. In: SAÚTE,

1992b, p. 17), lamentou o poeta, reconhecendo que “não houve a invenção de soluções

adequadas aos problemas latentes que já existiam.” (idem, ibidem). Assim, de modo a

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instituir formas de resistência às anunciadas crises, compreendemos a constante

necessidade de a poesia patraquimiana (re)descobrir Moçambique, (re)definir os

sentidos de „ser moçambicano‟, (re)inventar as paisagens natais e, nelas, (re)alocar a si

mesmo. Daí também uma das exigências de sua poesia, ao final de “Os barcos

elementares” (PATRAQUIM, 1991, p. 39): a recriação do olhar, ainda que, para isso,

seja inevitável reinventar o tempo. “Já que pra ser homem tem que ter a grandeza de um

menino” (GARRIDO et alii, 2006), como, aliás nos ensinaram os versos de “Girassol”,

composição musical do grupo Cidade Negra, o poeta reclama a singeleza de um modo

de ver pueril: clarificado, questionador, com dimensões poéticas, sem, no entanto, beirar

as raias da inocência alienante. Teresa Roza d‟Oliveira, em uma composição lírica

dedicada a Patraquim, publicada no jornal Letras & Letras, em 1992, por ocasião do

lançamento de Vinte e tal novas formulações, nos diz:

Não sei se vejo nele o País ou o Homem. Ou por simbiose de idéias (países e

homens feitos de coisas péssimas e óptimas) as vejo e ligo aos dois. O país

por querer ser Homem e o homem por querer ser País. (D‟OLIVEIRA, 1992,

p. 15).

Nesse sentido, para cerrar o segundo fôlego de poemas de seu terceiro livro, a voz

lírica elege por último barco elementar a infância, “mínima aventura” (PATRAQUIM,

1991, p. 48) não apenas dos moçambicanos, mas também do país:

Criança, mínima aventura: o maior arco de fogo abraçando o mundo. A

minúcia do sonho e os instantes como séculos. Criança, a canção inteira do

coco era uma vez naufragado, veio dar à Ilha com meninos grandes e

barbudos. Criança, a emaranhada hera por sobre as casas, o exacto rastreio

das areias, Mãe, as missangas todas para colorir o largo! Onde brincam os

navios que me contaste? É verdade, Mãe, na lua? E as patacas que me

remendem os calções? Os livros húmidos de que vivos corais vesti-los?

Posso soletrar, Mãe, Moçambique?

Criança, a mínima aventura. Envelhecer sem amaldiçoar o mundo. (idem,

ibidem.)

Em Odes elementares (1954), recriando poeticamente um cosmo ordinário e

familiar, Pablo Neruda cumpre um percurso intimista de modo a transformar objetos

cotidianos em materiais líricos. Comidas, utensílios domésticos e de trabalho assumem

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novos sentidos no canto nerudiano, mostrando-nos que o mundo depende

essencialmente dos olhos de quem o vê. As odes de Neruda, tão elementares quanto os

barcos eleitos por Patraquim para percorrerem sua paisagem natal, nos falam de coisas

simples que não são, no entanto, simplórias. Os versos de Patraquim cantam a Ilha e os

componentes típicos de sua paisagem, como as gentes e seus gestos, embaraçados em

miscelâneas culturais, além de sua História, entremeada por tantas outras estórias.

Já os vinte e cinco quartetos compostos por Rimbaud aos 16 anos, em 1871,

reunidos sob o título de “Le bateau îvre” traduzem, em primeira pessoa, a solitária

vivência de um barco à deriva. Tal qual a Ilha de Moçambique, “solto colmo a oriente”

(PATRAQUIM, 1991, p. 41), a inebriante quilha de Rimbaud também sabia “de céus a

estourar de relâmpagos, trombas, / Ressacas e marés; [sabia] do entardecer, / Da Aurora

a crepitar como um bando de pombas, / E [viu] alguma vez o que o homem pensou

ver!” (ibidem, p. 205). Como a velha Muhipiti, o velho barco “[viu] o sol baixar, sujo de

horrores místicos / [...] / [e] As ondas a rolar quais trêmulas persianas!” (idem, ibidem).

Personificado como a ínsula moçambicana, o barco francês sonhou, bateu, chorou,

cobiçou e sentiu-se “quase ilha” (idem, ibidem, p. 207). O bateau rimbaudiano

vislumbrou ilhas “de delirantes céus se abrindo ao vogador” (ibidem, p. 209), assim

como a Ilha patraquimiana viu singrar os seus barcos. Em sua última quadra, admitira

em tom menor a já fatigada nau: “Não posso mais [...]” (idem, ibidem), desejando,

enfim, o mar por jazigo. Moçambique, barco ainda perdido em 1991, a singrar pelas

bêbadas vagas da História e a desfrutar de uma triste e questionável liberdade –

independente ou „à deriva‟ desde 25 de junho de 1975? –, estaria igualmente fadado ao

naufrágio? Estaria o lirismo exercendo a vidência anunciada por Rimbaud, na epígrafe

de “A umbila sob as palavras”? (idem, ibidem, p. 17) Não caberia à poesia fornecer

respostas, mas apontar possíveis rotas para seus barcos e suas odes elementares.

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2.3.3. A carne do poema

Após a constituição de um espaço de harmonia com “Os barcos elementares”,

voltamos ao drama, conforme observou Michel Laban, (LABAN, 1998, p. 953), pelos

versos de “Elegia Carnívora” (PATRAQUIM, 1991, p. 50), extenso poema que atua

como terceira e última parte das “novas formulações”: a “Canción desesperada”

(NERUDA, 1924) moçambicana.

Ao dar linha à história da composição de sua nova elegia, rememorou Patraquim a

Laban que o ano de 1985 compreendeu um momento “de grande loucura”

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 953). Vinculado ao jornal cinematográfico Kuxa

Kanema, o poeta fora convidado, juntamente com o jornalista brasileiro e grande amigo,

Licínio de Azevedo, para fazer o primeiro argumento do filme O tempo dos leopardos43

.

O longa-metragem, uma co-produção de Moçambique e da já extinta Iuguslávia, trata-se

de uma ficção baseada em registros factuais, organizados à maneira de contos de

guerrilheiros macondes na luta pela libertação de Moçambique, contra o sistema

colonial “salazarento” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 927). A trama, um drama

político, passado em 1971, enreda-nos à história de um líder guerrilheiro capturado e à

saga de seus „camaradas‟ para conseguirem libertá-lo. Segundo o jornalista português e

crítico de cinema António Oliveira, as filmagens de O tempo dos leopardos foram

rodadas “nos anos de chumbo moçambicanos” (OLIVEIRA, A. 2008, s/p.):

Significa isto que não havia quase nada nas lojas e a comida e bebida eram

racionadas. Corria o ano de 1985. Além de ser uma grande novidade entrar

num filme de grandes recursos, numa altura em que o país estava em guerra

civil, significava também comida e principalmente bebida sem limites. Não

podia faltar nada aos actores e à restante equipa de filmagem. Para muitos, só

por isso valia a pena ser artista. Os que viveram esses momentos únicos,

filmados na região de Maputo devido à guerra civil que avançava para sul,

nunca mais os esqueceram. E contam-se histórias memoráveis, quase sem

cessar, em noites de copos. (idem, ibidem)

43

Os primeiros 2 minutos e 36 segundos do filme se encontram disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=oMp8rMqELyo. Acesso em: 9 ago 2013.

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Embora a produção tenha sido pensada de modo a coincidir com o 10º aniversário

da independência de Moçambique, para Patraquim, a história de O tempo dos leopardos

“era total e completamente diferente do que acabou por ser” (PATRAQUIM. In:

LABAN, 1998, p. 954). Segundo a crítica do poeta, o enredo do filme

É do maniqueísmo mais atroz: os bons e os maus, os pretos e os brancos, a

linha da FRELIMO e a linha reaccionária! Eu ainda tive a ombridade, quando

o filme é exibido, de escrever um texto que o Cabaço aceita, que é lido no

palco, diante do Samora em que dizia que parte daquela equipa não

concordava com aquele filme. Mas mesmo isso tinha que ser dito com uma

grande elegância, não podia ser directamente, como hoje se pode escrever

(idem, ibidem)

“A partir daí é realmente o momento de total desencanto” (idem, ibidem),

reconhecera, um tanto frustrado, o argumentista Patraquim. Eclodiria, assim, um

instante inevitável de total afastamento, bem como a necessidade de “uma ruptura a

partir de dentro” (idem, ibidem). Confessou a Michel Laban que foi em meio a essa

grande desilusão que escrevera sua “Elegia carnívora”:

Andei um mês a escrevê-lo, com muita suruma, muita bebedeira e muita

lucidez à mistura, nada de míticas nisto: só se escreve com lucidez [...]. E

tentava ser um poema de grito, de revolta, de síntese, com consciência

poética também de alguns versos que estão lá dentro. (idem, ibidem)

No encalço da finalização do poema, Patraquim concedeu uma entrevista a

Teresa Sá Nogueira, na Rádio Moçambique, ocasião em que a “Elegia carnívora” veio a

público pela primeira vez. Recorda o poeta que, dias depois de ler seus versos ao vivo, o

programa saíra abruptamente do ar e a radialista convidada a não mais fazer programas.

Uma versão da “Elegia” foi publicada por iniciativa de Gilberto Matusse, na

Revista Tempo. O poema ainda possuía dedicatória:

[...] mas depois dá-se a morte do Samora e, quando se chega à altura de

publicar em livro, [...] percebo que aquele gajo teve uma importância

decisiva para o bom e para o mau em muito do que é Moçambique, [...] e é

emblemático em muitas coisas [...] é preciso não matar duplamente, não

assassinar duplamente o Samora. E então – uma dedicatória que não existia –,

no livro eu ponho: „Em memória de Samora Machel‟... (idem, ibidem)

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Assim, consolidava-se o casamento da forma lírica elegíaca com aquele a quem,

a posteriori, os versos foram oferecidos. Como discorremos anteriormente, „elegia‟

consiste em um gênero poético assinalado pela tristeza. Acompanha cantos lutuosos e

vincula-se ao lamento e ao pranto pela morte de alguém por quem se nutre algum tipo

de afeição (SOARES, 1986, p. 32).

Embora escrita um ano antes da morte de Samora Machel, a mensagem

“carnívora” (PATRAQUIM, 1991, p. 50) não foi dedicada ao líder revolucionário

moçambicano de forma gratuita. Esclarecera o poeta que “em termos de símbolo

[Machel] acaba por ser o culminar de tudo o que está dito antes e que se agravou depois

[em Moçambique], se bem que eu não acredite, nem o poema leve a isso”

(PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 16), advertira Patraquim. “Mas digamos que

Samora Machel, sendo ele um símbolo, acaba por confirmar o que está implícito no

poema. A „Elegia Carnívora‟ é uma extrema violência e ele acaba por cair e ser parte

dessa violência”, observou. (idem, ibidem).

Samora Moisés Machel falecera aos 53 anos de idade, em 19 de outubro de 1986,

quando, ao regressar para Maputo após uma reunião internacional em Lusaka, capital da

Zâmbia, a aeronave Tupolev 134, cedida pela União Soviética, despenhara em Mbuzini,

Montes Libombos, território sul africano, próximo à fronteira com Moçambique.

Reconhecido como „pai da nação moçambicana‟, Machel foi o primeiro presidente do

país após a independência, em 1975, permanecendo no poder até a ocasião de sua

morte, quando foi sucedido por Joaquim Chissano.

Diferentemente da “Elegia do sábado” (PATRAQUIM, 1985, p. 69), em A

inadiável viagem (1985), a voracidade da poesia a ressoar ecos denunciativos e lúgubres

tornam “Elegia carnívora” um poema ímpar no conjunto lírico não apenas da trilogia,

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como de toda a obra do poeta. Seus versos confidenciam-nos memórias vertiginosas,

guardadas na noite da história moçambicana, maculadas de sangue e apreensão.

A função poética embrenha-se no avesso das utopias. E “porque embrulho de

carne nos fazem desatado na noite” (idem, ibidem), o poeta ouve o “uivo de sangue /

entre as sombras” (idem, ibidem) de um deus grafado propositalmente em minúsculo ao

longo de todo poema. No asfalto, inerte, conforme fotografou o poema, está o

embrulho de carne outrora homem, irreconhecível “porque é noite, – e agora / já não

dormimos o sono dos cães” (idem, ibidem). “nós voltamos, poucos, entre as sombras /

de deus”, lamentou a voz lírica, ao constatar que em Tsalala, bairro suburbano de

Maputo, manchado pelos massacres promovidos pela RENAMO, restara apenas “um

nome.” (idem, ibidem). E percorremos a seu lado, as chagas do poema:

À uma hora da madrugada somos deus

aos látegos sobre os perfis das casas,

das frontes latejando voos de extenuados

pássaros e batemos no poema. Abram!

Já não morremos nas mãos brincando

do menino com dois anos de idade.

Assassinou-se, para não ser homem nem deus

[...]

(idem, ibidem)

Assassinado como seu país, que também não teve a chance de ser “homem nem

deus” (idem, ibidem), o apenas menino, mártir da violência moçambicana, sensibiliza-

nos ao ganhar voz: “Mãe, quero um barco verde com risos / e um rio dentro dos ossos e

um asfalto / de carne, limpa, sem sombras de deus / ou a noite na boca, Mãe! (idem,

ibidem).

“Sim, o poema está fechado” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 959),

admitira Patraquim. “[...] esse poema estava-nos a ser vedado por todo um conjunto de

situações” (idem, ibidem), avaliou o poeta. “Estava tudo embrulhado em carne desatada

na rua...” (idem, ibidem). Consciente e destemido, “o poema quer é fazer um país

porreiro, ecuménico, universalista” (idem, ibidem). Por isso, a voz elegíaca, insiste.

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Carnívora, desafia: “Batemos. Abram os estádios magníficos / de todos os orifícios.

Cuspam-nos / o fogo que mata. Abram!” (PATRAQUIM, 1991, p. 51).

Aprendiz da lição das sete faces drummondianas, certo de que mais vasto do que

o mundo é o seu coração (DRUMMOND, 2001, p. 22), em meio ao caos instituído pela

barbárie da guerra, o poeta percebe a si mesmo, seus companheiros e o país “tão já sem

nada / e um largo coração de idéias / apodrecendo nas virilhas cortadas”

(PATRAQUIM, 1991, p. 51).

Um nós, perdido, “matrissuicidas de deus na lixeira” (idem, ibidem), tudo exige:

as víceras do vento, salmos abertos do emaranhado bíblico, os vômitos de deus “e medo

e raiva e sangue e cães / e os tartamudos abortos mortos [...] esgueirando-se entre

baionetas do delírio à espera!” (idem, ibidem).

Testemunhas d‟ “a hemorragia do medo” (PATRAQUIM, 1991, p. 52), os

(des)acordes da lira triste de Patraquim já só sabem entoar elegias. Em seu canto

carnívoro, abraça “um corpo agónico de palavras intermitentes, assassinadas” (idem,

ibidem) e dispara uma rajada de imagens agressivas – carnívoras – por sobre a

“metralhada carne deste poema” (idem, ibidem):

[...]

Meu deus de nós, porque voltamos sem o menino

com dois anos de idade? Que não era embrulho

para vagar entre as veias dum céu de ferro,

nem só carne do poema devorando-se em grito.

À uma hora da madrugada. Vidrilham

ou grilos por sobre as flores

esta noite da noite do silêncio,

porque nós voltamos, uivo de uivo

do multiplicado súcubo que não sendo

somos e nos pariu.

TODOS OS POEMAS FORAM FUZILADOS.

(idem, ibidem)

“TODOS OS POEMAS FORAM FUZILADOS”, grita a poesia. Segundo

Patraquim, “eu escrevi o poema para dizer isso” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p.

958). Seria a inviabilidade de se fazer poesia, conforme indagou Laban ao poeta (idem,

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ibidem) ou, ao contrário, a necessidade dela? Conhecendo a trajetória lírica do poeta,

sabemos a resposta. Em Monção (1980), o poeta instituíra o real como “a infinita

medida d[e seu] canto” (PATRAQUIM, 1980, p. 56). Tempos depois, exporia a Michel

Laban a crença de que “o real está na base da elaboração poética...” (idem. In: LABAN,

1998, p. 950). A composição de “Elegia carnívora” (PATRAQUIM, 1991, p. 50)

consolidou aquela que seria uma das marcas de sua produção poética, bem como da

poesia moçambicana contemporânea: o enlace (consagrado por Adorno) do canto lírico

com o social, uma vez que “só entend[a] aquilo que o poema diz quem escuta, em

solidão, a voz da humanidade” (ADORNO, 2003, p. 67). Quando todos os poemas são

fuzilados (PATRAQUIM, 1991, p. 52), é chegado o instante de deixar a denúncia falar a

língua da poesia.

Uma vez publicado em livro, além da dedicatória, o poema também recebe duas

epígrafes. Na primeira, extraída de Os conjurados (1985), versos de Jorge Luís Borges

prenunciam a brutalidade das imagens que serão recriadas em “Elegia carnívora”: “Eis o

que deixaram os punhais. / Eis essa pobre coisa, um homem morto / que se chamava

César. Foi-lhe aberto / em cratera o corpo pelos metais.” (BORGES. In: PATRAQUIM,

1991, p. 49). Conforme observou o próprio poeta, aos versos de Borges os leitores

poderão associar a versão do assassinato de Samora e até a fragilidade do poder que ele,

o Presidente, pensou que tinha: “um poder iluminado, de grande revolucionário e de

marechal do país” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 956); se não um César, ao

menos um conjurado moçambicano. Na segunda, um excerto de T. S. Eliot intensifica o

tom de denúncia ao anunciar: “porque eu não espero voltar” (ELIOT. In:

PATRAQUIM, 1991, p. 50).

Para além de vítima dos disparates da história moçambicana no pós-

independência, Samora Machel tornara-se um emblema para seu país: “no fundo, tentou

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ser o poeta de alguma acção” (idem, ibidem), sintetizou Patraquim a figura do

revolucionário. Ao dedicar-lhe sua “Elegia Carnívora”, Patraquim não pretendeu

deificar o Presidente por ocasião de sua morte. Ao contrário, almejou profanar sua

imagem, no sentido agambeniano, restituindo-a à memória dos moçambicanos. Sabia o

poeta que, por vezes, o líder da FRELIMO soube ser visionário, mas, por outras, deixou

o poder subir-lhe à cabeça. No final, “o assassino e o assassinado acabam por ser os

mesmos” (idem, ibidem, p. 958-9). Samora não fora nem santo, nem demônio. Homem,

só. Moçambicano. E assim como em Portugal existiu um Dom Afonso Henriques e na

França, uma Joana d‟Arc, em Moçambique, “também é preciso heróis” (idem, ibidem, p.

956), concluiu Patraquim.

“Elegia carnívora” é menos uma homenagem do que um trunfo de resistência –

artimanha poética – contra “uma estratégia de esquecimento em toda a gente” (idem,

ibidem) ou o “pesadelo da amnésia coletiva” (SANTOS, 1993, p. 70):

[...] pessoas que eu conheço muito bem e que defenderam posições que eu

defendi no sentido também revolucionário, [...], de repente esquecem-se disso

e são outra coisa. Toda a lógica interna do país mudou e há um hiato ali, uma

amnésia [...]. Estas estratégias de amnésia são também sintomáticas de um

espaço onde acabaram por não se sedimentar estas raízes, estas linguagens,

onde tudo isto continua meio etéreo, meio ao sabor dos ventos que nos criam

– e a gente não tem capacidade para construir pelo menos um cata-vento!

(PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 956-7)

Acreditando que “é preciso criar raízes de dentro das coisas” (PATRAQUIM. In:

LABAN, 1998, p. 955), Patraquim concebera seu terceiro livro. No manejo ondulante

de versos que ora acalentam, ora dilaceram, o poeta edifica os poemas de Vinte e tal

novas formulações e uma elegia carnívora (1991) usando “estratégias de indignação, de

chamamento para as coisas, para a realidade” (PATRAQUIM, 1991, p. 959).

* * *

Onze anos: ao contabilizarmos o tempo, concluímos que foi esse o período que o

Patraka de Maputo precisou para fechar um ciclo que consideramos como a primeira

fase de sua poesia. Ao alcançarmos o final deste capítulo, reafirmamos a ideia defendida

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ao começo: a de que seus três primeiros livros compõem uma trilogia. Defendemos essa

proposição, porque acreditamos que as três referidas obras compreendem três diferentes

estágios de uma mesma viagem. Concordamos com o poeta ao reconhecer “relações

geométricas” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 944) que engancham os três livros

de modo a constituírem um percurso único:

[há] uma primeira “Variação de Nyau”, em Monção; há uma segunda

“Variação de Nyau” em A inadiável viagem... Este “O deus morto na

planície”, nesse sentido da grande planície, como grande ventre de onde

podia ter nascido [...], tem uma correspondência mais violenta e que passa

por um espaço urbano. O espaço é o mesmo: o espaço metafórico, o espaço

simbólico e de linguagem, e tudo isso [desemboca] na “Elegia carnívora”,

como grande explosão... É o deus transposto para o embrulho de carne,

desatado, na noite, na rua, na cidade, no outro reduto das coisas [...] (idem,

ibidem)

Ao longo de onze anos, o poeta cumprira uma jornada que, como vimos, ainda

se apresentou bastante arraigada às paisagens geográficas e culturais moçambicanas. Eis

a primeira fase de sua poesia, assinalada pela presença – ou necessidade – da viagem.

Sua trilogia aponta para uma jornada poética peregrina e, por isso, constitui a fase mais

externa de sua produção lírica. Embora empenhado em traçar uma cartografia subjetiva,

intimista e já dotada de algum indício mnemônico, ao longo de seus três primeiros

livros, Patraquim cumpriu um itinerário composto predominantemente por referências

que encontram no externo – na paisagem moçambicana – um correlato. Nas palavras de

Teresa Roza d‟Oliveira, a primeira fase de sua poesia

Fala da terra de coração aberto: sem angústias ou lisuras. O que há de dizer é

dito. Berrado se for preciso. Nas canções ou nas elegias. Passo a passo.

Percorrido. Caminhado. Restrito. Reescrito. Como uma peregrinação. Uma

viagem sem fim. Um voo incumprido. (D‟OLIVEIRA, 1992, p. 15)

Neste ínterim que se estendera de 1980 a 1991, percebemos um alargamento

paulatino em relação aos nomes com os quais o poeta estabelece diálogos. Alguns dos

convidados para esta primeira rodada do jogo intertextual patraquimiano permanecerão

presentes ao longo de sua produção poética, como é o caso de Drummond e Neruda.

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Também notamos que muitas das referências pessoais de Patraquim, em sua maioria

moçambicanas, cederam, aos poucos, lugar a referências literárias universais. O leque

de possibilidades dialógicas se abria na medida em que o olhar do poeta interiorizava-se

gradualmente, obedecendo a uma lógica natural de amadurecimento que atingia,

silenciosamente, a todos: o homem Luis Carlos, o poeta Patraquim e o país.

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155

3 LUAS, BLUES E OSSOS

Em 1991, com Vinte e tal novas formulações, Patraquim havia alcançado a

dosagem exata de uma fórmula poética íntima que, como mesmo elucidou o poeta,

teria a ver com o conjunto de poemas que eu queria fazer reformulando o que

já tinha feito anteriormente e fazendo uma leitura de mim – uma recriação,

uma vivência poética de mim, do que estava a acontecer e do próprio poema

enquanto tal, enquanto corpo. (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 948.

Grifos nossos)

Em 4 de outubro de 1992, Joaquim Chissano, presidente de Moçambique, e

Afonso Dhlakama, presidente da RENAMO, assinaram, em Roma, o Acordo Geral de

Paz. Após 16 anos, o fratricídio chegava ao fim. A “Elegia carnívora” poderia depor a

lira-arma, para, então, ceder lugar a poemas a salvo do fuzilamento.

Para além da reformulação subjetiva que proporcionou ao poeta a “leitura de

mim” (idem, ibidem), com a extinção da guerra, Patraquim poderia, enfim, lançar novos

olhares por sobre a terra natal apaziguada.

Renovada foi a esperança de conceder ao país uma oportunidade pendente desde

junho de 1975: a de „arrumar a casa‟. Ainda que tardio e vagaroso, o processo de

reconstrução nacional parecia um sonho finalmente acessível.

Em meio a essa atmosfera político-social propícia a novas formulações,

Patraquim não teve tempo de ausentar-se da cena literária moçambicana. No ano da

assinatura do Acordo Geral de Paz, publicara um livro que inauguraria não apenas uma

nova fase em seu percurso poético, como também significaria um divisor de águas na

história da literatura moçambicana: Mariscando luas (1992). No entanto, desta vez o

poeta não viera só. A obra, editada pela lisboeta Vega, foi composta a seis mãos: cabem

também a Ana Mafalda Leite e Roberto Chichorro os créditos de uma “autoria

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tripartida” (LISBOA, 1992, p. 5), conforme acrescentou Eugénio Lisboa na

apresentação do livro.

3.1. O subúrbio azul44

Para Francisco Noa, a “nova poesia moçambicana”45

(NOA, 1998, p. 37), uma

vez destituída de fervores nacionalistas e revolucionários, afirmou sua liberdade e

irreverência, confirmando um campo ilimitado de possibilidades criativas. (NOA, 1998,

p. 49-50). Dentre eles, destacamos o projeto estético de Mariscando luas (1992).

Essa obra significou uma experimentação artística muito bem sucedida, até então

inédita em Moçambique. Inovou ao permitir o flerte entre diferentes tipos de arte, além

de consolidar diálogos entre artistas moçambicanos. Embora, desde 1980, a gravura já

participasse das publicações literárias, a exemplo das próprias obras de Patraquim,

nunca antes de Mariscando luas (1992) a ideia de uma coautoria entre poetas e um

pintor havia sido acentuada. “Os textos e as imagens são de certa forma autónomos,

digamos que se iluminam uns aos outros” (PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 17),

explicou o poeta ao responder ao amigo jornalista que projetos de escrita sucederiam

suas “novas formulações”.

O fato de o pintor Roberto Chichorro figurar como um dos autores da obra

solidifica a comunhão interestética, capaz de mostrar quão pictórica pode ser a poesia,

bem como quão poética – e narrativa – pode ser a pintura. Rememoremos Etienne

Souriau em seu A correspondência das Artes (1983), em cujas linhas encontramos

44

Ao final da tese, nos anexos, a partir da página 256, disponibilizamos as pinturas de Roberto Chichorro

que dialogam com “Azul subúrbio” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9). 45

Noa considera como “nova poesia moçambicana” toda produção poética produzida pelos poetas

moçambicanos, a partir da década de 1980.

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respaldo para defender a indubitável transitividade dialógica entre as artes, tema central

de nossa dissertação de Mestrado46

.

Certos da viabilidade de se “observar uma analogia entre a diversidade dos

comprometimentos artísticos” (SOURIAU, 1983, p. 5) e considerar “a existência de um

tipo de parentesco entre as artes” (idem, ibidem, p. 14), conforme nos ensinou Souriau,

defendemos a proposição de que Ana Mafalda Leite, Luis Carlos Patraquim e Roberto

Chichorro “são levitas do mesmo templo” (idem, ibidem). Irmanadas, literatura e pintura

sobrepõem escritas, desejos e sonhos.

Se ainda durante os anos de guerra, a voz lírica inquiria: “Posso soletrar, Mãe,

Moçambique?” (PATRAQUIM, 1991, p. 48), a partir de 1992, a poesia deparou-se com

a possibilidade de não apenas soletrar, mas traduzir, em letras e cores, os sentidos da

palavra „Moçambique‟ em tempos de paz.

E se “é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender

a vê-lo” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 16), Mariscando luas (1992) é um livro em que

se (re)aprende a ver Moçambique. Mais do que “um cruzamento ou uma convergência

de escritas” (LISBOA, 1992, p. 5), a obra sintetiza a confluência de três olhares

complementares e suplementares entre si: dois masculinos e um feminino. Das

impressões dos primeiros, resultou-se a primeira parte do livro, intitulada “Azul

subúrbio” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9). O terceiro olhar, sob o título “Também

com noivas” (LEITE. In: PATRAQUIM et alii, 1992, p. 63), se abre à poesia de Ana

Mafalda Leite, combinada às cores do “poetapintor” (PATRAQUIM et alii, 1992, p.

55). A fim de não nos desvirtuarmos do objeto de nossa tese, optaremos por focar as

46

Nossa dissertação de Mestrado, intitulada “Na ponta da pena: Moçambique em letras e cores”, sob a

orientação da Professora Doutora Carmen Tindó, defendida em agosto de 2006 na mesma casa acadêmica

que nos abriga no doutoramento, a Faculdade de Letras da UFRJ, foi fruto do projeto de pesquisa Por

entre palavras e imagens: mito, memória e paisagem em letras e telas de Angola e Moçambique,

desenvolvido junto ao CNPq e à UFRJ a partir de 1999, coordenado por nossa orientadora.

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composições líricas de Patraquim em parceria com as pinturas de Chichorro reunidas

em “Azul subúrbio”. (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9).

Apesar da diversidade de vozes e modos de ver, Mariscando luas (1992)

apresenta uma espécie de cerne que concentra os intentos líricos; uma espécie de motivo

poético maior, comum aos três poetas: o de comemorar a singeleza e a espontaneidade

da experiência do subúrbio: um lugar original, popular, afetivo, de cores vivas, gestos

pacíficos, grávido de memórias, que bem poderia servir de metonímia ao “país

sonhado” (LISBOA, 1992, p. 5) a que se refere Eugénio Lisboa no prefácio do livro.

Patraquim, Chichorro e Ana Mafalda empreendem uma viagem interior, de volta

ao país que lhes ficou dentro. Reivindicam a “Mátria índica, oculta no véu da

intolerância colonial” (MARTINS, 2005, p. 136), em busca do inconfundível – e

insubstituível – “sotaque da terra” (idem, ibidem).

Os poetas-pescadores de lua colorem com palavras e escrevem com cores “um

Moçambique mais verdadeiro do que a realidade, porque inventado pela intensidade do

sonho” (idem, ibidem). Recriam para si o país dos desejos: “não um mundo que lhes

fique exterior, mas o mundo que está no centro da sua imaginação” (idem, ibidem), o

que solidifica a tese a que nos propusemos defender. A partir de Mariscando luas

(1992), Patraquim intensifica o processo de interiorização de seu olhar. Já não queria

ver o visto “– é isto? / idem / idem / idem” (DRUMMOND, 1971, p. 193), como o fez o

insatisfeito homem de Drummond em “O homem, as viagens” (idem, ibidem). Sabia

agora que o verdadeiro criador vê o que sente, conforme observou Eugénio Lisboa

(LISBOA, 1992, p. 5).

“Azul subúrbio” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9) é composto por 16 pinturas e

10 poemas.

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Já no primeiro poema, um suposto paradoxo: a presença de um “Quadro

ausente” (idem, ibidem, p. 13). No entanto, ao considerarmos a tese da correspondência

das artes, de Souriau (1983), e nos valermos do teor pictórico da poesia,

compreendemos que o quadro ausente a que se refere Patraquim foi pintado por

palavras. Pintor de paisagens em versos, o poeta colore suas metáforas ao escrever um

quadro para ser apreciado pelos olhos da mente e pendurado na parede dos afetos.

Elucidados pela Professora Celina Martins, notamos que as palavras de Patraquim,

grávidas de sentidos, permanecem como se o poeta-vidente, à luz de um Rimbaud

retomado pela epígrafe de Vinte e tal novas formulações (1991), “cedesse ao

deslumbramento de pintar, escrevivendo „a quarta dimensão do instante‟47

(MARTINS, 2005, p. 137).

O poema-pintura se abre por imagens condicionadas à possibilidade de uma

paisagem acolhedora: “como se a planície aberta / os acolhesse, soletrasse”

(PATRAQUIM et alii, 1992, p. 13). Devido à limitação imposta pelo léxico, os

instantes podem até escapar de uma caneta, mas nunca de um pincel: Patraquim é

conhecedor de que a pintura tem o dom do inefável. Daí o reconhecimento do poder de

(re)criação concedido ao pintor, cujo “ofício é a metamorfose / da manga em pássaro

genesíaco (idem, ibidem), e o encanto perante a quase magia de um “rumoroso olhar de

mocho / [que] linha a linha [segue] passajando a noite” (idem, ibidem). No conjunto de

cores e formas imaginadas sobre a tela do presentificado quadro, é “como se a luz de

deus / em losango tropeçasse” (idem, ibidem), observa o lirismo.

A escolha de um subúrbio metonímico, símbolo de um país enfim pacificado,

possibilita-nos também enxergar Moçambique como a paisagem ausente de um quadro

ainda por se pintar. Lembremos de que ausência não pressupõe inexistência: aos poucos,

47

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 9.

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o quadro moçambicano presentifica-se, a partir de renovados contornos tracejados pelos

desejos.

Em 1992, em entrevista a Nélson Saúte (SAÚTE, 1992b, p. 16-7), interpelado

sobre o que os leitores poderiam aguardar, em termos de produção poética, para depois

das “Novas formulações” (1991), Patraquim mencionou o “projeto compartilhado com a

Ana Mafalda Leite” (PATRAQUIM. In: SAÚTE, 1992b, p. 17), iluminados pelas

pinturas de Chichorro, que serviram de motivação para regressar, em visita, à terra

natal: “Penso este ano [1992] ir a Moçambique. Espero que estes livros sirvam de

pretexto para isso.” (idem, ibidem, p. 17). Se, mais uma vez, é para Moçambique que o

poeta pretende projetar-se, é no subúrbio que o poeta almeja fincar sua bandeira, bem

como sua lápide. No poema “Epitáfio suburbano” (idem, ibidem, p. 19), dentre todos os

anseios capazes de preencher a tela do quadro ausente, destacamos o desejo de

permanência do sujeito lírico na terra natal, condicionada a lugares pontuais: “ficaria de

bom grado entre poetas, / artilheiro de sinais, nadir” (idem, ibidem), paisagens em que

se complementam “trocadilho de azuis e plâncton / [e] meu Guillaume de cornos à solta

/ no muro eléctrico da Gorongoza” (idem, ibidem). Admite o poeta que “[...] ficaria

onde busquei a pedra / em um país de limbos, / [sem, no entanto, esquecer-se do]

sucudu de sangue sobre as mãos” (idem, ibidem). Junto de si, o inseparável “copo lírico

no balcão da noite” (idem, ibidem), fiel confidente de angústias e nostalgias,

“marrabentando-se à espera” (idem, ibidem).

O poeta-apanhador de luas adere ao ritmo sistólico das reminiscências e

convoca, ao céu noturno de suas memórias suburbanas, “a viola [que] uiva à lua / na

braguilha de lata, / [alguns] 20 escudos [,] o que amou / e é morto, digo, / o primeiro

dia, / tua lagoa alagada / [e a] premonição da noite / hiante no meu rosto” (idem, ibidem,

p. 25).

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Mariscando luas (1992) compreende o primeiro livro de uma nova fase poética

de Patraquim. A partir dessa obra, o poeta se lança a uma viagem mais interiorizada.

Sua nova ambição: escavar os estratos da memória, em demanda de suas origens. E esse

novo propósito de seu percurso literário corporifica-se nas imagens compostas por

Chichorro que, inegavelmente, investem em semelhante busca telúrica.

“O poeta fala a todos os homens daquela outra vida que eles sufocaram ou

esqueceram” (SITWELL. Apud: LISBOA, 1992, p. 6): Patraquim e Chichorro, filhos

das bordas de Maputo – o poeta das letras, nascido em Alto Maé e o das cores, em

Malhangalene –, reimprimem na paisagem natal essa “outra vida” (idem, ibidem),

silenciada pela violência das guerras, mas ainda passível de encantos e repleta de

estórias nas quais também figuram como personagens. No encalço das origens, cabe ao

tom azul do subúrbio aliviar o peso daqueles que carregam o “país, bestial camelo”

(PATRAQUIM et alii, 1992, p. 29). Ao retomar a “bossa uterina da viagem”, no embalo

“[d]os veios de som explodindo” (idem, ibidem), a poesia promove a “Palingenesia”

(idem, ibidem) ou o eterno retorno ao “céu úbere da Mafalala” (idem, ibidem).

De acordo com Ana Cecília Carvalho, no prefácio de Literaterras: as bordas do

corpo literário (1995), “o caráter pulsional do fazer literário” (CARVALHO. In:

CASTELLO BRANCO; BRANDÃO, 1995, p.14) engendra leituras, mas também

pressupõe a escuta. E o texto que se constrói nessa escuta-leitura indica um curioso

movimento do olho que escuta e da orelha que lê (idem, ibidem). Para além das escutas-

leituras metafóricas e metonímicas, sentimos em Mariscando luas (1992) o aflorar da

escuta-leitura sinestésica. Do Acordo (Geral de Paz) vieram os acordes: os versos que,

desde o primeiro poema, estabelecem uma espécie de relação comutativa entre pintura e

poesia, acrescentam a ela a música. Mesclando os sentidos despertos pelo som, pela cor,

pela imagem e pela palavra, a lira suburbana se propõe a entoar um “Acorde

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absolutamente Naif” (idem, ibidem, p. 35), ao sentir os efeitos do cessar-fogo na

paisagem moçambicana: “já não dói, meu amor, / a dor que em mim / te feri tanto, / o

que vi, / o que sou e canto, / és tu a criar o dia / na madrugada / que me fugia” (idem,

ibidem).

Aprendemos com John Keats que a excelência de toda arte está em sua

intensidade (KEATS. Apud: LISBOA, 1992, p. 5). Embriagados pelos tons de

Mariscando luas (1992), somos arrebatados pela força das cenas do subúrbio. Tanto nos

poemas, como nas pinturas, sentimos a intensidade “que se documenta sem esforço,

quase ao acaso” (LISBOA, 1992, p. 6), como também confessou tê-la sentido Eugénio

Lisboa, no prefácio da obra. Munido dessa inegável irradiância, o livro de 1992

reinventa a arte naïf à moda moçambicana: à arte primitiva moderna acrescentam doses

de “excesso de pureza” (LISBOA, 1992, p. 5) e “intensidade de arranque” (idem,

ibidem), típica das cores e dos gestos dos subúrbios de Maputo.

Entregue ao jogo das percepções aguçadas pelos afetos, Patraquim compôs sua

“Balada da cidade longe” (idem, ibidem, p. 41), dedicada a Chichorro e inspirada na

prosa poética que ecoa das pinturas do amigo.

Poderíamos aqui enveredar por algumas contribuições críticas, como Alberto

Manguel, em Lendo imagens (2009), para quem as imagens são dotadas de

narratividade, ou, ainda, Gaston Bachelard, em O direito de sonhar (1994), em cujas

páginas nos deparamos com a instauração de uma poética das cores. Ambos os

contributos significaram fundamentos teóricos que nos foram indispensáveis para o

desenvolvimento de nossa dissertação de Mestrado. Sem desmerecê-los, optamos, desta

vez, por justificar nossa leitura com as palavras do artista. Em entrevista, Chichorro, o

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poetapintor,48

permitiu-nos adentrar pelos vãos mais remotos de suas entrecores, ao

confessar os motes de sua inspiração:

São as histórias da minha infância [...], meus pilares de memória, o meio onde

cresci; apetecia-me muito falar daquelas pessoas, prestar-lhes esse tributo, liberar na

tela, para os outros, a observação de um quotidiano carregado de força, com

dinâmicas próprias, numa interação de gentes, objectos e ritmos. Aquelas mulheres

de trabalho dos bairros pobres, o encanto de terem um vestido de cetim, as próprias

prostitutas, as bicicletas, os jogos que tínhamos, as gaiolas e os pássaros, os peões,

os brinquedos que, como qualquer criança pobre, construía com as próprias mãos,

pois o meu pai era um operário sem dinheiro para comprar-nos brinquedos. Tudo

ficou, e acho que vale a pena transmiti-lo. (CHICHORRO. In: NÓBREGA, 1986, p.

26-7)

Ao conjugar tons e traços naïf, surreais, cubistas e expressionistas, compondo

uma espécie de “Geleia Geral” (PIGNATARI, 1966, s/p.) da arte moçambicana

contemporânea, Roberto Chichorro estabeleceu um estilo próprio, mestiço,

inconfundível. Em Moçambique, encontrou a razão da palingenesia, de seu eterno

retorno: ali está a casa matricial sem equivalentes, dotada da poética da singeleza.

Somente ali, em um subúrbio que é seu, “as mulheres têm vestido de cetim e vivem

numa barraca” (idem, ibidem).

Imbuída em nostalgia, a “Balada da cidade longe” (PATRAQUIM et alii, 1992,

p. 41) canta o lamento dos tantos desencontros entre o poeta e a rua, e remonta, em

palavras, a saudade de algumas das cenas triviais também evocadas pelas memórias do

amigo pintor e trazidas à epiderme das telas pela poética das cores, como “a canção da

partida”49

(idem, ibidem), “a voz cor de rosa”50

(idem, ibidem), o “número de cada porta

/ bicicletando noivados”51

(idem, ibidem) e o “leque vermelho para esta janela sem

lua”52

(idem, ibidem).

48

“Poetapintor”: neologismo criado por Patraquim por ocasião do poema “Oficina do poetapintor

mariscando luas” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 55) para designar o amigo Roberto Chichorro. 49

cf. “Acordes nocturnos”, acrílico sobre tela (CHICHORRO. In: PATRAQUIM et alii, 1992, p. 23) e

“Concerto para noite de luar”, acrílico sobre tela (idem, ibidem, p. 33). Anexos 5 e 8. 50

cf. “Serenata em rosa”, acrílico sobre tela (idem, ibidem, p. 37). Anexo 9. 51

cf. tela “Bicicletando luas suburbanas”, acrílico sobre tela (idem, ibidem, p. 27). Anexo 6. 52

cf. “Sonhar de vermelho com noite”, tinta da China e aquarela sobre papel (CHICHORRO. In:

PATRAQUIM et alii, 1992, p. 49). Anexo 13.

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Aprendemos com Adriana Falcão que saudade é o que fica “quando o momento

tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue” (FALCÃO, 2001, p.

18). Na impossibilidade de volver-se na concavidade do tempo (PATRAQUIM et alii,

1992, p. 41) para não mais desperdiçar a “oferta expectante / das [...] mãos da [cidade]

longe” (idem, ibidem), Patraquim recorre às memórias de modo a amenizar as lacunas

deixadas pelos desencontros. Quando reviver é interdito, recriar é a alternativa. Nesse

sentido, mais que lícito, torna-se justo “reinventar imagens da unidade perdida [...] para

resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver”

(BOSI, 2000, p. 155). Almejando reinventar os tantos desencontros com o país, a

pintura e a poesia moçambicanas fizeram do onirismo uma das chaves da resistência.

O azul do subúrbio de Patraquim ultrapassa a insinuância naïf quando acrescenta

uma atmosfera surrealista ao “céu úbere da Mafalala” (PATRAQUIM et alii., 1992, p.

29). Na tentativa de valer-se dos sonhos, a poesia arrisca a formulação de imagens

surreais como o “meu país boi flamando no céu” (idem, ibidem) e conclama Chagall

para juntar-se a Apollinaire – “meu Guillaume de cornos à solta / [que] no muro

eléctrico da Gorongoza” (idem, ibidem, p. 19) já participa da festa poética, integrando

os versos de “Epitáfio suburbano” (idem, ibidem).

Patraquim expande ainda mais seu universo intertextual ao mariscar “Chagall”

(idem, ibidem, p. 47). Convidado para fazer parte do mesmo espetáculo poético

suburbano em que figuram ícones tipicamente moçambicanos como a mafurra, a

marrabenta, Fanny Mpfumo53

, o pintor surrealista invade a Mafalala trazendo consigo

uma imagem que se eleva não menos surreal do que sua arte: uma “Lagosta alando-se /

ao flanco mais lúdico das estrelas” (idem, ibidem). Ao conjugar pintura e poesia, o

poema se transfigura na casa da experimentação lírica. Erguida sobre um solo irrigado

53

António Mariva Mpfumo, conhecido por Fanny Mpfumo, foi um cantor moçambicano de marrabenta,

nascido na Mafalala, em 1928. Faleceu em 1987.

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ainda a sangue – não mais o do fratricídio, mas o do mênstruo de virgens evocadas para

refecundar a terra esterilizada pelos massacres –, a casa poética escancara suas portas de

modo a recepcionar a renovação: “mestre, esta é a casa / ou só silêncio em percussão de

formas, / por onde rumor de virgens / sangrando de mênstruo as raízes” (idem, ibidem).

Parafraseando Baudelaire, Celina Martins observou que “Patraquim irradia a

clareira da correspondência entre Chagall e Chichorro” (MARTINS, 2005, p. 137):

ambos dialogam pela expressividade de suas cores, pelo voo que mantém os namorados

em suspensão e opera “bicicletando luas suburbanas” (CHICHORRO. In:

PATRAQUIM et alii, 1992, p. 27). O pincel russo-francês e o moçambicano deslizam

suas cerdas à procura do onírico, embaraçando seus traços em um emaranhado interior.

E já que o surrealismo, paradoxal em si mesmo, “incorpora à consciência a negação da

consciência” (DRUMMOND, 2007, p. 208), conforme refletiu o aforismo de

Drummond, Chagall e Chichorro irmanam-se, na medida em que suas pinturas apontam

“para uma cegueira que toda pintura deve conter” (PATRAQUIM, 1994, p. 3).

Para Celina Martins,

Patraquim postula a vidência da cegueira como princípio estruturador da sua

poética do enigmático. Poética que perscruta as minudências da Vida,

transfigura a fixidez dos contornos do real e esbate a fronteira entre realidade

e sonho. Porque, de mistério em mistério, o poeta em estado de sonho

„sutura‟ os fragmentos dispersos do mundo num acto reconciliador em busca

da harmonia perdida. (MARTINS, 2005, p. 137)

Ao mirarmos as pinturas de Chichorro, sentimos que o azul, eleito também por

Patraquim para adjetivar seu subúrbio, figura como o maior protagonista das telas do

pintor de Mariscando luas (1992). E concordamos com Gaston Bachelard, para quem as

cores compreendem forças criantes. Para o filósofo, que dedicou grande parte de sua

vida e obra ao estudo da imaginação da matéria, cabe à cor conceder dinâmica à

paisagem, em “uma constante troca de forças entre matéria e a luz.” (BACHELARD,

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1994, p. 26). Assim, cientes da potência das cores numa pintura, não poderíamos

negligenciar a opção pelo azul na obra em análise.

Partimos do princípio de que o azul não está apenas presente no subúrbio

recriado pelas pinturas e poesias do livro de 1992; mais que isso, essa cor participa do

jogo lírico de Mariscando luas (1992), como parte integrante ativa no labor estético da

obra. Recorrendo ao dicionário de símbolos, aprendemos com Chevalier e Gheerbrant

(2001) que o azul é a mais profunda das cores, propícia à penetração do olhar que nele

tem a permissão de mergulhar, sem encontrar qualquer obstáculo. Eis a trilha para o

infinito, onde o real e o imaginário se tocam (idem, ibidem, p. 107): “entrar no azul é

um pouco fazer como Alice: passar para o outro lado do espelho” (idem, ibidem). É

também o mais imaterial de todos os tons, constatação que favorece o “clima de

irrealidade – ou da superrealidade” (idem, ibidem) a tudo o que dele se impregna.

Quando claro, é o caminho da divagação, mas ao escurecer, torna-se o caminho do

sonho. Daí o possível encontro entre o Chagall e Chichorro, e a atmosfera onírica que

exala das pinturas do moçambicano, adeptas de um tom de azul entre turquesa e

marinho. Embebido de sentidos pacificadores, essa cor remete à ultrapassagem dos

conflitos, visto que é capaz de “resolve[r] em si mesmo as contradições” (idem, ibidem).

Segundo sua leitura simbólica, “o azul não é deste mundo” (idem, ibidem), o que sugere

uma ideia de eternidade tranquila e altaneira sobre-humana a tudo o que com ele se

colore.

Das 16 telas que integram “Azul subúrbio” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9),

combinando óleos, acrílicos, aquarela e nanquim sobre as telas, 14 foram intituladas:

“Jazz Band Compasso 3 x 4” (CHICHORRO. In: PATRAQUIM et alii, 1992, p. 11),

anexo 1; “Voo de papel em azul” (idem, ibidem, p. 15), anexo 2; “Prendas de

casamento” (idem, ibidem, p. 17), anexo 3; “Karingana” (idem, ibidem, p. 21), anexo 4;

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“Acordes nocturnos” (idem, ibidem, p. 23), anexo 5; “Bicicletando luas suburbanas”

(idem, ibidem, p. 27), anexo 6; “Concerto para noite de luar” (idem, ibidem, p. 33),

anexo 8; “Serenata em rosa” (idem, ibidem, p. 37), anexo 9; “Memória Azul” (idem,

ibidem, p. 39), anexo 10; “Maria Rua Abaixo” (idem, ibidem, p. 43), anexo 11; “Sonhar

de vermelho com noite”, (idem, ibidem, p. 49), anexo 13; “Rodar pião em telhado de

zinco” (idem, ibidem, p. 53), anexo 14; “Sonhando em voar azul” (idem, ibidem, p. 57),

anexo 15 e “Com fio de quinhenta” (idem, ibidem, p. 59), anexo 16. Assim como a

pintura saboreou os temperos da função poética também em seus títulos, o poema pôde

experimentar a liberdade de nomear-se “S/ Título” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 51).

Patraquim se volta ao ofício do amigo pintor e compõe com palavras um quadro

suburbano, que bem poderia pertencer a um dos quadros de Chichorro. Descrevendo

passo a passo a íntima formulação de imagens, o poeta estampa os frutos de sua

vidência interior:

S/ Título

ocorre-me este curro

de touro tresmalhado,

a badana abanando

em vermelha festa

o imo das vogais;

ocorre-me, áspera,

a rua sem nome,

listrada salamandra

em buganvílias

de zinco e zol;

vêm-me aos olhos

as campânulas da noite

e as hastes delicadas,

as goivas, os chumaços,

alvareando a espera;

afago de carne te emborco

agora no redil lanudo

das luas,

o arco em gancho

para o desígnio a negro

e sal das bicicletas.

(ibidem, p. 51)

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Ainda no embalo dos ofícios em permuta, Patraquim concebe o poema “Oficina

do poetapintor mariscando luas” (idem, ibidem, p. 55). Pelo título, os versos dispensam

dedicatória. Atribuindo a Chichorro um neologismo que tão bem o define, o poeta

arrisca compor um novo quadro: tecendo nova pintura com as palavras, desta vez recria

o atelier do amigo pintor, lugar onde:

os amigos entram pela janela

de luz na tarde atlântica

e o gato eriça-se no copo,

delíquio é o rosto de Heitor

e a mão que expende, afaga

os piões esgarabulhando-se,

quando à solta é o barco

na enseada das mulheres

e o azul em pirueta de mastro,

arfante, sobre o umbigo da tela.

(idem, ibidem)

Além de perseverar no azul, uma das marcas da poética do pincel de Chichorro

em Mariscando luas (1992), está em firmar fidelidade às aves, o que, aliás, rendeu ao

pintor a alcunha de “passarinheiro” (CHICHORRO. In: NÓBREGA, 1986, p. 26-7). A

recorrência de pássaros em suas telas reportamos à metáfora do voo, cuja simbologia

nos aproxima da instância onírica. Concordamos com Eugénio Lisboa ao dizer que, ao

lermos os poemas e as pinturas de Mariscando luas (1992), não mergulhamos em uma

atmosfera de sonho, mas, antes, em uma atmosfera de delírio onírico, de intensidade

quase intolerável (LISBOA, 1992, p. 5).

Compreendemos, assim, a ênfase atribuída pelo pintor ao subverter o sentido de

seus pássaros engaiolados. Certo de que “o amor é algo que, [de um lado], se vive

subjetivamente e, de outro, é algo a que se é submisso” (MORIN, 2005, p. 19), como,

aliás, também acredita Edgar Morin, Chichorro defende suas gaiolas como símbolos de

um encarceramento afetivo voluntário – uma espécie de “querer estar preso por

vontade” (CAMÕES. In: ANDRADE, E., 1977, p. 35), ao sabor camoniano: “algumas

pessoas parecem-me refratárias a esta ideia das gaiolas. Mas as minhas gaiolas não são

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prisões. São as gaiolas dos nossos amores, da nossa afetividade” (CHICHORRO. In:

Nóbrega, 1986, p. 26-7). Em consonância aos voos aludidos pelas aves do amigo

passarinheiro, a poesia também desejou alçar os seus. E já que as asas indicam uma

liberação e uma vitória – “convêm aos heróis que matam os monstros” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 91) –, o último poema de “Azul subúrbio”, intitulado “Voo

de papel” (PATRAQUIM et alii, 1992, p. 61) consagra a leveza da trégua e anuncia o

alijamento de um peso histórico que há séculos arqueava o país:

Eis o silêncio nocturno verde sonho

por um fio de pássaros ritmando-se

na memória como um óbolo

da obsessiva minha carne de caniço

(idem, ibidem)

Simultâneo ao Acordo Geral de Paz, Mariscando luas (1992) compreende um

livro iniciático para a literatura moçambicana do pós-independência. Os sentidos do

hasteamento da bandeira branca entre FRELIMO e RENAMO elevaram Patraquim,

Chichorro e Ana Mafalda à condição de mariscadores de sonhos, desejos e experiências

humanas que se ramificariam pela poesia moçambicana contemporânea, de forma ainda

mais introspectiva, a partir deste livro.

Constatamos que as paisagens reinventadas em Mariscando luas (1992) – bem

como todas aquelas recriadas nos livros anteriores – como o mar e as dunas, em

Monção (1980); a cidade, em A inadiável viagem (1985); e a Ilha, em Vinte e tal novas

formulações (1991) – apresentam incontestável valor subjetivo. São elas dotadas de

notável carga emocional, afetiva, catártica, erótica, mnemônica. Mais uma vez, as linhas

de Michel Collot pespontam o bordado lírico de Patraquim, visto que o ensaísta prevê

“uma conivência do olhar e do corpo inteiro com a paisagem” (COLLOT, 2010, p. 207).

Nela, podemos investir quaisquer tipos de conteúdos psicológicos, garante o

pesquisador (idem, ibidem). O exame de Collot nos conduz ao encontro da certeza de

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que, mais do que simplesmente habitada, a paisagem é vivida, o que pressupõe a

evidente possibilidade de, nela, depositarmos e depreendermos “estados de alma” (idem,

ibidem).

Nesse sentido, concordamos que toda paisagem, portadora inveterada de uma

dimensão psicológica, sirva de “espelho à afetividade” (idem, ibidem). Acrescenta o

ensaísta francês que a busca por um horizonte privilegiado pode significar também uma

procura de si mesmo. Eis o instante em que “o fora testemunha para o dentro” (idem,

ibidem).

As palavras-chave do ensaio de Collot – “ponto de vista”, “extensão”, “parte” e

“conjunto” – dispostas em gradação, mostram-nos que a paisagem, ainda que seja um

“pedaço” de país ou uma “vista possível”, como mesmo sugere sua etimologia, também

pressupõe uma amplificação, sendo capaz de demarcar “a medida do mundo” (idem,

ibidem, p. 205). Podemos, pois, afirmar que Patraquim e Chichorro em “Azul subúrbio”

(PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9) demarcam a medida de sua existência moçambicana

por intermédio das paisagens suburbanas que suscitam.

Ler Mariscando luas (1992) requer sensibilidade. Não apenas a sensibilidade

usual, reclamada pela arte em geral como uma espécie de condição sine qua non a todos

que se propõem a admirar uma obra. Se fosse essa a única sensibilidade necessária, em

nada diferenciaríamos esse livro dos demais a ele contemporâneos. Referimo-nos a

outra sensibilidade, de exceção, imperceptível aos olhos, exigida àqueles que ousam se

aproximar dos sonhos, que preferem habitar um lugar entre a cor e o desejo e que nunca

se fecham às estórias entranhadas na História, retratos mnemônicos que são audíveis,

primeiro, pelos afetos.

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3.2. O blues da rua

O Patraka de Maputo recita poemas como blues em noites de lua cheia.

(“Afrikin/Heitor”, Edna Maria dos Santos)

Os poetas mariscadores de luas recriaram seus subúrbios azuis de modo a

promoverem reencontros. Primeiro, com a paz. Depois, com a reformulação dos

desejos, dentre eles, o de habitarem, enfim, um Estado que fosse também nação,

histórico, político e socialmente reestruturado. E o terceiro reencontro, não menos

importante que os demais, se deu com os sonhos – sobretudo, com a possibilidade de

sonhar. Em síntese, o projeto lírico de Mariscando luas (1992) almejou fomentar o

reencontro – há muito adiado – de moçambicanos com Moçambique.

Em 1995, o poeta foi condecorado com o Prêmio Nacional de Poesia de

Moçambique. Dois anos depois, publicaria uma nova antologia: Lidemburgo blues

(1997), o primeiro com o selo do Editorial Caminho, de Lisboa, sob a modesta tiragem

de 600 exemplares.

Rua de Lidemburgo: o endereço, situado no subúrbio da capital moçambicana,

zona de bairros pobres de colonos brancos em Maputo, “a confinar com os bairros

negros” (PATRAQUIM. In: CHABAL, 1994, p. 257), homenageado pelo poeta já no

título da obra, nos remete à casa da infância. O canto poético, que no livro anterior

aproximou-se da pintura, desta vez irmanou-se à música e incorporou a melodia

melancólica do blues.

Em 1993, quatro anos antes de entoar os ritmos lentos da rua de outrora, numa

conversa-entrevista com Michel Laban, o poeta revelou algumas referências estampadas

ainda na memória, que eclodiriam em sua quinta obra:

[...] eu vou buscar correspondências naquilo que já tinha ouvido e que sempre

me interessou desde puto: é o sentido da diáspora negra – [...] que deram

depois em espaços nacionalistas e que dão na consciência desses sentidos do

destino negro – que é a Noémia de Sousa e o Agostinho Neto [...]. Coisas que

eu já tinha ouvido, ouvindo o Paul Robeson, Marian Anderson, os espirituais

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negros, os blues, coisas que eu ia ouvir mesmo lá nas igrejas protestantes,

aqueles coros magníficos. Depois, a gente acaba por encontrar lendo as

coisas, mais tarde: “afinal está lá!”... Começamos a perceber que

pertencemos a este mundo, a um mundo comum de coisas. (PATRAQUIM.

In: LABAN, 1998, p. 961)

Embora tenha sido – e ainda seja – um admirador confesso dos ecos do Harlem,

evocar os acordes do blues em sua obra não significou prestar homenagem ao

movimento da negritude. Esclareçamos, pois, que para Patraquim “não houve uma

negritude na África de língua portuguesa” (idem, ibidem). A despeito de um Craveirinha

ter andado por ali, anunciando seus os belos cabelos crespos da África em seu Xigubo

(1964), justificou o poeta que nas colônias portuguesas em África, a negritude não

aconteceu num “sentido muito intelectual” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 962),

como se viu em um Senghor e um Césaire (idem, ibidem).

De origem africana, o blues desembarcou na América no final do século XIX, ao

sul dos Estados Unidos. A história do ritmo a oeste do Atlântico nos leva ao encontro de

escravos nas plantações de algodão no Alabama, Mississipi, Louisiana e Geórgia, que

entoavam as worksongs a fim de embalar – e quiçá, atenuar – suas árduas e

intermináveis jornadas de trabalho. Os acordes vagarosos, a simplicidade de suas

poesias e seu aspecto popular tinham por finalidade descrever o estado de espírito da

população afro-americana: um modo de externalizar sofrimentos, angústias e tristezas.

Regresso ao continente de origem pelos versos de Patraquim, o blues aportou em

Moçambique na segunda metade da década de 1990. Deparou-se com um país já

esvaziado de sonhos, ajustado aos moldes capitalistas e submisso aos efeitos das

políticas neoliberais. Seu já característico tom melancólico teve porque ali permanecer.

Ecoado pela capital até alcançar a rua de Lidemburgo, o blues de Patraquim permitiu-se

temperar com memória e nostalgia.

Das nervuras – os “sulcos de poesia” (CASTELLO BRANCO; BRANDÃO,

1995, p. 15) que Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão admitem existir no

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estranho corpo da linguagem literária –, Patraquim parte em direção à ossatura do

poema: afinal, a cada livro, o olhar do poeta embrenha-se numa viagem poética cada

vez mais interiorizada. Após remontar seu subúrbio particular em 1992, a memória,

coadjuvante na obra do poeta desde 1980, a partir de Mariscando luas (1992), instalou-

se como hóspede definitiva na morada poética de Patraquim. Mnemosyne passou a atuar

como protagonista sobre o palco do lirismo patraquimiano e, uma vez investida de

agulha e linha, pespontou os poemas reunidos em seu quinto livro.

A obra se divide em dois movimentos. O primeiro empenha-se em impostar as

sete notas poéticas que compõem seu “Lidemburgo Blues” (PATRAQUIM, 1997, p.

11). O segundo, ao longo de 9 poemas, escava os estratos da memória em busca d‟“O

osso côncavo” (idem, ibidem, p. 25) de sua poesia: aquilo sobre o qual ainda é essencial

escrever. Se, por um lado, o blues, em suas origens, remete-nos a um cântico de

resistência, o osso, a parte mais durável de todo corpo, simboliza a permanência, a

firmeza, o imperecível. Nesse sentido, afirmamos que Lidemburgo blues (1997)

compreende um livro que se compôs entre a necessidade de resistir e permanecer.

A primeira parte da obra se abre pela voz de T. S. Eliot, à feição de epígrafe. Os

versos pinçados do renomado poema “Ash-Wednesday” (1930) e mantidos no idioma

original, asseveram: “This is the land which we / Shall divide by lot. And neither

division nor unity / Matters. This is the land. We have our inheritance.” (ELIOT. In:

PATRAQUIM, 1997, p. 9). A livre tradução a que nos arriscamos nos conduz a uma

terra a ser dividida em lotes, ainda que sua divisão e/ou unidade não mereçam

considerações. O foco lírico prefere mirar a terra em si mesma: a grande herança

coletiva.

A mensagem oferecida pela epígrafe antecipa o direcionamento do olhar poético

na primeira seção do livro: mais uma vez, a terra se transforma em substância subjetiva,

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embora de modo mais introspectivo do que nos livros anteriores. Consoante as

considerações da psicologia social,

por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a

mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os

mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se, com ela, nossas ideias,

nossos juízos de realidade e de valor (HALBWACHS. Apud: BOSI, E., 1979,

p. 17)

Nesse sentido, seduzido pelos encantos de Mnemosyne, o poeta reinventa sua

rua de Lidemburgo, lugar “onde a Ilha regressa por uma estrada de boieiros”

(PATRAQUIM, 1997, p. 13).

Para Chevalier e Gheerbrant, o olhar, como o mar, é bem capaz de refletir tanto

as profundezas, quanto o céu (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 653). Dotada

de uma força penetrante, a vidência lírica, interiorizada, atinge o débil esqueleto da

velha morada materna, de madeira e zinco: “casa de caniço escorando-se, frágil e tão

dúctil, / na osteoporose de uma coluna que chia, tchaia54

/ entre occipital e cóccix”

(PATRAQUIM, 1997, p. 13).

A malha da memória, puída por lapsos e lacunas de esquecimento, reveste o

poema com cenas dispersas, na medida em que o poeta percorre subjetivamente o

endereço natal. Eis o blues “das mínimas acontecências” (idem, ibidem) suburbanas,

captadas pelos sentidos e armazenadas pelos afetos:

um rumor – bloody river! –

e as rodas do grande trek

Via o nome, era belo do alto da goiabeira,

as matumanas55

em arco-íris

sob a mão, o erre estropiado da carripana

verde golfando a distância

e no lá longe – não disto que sangra –

o Amêjoée!... dolente, agora com um grito cego,

capitel de vento onde inscrever o silêncio.

[...]

O régio capuz do gala-gala azul,

a língua solerte sob a capulana, os gomos

da carne aberta, dadivosa flor frenética.

E o zunido das formigas aladas depois da chuva

54

Tchaia: bater, zurzir. 55

Matumanas: lagartas pequenas. Comestíveis.

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depondo um manto de seda morta, tão

espírito alto, efêmero.

(idem, ibidem, p. 13-4)

A função de Mnemosyne é tornar visível o invisível (CASTELLO BRANCO;

BRANDÃO, 1995, p. 142). Também constituída por moradas insólitas, a rua de

Lidemburgo, metonímia de Maputo, é guardada por uma dimensão imaterial da

paisagem, sobre a qual adverte o olhar lírico:

Cuidado, tu, que vês o espírito da Noite

e os albinos etéreos, esfumando-se

na copa agitada das mangueiras. Eles, os amaldiçoados,

guardam a cidade e esventram o Leopardo.

Dormem na língua da Cobra.

(PATRAQUIM, 1997, p.14)

Já que a memória pretende a presentificação (CASTELLO BRANCO;

BRANDÃO, 1995, p. 137), assíduo em seu primeiro blues é também – e sempre – a

morada materna. No compasso de Mário Quintana, aprendemos que “não importa que a

tenham demolido: a gente continua morando na casa em que nasceu” (QUINTANA,

1997, p. 121). Em consonância à percepção do poeta gaúcho, e certo de que a casa

consiste em um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças

e os sonhos do homem, conforme postulou Gaston Bachelard (BACHELARD, 2008, p.

23), Patraquim perverte a condição imóvel da casa de outrora, transformando-a na fiel

escudeira de suas andarilhanças:

Morada nómada! Contigo pelos caminhos da terra,

Templo irrigado de sangue, eu Te saúdo!

Quando a neblina veste os campos melancólicos

e a febre dardeja por sobre as casas,

eu vou adiante

ao encontro da impossível sombra.

(PATRAQUIM, 1997, p.14)

Nas pregas da memória estão representadas as sinuosidades de um percurso

intimista pautado pelo eixo presente-passado. No entanto, se “o interesse no passado

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está em esclarecer o presente” (LE GOFF, 1996, p. 13), o poeta procura desvelar o

agora, saltando muros imaginários para degustar os frutos da infância:

Um estômago de nêsperas é meu caminho,

rugoso como um rosto velho

pendendo da memória e salto o muro

e roubo, saboreio os frutos

na encanação aberta do asfalto.

(PATRAQUIM, 1997, p.14)

Empreender a recriação desses “passados presentes” a que se refere Andreas

Huyssen em Seduzidos pela memória (HUYSSEN, 2000, p. 9) compreende, segundo o

pesquisador, um fenômeno histórico e socialmente situado e compromissado a partir

dos anos de 1980, o que invalida interpretá-los como artimanha evasiva. Daí, “Quando

o barco se engolfa no sopro escuro / da Noite que há-de vir, / que já vem na cauda

furiosa da lagartixa apedrejada” (PATRAQUIM, 1997, p. 15), conforme prevê o poema,

é chegado o propício instante de “invoc[ar] as Ilhas do princípio, a Carne / do mundo

em redor das mãos.” (idem, ibidem) e “escrever a Casa de fogo, a Ave terrível, / a curva

da Sela, o voo em direção ao Nome” (idem, ibidem).

A casa de outrora, recorrente lugar de memória entoado por seus blues, inspira

também a dispersão. Rememora o segundo poema que “Quatro escorpiões selaram a

casa de meu pai / e eu fugi [...]” (ibidem, p. 16). Signo preenchido com conotações

maléficas em grande parte do continente africano, chamar um escorpião pelo nome

equivaleria a desencadear forças contra si mesmo, conforme elucidaram Chevalier e

Gheerbrant (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 383). Dotado de duas hastes

frontais e de um aguilhão pelo qual é inoculada sua peçonha, é o escorpião que adverte

em uma lenda malinesa: “os meus cornos chamam-se um, a violência; o outro, o ódio. O

estile da minha cauda chama-se buril de vingança. [...] a concepção que, para os outros,

é sinal de crescimento, para mim é sinal de morte próxima” (idem, ibidem). A casa

íntima, na rua de Lidemburgo – bem como a casa nacional moçambicana – está cerrada

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e sitiada pelos que se proclamam animais fatais àqueles que o tocarem. “Saudando a

diáspora” (PATRAQUIM, 1997, p. 16), o sujeito lírico distancia-se fisicamente da casa

natal, embora jamais a abandone em termos afetivos. Para Bachelard, “a casa é o nosso

canto de mundo, [...] nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”.

(BACHELARD, 2008, p. 22). E sendo a casa, “mais ainda do que a paisagem” (idem,

ibidem, p. 65), um “estado de alma” (idem, ibidem), a ela podemos conferir o status

simbólico de extensão do ser que a habita. Nesse sentido, inferimos que o poeta alarga

as dimensões da morada referencial, na medida em que dela se afasta. Será ele, o

indivíduo, uma espécie de metonímia personificada da casa paterna, assim “como o

camelo que se alimenta de espinhos / e vagueia e bebe e é ele o deserto / pela areia de

suas patas” (PATRAQUIM, 1997, p. 16).

E a rua, reformulada a partir de imagens íntimas, “é uma rosácea que explode

pelo báratro dentro” (idem, ibidem). Emerge insólita e metafórica, tal qual uma “rua

negra estriada de caminhos que se alam / a um centro ígneo onde primeiro depor as

mãos.” (idem, ibidem). A rua da infância: eis o lugar onde o olhar, instrumento maior de

revelação (CHEVALIER; GHEERBTANT, 2001, p. 653), se abre a vidências que

intentam desvelar as origens e problematizar o presente:

Vi a escolopendra dançando,

rasgando a carne do princípio, o arfar

da membrana tão sanguínea

e pura como um rio de nuvens inaugurais.

Mãe! Por que estou só à Porta do mundo,

luz branca ardendo-me os olhos?

Por que me deste olhos e uma neblina azul

para não ver nunca e cegar a própria luz [...]?

(PATRAQUIM, 1997, p. 17)

Em comunhão com o chão que o concebera, seu terceiro poema-blues enaltece a

rua como um organismo vivo. “Bicho da terra, coração animal, argila negra!” (idem,

ibidem, p. 18). Terra, coração e argila farão parte das substâncias líricas em que

fervilham as nostálgicas e melodiosas memórias de Lidemburgo.

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Lembremos de Bachelard ao declarar, em seu A poética do espaço (2008), que a

casa natal – e , porque não, também a rua natal, como extensão do lar primevo – está

fisicamente inscrita em nós. Para o filósofo, “ela é corpo e alma” (ibidem, p. 22) e,

portanto, equivale a um grupo de hábitos orgânicos (ibidem, p. 28). Assim,

personificadas e cordiais, “a rua dança e a Casa [intencionalmente grafada com letra

capitular] recebe-nos”, como recita o blues poético de Patraquim (PATRAQUIM, 1997,

p. 18).

Viajor em um percurso palingenésico, isto é, que pressupõe o cíclico – e eterno –

retorno, ou ainda „vagamundo‟ em um trajeto, cuja linha de chegada seja, sem talvez, o

ponto de partida, Patraquim remonta, a partir do logradouro de origem, sua

“circunviagem do vestido largo / por onde sobes e contigo Nós, orfindade / extática,

puro Espírito” (idem, ibidem, p. 18).

O circunviajante interpela a rua, “fenda ígnea” (idem, ibidem) no subúrbio de

Maputo: “como ver-te, [...]?” (idem, ibidem). Os olhos líricos sabem: já não são os

mesmos d‟antes. A vidência concedida pela palavra poética, filha do tempo adejado, é,

outrossim, passível de amadurecimento: “é quando uma criança sai para a rua / e cresce,

fulgurantemente maior do que a Casa, / suspensa da última janela, a mais alta, / perto da

boca.” (idem, ibidem).

Maturado também está o fruto de um olhar incidente sobre as tradições

moçambicanas: o quarto poema-blues retoma, pela quarta vez56

, o nyau. Embora

consista em uma máscara e uma dança-ritual típicas da província de Tete, desponta

também como tatuagem mnemômica sobre o corpo de sua rua: “Ele vinha de dizer os

56

Como vimos anteriormente, o nyau inspirou os poemas “Variação de Nyau”, em Monção

(PATRAQUM, 1980, p. 26), “Máscara de Nyau”, em A inadiável viagem (idem, 1985, p. 46) e “Segunda

variação de Nyau”, em Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (idem, 1991, p. 30). Em

Lidemburgo blues (idem, 1997, p. 19) nos deparamos com a mais introspectiva das leituras do nyau na

obra de Patraquim até 1997, o que corrobora a hipótese de nossa tese acerca da interiorização gradativa

do olhar do poeta.

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nomes e encontrou / a Máscara. Nyau tirribil57

, demorando o rio” (ibidem, p. 19). E os

versos assumem a ondulância de um ritmo comum ao nyau e às memórias históricas e

subjetivas.

Ele subia e vinha por um mapa esgarço

de iluminante pulsar, a escada

desde o ombro à última estrela, os

dedos de negra matéria tacteando

o abismo que não há.

(PATRAQUIM, 1997, p. 19)

O olhar lírico deixa-se contagiar pelo balanço de um corpo masculino58

simbolicamente paramentado como um animal, arrebatado pelas tradições, à maneira de

dança, ressignificando os movimentos ancestrais:

Oh, como Ele subia o desenho da Sela,

aqui indagando o tempo, ali um número,

e a Sela afagando-o, nu, uma

linha ao meio desde as nádegas, os

ossículos de centopéia nervosa até a nuca,

a haste varando o umbigo do mundo.

Então dobrava-se sobre o rosto implorando

a água, o vôo rasante da Ave,

os círculos da palavra,

mudos,

turvando o fundo e a máscara.

Jacente era o tropel e o tumulto,

a desordem equânime e as fúrias

penetrando-se, jacentes até à luz

e demorando o verbo, um sopro

de que agora se agarram os cabelos

e se não vê senão um vulto, oh,

por onde Ele era e com ele um deus

ajaezado para morrer.

(idem, ibidem)

Para além das memórias individuais, resguardadas pela presença da casa paterna,

e das memórias coletivas, ecoadas em Lidemburgo pela eloquente cadência do nyau, o

blues suburbano de Maputo não poderia esquivar-se da memória social. O

antipenúltimo poema conjuga lirismo e sociedade, ao sabor de Adorno. O sujeito lírico

ambiciona a rua como um puro e “magno Pórtico onde / neither division nor unity /

57

Tirribil: corruptela de “terribil”, “terrível”. 58

Rememoremos que o nyau consiste em uma dança praticada apenas por homens.

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Matters!” (idem, ibidem, p. 21), tal como a terra deixada de herança nos versos de “Ash-

Wednesday” (ELIOT. In: PATRAQUIM, 1997, p. 9), de T. S. Eliot, alinhavados à

maneira de epígrafe em Lidemburgo blues (1997). O quinto blues de Patraquim

apresenta por interlocutor um “mufana” (ibidem, p. 21), “rapaz pequeno”, segundo

elucida-nos o glossário da obra (ibidem, p. 48), a quem incita, rememora e adverte:

Tu, mufana que te atreves,

atira a pedra, rasga

a textura opaca de tanto sangue!

Fere a cicatriz e a dobra, tu

que desceste ao vale dos mortos e sugaste

o osso e encontraste o vazio, batendo-o

na viseira de deus, veste a pele

e não cegues o olho do Leopardo.

(ibidem, p. 21)

Grafado com maiúscula, o “Leopardo” (idem, ibidem), a que se volta a atenção

dos versos (animal esse que também faz referência ao título do longa-metragem que

teve Patraquim por co-roteirista, “O tempo dos Leopardos”, de 1985, ao qual já nos

referimos anteriormente), assume uma acepção simbólica que remonta ao inimigo e aos

adversários (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 544), em clara alusão à vigília

impiedosa do poder opressor, permanentemente à espreita e armado para o bote. Acerca

do felino traiçoeiro, acautela o poeta ao mufana que o substituirá na trajetória social

moçambicana:

Ele [o Leopardo] espreita os séculos, é quem

vagueia pelos dias e não dorme desde o crepúsculo,

o último que há-de vir

e por onde salta, alma voraz

intumescendo a árvore

(ibidem, p. 21)

Lidemburgo blues (1997) reúne poesias contextualizadas em uma década que

Moçambique pode novamente experimentar o sabor da esperança. Após o Acordo Geral

de Paz, em 1992, o país, que em 1989 havia aderido a determinados moldes capitalistas

neoliberais, insinuou algumas breves mudanças nos âmbitos político e econômico.

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Destacamos as primeiras eleições multipartidárias da história moçambicana, em 1994,

que vieram a confirmar o favoritismo da FRELIMO sobre a RENAMO59

e concretizava,

enfim, o sonho da democracia, e o renascimento da indústria nacional, a partir de 1995,

até a crise do setor de exportação, em 1999.

Em meio ao tímido despontar de esperanças quanto à reconstrução nacional, os

blues de Patraquim souberam combinar ao solfejo dos desejos o estribilho da prudência,

em relação aos tempos democráticos que se abriam ao país:

Que se não perca e por Ele se agache

a montanha onde subiu.

Ontem era o seu cajado a escandir o fogo

e o pânico das feras.

Que a montanha permaneça e se encurve,

ondulante, a seus ombros.

Porque tememos pela sua pose.

Ele, que de Antínoo a cabeça usurpou

e ergueu cidades e viu a última soçobrar,

sobe agora, cego e lívido,

e não quer dobrar-se mais sobre as mãos.

Porque tememos pela sua pose.

Que seja nosso o instante, o grão disperso

penetrando-se no vento, o fulvo estertor

do derradeiro gesto.

Porque tememos pela sua pose.

(idem, ibidem, p. 22)

O reconhecimento do legado linguístico de que Patraquim sabe-se herdeiro

compõe a sétima e última nota executada pelos blues de Lidemburgo. Depositada à

semelhança de estratos léxicos acumulados, àquela altura, ao longo de 44 anos de vida,

17 de carreira poética e 5 livros publicados, está a língua, adjetivada como

59

Em outubro de 1994, o então Presidente Joaquim Chissano permaneceu no cargo e a RENAMO aceitou

o resultado democrático das urnas moçambicanas, assumindo o papel de líder da oposição.

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“mpurukuma” (idem, ibidem, p. 23) – inteiriça, completa – “corpo quase” (idem,

ibidem), a sinalizar para “o que sou de sobrepostas vozes, / Bayete60

!” (idem, ibidem).

O voo da palavra, metaforizado em “pássaro da alma”, tal qual um “Mpipi

adejando / sobre o losango tulmutuante de cores”, risca o céu da poesia, “Templo onde

me cerco”.

As memórias da rua, lugar da “Língua, Mpurukuma quase” (ibidem, p. 24),

conclamam o tempo “quando a palavra surge, inteira, das águas / e os espíritos batem a

respiração do batuque” (ibidem, p. 23). E a paisagem urbana, composta também por

sinais linguísticos, aflora nos versos do último blues de Lidemburgo tal qual um

território poético – país da língua quase inteira – aberto a novos descobrimentos. Eis

“um reino por achar?” (idem, ibidem), questiona a poesia. Não apenas; conforme nos

ensinou até aqui o lirismo de Luis Carlos Patraquim, eis um reino por se reinventar:

Que sinais sobre que mar do exílio ou

som de algas lavado-te o rosto se inscreveram

em ti, mulher larga no Índico,

língua por dentro dos lábios cavando, obscuro,

um reino por achar?

(idem, ibidem)

3.3. Osteopoética

O segundo movimento de Lidemburgo blues (1997), intitulado “O osso

côncavo” (PATRAQUIM, 1997, p. 25), reafirma nossa tese de que a poesia de

Patraquim segue um fluxo internalizante, adentrando-se nas memórias, nas paisagens,

no corpo, dentre outros lugares líricos que, a cada livro, tornam-se mais subjetivos. A

partir dos 9 poemas-vértebras que compõem essa parte, podemos afirmar que o poeta

inaugura uma „osteopoética‟, deflagrando, em 1997, a progressiva interiorização de seu

olhar.

60

Bayete: saudação dos guerreiros ao rei, no idioma ronga.

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O osso compreende a parte mais interior do corpo. Símbolo de resistência e de

permanência, é a “vida materializada” e o “suporte do visível”, de acordo com as

leituras bordadas por Chevalier e Gheerbrant (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p.

666). No entanto, os trabalhos poéticos de Patraquim não se esmeram em ressignificar

os ossos. O qualificativo do título é claro: é o osso côncavo a substância lírica eleita

pelo poeta. A concavidade, forma cavada, oca e, portanto, dotada de profundeza,

permite uma aproximação metafórica do simbolismo da caverna: residência da morte,

do passado, do inconsciente e do interior. (ibidem, p. 650), ideia, aliás, presente nos

versos de “O Morto”, de Grabato Dias, cuja voz se ouve como epígrafe desta segunda

parte de Lidemburgo blues (1997): “Nascemos nos limites do reino da morte / com suas

pompas, sua hierarquia, seus hábitos” (GRABATO DIAS. In: PATRAQUIM,1997, p.

27).

Em simbiose com o formato convexo, o côncavo sintetiza a condição de

receptáculo, porque passível de complementaridade (idem, ibidem). Em contrapartida,

um osso apenas côncavo é inconcluso, não se estrutura, não se firma. Ao intitular “O

osso côncavo” (PATRAQUIM, 1997, p. 25), Patraquim expõe não a fratura, mas a

fragilidade do esqueleto social moçambicano, cambaleante, em permanente procura de

seu convexo. Eis um país – e um povo – cuja história resume-se a “subir a escada

lépida, [a despeito de haver] dois vãos de eternidade / às escuras” (ibidem, p. 29). A

resistência do osso está em ter de testemunhar “A morte [que, à espreita,] é ao alto /

suspensa [que é] a casa / e o grão [que] para sempre / do teu rosto / [permanece]

ungulado com a terra” (idem, ibidem).

Não apenas de medula crítica é composta a côncava poesia. Uma das vértebras

de sua osteopoética é a memória da presença materna, mote do segundo poema, imagem

intimista, permanente e passível de ser preenchida (neste caso, com significações

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afetivas), tal qual um osso côncavo. Recriando-o em jeito de reconfortante paisagem, o

poeta parece redesenhar o rosto da mãe, assinalando-o pela:

sombra dos teus olhos,

a testa clara, a linha que vai

das sobrancelhas à cartilagem

marfim, estática,

e onde nenhum vento já irriga

o tumultuar do sangue, o rio

aberto em teus lábios;

a sombra dos teus olhos,

amêndoas perfiladas,

e o sorriso, colcha

rendilhada afagando o Tempo;

a sombra dos teus olhos,

Mãe,

no retrato.

(PATRAQUIM, 1997, p. 30)

O exercício lírico, arqueopoético, escava as memórias em busca de

anterioridades. Ao fazê-lo, depara-se com uma imagem feminina que “dorme sobre as

crateras do Verão” (ibidem, p. 31) e “eflúvia, regurgita a primeira Carne / anterior e a

Mão anterior” (idem, ibidem). A mulher em foco pelas retinas da subjetividade – um

“ela” que poderia representar a amada, a mãe, a paisagem moçambicana ou um misto

entre todas as instâncias fêmeas recorrentes na poesia de Patraquim –, pinçada pelo viés

da afetividade, “afaga o dorso de deus” (idem, ibidem). O poeta reafirma a importância

do lugar reservado ao elemento feminino em sua poesia: em seus versos, a mulher

jamais representou a criatura, aquela que foi moldada a partir de uma costela masculina,

mas antes a criadora, senhora da “mão / que desenha a curva de um pensamento, / o

osso côncavo como um Arco / de linfa arborescendo a Noite” (idem, ibidem) e da “mão

que incendeia a desolada paisagem / e senta-se sobre a carne, a primeira / noite Anterior

[que] / regurgita o sangue gelado de Deus” (idem, ibidem).

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O côncavo, formato incompleto em si mesmo, permanece em constante estado

de espera: sua completude depende de um encontro com o convexo. Nesse sentido, os

poemas de Patraquim, ossos côncavos em permanente busca por convexos intertextuais,

necessitam completar-se, mais uma vez, com textos outros, que em forma de diálogos e

homenagens, desde Monção (1980), ajudam a sustentar o esqueleto poético de sua obra.

A arte do “que se escultura vivo” (PATRAQUIM, 1997, p. 32), ofício do amigo

e escultor moçambicano Joaquim Alberto Chissano, inspirou o poema “Objecto último

vivo”. Aberto novamente o verso à possibilidade de um diálogo interestético, o lirismo

patraquimiano canta “o que iluminado ascende / à solidão das raízes / e se degola”

(idem, ibidem) sob a forma de um “Ngingiritane61

outra vez à solta” (idem, ibidem),

“último objecto, / carne elegíaca, / transepto.” (idem, ibidem).

No encalço de uma osteopoética, Patraquim reencontra Rui Nogar, “meu velho

fabro /do português mufana62

” (ibidem, p. 33), poeta e amigo com quem estabelece

interlocução pelos versos de “Nogar, um Rui” (idem, ibidem). À epiderme da memória,

afloram cenas não de Nogar, o bardo, mas de “um Rui”, o moçambicano por detrás do

representativo poeta, como, aliás, sugere o título do poema:

Tu, vadio de estar lá,

essa Hélicon do Xipamanine63

todo domingo no Espada64

e os olhos dela, inteiros,

a vaginarem o poema.

(ibidem, p. 33)

Em homenagem póstuma ao poeta conterrâneo, Patraquim estabelece em sua

composição uma relação intertextual explícita com o poema “Xicuembo”

61

Njinjiritane: ave comum em histórias tradicionais moçambicanas. 62

Mufana: menino. 63

Xipamanine: bairro popular de Maputo. O termo serve também de metonínima a um tipo de comércio

equivalente a um grande mercado popular. 64

“Espada”: recinto de festa situado em Xipamanine, bairro de Maputo. Lugar “onde os „moleques‟ das

senhoras da cidade de cimento se reuniam aos domingos à tarde para dançar, por vezes numa bebedeira

[...] que era o exorcismo da sua própria condição (Glossário. In: Patraquim, 1997, p. 47).

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(NOGAR,1982, s/p), de Rui Nogar, escrito em 1958, porém apenas publicado na década

de 1980, na obra Silêncio escancarado (idem, ibidem). Relembremos, primeiramente, os

versos-fonte, para, em seguida, compreendermos o diálogo recriado em “O osso

côncavo” (PATRAQUIM, 1997, p. 25):

XICUEMBO65

Eu bebeu suruma66

dos teus ólho Ana Maria

eu bebeu suruma

e ficou mesmo maluco

agora eu quero dormir quer comer

mas não pode mais dormir

não pode mais comer

suruma dos teus olhos Ana Maria

matou sossego no meu coração

oh matou sossego no meu coração

eu bebeu suruma oh suruma suruma

dos teus ólho Ana Maria

com meu todo vontade

com meu todo coração

e agora Ana Maria minhamor

eu não pode mais viver

eu não pode mais saber

que meu Ana Maria minhamor

é mulher de todo gente

é mulher de todo gente

todo gente todo gente

menos meu minhamor.

(NOGAR, 1982, s/p)

Notemos que Patraquim preocupa-se também em reinventar uma das marcas da

poesia de Rui Nogar: a reconstrução de “uma gramática poética pessoal” (FERREIRA,

1977, p. 80), que se fundamenta na fala dos subúrbios lourenço-marquinos.

NOGAR, UM RUI

[...]

Suruma „cabou

foi num dia Onze67

, assim

65

“Xicuembo”: feitiço; espírito da tradição religiosa moçambicana. 66

Suruma: cannabis, maconha. 67

Rui Nogar faleceu em Lisboa, aos onze dias de março de 1993.

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como as „Nove Hora‟68

,

o lume lento, sílaba

a sílaba da respiração,

punhando um escuro

nas vogais fechadas,

intransitando a cidade

„pubescendo ainda‟.

E agora já ninguém sabe beber

e dos seus ólho cantar

Ana Maria nosso amor,

molwene69

em língua

de subúrbio, como tu,

velho Rui.

(PATRAQUIM, 1997, p. 33-4)

Em Lidemburgo blues (1997), os versos também promovem reencontros do

poeta consigo mesmo, “uma criança maninguemente70

aberta, / fruto na monção de

Março, [que] disse: amadurece lá fora, sopra no meu voo / para ninguém cair”

(PATRAQUIM, 1997, p. 36).

Grabato Dias compreende outro convexo intertextual em permanente encontro

com a côncava ossatura poética de Patraquim: sem dúvida, consiste em um dos nomes a

integrar a rede fundadora de correspondências observada por Ana Mafalda Leite, em

que o poeta reverencia seus precursores no espaço literário moçambicano (LEITE,

2003, p. 128). João Pedro Grabato Dias, heterônimo moçambicano do poeta e pintor

português António Quadros, estabeleceu-se, de 1964 a 1984, em Moçambique, onde

revelou-se como poeta, publicou seus cinco primeiros livros e criou seus três

heterônimos. É reconhecido pelo lirismo de Patraquim já pela epígrafe do poema a ele

dedicado: “Vemos só o que vemos sabendo que há mais / Do outro lado do aquilo [...]”

(GRABATO DIAS. In: PATRAQUIM, 1997, p. 37), versos que, aliás, sintetizam os

desdobramentos líricos de Grabato. Sabe Patraquim quão multifacetado é o poeta “que

68

“Nove Hora”: título de um poema narrativo de Nogar, dramatizado pelo Grupo Mutumbela Gogo, em

um espectáculo estreado em 27 de março de 1989, no Teatro Avenida, em Maputo. 69

Molwene: “criança desamparada, sem abrigo, que vagueia pela cidade” (Glossário. In: PATRAQUIM,

1997, p. 48). 70

Maninguemente: neologismo. Advérbio de modo derivado do termo „maningue‟, que opera

gramaticalmente como advérbio de intensidade („muito‟).

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arado adunco [nos mostraste em obra, / visto que o autor é o seu próprio processo”

(PATRAQUIM, 1997, p. 37).

O poema, intitulado "Frei Mutimáti Grabato João" (ibidem, p. 37), alude ao

controverso (pseudo) autor criado por Grabato, Mutimáti Barnabé João, um suposto

guerrilheiro moçambicano morto em combate, a quem compete a autoria do livro Eu, o

povo, em 1975. Embora Grabato não tenha assumido inicialmente a invenção do

referido heterônimo, em 1991 publica “O Povo é nós”. “[...] claramente visto o Povo, /

lá vai Frei João, o Mutimáti, / ao grabato da Alma” (PATRAQUIM, 1997, p. 37),

anuncia Patraquim. Outras obras são, em tempo, memoradas pelo poema-homenagem

de Patraquim: 40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada

(GRABATO DIAS, 1970) – “[...] e Ele sacoleja o tinthlohlo71

/ como uma Canção

Desesperada” (PATRAQUIM, 1997, p. 38) –; A Arca – Ode didáctica na primeira

pessoa (GRABATO DIAS, 1971) e Quybyrycas (idem, 1991):

p‟lo caminho de Santiago72

com a Rosa na Arca

e a sapata grossa ecoando, cavernosa,

umas quybyrycas de Barcelos,

lá vai Mutimáti mai-lo cachimbo

de chicaocao73

e canho adornado ogres,

floresta obscura, parva savana nítida.

(PATRAQUIM, 1997, p. 37-8)

Para além de seguir “[...]desenhando o vário Mundo, branco estertor / que da tela

golfa” (ibidem, p. 38), a seara musical também foi galgada pelo poeta de poetas,

António-João, o luso-moçambicano. Em 1992, “Senhorecos”, poema de Grabato, foi

musicado por Amélia Muge, cantora moçambicana radicada em Portugal. A composição

integrou o primeiro álbum solo da instrumentista, “Múgica” (UPAV, 1992), e é

também referida nos versos que evocam a presença de “Frei Mutimáti Grabato João”

71

Tinthlohlo: ossículos e conchas jogados em práticas ritualísticas de adivinhação. 72

Patraquim não se refere ao caminho de Santiago de Compostela, mas antes a Santiago de Besteiros,

freguesia da cidade de Tondela, no distrito português de Viseu, onde nasceu António Quadros / Grabato

Dias. 73

Chicaocao: folhas de tabaco trançado.

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(PATRAQUIM, 1997, p. 37): “Amélia, / múgica guitarra onde sob os cabelos, a voz

[...]” (idem, ibidem).

Para Patraquim, enquanto houver a inspiração de Grabato, sempre "Haverá odes

de haverás" (idem, ibidem, p. 38): com o legado lírico do Mutimáti aprendeu "que há

mais do outro lado / do aquilo onde agora estás" (idem, ibidem).

Para além de sua inegável força pictórica, a poesia de Patraquim é também

dotada por potências musicais. Em consonância aos ecos originais do blues e às notas

que ainda ressoam de Robeson e Marian, são também audíveis em “O osso côncavo”

(PATRAQUIM, 1997, p. 25) os corais das igrejas protestantes que ainda habitam suas

memórias (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 961), dessa vez pela voz de Mahalia

Jackson, uma das principais cantoras gospel americanas, fruto dos spirituals de

Louisiana, Nova Orleans.

Retomada como um dos pilares vertebrais do esqueleto lírico patraquimiano,

Mahalia imortalizou-se por cantar na posse de John Kennedy, em 1961, e, em 1963, por

ocasião do famoso discurso pelos direitos civis entoado por Martin Luther King Jr.. Foi

retomada pelo poeta moçambicano nos versos de “Walk over God’s heaven”

(PATRAQUIM, 1997, p. 39), penúltimo poema de Lidemburgo blues, homonímico a

uma das conhecidas composições interpretadas pela cantora afro-americana. Os versos,

que aderem, propositalmente, à entonação de louvor típica das canções gospel,

enaltecem não um Lord supremo, mas antes a sublime e inesquecível voz da diva negra,

cujo timbre marcante desestabiliza “a quietude de deus” (idem, ibidem):

Ela canta a sumptuosa luz

por um dia múltiplo,

a manhã entreaberta dos lábios,

gerundiva, como uma pose

engolida.

É o canto da terra, um

pictograma extático, habitado

por um rio de dentro, a voz

que indaga as colinas, uma

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escada até ao desmundo

de já não vislumbrarmos as praias

delicadas e o seu silêncio.

Walk Over God’s Heaven

e não mais o bojo escuro de quando

acenamos à última árvore,

vibrato frenético das raízes

salgando-se de exílio.

Ela canta a voz e a perdida luz dita,

Mahalia ensombrando a quietude de deus,

não devíamos dizer o teu nome,

até ao mistério da nossa morte, ontem

e para sempre,

Amém.

(PATRAQUIM, 1997, p. 39-40)

Ao alcançarmos a derradeira vértebra da osteopoética patraquimiana, nos

deparamos com uma fissura. O último poema do livro de 1997, um soneto, provoca-nos

estranhamento já pelo título, ao negar a própria forma que apresenta: “Des-soneto”

(ibidem, p. 41). Embora estruturado sob o molde de uma dupla de quartetos e outra de

tercetos, o que não nos deixa dúvidas quanto à forma fixa adotada, Patraquim desvela

seus versos, intitulando-os como um „não-soneto‟. Nesse sentido, Patraquim profanou,

mais uma vez, no sentido agambeniano de profanação, a poesia: ao inserir no título o

prefixo „des-‟, dessacralizou a tradicional forma poética, usufruindo-a.

Ao recorrermos à etimologia do termo aqui elevado à contradição, nos

deparamos com a origem italiana da palavra – [sonetto] – adaptada do provençal

[sonet], que designava, em francês antigo, „pequena canção‟ ou, literalmente, „pequeno

som‟. Ao nomear um soneto como “Des-soneto” (PATRAQUIM, 1997, p. 41), o poeta

não pretende negar a forma, evidente e inegável por sobre a folha de papel. Antes,

Patraquim anuncia a possibilidade da dissonância em sua composição. Ouçamos sua

voz „dessoneteante‟:

DES-SONETO

De mim a morte há-de apartar-se

por tais modos de tão zelosa

que, o em vê-la, magoada, ofertar-se

a outrem ignaro dela, pressurosa,

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ou em oiro, leite e carne numerosa,

por lívido pórtico esporrinhar-se

no umbigo das Parcas e de Vénus, deleitosa,

abocanhar as partes onde escorar-se,

lhe serei, eterno e azougado, o cão

em uma corola de pentelhos uivando

a areia fina, o perdulário tesão

de pensá-la mistério único durando

mais que o grito, o medo, a ovação,

de quem nela se vai transfigurando.

(idem, ibidem)

Embora a composição apresente por mote a presença da morte, eis um

(des)soneto que, não gratuitamente, desfecha o conjunto de seus poemas-ossos

côncavos, falando-nos, sobretudo, a respeito da permanência. Devido a seu caráter de

profundeza, a forma côncava simboliza, outrossim, “a residência da morte”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 650), do passado, do inconsciente, do

interior. A osteopoética de Patraquim, côncava por natureza, cerra Lidemburgo blues

(1997), reavendo aquela que, assim como os ossos, é o que dura; o que permanece para

além da efêmera existência: a morte, o “mistério único durando” (ibidem, p. 41) mais do

que “quem nela se vai transfigurando” (idem, ibidem).

Alcançamos o final de Lidemburgo blues (1997) certos de que esse livro buscou

consolidar o reencontro do poeta com o seu passado, com a Maputo de outrora, numa

espécie de continuidade à palingenesia iniciada em Mariscando luas (1992). Todavia,

em 1997, o olhar lírico acrescentou outras cores para além do azul no subúrbio de

Patraquim. Optou por centrar-se na rua natal e em todas as memórias que lá ainda

habitam: a casa, a infância, as músicas, os nomes, os livros, a mãe, a amada e um pouco

de saudade de tudo o que ficou na rua de Lidemburgo. Seus poemas retomam memórias

que duram, que permanecem e que servem de estrutura, tais como os ossos que viraram

símbolo da segunda fase de sua obra.

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3.4. Outros ossos

Com a publicação de Lidemburgo blues, em 1997, Patraquim alcançara a marca

de cinco livros de poemas, em dezessete anos de carreira literária. Notáveis intervalos

entre os lançamentos de suas obras compreendem, aliás, um dos cunhos de sua

produção. Sem desconsiderar alguns entraves relativos a condições editoriais para que

livros de poesia africana sejam trazidos a público, observemos o ritmo com que

Patraquim publicara suas obras: foram cinco anos decorridos entre o lançamento de

Monção (1980) e o de A inadiável viagem (1985); seis anos para a publicação de Vinte e

tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991); apenas um ano para Mariscando

luas (1992), excepcionalmente; e outros cinco para que viesse a lume Lidemburgo blues

(1997). O poeta mostra-se plenamente ciente em relação a este espaçamento entrelivros.

Em entrevista concedida em 1999, Patraquim declarou:

Digo que sou um poeta bissexto, no sentido em que falava Manuel Bandeira.

Publiquei cinco livros de poesia em vinte e poucos anos de profissão, o que é

muito pouco, diga-se de passagem. Se posso caracterizar alguma coisa

daquilo que faço é a procura permanente de um obstinado rigor e, portanto,

não me interessa e nem caio na pressão de publicar, porque penso que mais

do que os livros, em poesia o que interessa são os poemas [...]

(PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 3)

Entre os anos de 1997 e 2004, Patraquim ausentara-se, mais uma vez, da cena

literária moçambicana. Nos sete anos em que se manteve apartado de novas

contribuições líricas, „vagamundeou‟ pelos roteiros teatrais e cinematográficos, além de

permanecer em exercício na seara jornalística. Nesse ínterim, escreveu para os palcos

lisboetas as peças Karingana wa Karingana (2000); Vim te buscar (2002); Tremores

íntimos anônimos (2003), em parceria com António Cabrita, e No estaleiro geral

(2004). Na sétima arte, ergueu pontes entre o cinema moçambicano e o português ao co-

roteirizar A tempestade da terra, de Fernando D‟Almeida e Silva (Cinemate,

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Maputo/Lisboa, 1998) e ao colaborar em O gotejar da luz, de Fernando Vendrell

(Cinemate, Maputo/Lisboa, 2001).

Inclinado ao jornalismo, sua raiz profissional, figurou em diversos veículos de

comunicação impressos de Portugal, como o JL – Jornal de Letras, de Lisboa; a Revista

Colóquio/Letras, Revista África, A Razão, Diário de Lisboa, Jornal Expresso, Jornal

Público, África-Jornal e Africa Lusófona. Coordenou (e atuou como redator de) a

revista Cadernos de Design, além de também ter sido comentarista na imprensa

radiofônica, em emissoras como a BBC, a Rádio France Internacional, a RDP e a RDP-

África.

Ao findar o maior dos intervalos entre-livros já experimentados pelo poeta, no

ano de 2004 um novo livro veio a público pelo Editorial Caminho, sob uma tiragem de

800 exemplares: O osso côncavo e outros poemas. O título, em menção direta aos

poemas da segunda parte de Lidemburgo blues (1997), não veio sozinho. A nova obra –

sexto livro do poeta – consistiu em uma antologia que reunia poemas selecionados

desde sua estreia lírica, em 1980. De volta ao palco poético após sete anos, Patraquim

revisitou seu público, na medida em que revisitava também sua escrita lírica,

reencenando sua própria poesia. Assim, a perene concavidade de seus versos buscava

seus pares convexos em seus poemas anteriores.

Vertebrada em sete seções, a obra orienta-se cronologicamente de acordo com a

divisão por livros – “Monção” (PATRAQUIM, 2004, p. 11); “A inadiável viagem”

(ibidem, p. 41); “Novas formulações” (ibidem, p. 71); “Os barcos elementares” (ibidem,

p. 93); “Lidemburgo blues” (ibidem, p. 107); “O osso côncavo” (ibidem, p. 121) –,

destacando-se dessa sequência apenas a derradeira parte da antologia: “Três elegias”

(ibidem, p. 165).

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O livro apresenta ainda vinte composições inéditas: são dezenove poemas –

compilados todos em “O osso côncavo” (ibidem, p. 121) e uma elegia.

Já no primeiro poema inédito, indagações acerca da escrita lírica que, enfim,

Patraquim voltava a reencontrar: “Como deixar-te, vestíbulo negro / iluminado pelo

sangue da memória, / [...] / onde cada letra é rosto volvendo-se / a meu sopro? // Como

deixar-te, livro suspenso do fogo, / desenho inflado no tempo por um nome que nasce /

e me convoca [...]?” (idem, ibidem).

Dessa vez, diferentemente de seus percursos poéticos anteriores, Patraquim

ensaia um canto “como se engolisse a densidade / fragmentária do abismo E / sob os

escombros aplanasse / a rugosidade da Palavra” (ibidem, p. 122).

A concavidade de seus novos ossos poéticos, antes observada sob o prisma de

outras acepções simbólicas, eclode, em 2004, como habitat maior do inconsciente.

Àquela altura, ao captar as “moradas” (ibidem, p. 123) da paisagem, conforme sugere o

título de um dos poemas, o sujeito lírico, já se reconhecia como “alguém que olha a

ausência / e o mais íntimo sinal, sedosa estrela, / uma quase poeira, a viandante terra /

nómada (idem, ibidem). “Entre silêncio e nada” (idem, ibidem), “antes preso a um

dentro / que se perdeu” (ibidem, p. 158), os poemas inéditos de O osso côncavo e outros

poemas (2004) servem de arauto para a terceira e mais interiorizada fase poética de

Patraquim, consolidada a partir da publicação de seu próximo livro, Pneuma (2008).

Outros poemas sugerem outras viagens poéticas: dentre os espaços inéditos em

sua fortuna lírica, destacamos a Islândia, mote do poema “Islândia – uma variação

insular” (ibidem, p. 130) e o Egito, paisagem poética de “Elegia do Nilo” (ibidem, p.

171).

Em meio a tão diversificados passeios, a poesia de Patraquim empreende um

retorno a Portugal, dessa vez revisitando Lisboa através de uma ótica bem subjetiva:

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pelo “derradeiro esforço das abóbadas, / dos arcos, uma ferrugem de pedra – a maresia”

(ibidem, p. 127). Na histórica e “Branca Lisabona emborcada a copo de três” (idem,

ibidem), cidade que o recebera em 1986 e que serve de mote ao poema “Lisabona”

(idem, ibidem), Patraquim vê-se arrebatado “de supetão [por] essa língua, como se a não

habitasse, / Descarnando-a no silêncio pendular das estátuas” (idem, ibidem). Pelas ruas

da capital da ex-metrópole que, em comum, compartilhava com o poeta cabo-verdiano

Arménio Vieira (a quem o poema é dedicado), no avesso dos roteiros turísticos, o poeta

retoma os caminhos “lá para as bandas do Largo, no Sodré” (idem, ibidem), revê “a

luminosidade atlântica” (idem, ibidem) e interroga a cidade, “este empedrado antigo”

(ibidem, p. 128), “puta histórica, virtuosíssima” (idem, ibidem), pervertendo o processo

de colonização:

Ó estapafúrdio de poses e recolhimento sacral, o linho

Já te amortalhando o hálito; em verdade onde se escondiam

As tágides se eram do Zambeze as almadias e o grasnar das aves?

[...]

Em verdade, ó estuário largo, tu é que és a ultramarina enseada

Onde deságuam os imbondeiros.

[...]

Ó camoniano fado, em verdade rasga-me esses versos por aí, tenórios,

e leva-nos, co‟as pragas e a massinguita das Ethiópias perdidas,

Ao mal-cozinhado, ao tempero finíssimo de oitavas e tercetos,

À traição de Calabar, às areias onde se nasce,

Vulcânico; em verdade, Lisabona de Luanda e Maputo,

E os nomes da Guiné, a algaraviada crioulando-te os frisos

de gurupés e ouro preto;

E limpa-me esse branco, tão sujo, ó ultramarina cidade,

Lisboa alvoroçada!

(ibidem, p. 129)

Percorrendo íntimos itinerários em seus passeios poéticos por Lisboa, Patraquim

revê António Quadros/Grabato Dias – presente na dedicatória do poema e como

interlocutor nas memórias do poeta – no tradicional ponto de encontro lisboeta,

mencionado no título da composição: “Café Martinho-Arcada” (ibidem, p. 137).

O Café Restaurante Martinho do Arcada, sito à rua do Comércio da capital

lusitana, compreende o recinto mais antigo da cidade em seu ramo, ainda em atividade.

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Sua história apresenta pontos de intersecção com as artes e as letras portuguesas devido

a alguns de seus ilustres frequentadores, como Bocage, Cesário, Almada Negreiros e

Pessoa. Figurando ao lado da histórica clientela do café, flagramos Patraquim e Grabato

entre poemas e refeições: “Limpa vai a tarde de sonetos, / Desgrenhados pintelhudos

faunos, / Coxas de rã – loiríssimas! – / A boiar no prato.” (idem, ibidem). Em meio às

vestes da história portuguesa, para a qual o “Café Martinho-Arcada” (idem, ibidem)

serve de metonímia, Patraquim enfatiza o tecido que nunca deixará de revestir sua pele,

seus afetos e sua consciência:

Melhor a emenda, António,

Que, dos versos únicos

Para o livro como um vestido rasgado

Da puta mais terna lá do Chamanculo74

,

Sobra-nos o cós de que nos vestimos,

– um vestido d‟África, poeta! – (ibidem, p. 137)

Em busca de caminhos subjetivos, interiores, Patraquim redescobre em O osso

côncavo e outros poemas (2004) suas raízes algarvias, traduzindo-as em versos nos

poemas “Verão algarvio” (ibidem, p. 140) e “Na estação de Tavira” (ibidem, p. 141). No

embalo de lembranças evocadas pelos verões no Algarve, o poeta retoma o fio de

histórias “sobre deus e a Mãe” (ibidem, p. 140): “Era sobre Ela que a palavra dormia / E

deus, em desespero, flagelando-nos / De insônia” (idem, ibidem). Na estação, em Tavira

(ibidem, p. 141), ainda ressoa o “sotaque algarvio” (idem, ibidem) e vivas ainda são a

“banalidade seca do bar da estação” (idem, ibidem) e “a imagem do Álvaro que

passava” (idem, ibidem):

Com o sangue nas axilas e um pé boto,

Lá seguia ele sem geometria,

Bandoneonando-se sobre as pedras,

Debruadamente roto

Nessa coisa antiga a que chamam Alma –

A personagem de um filme é o que

Isso me lembra – [...]

(idem, ibidem)

74

Chamanculo: distrito de Maputo.

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Quase cinematográficas são as cenas mnemônicas que se esvaem “ao apito sem

vírgula, do train, / Pela curva da linha, já com o ticket coagulando-me / a aorta,

[quando] embarquei para Lissabon, desencontro / Mais do que provável neste poema.”

(idem, ibidem).

Embora viandante por Portugal, o poeta clama: “Caminho do longínquo sul, /

Não o abandones” (ibidem, p. 159). Sem nunca olvidar as paisagens natais, em O osso

côncavo e outros poemas (2004) Patraquim recria roteiros paisagísticos moçambicanos

ainda inéditos em sua poesia, como a “Praia do Tofo75

” (ibidem, p. 143), evocada à

feição de paisagem-musa, lugar de /para inspiração:

Adornada de limos e seixos e de pedrinhas,

As mil capulanas soltas ao vento,

Da inteira absorta beleza de seus peixes,

Ó desnuda sobre as areias,

Marília do longo mar e das viagens,

À tua praia chegada!

(idem, ibidem)

A Ilha de Moçambique, paisagem presente ao longo da obra de Patraquim e

mote primordial de “Os barcos elementares” (PATRAQUIM, 1991, p. 39), volta ao

palco poético patraquimiano, em 2004. No entanto, embora compreenda uma paisagem

cara à sua poesia, o olhar lírico a captá-la já não é mais o mesmo de outrora. Assim,

Patraquim revisita uma “Outra mesma ilha” (ibidem, p. 144).

Nos versos dedicados a Eduardo White e Mia Couto, Patraquim empreende uma

releitura da história da Ilha de Moçambique, remontando, dessa vez, a uma paisagem

islena labiríntica, porque essencialmente talhada em suas memórias. Eis a mesma Ilha,

outrora revisitada por Rui Knopfli, José Craveirinha, Jorge de Sena e Luís de Camões,

porém agora outra, dessacralizada, captada por uma ótica metonímica a saber que

75

Praia do Tofo: pequena cidade moçambicana situada na península da Província de Inhambane, a

sudoeste do país. Banhada por águas índicas, consiste em um dos principais destinos turísticos de

Moçambique.

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Era em ti que o nome dormia e te inventaram

Pé ante-verso chegados pelo chuá nocturno das palmeiras

e a tesão do beijão demoníaco;

E pela máscara, mais do que a pachacha, ó Rui,

anti-lírico envergonhado, agitando, ao de leve

a terra desolada on the rocks;

Era pelo som e a lívida melancolia esparramada

Em séculos de foda, o corpo deitado e o incansável mar

Amante sempre erecto, lambendo-o, ao cunus dadivoso

Por uma aguada de viajante e putanheiro; impaludados de livros

E da poeira do continente; as tribos que já nos sobravam

Da pele e nós nhocas sem escamas e incolores;

Ou não era, Jorge, pelo Luís Zarolho, e que cena a tua

A imaginá-lo cagando-se sobre as rochas, de costas para

A fortaleza tão de nome santo e sofrido?

E pelo Zé, com a palavra macúti76

a entrelaçar farfalhantes

Mini-saias para as tombazanas77

do bairro, lá mais abaixo

Onde um centro pulsante e húmido era a entrada

Para o labirinto da Ilha;

Era por ele, esse próspero Caliban a assenhorear-se do seu reino

E a abrir-lhe as pernas até ao coiso, sem a liturgia dos poetas

[...]

E por Muaziza, a secreta, com seu sangue lustral

Ainda regando de sinais o canto onde o silêncio começa

E uma lua, cíclica inútil, eriça a púbis do teu delírio, Eduardo,

Quando se contorcem as radículas das palmeiras

E um sura de séculos entontece o perfil leproso das casas?

Ou não era por ti, Muípiti, e pelo outro nome,

Que nem é preciso dizer e trazemos nos bolsos

Como um templo incendiado?

(idem, ibidem)

Fig. 12: Casas de macuti da Ilha de Moçambique.

A pulsão erótica, marca da lírica patraquimiana desde 1980, não se eximiu do

esqueleto poético de que são partícipes os ossos côncavos. Nos versos de “Natureza

viva” (ibidem, p. 136), poema que subverte o conceito de natureza-morta, gênero

76

Macuti: tiras de folhas de coqueiro espalmadas que servem para revestir as casas em áreas populares. 77

Tombazanas: mulheres virgens.

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pictórico pautado por seres inanimados, o poeta excita os votos de “Que o figo se

avermelhe a teu desejo, / [tornando-se] ovo granular, constelação”. Entretanto, notemos

que a essa altura de sua maturação poética, o erotismo transfigura-se em potência

interna, adentrada, à medida que sua poesia passa a privilegiar imagens interiores, como

a do figo. Patraquim privilegia a fertilidade do fruto “e a polpa verde-escura, / Túmido

impulso ou queda arborizando-se / [e que] Dentro dos ossos, te envolva, / Como

estirada jaz a pele da infância” (idem, ibidem).

Em O osso côncavo e outros poemas (2004), sua rede de correspondências

intertextuais de cunho fundador (LEITE, 2003, p. 128) já não se restringe às fronteiras

de Moçambique: Patraquim estende sua trama intertextual a nomes comparsas de seu

continente, como o luso-moçambicano António Quadros / João Pedro Grabato Dias, o

cabo-verdiano Arménio Vieira e o angolano David Mestre, presentes à feição de

dedicatórias e motes poéticos.

Semelhante alargamento dialógico averiguamos no tocante à rede de

correspondências integradora (idem, ibidem), a mais universal da obra patraquimiana,

desde 1980. Dilatam-se as referências culturais do poeta em 2004. Patraquim convoca

nomes das mais diversificadas épocas e nacionalidades para participarem de sua poesia,

como Gottfried Benn, Willian Blake, Sylvia Plath, Henri Junod e Matsuo Bashô.

Dentre todas as composições inéditas do sexto livro, o poema “O osso côncavo”

(ibidem, p. 160) – não gratuitamente homônimo à obra –, situado ao desfecho, aponta

para uma transição de fases poéticas na obra de Patraquim. Os versos foram dedicados a

Ivone Ralha, historiadora moçambicana e amiga pessoal do poeta, cuja grafite, velha

conhecida de livros anteriores do autor, desde Monção (1980), também assina a autoria

da sugestiva ilustração da capa de O osso côncavo e outros poemas (2004).

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Segundo observou a Dra. Elisabeth Gonzaga de Lima, professora de Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa da UFBA, no referido poema despontam inegáveis

semas de profundeza e interioridade (LIMA, 2011, p. 3). O poeta clama pelo “ímpeto do

Espírito, / [em busca da] radícula que o vento despenteia e o músculo imprime /

travejado por dentro.” (PATRAQUIM, 2004, p. 160). Se até aqui a poesia permitia-se

penetrar no corpo da amada, agora nele entranhava-se, com o intuito de beber “da tua

anca de água negra, das cavernas / soltas no dorso do abismo” (idem, ibidem),

justificando seu movimento para o dentro:

é que te escarvo, osso côncavo,

a fauce rilhando de te lancetar a carne inútil,

o gume da estraçalhada língua, o sibilante enigma,

a curva suspensa e a sombra eléctrica,

ó força, ó inominado!

(idem, ibidem)

Em interlocução ao osso côncavo, “tu que só aceitas o esterno e o ilíaco / e a

lava que se derrama dos pulmões furiosos” (idem, ibidem), os versos flagram a

concepção do indizível: “como dizer o que há no vazio / em riste dessa curvatura,

oscilante eco sem memória / de ventre onde nem a águia se atreve ao voo / e a serpente

se desenrola até a evaginação de si?” (idem, ibidem). Ao alojar seu lirismo na

concavidade em que reside o insconsciente, Patraquim atinge as fronteiras do

inominável, deflorando-as:

Não te nomeio. Caminho. E o plano se inclina, grave,

ondulantemente terrível. Névoa ou pele ou pano,

já as raízes se contraem e pulsam, odoríferas, húmidas,

um enlamear de deuses espargindo a poeira

(PATRAQUIM, 2004, p. 160)

A poesia depara-se com o instante em que “a palavra se acoita, espasmódica, /

fetal” (PATRAQUIM, 2004, p. 161), revolvendo ao silêncio das origens, “enformando-

o, ao osso, / côncavo.” (idem, ibidem).

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Concordamos com a pesquisadora Elisabeth Lima ao afirmar que, pelos versos

de “O osso côncavo” (idem, ibidem), Patraquim “promove uma viagem à interioridade,

de forma quase dramática, como se buscasse restituir a subjetividade perdida” (LIMA,

2011, p. 3). Afinal, na opinião do próprio poeta, “um gajo só pode ser prisioneiro de si,

mais nada.” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 957).

O osso côncavo e outros poemas (2004) consiste em um livro que apresenta, em

suma, dois intentos fundamentais: o primeiro, promover o reencontro do poeta com sua

própria produção lírica, ao exercer a função de antologia. Podemos dizer que Patraquim

empreende a revisão de sua trajetória como poeta, na medida em que revisita sua

própria obra. O segundo intento do livro é lançar as bases para uma escrita

definitivamente mais interiorizada.

A partir de seus poemas inéditos, Patraquim desbravou os meandros do

inconsciente, de modo a inaugurar a terceira e mais atual fase de sua poesia, a que

nomearemos de „intrapoética‟.

O presente capítulo de nossa tese ocupou-se da segunda fase da produção

poética patraquimiana, demarcada entre os anos de 1992 – 2004 e constituída pelos

livros Mariscando luas (1992), Lidemburgo blues (1997) e O osso côncavo e outros

poemas (2004). Como vimos, o referido ciclo poético compreendeu um período

perceptivelmente mais interiorizado do que o primeiro. Apresentou um teor mnemônico

mais aflorado em relação a seus materiais líricos, embora ainda nos fosse possível

flagrar alguns referenciais exteriores, principalmente em relação aos índices

paisagísticos que integram sua poesia. No entanto, percebemos que tais referenciais

externos emergiam dispostos em uma progressão decrescente, de modo a percorrer um

caminho interiorizado, que tendia à percepção subjetiva dos lugares: da cidade de

Maputo, passamos ao foco do subúrbio, para, em seguida, conhecermos a rua de

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Lidemburgo e, nela, a casa paterna, bem como a coletânea de memórias que ainda lá

habitavam: a infância, a mãe, os tipos, os nomes, as cores, os ritmos.

Esta é a fase do „para não esquecer‟; do para „não incorrer no pesadelo da

amnésia‟.

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4. INTRAPOESIA

Prenunciada em 2004 pelos poemas inéditos de O osso côncavo e outros

poemas, a terceira e – até o presente momento – mais atual fase da poesia de Patraquim

consolida-se a partir de 2009, com a publicação de Pneuma, sua sétima obra. O escuro

anterior (2011), seu mais recente livro de poemas, também integra a referida fase lírica

a que chamaremos justificadamente, ao longo do presente capítulo, de intrapoética.

4.1. Os brônquios do poema

Sob uma tiragem de 1000 exemplares, Pneuma (2009) integrou a coleção

“outras margens” do Editorial Caminho e compreendeu o terceiro título do poeta

publicado pelo editorial português.

De volta à seara poética, os versos de Patraquim inauguram um estágio de sua

produção lírica a que denominaremos de intrapoesia, de modo a demonstrar o

encaminhamento da tese a que no propomos defender. Justifiquemos: ao longo de

nossos trabalhos analítico-interpretativos, verificamos que, embora o ar, símbolo

imaterial, estivesse presente já em seu livro de estreia, sugerido, a priori, pelo título,

Monção (1980), nos seis primeiros livros do poeta cabem à terra e à água, símbolos

materializantes, figurarem como elementos basilares de sua escrita. Eis, pois, uma

constatação natural quando flagramos um percurso poético trilhado de fora para dentro.

Em 2009, após uma apneia lírica de quatro anos, Patraquim retomara o fôlego da

poesia, atingindo, enfim, um grau interior de escritura, capaz de propor novas leituras ao

impulso ventilado em 1980 pelas monções. Dessa vez, o elemento aéreo, comumente

associado às acepções simbólicas do vento e do sopro vital (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 68), revertia o sentido de sua circulação e assumia

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conotações internas, inéditas até então na fortuna poética patraquimiana, sugeridas já

pelo título da obra.

„Pneuma‟ advém do grego, pneûma, e significa “sopro”, “respiração”. Durante a

Antiguidade, era a palavra que designava uma essência sensível da vida invisível, pura e

intangível, passando a também denotar “espírito”. O termo compartilha o mesmo

radical, pneum(o)-, formador de palavras relativas ao ar, com o elemento grego de

composição pneúmōn (pneumon-), „pulmão‟.

Da pele à carne; do sangue aos ossos; do osso aos brônquios: uma vez instituída

sua „pneumopoética‟, aerífera – e, porque não, aerívora –, a poesia arrisca coreografias

inspiradas no ritmo da respiração: eis a hora da monção íntima, dos ares subjetivos.

No texto “Pasárgada, Inhambane” (LUCCHESI. In: PATRAQUIM, 2009, p. 7-

8), à maneira de prefácio, Marco Lucchesi atenta para as muitas formas de se entrar em

Pneuma (ibidem, p. 7). Formas essas que o sétimo livro de Patraquim não admite que

sejam menos do que profundas. Contudo, os versos brônquicos do poeta não se

pretendem como cárcere: há também “outras tantas [formas] de sair” (idem, ibidem)

dessa obra, embora reconheça o prefaciador que, ao abrir uma porta de emergência,

voltou confuso e emocionado para o livro do mundo (idem, ibidem): “E não me acusem

de excessivo. Porque não posso pedir menos ao Mais.” Pneuma é portador desse Mais.

Dessa extremosa força.” (idem, ibidem). Considerada uma espécie de “incêndio

submerso” (idem, ibidem) e constituída por “fundas camadas de beleza” (idem, ibidem)

segundo Lucchesi, a pneumopoesia de Patraquim comprova a “vertigem de sua

profundidade” (idem, ibidem) promovendo a harmônica fusão de opostos que, no

entanto, não constituem instâncias excludentes entre si: “a poesia de Patraquim é leve e

grave, esparsa e concentrada, terrena e celestial.” (idem, ibidem), assim como o

elemento que lhe serve de mote. Cabe ao ar residir no interlúdio entre o céu e a terra,

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bem como intermediar a inefável comunicação entre o fogo e a água (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 68).

Concordamos com Lucchesi ao perceber uma inegável “consciência líquida”

(LUCCHESI. In: PATRAQUIM, 2009, p. 7) que se espraia pela lírica patraquimiana “à

procura de um ponto no espaço. Flexível. Inesgotável.” (idem, ibidem), seja pelo

“excesso de mar” (idem, ibidem), seja “na forma de uma lágrima. Ou na de um

mediterrâneo secreto e pessoal.” (idem, ibidem). Todavia, em Pneuma (2009),

Patraquim se lançará a uma demanda imaterial, a aérea, tão livre quanto a líquida

porque desprovida de fronteiras.

Dentre as muitas portas para nos aprofundarmos no livro, escolhemos a epígrafe,

um recorte de “A Gravidade e a Graça” (WEIL. In: PATRAQUIM, 2009, p. 9):

Não possuímos nada no mundo – pois o acaso pode tirar-nos tudo – a não ser

o poder de dizer eu. É isso que é preciso dar a Deus, quer dizer, destruir. Não

existe absolutamente nenhum outro acto livre que nos seja permitido, a não

ser a destruição do eu. (idem, ibidem)

O diálogo primeiro a ser estabelecido em Pneuma (2009) nos remete aos escritos

de Simone Weil (1909-1943), escritora e militante francesa que imortalizou seu nome

por se tornar operária das indústrias Renault para escrever com propriedade sobre o

cotidiano das fábricas, lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa, em

Londres. Em resenha crítica, a Professora Doutora Carmen Tindó Secco evidencia, na

antecena de Pneuma (2009), o excerto epigráfico que nos defronta com a percepção da

fragilidade humana em relação aos poderes dúplices e antagônicos da linguagem e com

a plena consciência das ações extremadas do verbo (SECCO, 2010, p. 256).

Simone Weil apresenta-nos a subjetividade como direito ímpar e inalienável do

ser, o único que a imprevisibilidade da vida não seria capaz de arrebatar. Nesse sentido,

encontraremos uma das chaves de abertura para adentrarmos nesta nova fase poética de

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Patraquim, no entendimento de que só é resistente e intransferível aquilo que é pro-

fundo, isto é, „a favor do que está dentro‟, no âmago da existência.

Pneuma (2009) é constituído por cinco seções intituladas, respectivamente: “Os

nomes” (PATRAQUIM, 2009, p. 11), “Do registro civil” (ibidem, p. 31), “Pneuma”

(ibidem, p. 41), “Azuis” (ibidem, p. 63) e “Prosema” (ibidem, p. 69).

Tratando-se de um livro cujo mote essencial conflui para os ares internos, o

termo „inspirar‟ nos parece bastante propício à leitura crítica das teias intertextuais

tecidas por Patraquim. Assim como esse verbo denota “introduzir o ar nos pulmões”

(FERREIRA, 2004, s/p. – versão eletrônica), confirma-nos Aurélio Buarque de

Hollanda Ferreira que a palavra também pode significar “receber inspiração” (idem,

ibidem). Na rotatória dos sentidos lexicais, Patraquim inspira – e inspira-se com – os

nomes que inflam, desde 1980, os brônquios de seus poemas. É mister conclamá-los,

mais uma vez, à beira-verso, afinal, o poeta sente que pairam

No ar os nomes

Sua respiração

Chegam na cacimba

Agosto

E refluem

Do Tempo

Batem contra os muros e a cidade

Despe-os do seu

Sangue

A penugem do vôo

Pássaros ofegantes

Às esquinas

Boca a boca

– a humidade do vento –

Recompõem

A pele das casas

E no ar os nomes

Sua transfiguração

(PATRAQUIM, 2009, p. 13)

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Em “Os nomes” (ibidem, p. 11), o poeta promove “um inventário de nomes e

afectos” (SECCO, 2010, p. 256), no sentido de enumerar “os poetas que,

profundamente, afectaram a sua escrita” (idem, ibidem). Patraquim selecionou doze

significativas presenças com as quais sempre efetuou trocas lírico-existenciais, numa

espécie de hematose poética; doze sopros que, desde Monção (1980), a primeira

viagem, insuflaram as velas de sua nau lírica.

Segundo Chevalier e Gheerbrant, além de representar um número de eleição, o

doze refere-se simbolicamente a um ciclo concluído, propício, portanto, ao recomeço

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 348-9) e constituído, em Pneuma (2009), por

“Rui Noronha” (ibidem, p. 14), “Reinaldo Ferreira” (ibidem, p. 15), “José Craveirinha”

(ibidem, p. 16), “Noémia de Sousa” (ibidem, p. 18), “Rui Nogar” (ibidem, p. 19),

“Alberto de Lacerda” (ibidem, p. 20), “João Fonseca Amaral” (ibidem, p. 22), “Gabriel

Makavi” (ibidem, p. 23), “Rui Knopfli” (ibidem, p. 24), “Sebastião Alba” (ibidem, p.

26), “Leite de Vasconcelos” (ibidem, p. 27) e “Gulamo Khan” (ibidem, p. 28).

Transpondo questões como a da nacionalidade literária (afinal, nem todos nasceram em

solo moçambicano), e da produção poética (visto que Leite de Vasconcelos, linguista,

filólogo, arqueólogo e etnógrafo português, destoa do rol constituído exclusivamente

por poetas), Patraquim estabelecera um critério íntimo para elencar suas referências

onomásticas. Embora sejam uns mais conhecidos que outros fora do universo

moçambicano, todos os nomes eleitos pelo poeta, sem exceção, estabeleceram algum

tipo de relação com Moçambique. Aderidos às membranas da história e, principalmente,

à pleura visceral da poesia de Patraquim, alguns dos doze escolhidos ainda permanecem

esquivados pelas esquinas do tempo, desde a antiga Lourenço Marques, na medida em

que outros persistem enredados pelas memórias linguístico-literárias do país. E

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aportaram na vida e obra do poeta ora pela ação de encontros promovidos por leituras e

viagens inadiáveis, ora por encontros pessoais.

Em recensão crítica da obra, Pedro Mexia (MEXIA, s.d., p. 1) notou que

Patraquim utiliza tais nomes “como declinação dos „founding fathers‟ da cultura

moçambicana contemporânea” (idem, ibidem), redimindo das cinzas dos tempos as

personalidades evocadas. Nos poemas, os mestres e amigos já não se presentificam

enquanto corpos, mas como espírito (palavra esta que, aliás, também nos remete a uma

das acepções etimológicas de pneumato-): “um espírito não metafísico mas poético,

memória colectiva de uma nação e dos indivíduos que nela vivem ou viveram” (idem,

ibidem). E sendo a „pneumatologia‟ um tratado dos espíritos, dos seres intermediários

que formam a ligação entre as instâncias físicas e metafísicas, podemos afirmar que em

“Os nomes” (PATRAQUIM, 2009, p. 11) Patraquim pesponta o bordado de uma

pneumatologia poética.

Observou Carmen Tindó Secco (SECCO, 2010, p. 256) que “Os nomes”

compreende um bloco de poemas cujas homenagens não embutem nenhum tom

nostálgico; ao contrário, ao caldear citações, temperar a poesia com detalhes

biográficos, ao invés de um exercício sentimental, nos deparamos com a celebração de

um legado, consoante a leitura de Pedro Mexia (MEXIA, s.d., p. 1).

Considerando que o registro civil designa fatos da vida passíveis de registro,

como nascimentos, casamentos, óbitos, divórcios, pactos, interdições, dentre outros que

afetam a relação do indivíduo com o meio social em que se insere, compreendemos não

apenas o título como também as cenas consignadas no segundo bloco de poemas de

Pneuma (2009). Somos convidados a penetrar por suas intermitências menmônicas de

modo a captar os flashes íntimos que resvalam pelas frestas das seis composições

reunidas em “Do registro civil” (ibidem, p. 31).

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Captados como fragmentos metonímicos de indeléveis instantes, compactuamos

com a respiração suspensa da poesia “no desvão das lajes / com a perna manca selando

as pontes da minha cidade” (ibidem, p. 33) e ultrapassamos “o arco por onde escorre o

som aquífero / Das profanações geológicas da alma”. Eis “A imagem na varanda”

(idem, ibidem), “desencordoando o escuro / E os muitos metros do tempo [que

presenciamos voar sobre os versos]” (idem, ibidem), arroxeando a pele e acentuando a

“gravidade branca das coisas” (idem, ibidem). Sentimos a ofegância do ritmo

respiratório dos versos, próprio de “quem escreve como se enfrentasse o risco

permanente de ultrapassar o emaranhado da vida, alcançando os sentidos inatingíveis da

poesia, mataforizada como „alado novelo” (SECCO, 2010, p. 257), conforme analisou

Carmen Tindó Secco.

Testemunhamos suas “Quatro meditações na margem ao longo do Zambeze”

(PATRAQUIM, 2009, p. 34), instante em que o poeta confessara o direcionamento de

seu olhar lírico: preferira não ver “os três jacarés / Imóveis na margem” (idem, ibidem),

mas, sim, “o rio que rilhava e seus dentes, / O canavial do Tempo, / nodoso e debruçado

sobre o impulso líquido” (idem, ibidem). No compasso vaivente das memórias,

semelhante ao movimento de um fole, Patraquim sabe universalizar seus referentes

geográficos, bem como promover o retorno de sua poiesis à fonte moçambicana. As

águas zambezianas, o grande rio da África austral, assumem, nas meditações do poeta,

uma conotação primordial, e seu curso está intimamente associado ao fluir do tempo, à

corrente da vida, e regresso às origens, de modo a perceber “o primeiro timbre evolando

a cor, / O sangue do início e a bolsa rompida / Para a convulsão do mundo. (idem,

ibidem).

Frações de experiências fílmicas também foram incluídas nos registros de suas

„vagamundagens‟. Pelos versos de “Cinemas” (ibidem, p. 36), poema dedicado aos

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amigos cineastas Licínio Azevedo, brasileiro radicado em Moçambique, e Camilo de

Sousa, moçambicano, acompanhamos o reenquadramento de memórias

cinematográficas. Certo de que “todos os ângulos são seus” (idem, ibidem), Patraquim

reprojeta cenas em que “convém uma tez em pergaminho, / as mãos calosas, / a poeira e

seu brilho no certo ângulo / onde o foco, a contra-pêlo, se esgueire / em profundidade

[...]”(idem, ibidem).

Flagramos “A elegância das cinzas” (ibidem, p. 38) como resquícios da

insistência de Mnemosyne: recriadas tal qual cenas vivas, suas memórias recaem

aeriformes sobre os versos em “verde pendular movimento [...] / [quando] a elegância

das cinzas apõe / sobre as casas a rasa gravidade do voo” (idem, ibidem).

Por fim, fincamos os pés no mesmo “Quintal” (ibidem, p. 39) em que o olhar

lírico ainda retém o “gato arbóreo e longo / o peixe-boi // E a ejaculação das flores”

(idem, ibidem) e percorremos uma extensão paisagística em que o poeta reaviva

imagens sobrepostas à feição de “Colagem” (ibidem, p. 40). Reinventada à africana, a

paisagem de que se vale o registro civil patraquimiano é composta por peculiaridades,

como “Uma girafa com búzios / ao pescoço / os lábios nos ramos altos // Rilham // E os

espinhos macerados / Concedem à savana / O dorso crepuscular / Em que se fecha”

(idem, ibidem).

Na terceira parte da obra, homônima ao livro e composta por doze poemas, a

percepção lírica ensaia uma poesia bronquial. Ao se dar conta de que tão descontínua

quanto as memórias é “a fragmentária Ciência / resvalando em sua própria declinação”

(ibidem, p. 43), o sujeito poético concede vez a íntimas vozes, entoadas das profundezas

“de onde a palavra dança / antes da boca” (ibidem, p. 44).

O olhar intrapoético, hábil para exercer a microscopia e, por isso mesmo, atento

agora às mínimas acontecências, atinge um grau de sensibilidade capaz de notar “um

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revolteio de grãos / riscando o Olho” (idem, ibidem), “as pálpebras da Luz /

semicerrando a noite” (ibidem, p. 44), as mesuras quase imperceptíveis da “geometria

plana onde se escondem / Os losangos da pele” (ibidem, p. 45) e a sutil circulação do

“sangue que o ar esparge” (ibidem, p. 46).

Dedicado à memória de seu pai, o poema “O círculo” (ibidem, p. 48), alude, já

no título, a uma forma cujas leituras simbólicas sinalizam o tempo – um ciclo, associado

à roda [que] gira, segundo Chevalier e Gheerbrant (CHEVALIER; GHEERBRANT,

2001, p. 252) – e apontam, outrossim, para o ideário do retorno e das origens (ibidem, p.

251): um “longo círculo onde vais recolhendo / A voz” (PATRAQUIM, 2009, p. 48).

O círculo pressuposto pelos versos pneumáticos de Patraquim remonta a

possibilidade de outros quandos:

E se não houvesse o Inverno, esquálida brancura

Pendendo das árvores,

Sua seca respiração em pose, sustida;

Se o ritmo das estações reverberasse nas águas

[...]

E um pássaro se intrometesse na imobilidade

Em que pairas, [...]”

(idem, ibidem)

Aerícola, o sujeito poético regressa às paisagens interiores, colocando em

questão a própria identidade existencial e social, numa escrita em desafio, segundo

pontuou Carmen Tindó Secco (SECCO, 2010, p. 257). O poeta nos fala de seus „lugares

de dentro‟, “onde pressinto, grave, todos os percursos do silêncio” (ibidem, p. 48),

instância composta por “nocturnos caminhos” (idem, ibidem) que se suspendem, por um

“tempo [que] se esvaiu” (idem, ibidem) e por uma metonímica mão que, num outrora,

abrira-se e orara, mas que agora, nas voltas do círculo, “pousa o último tremor sobre o

lençol” (ibidem, p. 49). O silêncio a que se refere o poema não mais significa o lugar do

inaudito, mas, antes, a pausa exata para se ouvir a voz das memórias entoadas pelo “teu

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silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo” (idem,

ibidem).

“Pneuma” (ibidem, p. 41) também reúne composições que nos falam de quando

a forma se dobra à experiência subjetiva. Segundo as estrofes de “Língua” (ibidem, p.

50), idos são os tempos em “que o importante era o alexandrino / dois cascos a galope

encurvando o verso” (idem, ibidem). Favorável à visão interior, a poesia oferece um

elenco de cenas e matérias esparsas, e lança um desafio à formulação lírica:

E do sarampo a só lembrança

Da rubra luz ao redor zumbindo

Ou

A clausura do tempo

Em Constança?

E se foi Ela depois e de lá o Tejo

E a vela panda. Begónias!

E a pança.

Faz isto um hino

Magno cavaleiro ultramarino?

(idem, ibidem)

A terra que ainda guarda suas raízes paternas volta ao tablado poético, desta vez

pelos versos de “Al-Gharb” (ibidem, p. 53), sintagma árabe que significava “o

Ocidente” e que em português originou o nome do Reino do Algarve. A província

portuguesa, que já servira de mote à poesia patraquimiana em livros anteriores, em

Pneuma (2009) é captada por recortes cotidianos bem peculiares, assinalados pelo signo

do ar. Em 2009, das memórias algarvias ficaram as aragens que “pelo largar da noite /

Estremecem as amendoeiras” (idem, ibidem) e o sopro que “Corre no ar [como] um

tropel furtivo / [baloiçando] Seus panos de azeite / E madeixas de sangue na corola /

Das mulheres” (idem, ibidem) que ainda tremulam em suas reminiscências.

Do retrato algarviense capturado pela lente da poesia, ressurge, aerificada, a

indelével figura materna, recriada com requintes de leveza: “Ela só lívida de azul e oiro

/ Ave do mundo // E a mãe diurna / Boca a boca multiplicada” (idem, ibidem).

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A presença da dedicatória do penúltimo poema da terceira seção de Pneuma

(2009) – “à memória de Michel Laban” (ibidem, p. 55) – dispensou a necessidade de um

título para a composição. Motivado pelo falecimento do especialista em literaturas

africanas de língua portuguesa, em 2008, Patraquim retoma as impressões que lhe

ficaram dos encontros pessoais que tivera com o amigo francês, ainda e para sempre

internalizados no ritmo da respiração de sua poesia. “e depois dizem que morremos”,

ironiza a voz lírica. O poeta relativiza a morte ao recriar cenas vivas de seu convívio

com Laban, suscitadas metonimicamente pela memória e trazidas à baila dos versos

pelas imagens:

a taça perdida

os cavalos de jade

a minha espada

ainda lhes ouço as vozes

com a neblina de Agosto em Rudnik

e o cordeiro em silêncio

as mãos estão aqui

e o vinho regressa à fonte

e depois dizem que morremos

(idem, ibidem)

“Pneuma”, seção homônima à obra, se fecha com a mensagem poética de

“Descomedimento” (ibidem, p. 56), longo poema fragmentado em seis partes

numeradas. O espaço aéreo desconhece fronteiras. A fluidez aérea de seu sétimo livro

rompe, enfim, com as ainda possíveis mesuras limitantes da escrita poética. O poema,

como o próprio título prenuncia, proclama o direito aos excessos, estabelecendo uma

espécie de seis propostas para os descomedimentos líricos.

Permitindo-se arrebatar pelas desmedidas, sugere o poeta a instância poética

como um lugar propício aos regressos, aos diálogos, a novas germinações e aos desejos

– e traições – da mensagem lírica: “como se a floresta regressasse / e o nome // o bolbo

na haste // a serpente entre as palavras // e a tua boca” (idem, ibidem). Que a poesia

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cometa disparates, que profanem os sentidos da física, como se possível fosse “cair do

chão / ao alto // [em] elipse / ascendente” (ibidem, p. 57), como se possível fosse “essa

queda para cima que este livro não cessa de cantar” (MEXIA. Apud: SECCO, 2010, p.

257)

Que a desmesura lírica garanta o “regresso / do que não sabes” (ibidem, p. 58) e

que do retorno do desconhecimento aflore a ressignificação do signo poético, composto

de mais significâncias do que signos: “e a quem / o soneto é um novilho sem cabresto /

ensanguentando as árvores // esperas a pele / e o escalpe // a branca nuvem deitada”

(idem, ibidem). E se outras viagens se anunciarem? E “se [avistares] um caminho ao

longe / depois dos ramos // da luxúria lacustre / convocando o barco”? (ibidem, p. 59)

Embarque! – sugere a já descomedida poesia patraquimiana, leve e livre como o

pneumático sopro íntimo que aerifica seus versos nesta fase de sua poesia. Eis uma

poiesis relativamente sólida em seu estado de fluidez, indo além das possibilidades

físicas da matéria (poética), tal qual “um sulco que fendesse / o ar // e a noite /

concentrada” (ibidem, p. 60).

Por fim, o descomedimento lírico a que lançam os versos de Pneuma (2009)

remonta “o imbondeiro / no ar” (ibidem, p. 61). Simbolicamente associado a percepções

tradicionais de mundo segundo a visão cultural moçambicana, ao sugerir um

imbondeiro suspenso, etereal, o poeta desponta o desejo de também desmensurar os

efeitos do alívio em relação ao peso opressor da história de seu país.

Percebemos que não gratuitamente as composições deste terceiro bloco de

poemas foram reunidas sob o título de “Pneuma” (ibidem, p. 41): localizados

exatamente no meio da obra (são duas as seções anteriores a ela e outras duas

posteriores), representa sua parte mais interior, uma espécie de cerne para onde, aliás,

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confluem as demais partes. Eis um conjunto de poemas alveolares, o pulmão do livro e

da escrita poética de Patraquim.

4.2. Prosemas

O descomedimento poético proposto em Pneuma (2009) aeriza, inclusive, as

fronteiras formais da poesia. As duas últimas seções da obra, quarta e quinta partes

intituladas, respectivamente, “Azuis” (ibidem, p. 63) e “Prosema” (ibidem, p. 69),

constituem as primeiras composições na obra lírica de Patraquim a relativizar os

limiares entre prosa e poema, amalgamando-os no neologismo „prosema‟.

No ensaio “A casa do sonho”, Mia Couto observou que “essa fronteira entre

poesia e prosa foi inventada por alguém que, certamente, não era escritor” (COUTO,

2002, p. 1). Concordamos com suas palavras e, no encalço de sua reflexão,

evidenciamos que a expansão linear dos versos de Patraquim, dando-lhes aspecto

prosístico, não os destituiu da função poética da linguagem.

O penúltimo respiro da obra, “Azuis” (ibidem, p. 63), apresenta-se sob uma

estrutura que, à primeira vista, assemelha-se a uma carta. No vocativo, lemos

“Lazaward” (ibidem, p. 65). Ao empreendermos a escavação etimológica do nome que

se institui no prosema como interlocutor do sujeito poético, alcançamos o sintagma

árabe „al-lzaward‟, oriundo, por sua vez, do persa „ljward‟, denominação que no latim

originou „lapis lazuli‟, mineral popularmente conhecido como a pedra lazurita.

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Fig. 13 e 14: “Lazurita”, pedra bruta e polida. Aquela que parece apenas uma pedra azul opaca, depois de

lapidada e polida, torna-se preciosa e dotada de um brilho vítreo. É resultado da combinação de diversos

minerais. A grande concentração de sodalita em sua composição é o que lhe garante o tom azulado.

Segundo o Serviço Geológico do Brasil, em matéria concedida ao jornal O

Globo, em 22/10/2013, no Caderno “O globo amanhã” (O GLOBO, 2013, p. 6), a

denominação do mineral remonta sua origem latina: „lápis‟ significa „pedra‟ e „lazuli‟,

que originalmente era um nome próprio, veio a dar „azul‟, tornando-se, por extensão

metonímica, o nome da cor, em associação direta com a referida pedra.

Nesse sentido, ao eleger “Lazaward” (PATRAQUIM, 2009, p. 65) como

vocativo no poema-carta “Azuis” (ibidem, p. 63), o poeta tem por interlocutor o próprio

azul, como especificam nos versos-linhas, ao longo da composição: “[...] lazaward, o

azul” (idem, ibidem) e “Lazaward, o primeiro azul” (ibidem, p. 66).

“Minha é a tenda sob o azul” (idem, ibidem), garante o sujeito poético. Tenda

esta, aliás, estendida sobre os campos líricos desde 1980. Nuança fiel ao longo de suas

viagens poéticas, a cor azul fincou definitivamente sua bandeira na obra de Patraquim

em 1992, nos versos de Mariscando luas (1992), ao retocar as cores dos subúrbios de

Maputo em “Azul subúrbio” (PATRAQUIM, 1992, p. 9). Enquanto naquele contexto

social, a referida tonalidade confluía para os símbolos da ultrapassagem dos conflitos,

em virtude do Acordo Geral de Paz assinado por Moçambique no mesmo ano, em

Pneuma (2009) a mesma cor assumiu conotações outras, que nos remetem a um ideário

interior. Aliás, esclarecem Chevalier e Gheerbrant que o azul “é a mais profunda das

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cores: nele, o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o

infinito” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 107).

O poeta inicia sua carta mencionando a presença de Omar Kháyyám, poeta,

filósofo, matemático e astrônomo persa que viveu no século XI, no atual território

iraniano, e pontua o inevitável e ininterrupto trânsito dos tempos, que a tudo transforma:

Te oiço, Omar Kháyyám, por entre cristais de sombra. Minha é a tenda sob o

azul.

E o salgueiro, nómadas, o rio enrubescendo a Taça, os lábios, asas imóveis

Mas, se te vi, foi depois da noite, ébrio de emaranhar os números e de

recolher o medo. Como se um Corpo se azulejasse plasmado em nada nas

amuradas vigilantes. Passa o pacto da seita e a lenda dos assassinos e o fogo

frio, o fátuo fogo frio da lua em pasmo no deserto.

(PATRAQUIM, 2009, p. 65)

Na carta endereçada ao azul, o remetente poético reconhece que, com o passar

das eras, “sem os mistérios de lazaward, o azul” (idem, ibidem), “Seria, então, isto, a

sonâmbula andarilhança por estas ruas debruadas de olhos onde a velhice se debruça às

janelas e uma língua dói, monocordicamente dói” (idem, ibidem).

O azul com o qual dialoga a voz lírica não é plural não apenas no título: o poeta

percorre uma diversidade de imagens aparentemente esparsas, que despontam em

sintonia com os sentidos dos “azuis” (ibidem, p. 63) que fazem parte de seu percurso

subjetivo:

Bebo com os cavalos e moldo a argila junto à fonte.

Se a tarde tropeçasse no arco-íris.

Laura

Aura.

A potência de um lancil, a abóbada côncava em desalinho de arcos, deus

refractando-se nos vitrais e os potros da Islândia.

Por onde caminho, Paul Klee, uma linha azul em nó de enforcado. Take a

walk,

Take a walk, my jolly good, fellow,

Lazaward, o primeiro azul.

Tu o sabias, Walter Benjamin: como é mais facilmente amado aquele que se

despede!

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Se eu vivesse em Berlim!...

Se alguém recordasse: suicidou-se em Port Bou. Mas não havia arcadas na

minha cidade. De um presídio palúdico, do pântano, que corpo amoroso

resgatar senão do incêndio, em Março, das acácias?

E louvar a rua?

(ibidem, p. 66-7)

A mais imaterial das cores, o azul desmaterializa tudo aquilo que dele se

impregna. Eis o caminho simbólico do infinito, onde o real se transforma em

imaginário, conferindo ao mundo sua profundidade supraterrena (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 107). Sua imaterialidade beira o indizível e sabe o poeta a

(quase) impossibilidade de verbalizar suas percepções interiores, imersas no azul: “Não

posso escrever um poema contando com a potência das falanges, não obstante o

mistério das articulações, o impulso eléctrico, o incêndio do tacto, a posse tremente das

coisas.” (PATRAQUIM, 2009, p. 67).

Caminho conotativo para a divagação e o sonho, o azul deixa rastros que, uma

vez seguidos, levam ao “pensamento consciente, [que] vai pouco a pouco cedendo lugar

ao inconsciente” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 107). Antevendo o

mergulho nas águas abissais da inconsciência promovido pela obra seguinte, O escuro

anterior (2011), a condição de imaterialidade do azul se impõe em Pneuma (2009)

como requisito para os desejos improrrogáveis do poeta, que exige: “Porque eu quero a

mulher d‟azul, a que se condensa no copo, a que se esvoaçou com o vento e acena com

seu som de sino despindo as ininteligíveis palavras de Deus” (PATRAQUIM, 2009, p.

67).

Contudo, não apenas de influências benfazejas se pinta o preterido tom: azulejar

também simboliza “um céu sem véus onde o ouro solar se faz fogo implacável e devora

os frutos maduros da terra” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 109), permitindo

a entrada de nossa leitura por searas semânticas assinaladas pela aspereza dos

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significados do incêndio, da sequidão e de suas agruras. Azulejar a poesia não significa

cerceá-la em uma redoma onde prevaleça a serenidade, a leveza e o onirismo. Carmen

Tindó Secco atenta para o fato de que a bússola do azul também aponta para “um

desassossego na viagem do sujeito poético, cuja travessia também penetra os desvãos da

história” (SECCO, 2010, p. 258). Em certa altura da carta-poema, a cor interlocutora é

entoada em brado. Eis a tomada de consciência de que, inerente aos percursos humanos,

Lazaward, o azul, é vulnerável, efêmero, findável e, portanto, cíclico: “Lazaward! E o

grito em tropel, degolando as cidades! Vi as estepes desoladas. Alexandre morreu. A

biblioteca nasce, matéria comburente, paroxismo do azul. Sua jubilação.”

(PATRAQUIM, 2009, p. 67). Ainda a plenos pulmões, exige o eco lírico: “E não digam

do rosto a cor violácia! Demorremos.” (ibidem, p. 68).

Por fim, compreendemos que em Pneuma (2009) o azul passa à condição de

propiciador de reflexões, assumindo-se como a cor da ponderação, capaz de despontar o

exame crítico, acertado e sintético sobre aquilo que restou, no presente, nas mãos do

poeta, metonímias de Moçambique: “Que estulta decisão dos deuses, reerguermo-nos

do sonho para nocturnamente habitar o dia com os amigos nos bolsos, suas cinzas.”

(idem, ibidem). Em suma, as linhas poéticas de “Azuis” buscam retomar o fio de “Uma

longa e declinada respiração [cujo ritmo (res)significa a própria trajetória lírica de

Patraquim]. // Em azul.” (idem, ibidem).

“Prosema” (ibidem, p. 69), a quinta e derradeira parte de Pneuma (2009)

apresenta-nos outra composição escrita sob a forma de prosa poética, intitulada “A

pergunta e o povo” (ibidem, p. 71).

O poema revela-se em tom lúdico de perguntas e respostas e recria a

interatividade entre o narrador e interlocutor, teatralizando as vozes ancestrais que ainda

habitam as tradições orais moçambicanas.

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Embora Pneuma (2009) consista em uma obra pulmonar, seus ares, ainda que

internos, não ventilam apenas dentro, já que toda respiração exige, outrossim, um

movimento para fora: a expiração. De todas as composições pneumatológicas de

Patraquim, “A pergunta e o povo” (idem, ibidem) é a que de forma mais significativa

representa essa externalização: eis um poema expiratório. Na medida em que expulsa o

ar dos lobos poéticos, expele também uma percepção de mundo pautada pela sabedoria

popular moçambicana, grávida de reflexão social, pela voz metonímica de um velho

que, entre acessos de tosse e baforadas no cachimbo, “sentado à sombra da grande

árvore [...], sabe uma quantidade enorme de estórias” (idem, ibidem).

A voz griotizada, detentora inicial das respostas, ao ser interrogada sobre o que

faz correr o povo depois do distúrbio e das guerras (idem, ibidem), conhece o fluxo do

retorno às esferas subjetivas: “O povo corre para dentro de si, traçando no chão o

círculo da sua identidade” (idem, ibidem).

“O povo nunca está parado, sempre a correr como grácil gazela ou como a chita

rápida e voraz?” (idem, ibidem) – provocou, novamente, o inquiridor. Motivado a

refletir acerca do movimento da vida, o velho confere outra visão ao dinamismo

popular: para ele, “o povo dança por dentro do tempo” (idem, ibidem). Ao analisar

algumas mundividências africanas, Hampaté-Bâ nos ensinou que em grande parte de

seu continente, para dizer que alguém morreu, é bastante comum o uso da expressão

“seus pés entraram em acordo”, isto é, não se movem mais. Consoante a sabedoria

ancestral, vida é movimento que se inicia com a contradição dos membros. A não

contradição equivale à morte (HAMPATÉ-BÂ, 1993, p. 18). Pautados por essa

tradicional visão de mundo, compreendemos porque o velho em “A pergunta e o povo”

(PATRAQUIM, 2009, p. 71) retifica a observação de seu interpelador: mais vivo do que

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o desacordo dos pés em movimento é o desalinho dos membros inferiores em dança. Se

andar e correr são sinônimos de vida, dançar equivale a celebrá-la.

No entanto, o sabedor não concede respostas a todos os questionamentos. Uma

vez interpelado sobre o motivo da existência do povo, recusara-se à explicação,

“espreguiçando indiferença” (idem, ibidem): “E por que que há povo? „Essa pergunta

não se faz ao povo‟ – diz o velho, rindo.” (idem, ibidem).

Conhecedor das verdades que o cercam, o velho não se incomoda com as

perguntas, garante-nos o prosema patraquimiano. No entanto, respeita o limiar dos

mistérios. Sabe olhar as perguntas, o que o caracteriza como detentor de uma vidência

que alcança o que está para além do visível, como a ancestral bagagem audível que

atravessou os séculos para nele aportar. Ao configurar o ancião “cheio de paciência”

(ibidem, p. 72), que “nem suspira fundo, nem [esboça] voz muito grave, nem nada”

(idem, ibidem), as linhas poéticas nos possibilitam enxergá-lo também como metonímia

do tempo: aparentemente devagar, porém sempre constante, tal qual o ritmo de

aquisição de sua sabedoria.

Manter-se em movimento: eis a advertência do velho sabedor: “Não pares de

dançar, ó tecido líquido, senão eu regresso da minha cegueira e não quero mais ver a

memória. Ela está lá onde pus silêncio e agora digo outras palavras‟. Suspira” (ibidem,

p. 73). Inquieta-se e “quase se zanga” (ibidem, p. 72) o velho quando indagado se o

povo está à espera. Em resposta, o sábio levanta-se e revisita as muitas histórias ao

redor do tronco sob o qual se senta. Ali estão as matérias calcadas na ponderada e

incessante observação de mundo; índices metonímicos que recontam as memórias

históricas moçambicanas, dos tempos pré-coloniais até o surgimento do país, com a

proclamação da independência:

uma pele de leopardo, o ventre prenhe de uma mulher, máscaras e tambores,

uma lança manchada de sangue, uma escultura queimada, uma cruz, um

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cofio, um livro e uma kalasch, panos esfiapados, uma bandeira. Eu sou estas

coisas. E agora já posso voltar a ver. (ibidem, p. 73)

Os traumas das guerras, cenas vivas ainda impressas em suas retinas

introspectivas, suscitam no velho a vidência reclamada pela poesia de Patraquim desde

seus primeiros livros:

O que tacteei do círculo e da árvore, o que solucei de sangue e fiz no lago

escuro jorrando meu leite espesso, a máscara de meus rituais e medos, o uivo

com que esventrei homens, matando-me, o ciclo da chuva e a palavra antiga,

tudo sou eu. Pergunta, eu te mando que te sentes a meu lado! [...] Como

posso descansar com a noite se ainda ontem canoei pelo rio dos mortos e

afugentei os bichos para chegar aqui? (ibidem, p. 74)

O segundo movimento da prosa poética é demarcado com a mudança de

posicionamento entre interrogador e interrogado. Pergunta e povo passam a figurar

como possíveis sinônimos quando deflagramos nas entrelinhas do „prosema‟ a

necessidade de se questionar o tempo histórico. Ao cabo, os ensinamentos do sábio nos

levam a ver os desacordos da história como mera dissonância entre pontos de vista:

“Lembras-te de que disse para te sentares a meu lado e não ficares aí à minha frente?

Aceita o meu convite. Assim ficamos os dois a ver a mesma coisa!” (ibidem, p. 75).

As perguntas que iniciaram o „prosema‟ retomam o espaço textual como se

necessário fosse fechar o ciclo dos questionamentos. No entanto, ao final, ainda que

sejam as mesmas, as reflexões já não serão idênticas: interrogador e interrogado, o poeta

e seu legado moçambicano, experimentaram um a posição do outro e também já não são

os mesmos de quando iniciaram o diálogo. Desta vez, uma vírgula fará toda a diferença

em seus discursos, porque simbolizará as pausas que anteriormente não foram dadas.

Pausas para respirar Moçambique; arejar o país; pensá-lo, questioná-lo, reerguê-lo.

Resta aos moçambicanos sentarem lado a lado: “Porque estamos os dois sentados e nos

vemos um ao outro. E porque essa vírgula faz parte, agora, da minha sabedoria.”

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(ibidem, p. 76). E “como uma respiração no tempo” (idem, ibidem), “A pergunta e o

povo” (ibidem, p. 71) cerra Pneuma (2009).

Ao nos debruçarmos de forma crítica sobre o percurso poético de Luís Carlos

Patraquim, observamos que em seu sétimo livro o poeta aerifica a matéria lírica que

sempre serviu de mote a sua escrita em versos. À beira da sexta década de vida, das

quais metade já havia dedicado à experiência lírica, o aedo de Lidemburgo atingira um

ponto peculiar de amadurecimento poético capaz de perceber a tão sutil – e essencial –

respiração da memória, que se (con)funde ao ritmo da respiração do poema. Elucida-nos

Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão, no ensaio “O corpo dilacerado da

memória” (CASTELLO BRANCO; BRANDÃO, 1995, p. 145) que para os gregos, o

pneuma (diafragma ou alma) estava intimamente relacionado à memória. Acreditavam

os antigos que, por meio de anamnese, efetuava-se a purificação da alma, liberando o

indivíduo de sucessivas reencarnações e permitindo-lhe conquistar a sabedoria e a

verdade. Em Pneuma (2009), Patraquim promove uma espécie de anamnese de suas

vagamundagens. Para tanto, foi preciso valer-se de registros minimalistas, um trabalho

quase artesanal de colagem de imagens oriundas de suas memórias afetivas, o que

justifica o grau de fragmentação da linguagem alcançado pelos poemas deste livro. Ao

percorrermos todo o curso lírico do poeta, podemos afirmar que em Pneuma (2009), os

versos e os prosemas assumem o ritmo respiratório acordeônico da escrita poética, uma

espécie de dança aérea, invisível, porém sensível, que em compasso de abre-fecha

coloca o ar em movimento ao expirar, exalando memórias e percepções de mundo, e

inspirar, volvendo-se repleta aos brônquios do intimismo, os mais profundos redutos da

subjetividade.

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4.3. Escrita em blackout

Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.

(Manoel de Barros)

Último livro de poemas de Patraquim até o presente momento, O escuro anterior

(2011) foi escrito e finalizado entre os anos de 2009 e 2010.

O conjunto da obra poética patraquimiana foi eleito para compor o terceiro

volume da coleção “Poetas de Moçambique”, dirigida por Ana Mafalda Leite e

publicada pela Editora UFMG, em 2011. Autorizada pelo próprio poeta, a referida

antologia, organizada pela Professora Carmen Tindó Secco, trouxe a lume, na íntegra,

os poemas até então inéditos de O escuro anterior (2011). Somente no ano de 2013, a

obra viraria livro: a primeira edição ficou a cargo da editora portuguesa Companhia das

Ilhas. Esclareçamos que nossas reflexões acerca desta obra serão referencializadas pelo

ano de publicação e a numeração das páginas segundo a edição belo-horizontina.

“Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.” (BARROS, 2010, p. 187),

confessou Manoel de Barros em suas Memórias inventadas. O verso que, à primeira

vista, elege a antítese por figura de linguagem, nos serve de centelha para iniciarmos o

debate sobre aquela que talvez seja a obra mais iluminada de Luis Carlos Patraquim.

O livro que desponta no título o ideário da ausência de luminosidade é dedicado

a três referências pessoais do poeta que se justificam, segundo suas próprias palavras,

“por causa da luz” (PATRAQUIM, 2011, p. 131). Dentre eles, estão os amigos José

Cabral, fotógrafo moçambicano, e Kok Nam, fotógrafo e jornalista que, apesar da

ascendência chinesa, nascera na antiga Lourenço Marques e imortalizou seu nome como

diretor do jornal Savana. Ambos consistem em personalidades representativas do

universo jornalístico moçambicano, do qual, aliás, nosso poeta também faz parte.

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Ao discorrermos acerca da poesia de O escuro anterior (2011), notaremos quão

aflorados são, nesse livro, os signos da luz e da visão – bem como alguns de seus

cognatos semânticos como o olho, o olhar e a vidência. Percebemos que, não

gratuitamente, Patraquim dedicara seus mais recentes poemas a amigos que, como ele,

souberam capturar Moçambique, traduzindo o país em registros fotojornalísticos

alocados entre as funções referencial e poética da linguagem. Atentos estamos aos

sentidos que a fotografia, texto fotossensível, pode assumir quando sua sensibilidade à

luz é compreendida segundo preceitos conotativos. Outrossim, não devemos

negligenciar a etimologia do termo: „fotografia‟ é formado a partir de dois elementos de

composição oriundos do grego: photós, “luz”, e graphia, “ação de escrever”. Ao dedicar

seu livro a dois fotógrafos, Patraquim também oferece seus versos a amigos dotados de

uma sabedoria de poucos: a sensibilidade – clarividente – de „escrever a luz‟, isto é,

registrar a lucidez, promover visibilidades.

Inspirado pela constatação de que “a imaginação é um lugar dentro do qual

chove” (CALVINO, 1995, p. 97), vimos que Ítalo Calvino aponta a visibilidade como

um dos valores literários a serem preservados no curso de nosso milênio. E sabemos que

vidência e lucidez constituem qualidades sinonímias e complementares na trajetória

lírica de Patraquim: já atuavam em cumplicidade, possibilitando “visões de olhos

fechados” (ibidem, p. 108) de modo a vislumbrar a “umbila sob as palavras”

(PATRAQUIM, 1991, p. 38), na primeira fase de sua poesia. Rememoremos que em

Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991), nosso poeta já fazia

ressoar, em epígrafe, a voz de Rimbaud, “na procura desenfreada de coisas inauditas,

inomináveis” (RIMBAUD. In: PATRAQUIM, 1991, p. 16) e indizíveis que eclodiriam

vinte anos mais tarde nos versos de O escuro anterior (2011).

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Assim como a fotografia e a paisagem, a poesia também traduz os frutos de um

olhar, ação que, segundo John Berger, em Modos de ver (1999), consiste em um

requisito prévio para o ver. Consoante o crítico, “só vemos aquilo que olhamos. Olhar é

um ato de escolha” (BERGER, 1999, p. 10).

Sendo o olho o mundo do homem (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p.

656), a obra se abre pelos versos de uma composição solitária, localizada à guisa de

„marco zero‟ do livro, à maneira de epígrafe, em que o poeta anuncia suas escolhas na

formulação de um mundo íntimo, captado por um “olho intrusivo” (PATRAQUIM,

2011, p. 131). E já que, segundo Chevalier e Gheerbrant, o princípio simbólico do olhar

é o mesmo do olho (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 653), podemos dizer que

os mais novos poemas de Patraquim se valem de um olhar intruso: aquele que penetra

sem autorização. Não nos esqueçamos, em tempo, de que “o olhar é o instrumento das

ordens interiores” (ibidem, p. 653), conforme nos ensinou as vozes que ressoam da

simbologia. E lembremo-nos ainda de um dos versos de Eduardo White que, aliás,

figura como uma das epígrafes de nossa tese: os olhos, quando atingem a exata

condição de maturidade, podem olhar-se por dentro (WHITE, 1992, p. 13).

Infiltrado, adverte o olho lírico que “pouco / [é] o que vês na paisagem /se

houvesse” (PATRAQUIM, 2011, p. 131), sugerindo o despontar de percepções visuais

que ultrapassem a visibilidade tão limitada do mundo referencial. O poema-epígrafe

(pre)vê, para além da matéria física, o lugar do inefável. Neste locus abstractu, o

silêncio, agora audível, torna possível “dize[r] a palavra muda” (idem, ibidem). Somos

conduzidos a um lugar em que “há uma savana anjo / que te redime” (idem, ibidem), “a

invisível árvore” (idem, ibidem) e onde o “filho de nada / [ressona] no seu colo” (idem,

ibidem): eis as substâncias líricas de que se valerão a sublimação poética de O escuro

anterior (2011).

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Enganaram-se aqueles que, ao percorrerem conosco o curso da poesia

patraquimiana, pensaram que não haveria instância mais interior do que os brônquios

em que se embrenharam os versos de Pneuma (2009). Patraquim surpreende-nos a todos

ao deflagar sua nova casa lírica, ainda mais profunda. Para além de onde sentimos a

respiração do poema, está o escuro que a tudo antecede: o inconsciente.

Assim, o poeta lançou os dados para seu novo jogo poético, o mais interiorizado,

hermético e fragmentado de todos até aqui: o jogo de uma escrita em blackout. No

entanto, Patraquim profana o signo do escuro, restituindo ao seu significado o sentido

que, a priore, lhe fora atribuído com significância oposta: o de ausência de

luminosidade. Sabe o poeta que o símbolo da luz apresenta valores complementares ao

da obscuridade e que o escuro exerce a função de marco zero de onde parte a irradiação

luminosa (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 568). Se a luz consiste no aspecto

final da matéria que se desloca com certa velocidade, o escuro desponta como seu

aspecto inicial, uma espécie de „luz anterior à luz‟. É, portanto, a origem do

conhecimento, berço de suas mais remotas memórias, dos mais velados afetos, dos mais

desconhecidos desejos, das (quase) imperceptíveis acontecências.

Nesse sentido, também somos nós, leitores, intrusos em um cosmos recriado

pelo olho intrusivo de Patraquim. Em O escuro anterior (2011), o poeta experimenta

um exercício poético que se permitiu arrebatar por um grau profundo de subjetividade,

constituído por imagens-lapsos, reflexos fragmentados de impressões e sensibilidades.

Invadamos, pois, a lucidez desse blackout. A procura pela poesia consiste em “um

grande caminho de sombras e, às vezes, há pequenas iluminações” (PATRAQUIM. In:

ALEIXO, 1999, p. 3). Penetremos no breu do inconsciente que irrompe neste último

livro, a fim de conhecer o que guarda – e aguarda – o mais dentro deste percurso

poético.

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4.4. Mais dentro

Temos a honra de apresentar o silêncio.

(Lui Fontes. “Mais dentro”)

Composta por oito blocos numerados de poemas desprovidos de títulos, a obra

se inicia promovendo um intertexto – e propondo uma recriação – da “grande máquina

do mundo, / Etérea e elemental” (CAMÕES. Apud: HANSEN. In: NOVAES, 2005, p.

158), apresentada por Tétis a Vasco da Gama no Canto X de Os lusíadas. Revela

Patraquim no primeiro verso de O escuro anterior (2011): “Eu vi a máquina fora do

mundo” (ibidem, p. 132).

João Adolfo Hansen, ao conceber Camões como um dos poetas que pensaram o

mundo, considera a máquina do mundo uma alegoria do ato da invenção poética

(HANSEN. In: NOVAES, 2005, p. 157). Elucida o ensaísta que Camões pensava a

poesia como um artifício que resulta de operações técnicas: “para ele, o poema é

literalmente poiema, produto” (ibidem, p. 162). Segundo Hansen, na poesia camoniana

o artifício desse ato é operado como „máquina‟ ou „maquinação‟, termos cuja

etimologia greco-latina conflui para a significação „invenção astuciosa‟, como vemos na

expressão “máquina do mundo” (idem, ibidem). No entanto, a máquina da invenção

poética patraquiminiana está deslocada do mundo pelo qual se pautou Camões. Seus

mecanismos são internos, conforme sugerem seu “brilho ácido arterial / aos gomos”

(PATRAQUIM, 2011, p. 132). Eis a máquina em seu estado primordial, ainda “pedra /

[porém já] multifacetada / e não obstante informe” (idem, ibidem).

Ao ver a máquina fora do mundo, Patraquim recria o engenho camoniano

propondo a descontinuidade do ato de criação poética, assinalada principalmente pela

fragmentação da linguagem e pelo intimismo levado às raias do hermetismo. A

subjetividade é elevada à condição de vertigem metafísica e inaugura um novo grau de

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interpretação para a poesia de Patraquim: sua complexidade não mais exige do leitor a

compreensão intelectiva, mas a leitura intuitiva, como se possível fosse sentir “a

máquina emergindo da solidão dos olhos / lacerando a testa de a imaginar” (idem,

ibidem).

Os artifícios de (re)invenção de imagens viram artimanhas quando

vislumbramos “a máquina depois das mãos [laboriosas de Patraquim] / enquanto Ela

apascentava as formas / e a Rosa” (ibidem, p. 132)

Ver a máquina fora do mundo significa ser dotado de um olho intrusivo capaz de

flagrar – e entender – o início, as origens de tudo o que até aqui se cantou; o que há de

primordial em seu percurso poético, o que antecede sua matéria lírica. Anterior como o

escuro insconsciente é o “Ovo / expandindo-se no tempo / sulfúrico” (ibidem, p. 133).

Sabe o poeta que “devorante é o não sentido” (idem, ibidem) e confessa temer

“pelos olhos escorrendo seu rio / até à cegueira de Onde” (idem, ibidem), afinal, é de

dentro do blackout da escrita poética que o poeta, agora, vê “toda a Luz soluçando / em

seu gume / [e] A concentrada matéria cindindo-se” (idem, ibidem). Acuado pelo

inefável, o poeta confessa sentir-se “contra o muro / e emudeço” (idem, ibidem). Seu

silêncio apresenta-se como palavra poética – eco do mais dentro, lugar em “que antes

das águas Era / o Escuro Anterior” (idem, ibidem), onde “nem Ovo ou Máquina” (idem,

ibidem) havia.

Após uma trajetória lírica de quase três décadas e meia e um punhado de viagens

percorridas de fora para dentro, o vagamundo da Rua de Lidemburgo é conhecedor de

“que é para dentro do corpo que se precipita / a palavra / e [que] nos esquartejamos

alucinados / sob o Indizível” (idem, ibidem). Esquartejados alucinados sob o indizível:

como traduzir em poesia o intraduzível em palavras? Se a máquina do mundo fazia do

poeta um fingidor, um (re)inventor de imagens, o que seria o aedo com a máquina fora

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do mundo? Um (re)inventor de máquinas do mundo. A voz lírica de O escuro anterior

(2011) se lança a um processo de recriação do próprio ato de escrita poética:

Eu vi a máquina

inclinada jarra sem eixo

roda íngrime lacerando os músculos

antes do lume

convulsionada

era no Abysmo sem letras

e o sopro Único

(ibidem, p. 134)

Alta noite

depois do escuro anterior

eu vi a máquina

a máquina prótese

epigramática

e meu canto tinha a tensão de um arco

e cada grito era uma seta

(ibidem, p. 136)

Alta noite

eu vi o escuro

depois da Máquina anterior

A máquina Eco

turbilhonando nas constelações maiores

e era os teus olhos

Leoa desolada à beira rio

fúria mergulhando-se

na sarça ardente tua

imotivada

(ibidem, p. 139)

Das máquinas (fora) do mundo recriadas por Patraquim, a derradeira se volta ao

ponto que a tudo principia: ao olho intruso. O poeta alcançara, enfim, sua “máquina

anterior” (ibidem, p. 152), a máquina íntima, inconsciente, movida por “uterina

potência” (idem, ibidem); máquina-escuro “por dentro da noite” (idem, ibidem),

ordenhada pela fome da criação poética:

Eu vi a máquina anterior por dentro da noite

A mais ínfima

Antes do verbo

E nenhum deus que se anichasse no grão

Inflando

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Incauta a uterina potência abrindo-se a ele

O intruso

O que perdemos de não-ser

E apavora

Disso

Que a solidão ordena e a pedra fere

Ó aprazível máquina que a fome ordenhou

Reconhecência no quarto escuro.

(idem, ibidem)

O engenho poético patraquimiano, ao acionar o artifício da intertextualidade,

promovendo releituras da máquina do mundo, inova também ao reinventar seus

próprios mecanismos intertextuais: Patraquim arrisca, pela primeira vez no conjunto de

sua obra lírica, a “autotextualidade” ou “intratextualidade” (KOCH et alii, 2008, p. 18).

Oriunda da linguística textual, a intratextualidade, um dos desdobramentos

conceituais da intertextualidade strictu sensu, ocorre quando o autor retextualiza trechos

de sua autoria, como o faz nosso poeta ao recriar, ao longo de O escuro anterior (2011),

suas máquinas de invenção poética. A recorrência desse fenômeno textual reafirma,

aliás, o grau de interiorização da terceira e atual fase de sua poesia, capaz, inclusive, de

promover intertextos internos. Assim, flagramos “O poema que caminhava pastoreando

/ A combustão de Si” (ibidem, p. 153).

Anterior à respiração do poema – cujo fôlego íntimo sentimos em Pneuma

(2009) – é o próprio ato criador da palavra poética. Seu canto, gerado quando “alta [era

a] noite / depois do escuro anterior” (idem, 2011, p. 136), “tinha a tensão de um arco / e

cada grito era uma seta” (idem, ibidem). A poesia em seu estado original, gerada no breu

uterino da inconsciência, apresenta, segundo a analogia proposta pelo verso, uma ordem

ternária de formulação, equivalente às fases de um tiro com arco e flecha: tensão,

distensão e arremesso. Patraquim reencontra Neruda, retomando os versos do poeta

chileno que figuram como uma das epígrafes de Monção (1980): lembremo-nos da

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imagem da poesia forjada como arma, “como uma flecha no meu arco” (NERUDA. In:

PATRAQUIM, 1980, p. 11) à espera da hora da vingança, [enquanto] amo-te” (idem,

ibidem). A flecha, que se identifica ao relâmpago e ao raio (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2001, p. 75), uma vez associada ao canto lírico, deixa os domínios do

escuro anterior em busca de seu alvo nos descampados da consciência. A poesia-seta

segue afiada, ágil e certeira na direção de um alvo simbolicamente representado pelo

centro do ser (idem, ibidem). Reconhecemos, em tempo, o inegável reecontro com

Octávio Paz, cujo livro O arco e a lira (1956) teoriza sobre o fazer poético.

De dentro do primevo escuro, o poeta sente o compasso de um “coração

neuronal” (PATRAQUIM, 2011, p. 137), o mais anterior e desconcertante de todos os

ritmos internos, que emerge à feição de “estelar pulsante fonte” (idem, ibidem).

O olho intrusivo, que ao penetrar o blackaout da escrita poética clarifica-se,

flagra no escuro o inusitado parto da poesia: “Eu vi a noite rasgando / a palavra anterior

/ desocultando-lhe a pele / o espesso leite (ibidem, p. 140). Quando “as micaias78

pungem da aorta / [e a voz lírica sente] a sublime cintilação da loucura” (ibidem, p.

141), a poesia principia no mais dentro: é “quando a Palavra cai até a sua última altura /

[e] um incêndio magnífico recomeça / a desordem do Mundo” (idem, ibidem).

O retorno às anterioridades revolve a percepção lírica a um lugar onde também

“há um escuro que dorme na inocência / dos meus olhos” (ibidem, p. 142). Defronta-se

o poeta com a “tresmalhada inocência” (ibidem, p. 143): eu [a] vi / perguntando onde

era a infância / e ria-se” (idem, ibidem). Dentro do escuro anterior, a infância desponta

como uma das máquinas (fora) do mundo de Patraquim, reinventando memórias e

recriando a poesia com “o fluxo do delírio na boca / escorrendo // a constelação

explodida” (idem, ibidem). Os mecanismos da “infância máquina” (ibidem, p. 144)

78

Micaia: tipo de acácia (Acacia nigrescens) típica da flora moçambicana, que cresce em solos pobres e

arenosos.

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articulam a vaivência de flashes em cujos fragmentos de cenas remontam Lidemburgo:

em seus versos ainda “há uma rua que sobrou do sangue [...] e [que] cobra sob os tectos

das casas” (idem, ibidem).

A “infância anterior” (ibidem, p. 145) eclode na intrapoesia patraquimiana como

“o escuro da luz” (idem, ibidem), caracterizada como

O que não pesava do corpo

O que se modulava

sorvendo a matéria do mundo

E expelindo-a

Cordão e labirinto e reentrâncias fedendo

E a metamorfose subindo

Sublimado sussurro

Despojo de cinza e poeira eléctrica

-ferida diamantífera!

E os ombros como um uivo sustendo

O peso vertiginoso da queda

Plausível

O que vi depois das mãos gaseadas

Pelo imotivado sopro

E a boca

Afugentando o Ogre da origem

Se ela Há

A grande cabeça

Tropeçando no Tempo

Eu vi

Era a infância anterior

E o escuro da luz

(ibidem, p. 145)

No encalço da infância, o “primeiro Escuro” (ibidem, p. 156), o intrusivo olho

lírico viu que no mais dentro ainda habita o sopro mnemônico dos “cajueiros de os

erguer / Da infância”, do “arrepio azul dos gala-galas”, dos afetos num “longe aqui tão

perto nos caminhos / Que as mãos afagam”, “e [d]os Amigos latejando” (idem, ibidem).

A “trucidante máquina louca / Do mundo” (idem, ibidem), segundo a poesia de

Patraquim, segue seu “Caminho rasgando as lacerações / E a máscara máquina!”

(ibidem, p. 146), enquanto “Caem as tardes / [como] Se as houvesse e a potência /

Descansasse” (idem, ibidem). De onde o escuro ilumina e o silêncio ressoa, o poeta

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ouve “Então um só nome / O que da pluralidade se erguesse / Até à ressonância dos

vitrais / E se precipitasse” (idem, ibidem). O lirismo patraquimiano, que, ao longo de

suas viagens traçadas de fora para dentro já foi pele, carne, sangue, nervo, osso e

respiração, ao ultrapassar a condição de interior para torna-se anterior, transfigura-se

em impulso, uma espécie de “alado cavalo meu com as ancas / Súbito músculo dádiva”

(ibidem, p. 146).

Com O escuro anterior (2011), Patraquim também promove o fechamento de

um ciclo eólico iniciado em 1980, ao alcançar a monção original e compreender que “o

vento do escuro / Era seu canto” (ibidem, p. 147), que já se manifesta erótico no

blackout da criação poética: “Oh, a precipitação / A púbis / E o Anjo clamando a suma

triangulação / Dos caminhos da Floresta” (idem, ibidem).

A metapoesia arrebata o inconsciente como “exílio da palavra inatingível”

(ibidem, p. 148): “Mãe língua / Que me arpoaste já metamorfoseado peixe / Da lava

anterior / [...] / oiço-te agora no silêncio que obscurece / do escuro / a sossegada pose”

(idem, ibidem). Língua: eis “A matéria anterior / Absyntho negro” (ibidem, p. 153), o

“minucioso abismo” (ibidem, p. 148) defronte do qual o poeta se abeira e testemunha:

“Eu vi // E as palavras Caindo // [ora incêndio, ora] O gelo das alturas” (ibidem, p. 153).

Todavia, a pendular os pés sobre o abismo do indizível, constata a voz lírica que o

poema já não é ganho, mas “vaticinada perda” (idem, ibidem).

De seu escuro particular, o poeta vislumbra “O infinito / Deitado / [enquanto]

Dormia” (ibidem, p. 157), “[seu] sono e [sua] sombra / Alvoroçando o escuro” (idem,

ibidem). Do escuro anterior, a visão do poeta é privilegiada: atenta a minimalismos,

percebe “O entrelaçado da palha / [associando-o a] O sobreposto texto do que cresce da

Terra” (idem, ibidem). Seu olhar alcança as origens de quando “as filhas emergem do

lago das mães” (idem, ibidem), “As mães jorrando de suas bocas / A combinatória da

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carne // E o musgo // Das raparigas crescendo / Deitadas / No sono / infinitas /

entrelaçadas” (idem, ibidem).

Pois se “É do escuro / Que canta o canto [mais íntimo] / De suas estrias”

(ibidem, p. 159), é também de lá que o poeta vê “o som nos caminhos / E o seu desvelo /

Ecoando nas casas” (ibidem, p. 157). É de lá que ele diz “o silêncio das Amadas / [e

conclama:] Ó viajantes / Enlaçai-me!” (ibidem, p. 157). Seu escuro anterior, embora

inconsciente, não é involuntário: “Sou eu que Canto a fulguração / Infinita Vossa / E me

alumio do Escuro” (idem, ibidem), certifica a voz imersa no blackaout da “Alta noite

[em que] o Espírito / e a Máquina / Em seu exílio me enredaram” (idem, ibidem). Na

“Alta noite [da subjetividade] / [o poeta descobre] O Mundo / E a Casa / Além / Infinita

/ deitada” (idem, ibidem), esperando para ser habitada.

Intrusos na alta noite da poesia patraquimiana, atingimos o derradeiro poema de

O escuro anterior (2011) com a impressão de que este livro não termina quando

encerramos nossas leituras. Sentimos como se seus versos precisassem dar continuidade

a um exercício de penetrância, como se possível fosse ir mais dentro de si mesmo.

Compadecemo-nos do desconcerto do poeta e, pela primeira vez nesta tese,

experimentamos angustiante limitação das palavras frente ao indizível. Alvoroçado é,

agora, também o escuro de quem lê.

Ao introduzirmos nossas reflexões acerca deste livro, dissemos que talvez fosse

esta a obra mais iluminada de Luís Carlos Patraquim. Ao percorrermos seus poemas,

dispensamos o talvez. O bardo, que em 1993 confessara a Michel Laban: “Eu tento ser

um poeta que tem consciência do que faz” (PATRAQUIM. In: LABAN, 1998, p. 959),

vinte anos depois escreveria versos, cujo teor de lucidez mostrou-se consciente,

inclusive, do inconsciente.

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Com O escuro anterior (2011), Patraquim buscou traduzir o estágio mais

elementar do processo de criação poética, instante raro em que, poucos sabem, não é o

poeta que está à procura da poesia, mas ainda a poesia à procura de um poeta.

Após três décadas e meia de viandanças líricas, o vagamundo moçambicano

deparou-se com a poiesis crua, apenas lapso, centelha, ímpeto. Afinal, “nem sequer os

poemas interessam: o poema é a objetivação deste mistério que se chama poesia. É isso

que me interessa.” (PATRAQUIM. In: ALEIXO, 1999, p. 3). Em Uma luz no chão

(GULLAR, 1978, p. 30), Ferreira Gullar expressou seus votos para “que a poesia

[tivesse] a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz

qualquer” (idem, ibidem). Interpelado acerca da principal preocupação de sua poesia,

Patraquim não teve dúvidas em relação à resposta: “A poesia, ela mesma. No fundo é

isto. A poesia é um mistério que se procura permanentemente [...], [e], às vezes,

consegue-se a assunção de um verso, a iluminação de qualquer coisa.” (PATRAQUIM.

In: ALEIXO, 1999, p. 3)

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa tese se propôs a estudar a obra poética completa de Luis Carlos

Patraquim, expoente da poesia moçambicana contemporânea. Nascido em 26 de março

de 1953 em Maputo, Patraquim inicia seus laços com as letras pela carreira jornalística

na década de 1970, mas se lança à seara literária ao publicar seus primeiros poemas em

Monção (1980).

Nos primeiros cinco anos que sucederam a independência, proclamada em 25 de

junho de 1975, a atividade editorial em Moçambique foi assinalada pela dispersão.

Apenas algumas reedições, ainda sob a égide da poesia de combate, foram, então

publicadas nesse curto período. Somente a partir de 1980, um novo lirismo se

descortinaria, aos poucos, no país. Embora o teor subjetivo sempre tenha feito parte do

processo de formação da literatura moçambicana, foi pela ação desta nova poesia que a

experiência lírica em Moçambique consolidaria a assiduidade de temas intimistas e

existenciais.

Em 1980, Patraquim trouxe a público seu primeiro livro: Monção. Baseados na

contribuição poética dessa obra, defendemos a ideia de que cabe a Patraquim a

inauguração de um novo lirismo na literatura moçambicana, que caracterizará a

chamada „geração de 80‟. A opção pelo intimismo, potencializado por seus poemas e

que ainda não siginificava uma tendência para a cena literária moçambicana, causou

alarde: o livro foi duramente criticado em jornais da época, questionado acerca da

funcionalidade daquele estilo subjetivo de escrita. Afinal, para que – e para quem –

escrevia Luis Carlos Patraquim? Só o tempo responderia. Apesar das críticas, os dados

para o um novo jogo poético em Moçambique já haviam sido lançados pelo poeta de

Monção (1980).

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A hipótese que defendemos em nossa tese recai sobre seguinte observação: após

percorrermos seus oito livros de poesia – que, em termos cronológicos, equivalem a

quase três décadas e meia de um exercício lírico espaçado, porém contínuo –,

percebemos que o olhar poético de Patraquim, gradativamente, se internalizava: suas

primeiras composições, tão focadas no aspecto exterior da paisagem e do corpo da

amada, partia sempre para novas viagens, aventurando-se, a cada livro, por dimensões

mais profundas do que a que havia sido desbravada na obra anterior. Da pele, sua poesia

passou a vislumbrar a carne, o sangue, os ossos, adentrando, em seguida, por meandros

semimetafísicos, como é o caso do pulmão, metonímia da invisível – porém, perceptível

– respiração do poema. O apogeu deste adentramento de seu olhar lírico, até o presente

instante de sua produção literária, se dá com a publicação de seu mais recente livro, O

escuro anterior (2011).

A interiorização das percepções líricas é igualmente sentida em relação à

abordagem da paisagem geográfica: Patraquim, que inicia sua escrita literária

apreendendo em seus versos os ventos – representados pelas monções –, a terra

(moçambicana, sinonímia ao país) e o mar, paulatinamente, vai minimalizando o grau

da lente com que mira as paisagens natais. Do país, o foco lírico passa a captar a Ilha de

Moçambique, a cidade, o subúrbio, a rua de Lidemburgo, a casa materna, a varanda, até

adentrar nas fragmentadas paisagens da memória.

O conceito de paisagem consiste em um dos cernes teóricos de nossa tese, que

foram embasados segundo as considerações de Simon Schama e de Michel Collot.

Recorremos também a algumas contribuições críticas oriundas da área da Geografia

Cultural. Evidenciamos, ao longo de nossas leituras, que as paisagens são concebidas

pela poesia de Patraquim como camadas mistas de terra e memórias. Por consistirem em

um produto do olhar, consideramos o teor de subjetividade que as compõe, o que nos

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levou à compreensão das paisagens como lugares propícios à emersão de sentidos.

Dotadas de inegável dimensão psicológica, as paisagens servem de espelho aos afetos

na lírica patraquimiana.

À proporção que pormenorizava suas referências paisagísticas, o poeta expandia

a dimensão simbólica de suas imagens, bem como o ciclo de suas relações intertextuais.

O poeta, que se lançou às savanas literárias estabelecendo diálogos, em sua maioria,

restritos a nomes representativos da poesia de língua portuguesa, ampliou,

gradativamente, suas possibilidades dialógicas, universalizando-as.

Optamos por segmentar os capítulos de nossa tese de acordo com as fases que

reconhecemos ao longo de sua trajetória poética, embora nos mantivéssemos

plenamente cientes de que tal divisão não pretendeu consistir em uma proposta de

sistematização da obra do poeta, mas, antes, e tão-somente, em um artifício didático, a

fim de melhor elucidar a hipótese que defendemos. Seus oito livros de poesia

constituíram nossos objetos de estudo: Monção (1980); A inadiável viagem (1985);

Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991); Mariscando luas (1992);

Lidemburgo blues (1997); O osso côncavo e outros poemas (2004); Pneuma (2009) e O

escuro anterior (2011). As três primeiras obras que, segundo o próprio poeta, integram

uma trilogia, compõem a primeira fase da poesia de Patraquim. Os títulos publicados

entre 1992 e 2004 constituem sua segunda fase poética, e as duas últimas publicações, a

terceira. A apreensão do percurso lírico traçado pelo poeta nos proporcionou a

percepção de que sua obra almejou promover reencontros. Explicitemos.

Na primeira fase de sua poesia, que se estende entre os anos de 1980 a 1991, ao

cumprir uma jornada ainda bastante arraigada às paisagens exteriores que compunham

seu universo íntimo, Patraquim reencontrou sua terra. Assinalado pelo signo da viagem,

neste primeiro ciclo, o poeta compôs sua trilogia, conjugando Moçambique a um

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conjunto paisagístico e cultural maior, do qual o país aparece indissociável: o sul da

África.

Na segunda fase de sua poesia, constituída pelos livros publicados entre 1992 e

2004, perceptivelmente mais interiorizada do que a primeira, Patraquim reencontra-se

com Maputo. Mas sua cidade não viera desacompanhada: com ela, estava, também, o

subúrbio em que fora criado, bem como os logradouros de sua infância. Dentre eles,

destacamos a inesquecível rua de Lidemburgo, ainda – e para sempre – a abrigar a casa

paterna, bem como as memórias que lá habitam: a infância, a mãe, tipos, nomes, cores,

ritmos etc.

A terceira e – até o presente momento – última fase da poesia patraquimiana,

prenunciada pelos poemas inéditos de O osso côncavo e outros poemas (2004), porém

consolidada a partir dos dois últimos livros publicados pelo poeta, integra um ciclo que

nomeamos de intrapoética.

A poesia arriscou, enfim, coreografias inspiradas no ritmo da respiração: eis a

hora da monção íntima, dos ares subjetivos. Nesta fase, o poeta se vale de registros

minimalistas, um trabalho quase artesanal de colagem de imagens oriundas de suas

memórias afetivas, o que justifica o grau de fragmentação da linguagem alcançado pelos

poemas deste livro. Seus poemas e “prosemas” assumem o ritmo respiratório

acordeônico da escrita poética, uma espécie de dança aérea, invisível e, no entanto,

sensível, que, em compasso de abre-fecha, coloca o ar em movimento ao expirar,

exalando memórias e percepções de mundo, e inspirar, volvendo-se repleta aos

brônquios do intimismo, reencontrando os mais profundos redutos da subjetividade.

Quando já não conseguíamos imaginar um lugar mais profundo que os

brônquios para a poesia penetrar, Patraquim surpreende-nos ao deflagrar sua nova casa

lírica, ainda mais profunda. Para além de onde sentimos a respiração do poema, está o

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escuro que a tudo antecede: o inconsciente. Metaforizado pelo escuro que a tudo

antecede, a poiesis embrenhou-se ainda mais dentro, promovendo o inebriante

reencontro do poeta com o próprio ato de criação poética. Eis a fase mais clarificada de

sua poesia, bem como a mais interiorizada, hermética e fragmentada de todas até aqui,

em que se desponta uma escrita em blackout.

Defendemos, em tempo, a proposição de que o poeta moçambicano promoveu

profanações com seus trabalhos líricos. Para tanto, recorremos ao conceito de

„profanação‟ desenvolvido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, para quem profanar

significa „reusar‟, restituir ao uso comum algo previamente „sacralizado‟, isto é,

apartado do uso ordinário. Nesse sentido, a profanação constitui uma forma de

libertação e de recriação da coisa profanada. Patraquim profana a literatura

moçambicana na medida em que reinventa, desde 1980, o lirismo intimista em

Moçambique.

Em 2014, ano da defesa desta tese, o poeta completa 34 anos de uma carreira

literária que permanece em curso. Por isso, não pretendemos fazer destas considerações

finais uma conclusão acerca de sua escrita poética. Cientes quanto aos ares de

parcialidade com que findamos nossa tese, sabemos que as reflexões que em nossas

linhas despontaram estarão sempre suscetíveis a reiterações de novos olhares acerca da

obra patraquimiana.

Luis Carlos Patraquim, voz lírica que, livro a livro, foi aprofundando sua

percepção de mundo, na medida em que soube ampliar seus percursos simbólico e

intertextual, vagamundeou por Moçambique e moçambicou o mundo. No encalço das

origens da própria poesia, redescobriu as suas. E redesenhou cartografias íntimas líricas

para o lugar de onde veio, pois é para lá, para a casa da rua de Lidemburgo, que, a cada

poema, ele sempre acaba por regressar.

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7. REFERÊNCIAS PICTÓRICAS, FONOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS

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http://denourapromundo.blogspot.com.br/2012_04_01_archive.html. Acesso em 13 de

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Figura 2: Estádio da Machava, Moçambique, 07 de setembro de 1974: clamava-se pela

independência moçambicana e entoava-se palavras de apoio à FRELIMO. Foto

disponível em: COUTO, Fernando. Moçambique 1974: o fim do império e o nascimento

da nação. Lisboa: Caminho, 2011. p. 317.

Figura 3: Estádio da Machava, Moçambique, 25 de junho de 1975: o primeiro hastear

de bandeira da República Popular de Moçambique. Foto disponível em: COUTO,

Fernando. Moçambique 1974: o fim do império e o nascimento da nação. Lisboa:

Caminho, 2011. p. 320.

Fig. 4. Nyau. Disponível em:

http://bencampbellinzambia.blogspot.com.br/2010/09/kulamba-nyau-and-juju.html.

Acesso em 02 de abril de 2013.

Fig. 5: Timbila. Disponível em:

http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2006/09/timbila_j_no_ap.html. Acesso

em 07 de abril de 2013.

Fig. 6 e 7: Aparição do halakavuma. Disponíveis em:

http://opatifundio.com/site/?p=2185. Acesso em 14 de maio de 2013.

Fig. 8: Tambores n‟goma. Disponível em:

http://portaldesena.blogspot.com.br/2013/06/tambores-ngoma-de-percussao-em-

marromeu.html. Acesso em 25 de junho de 2013.

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Fig. 9: “Gala-gala”. Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Red-headed_Rock_Agama.jpg. Acesso em 24 de

junho de 2013.

Fig. 10: Máscaras de m‟siro. Disponível em:

http://www.africawildtruck.com/en/fotogallery/mozambico. Acesso em 31 de julho de

2013.

Fig. 11: Máscara de m‟siro. Disponível em: http://olhares.uol.com.br/ilha--gentes-e-

costumes--mussiro-ii-foto1724493.html. Acesso em 31 de julho de 2013.

Fig. 12: Casas de macuti da Ilha de Moçambique. Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Island_of_Mozambique_-_Makuti_Town.gif.

Acesso em 31 de julho de 2013.

Fig. 13 e 14: Lápis-lazúli – pedras bruta e polida. Disponível em:

http://www.infoescola.com/rochas-e-minerais/lapis-lazuli/. Acesso em: 20 de novembro

de 2013.

GARRIDO, Toni; LUIS, Pedro; GAMA, Da; LAZÃO; FARIAS, Bino. “Girassol”

[música]. Intérprete: grupo Cidade Negra. Álbum Direto ao vivo. Sony Music, 2006.

HOLLANDA, Chico Buarque; NASCIMENTO, Milton. “O cio da terra” [música].

Intérprete: Milton Nascimento Álbum Geraes. Phillips, 1977.

“O tempo dos leopardos” [filme]. 2‟36‟‟ iniciais disponíveis em:

http://www.youtube.com/watch?v=oMp8rMqELyo. Acesso em: 9 ago 2013.

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8. ANEXOS

Pinturas de Roberto Chichorro que dialogam com os poemas de “Azul subúrbio”

(PATRAQUIM et alii, 1992, p. 9). em Mariscando luas (1992).

1. “Jazz Band Compasso 3 x 4” (CHICHORRO. In: PATRAQUIM et alii, 1992, p.

11)

2. “Voo de papel em azul” (idem, ibidem, p. 15)

3. “Prendas de casamento” (idem, ibidem, p. 17)

4. “Karingana” (idem, ibidem, p. 21)

5. “Acordes nocturnos” (idem, ibidem, p. 23)

6. “Bicicletando luas suburbanas” (idem, ibidem, p. 27)

7. “S/ título” (idem, ibidem, p. 31)

8. “Concerto para noite de luar” (idem, ibidem, p. 33)

9. “Serenata em rosa” (idem, ibidem, p. 37)

10. “Memória Azul” (idem, ibidem, p. 39)

11. “Maria Rua Abaixo” (idem, ibidem, p. 43)

12. “S/ título” (idem, ibidem, p. 45)

13. “Sonhar de vermelho com noite”, (idem, ibidem, p. 49)

14. “Rodar pião em telhado de zinco” (idem, ibidem, p. 53)

15. “Sonhando em voar azul” (idem, ibidem, p. 57)

16. “Com fio de quinhenta” (idem, ibidem, p. 59)

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Jazz Band Compasso 3 x 4 Óleo sobre tela, p. 11

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Voo de Papel em Azul

Aquarela sobre papel, p. 15

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Prendas de Casamento

Acrílico sobre tela, p. 17

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Karingana Acrílico sobre tela, p. 21

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Acordes Nocturnos Acrílico sobre tela, p. 23

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Bicicletando Luas Suburbanas

Acrílico sobre tela, p. 27

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Sem título Acrílico sobre tela, p. 31

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Concerto para noite de Luar Acrílico sobre tela, p. 33

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Serenata em Rosa

Acrílico sobre tela, p. 37

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Memória Azul Acrílico sobre tela, p. 39

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Maria Rua Abaixo

Acrílico sobre tela, p. 43

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Sem título

Acrílico sobre tela, p. 45

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Sonhar de Vermelho com Noite

Nanquim e aquarela sobre papel, p. 49

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Rodar Pião em Telhado de Zinco Acrílico sobre tela, p. 53

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Sonhando em Voar Azul

Acrílico sobre tela, p. 57

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Com Fio de Quinhenta

Aquarela sobre papel, p. 59