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7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto http://slidepdf.com/reader/full/agamben-giorgio-profanacoes-o-autor-como-gesto 1/5 lllll.ll'l Jll ÍV;dtol ll b . ' ,IIP II .\pc\ Í1 \lgll fi l .l ,1 \\ lllhl .li, \IIIJII 'l'lllfl'l C1 11 ' 1' 1111< lo negativo); mas que indivíduos constiw.uH uma cspt'LÍl n o ~ t1.1z wgur.tn~.l. Nada é mais instrutivo do que esse duplo significado do termo "c~pC::cic". Ela é o que se oferece e se comunica ao olhar, o que torna visível e, ao mesmo tempo, o que pode- e deve a qualquer custo- ser fixado em uma substância e em uma diferença específica para que possa constitui r uma identidade. Pessoa significa originariamente máscara, ou seja, algo eminentemente es pecial. Para mostra r o sentido dos processos teológicos, psicológicos e sociais que revestem a pessoa, nada é mel hor do que o fato de os teó logos cristãos terem recorrido a esse termo para traduzirem o grego hypostasis ou seja, para ligarem a máscara a uma substância (três pessoas em uma substância). A pessoa éa captura da espécie e a sua vinculação a uma substância com o objetivo de tornar possível sua identificação. Os documentos de identidade contêm uma fotografia (ou outro d i spositivo de captura da espécie). O especial deve ser reduzido em qualquer lugar ao pessoal, e este ao subs tancial. A transformação da espécie em princípio de i dentidade e de classifica ção é o pecado original da nossa culrura, o seu dispositivo mais implacável. personalizamos algo- referindo-o a uma identidade- se sacrificamos a sua especialidade. Especial é, assim, um ser- um rosto, um gesto, um evento que, não se assemelhando a n ~ n l m m se assemel h a a todos os outros. O ser especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não pode ser objeto de propriedade pessoal. Do pessoal, porém, não são possívei s nem uso nem gozo, mas u n icament e propriedade e ci úme . O ciumento confunde o especial com o pessoal, o bruto confunde o pessoal com o especial. A t tm~ filk é ciumenta de si mesma. A mu lher valorosa br u taliza a si mesma. O ser especial comunica apenas a própria comunicabilidade. Mas esta aca ba separada de si mesma e constituída em uma esfera autônoma. O especial transforma-se em espetáculo. O espetáculo é a separação do ser genérico, ou seja, a impossibilidade do amor e o triunfo do ciúme. 54 O UTOR COMO GESTO Fm 22 de fevereiro de 1969, Michel Foucault proferiu sua conferência O q u ~ , um autor perante os membros e os convidados da Sociedade Francesa de Fi losotla. Dois anos antes, a publicação de As palavras e as coisfl o havia torna do famoso subitamente, e entre o público (estando presentes, entre outros, Jean \ V ah l, que apresentou o conferencista, Maurice de Gandülac, Lucien Goldmann c Jacques Lacan) não era fácil fazer a distinção entre a curiosidade mundana e as expectativas pelo tema anunciado. Logo depois das primeiras frases, Foucault form ula, com uma citação de Beckett ( O que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fala ), a indiferença a respeito do autor como mote ou princípio fundamental da ética da escritura contemporânea. No caso da I reratura- sugere ele - não se trata tanto da expressão de um sujeito quanto da .1benura de um espaço no qual o sujeito que escreve não r a de desaparecer: a marca do autor está unicamente na singularidade da sua ausência . Porém, a citação de Beckett apresenta no seu enunciado uma contradição l JUe parece lembrar i ronicamente o rema secreto da conferência. O que im porta quem fala, alguém disse, o que importa quem fala. Há, por conseguin te, alguém que, mesmo continuando anônimo e sem rosto, proferiu o enunciado, alguém sem o qual a tese, que nega a importância de quem fala, não teria po d ido se r formulada. O mesmo gesto que nega qualquer relevância à identi dade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade. Nessa altu ra, Foucault pode esclarecer o sentido de sua operação. Ela se fundamenta na distinção enrre duas n oções que freqüentemente são confundi das: o autor como indivíduo real, que ficar á rigorosamente fora de campo, e a 55

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7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

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lllll.ll'l

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C1 11 '•1'1111<

lo

negativo); mas que indivíduos constiw.uH uma cspt'LÍl n o ~ t1.1z

w g u r . t n ~ . l .

Nada

é

mais

instrutivo

do

que

esse duplo significado

do

termo " c ~ p C : : c i c " .

Ela é o

que

se oferece e

se comunica

ao olhar, o

que torna

visível e, ao mesmo

tempo,

o que

pode-

e deve a qualquer

custo-

ser fixado em uma substância e

em uma diferença específica para

que

possa constituir uma identidade.

Pessoa significa

originariamente

máscara,

ou

seja, algo

eminentemente

es

pecial. Para

mostra

r o

sentido

dos processos teológicos, psicológicos e sociais

que revestem a pessoa, nada é melhor do

que

o fato de os

teó

logos cristãos

terem recorrido a esse

termo

para traduzirem o grego hypostasis ou seja,

para

ligarem a

máscara

a uma substância (três pessoas

em uma

substância). A pessoa

é

a

captura

da

espécie e a

sua

vinculação a uma substância

com

o objetivo

de

tornar

possível sua identificação. Os

documentos de identidade

contêm

uma

fotografia (ou outro d ispositivo de

captura

da espécie).

O especial deve ser reduzido

em qualquer

lugar ao pessoal, e este

ao

subs

tancial. A transformação da espécie

em

princípio de identidade e de classifica

ção é o pecado original

da

nossa culrura, o

seu

dispositivo mais implacável.

personalizamos a lgo- referindo-o a uma

identidade-

se sacrificamos a sua

especialidade. Especial é, assim,

um ser-

um rosto, um gesto, um evento

que,

não se assemelhando a n ~ n l m m se assemelha a todos

os outros.

O

ser

especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não

pode ser

objeto

de

propriedade

pessoal. Do pessoal,

porém, não são

possíveis

nem uso nem gozo, mas unicamente propriedade e ciúme.

O ciumento confunde o especial com o pessoal, o

bruto

confunde o pessoal

com

o especial. A t t m ~ filk é

ciumenta

de si mesma. A mu l

her

valorosa br utaliza

a

si

mesma.

O

ser

especial

comunica

apenas a própria

comunicabilidade. Mas

esta aca

ba separada de si

mesma

e constituída

em

uma esfera autônoma. O especial

transforma-se em espetáculo. O espetáculo é a separação do

ser

genérico,

ou

seja, a impossibilidade do

amor

e o

triunfo

do

ciúme

.

54

O

UTOR

COMO GESTO

Fm

22 de fevereiro de

1969,

Michel

Foucault

proferiu

sua

conferência O q u ~

, um

autor

perante

os

membros

e os

convidados

da Sociedade Francesa

de

Fi losotla. Dois

anos

antes, a publicação

de

Aspalavras e

as coisfl

o havia torna

do famoso

subitamente,

e entre o público (estando presentes, entre

outros,

Jean

\ V ah l,

que apresentou

o conferencista, Maurice

de Gandülac,

Lucien

Goldmann

c Jacques Lacan)

não era

fácil fazer a distinção entre a curiosidade mundana e

as expectativas pelo

tema

anunciado. Logo depois das primeiras frases, Foucault

form ula, com uma citação

de

Beckett ( O

que importa quem

fala, alguém

disse, o que importa quem fala ), a indiferença a respeito do autor como mote

ou

princípio

fundamental da ética da escritura

contemporânea.

No caso da

I

reratura-

sugere ele - não se

trata tanto da

expressão

de um

sujeito

quanto da

.1benura de um espaço

no

qual o sujeito que escreve não pá ra de desaparecer:

a

marca

do autor está

unicamente na

singularidade

da

sua ausência .

Porém,

a citação

de

Beckett apresenta

no

seu

enunciado

uma contradição

lJUe parece lembrar i

ronicamente

o rema secreto da conferência. O que

im

porta

quem fala, alguém disse, o

que importa

quem fala.

Há,

por conseguin

te, alguém

que,

mesmo

continuando anônimo

e sem rosto, proferiu o enunciado,

alguém

sem

o

qual

a tese, que nega a importância de quem fala, não teria

podido ser formulada. O

mesmo

gesto

que

nega

qualquer

relevância à identi

dade

do autor afirma,

no entanto,

a

sua

irredutível necessidade.

Nessa altura,

Foucault

pode esclarecer o

sentido de sua

operação. Ela se

fundamenta

na

distinção enrre duas

noções

que freqüentemente

são

confundi

das: o autor

como

indivíduo

real, que ficará

rigorosamente

fora

de campo,

e a

55

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7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

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lull\· ' .tu t or,

a

ún ic 1 11 1 tp tal FouL.ndt L<liiLT IIt J.li.Í to d .t .1.\l t. t . llt. íliw <>

nolll<'

de autor não é simplesmente um

nome

próprio

como os

outros, nem no plano

da descrição nem naquele da designação. Se,

por

exemplo,

me

dou

co

n ta de

que

Pierre Dupont não tem olhos azuis, ou náo nasceu em Paris

conforme

acredi tava, ou não exerce a profissão de médico- o

qu

e, por algum motivo, lhe

at ribuía - o nome

próprio

Pierre Dupont co ntinuará para sempre referindo

se à

mes

m a pessoa; mas se descub ro

que

Shakesp

ea

re não escreveu as t ragédias

que lh

e sáo

atribuídas e,

pelo

contrário,

escreveu o

Organon

de

Bacon,

ce

rta

me nte não se pod erá d izer

que

o nome de autor Shakespeare não tenha

muda

do sua

função. O

nome

de au

to

r não se refere sim

plesmente

ao estado civil,

não vai, como acontece com o nome próprio, do interior de

um

d iscurso para

o indiv

íd

uo real e exterio r que o

pro

duz

iu

  ; ele se situa, antes, ''n os limi tes dos

texros , cujo estatuto e regime de circulação no interior d e

uma

determinada

sociedade ele define. Poder-se-ia afirmar, po rtan to, qu e, em uma cult u ra como

a nossa,

discursos

dotados

da

função-au

tor, e

outros

q ue sáo desprovidos

de la .. A fu

nção-auto

r caracteriza o m

odo

de existência,

de

c

ir

culação e de

funcionamen

to

de ce

rt

os di

scu rsos no in te ri

or

de u

ma

sociedade.

Disso nascem

as diferentes características

da

função-autor

no

nosso tempo:

um regime part icular de apropriação,

que

sanciona o direito de au

tor

e, ao

mesmo

tempo,

a

poss

ibilidade de dist

inguir

e selecionar

os

discursos

entre

textos literários e tex tos científicos, aos q

ua

is correspondem mo dos diferentes

da própria função; a possibilidade de autenticar os textos, consti

tuindo-os

em

cânon e ou, pelo contrário, a possibilidade

de

cer tificar o seu caráter apócrifo; a

dispersão da fu

nção

en u nciativa

simu

ltan

eame

nt

e em mais sujeitos

que

ocupam

lugares diferentes; e, por fim, a possib ilidade

de

co nstruir uma função trans

di

sc

ursiva, que constitui o a

ut

or, para além dos li mites da sua o h r ; ~

como

instaurador de d iscursividade (Marx é muito mais do q ue o

au101

dt· O capi-

tal, e Freud

é

bem mais q ue o autor de Interpretação dos sonhos .

Dois

anos depois,

ao apresentar

na Un iversidade

de Buff .do 111 11 1

versão

modificada

da confe

rência, Foucault opõe ainda mais drastitallH

tll

c o autor

indivíduo

real

à função-autor. O

autor não

é

uma

fonte intlntl.t ( ,,,gniflca

dos que p reench

em

a obra, o autor não precede as 1:

·

11111 dct•·

rminado

princíp

io

func

ional através do qual, em nossa cultura, se li nlit.t , w ,.  Jni, se

56

w Jt•t io>ll.l t l l l 11111 1

p.tl.tVJ.I,

.: o

Jl i Í II l ÍJ l i l l

.II J.l Vé,

d o

' l ll .d ' • l

tJÍ . I I II

oJl.\l.Ít

lli o•,

P· ' '

. 1

lt vll· <lltuhc,::lo, a livre manipulação, a livre co mposiçao, dccomposiçu>

c rt:composiçào da tkçáo.

Nessa divisão entre o sujeito-autor e os dispositivos que

consolidam

a sua

função

na sociedade, volta a aparecer um gesto q

ue

marca

profundame

nte a

estratégia foucaultiana.

Por um

lado, ele repete com alguma freqüência que

nunca deixou de tr aba

lh

ar sobre o suje ito ; por o u tro, no

contexto

das suas

pesquisas, o

sujeito

como

i

nd

i

víduo

vivo se

mp

re

está

pr

esente

apenas através

dos

processos objetivos de sub

je t

ivação que o constituem e

dos

disposit ivos

que o inscre

vem

e

capturam

nos mecanismos do poder. Provavelm ente é por

esse

motivo

que críticos hostis puderam

quest

ionar em Foucault, e

não

sem

incoerência, a presença contemporânea de uma absoluta indiferença pelo

in d

i

víduo em

carne

e osso, e

de

um olhar decididamente estetizante a respeito

da

subjetividad e. Aliás,

Fouc

au

lt tinha plena

co nsciência dessa apa r

ente

aporia.

Ao apresentar, no início dos anos 80, o próprio método para o D ictionnairedes

philosophes, ele escrevia que rejeitar o recurso filosófico a um sujeito

con

sti

tuinte não significa agir como se o sujeito

não

existisse, e fazer disso uma

abstração

a favor

de uma pura

subjetividade; tal rejeição

tem,

s

im,

por

objetivo

fazer

aparecer os

processos

próprios que

definem

uma

experiência

na

qual o

sujeito e o objeto 'se formam e se transformam'

um

em relação ao outro e

em

função

do o utro . E a

Lucien Go

ldmann

que

,

no

debate após a

conferência

sob re o

autor,

lhe atribu ía a intenção de cancelar o sujeito individual, de

podia

responder iron icamente: definir

como

se exerce a função-autor[ .. não equi

vale a d i

zer que

o autor

não

existe[ ..]

Retenhamos

,

portanto,

as lágrimas .

Nessa perspectiva, a função-autor aparece como processo

de

subjetivação

me di

ante

o qual um ind ivíduo é identificado e constituído

como

autor de

um

certo

corpus

de textos. Falta dizer

que,

desse

modo,

to

da

investigação sobre o

sujeito

como

ind ivíduo parece

te

r que ceder o l

ugar

ao

regesto·,

que

define

as

condições e as formas sob as quais o sujeito

pode

aparecer na ordem do discur

so. Nessa ordem, segu

ndo

o d iagnóstico que Foucault não

pára

de

repet

ir, a

R  g sto

é

uma coletânea de atas e documentos, resumidos ou loanscritos em suas

partes consideradas essenciais, ou então um resumo de um determinado documen

t histórico.

(N. T.)

57

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7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

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Jll.II"Ca do C.\U i o r reside.: un k. Jlll l'lliC na sin  ul.u f  d .1 ~ 1 1 1 .

111

\l-

JHi.1  .1 .f 

cabe o pape.:

do morto no

jogo

da

escritura". O autor

o

c. >

t

.Í morto

,

p(

lr

se como autor significa ocupar o lugar de

um

morto. Existe

um

sujeito-autor,

e,

no entanto,

ele se

at

esta unicamente por meio dos s

in

ais

da

sua ausência.

Mas de que maneira

uma

ausência pode ser singul

ar?

E o

que

significa, para

um

indivíduo,

ocupar o lugar de um morto, deixar as

próprias

marcas em um

lugar vazio?

Na obra

de

Foucault talvez haja

um

só texto

no

qual essa dificuldade brota

tematicamente na consciência,

em

que a ilegibilidade

do

sujeito apa rece

por

um

instante em todo o seu esplendor. Trata-se de A vida os homens infames,

concebido originalmen te

como

prefácio

de

u

ma anto

logia de documentos de

arq uivo, registros de internação

ou lettres de cachet, em que

o enc

ontro

com o

poder, no

mesmo momento em que as deixa

ma

rcadas de infâmia, arranca da

noite e do

silêncio existências humanas que, do co

nt

rári

o,

não teriam deixado

nenhum sinal

de

si. O gesto e escárnio do sacristão ateu e sodornita Jean

Antoine Touzard, internado em Bicêtre em 21 de abril de 1

701,

e o obscuro e

obsrinado vagabundear de Matburin Milan, internado

em

Charenron em

31

de

agosto de 1707 , brilham apenas por

um

inst

ante no

feixe de luz

que

projeta

sobre eles o poder; no entanto, naquela instantânea fulgu ração, algo u ltrapassa

a subjetivação

que

os condena ao

op

róbr io, e fica sinalizado nos enunciados

lacônicos do arquivo como o sinal luminoso

de

outra vida e

de

outra história.

Certamente

as vidas infames aparecem apenas por terem sido citadas pelo dis

curso do poder, fixando-as por

um

momento como autores de atos e discursos

celerados; mesmo assim, assim c

omo

acontece nas fotografias

em

q

ue

nos

olha

o rosto remoto e bem próxi

mo

de

uma

desconhecida, algo naquela infâmia

exige o próprio nome, testemunha de si para além de qualquer expressão e de

qualquer

memória.

De

que

maneira essas vidas estão presentes na$ anotações míopes e cursivas

que

as legaram para sempre ao arquivo impiedoso da infâmia? Os escribas

anônimo

s, os funcionários menos graduados que redigiram tais observações,

certamente

11ão

pretendi

am

nem conhecer e nem representar; seu único obje

tivo era marcar

de

infâmia.

No

e

nt

anto, pelo menos por

um

ins tante, as vidas

58

.Jilh.tm JlalJ

Uelas

páginas

com uma

luz negra, ofuscante.

Porventura

se

dirá

por isso que aí elas encontraramexpressão, que, mesmo

de

forma drasticamen

te ab reviada, de algum modo nos foram comun icadas, dadas a conhecer? Pelo

contrário, o gesto com o qu al foram fixadas parece su

bt r

aí-l

as

pa ra sempre

de

toda possível apresentação,

co m

o se elas comparecessem

na

linguagem apenas

sob a condição de continuarem absolu tamente inexpressas.

É

possível , então, que o texto de 1982 co ntenha algo

pa

r

ecido

com a chave

de leitura da

conferência

so b

re o

auto

r,

que

a vi

da

infame c

ons

t

itua de

algum

modo

o paradi

gma da

presença-ausência

do autor na obra

. Se

chama

rmos

de

gesto o

que continua

inexpresso em cada ato de exp ressão, poderíamos afirmar

então gue, exatamente como o infame, o autor

está

presente no

texto apenas

em um gesto,

que

possibilita a expressão na mesma

medida

em que nela instala

um

vazio central.

Como se deve entender o modo dessa presença singular, ern

que

urna vida

nos aparece unicamente

por meio

daquilo que a silencia e distorce

com uma

careta? Foucault parece se dar conta dessa dificuldade. Não encontrareis aqui",

escreve, "

uma

ga

leria

de

retratos; trata-se,

pelo contrário, de armad

ilhas, ar

mas, g

ri

tos , gestos, atitudes, astúcias, intrigas, cujo instrumento foram as pala

vras. Vidas reais foram 'po stas em jogo'

(jottées)

nessas frases; não

quero

dizer

que ali f

oram fi

g

ur

adas ou representadas, mas que, de fato, a sua liberdade, a

sua desventura, muitas vezes

também

a sua

morte

e,

em todo

caso,

seu

desti no

foram, ali, pelo menos

em

parte, decididos. Esses discursos realme

nte

atraves

saram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e

perdida

s nessas

palavras".

Já era óbvio que não pudesse se tratar de retratos nem de biografias; o que

costura as vidas infames corn as escassas escrituras que as registram não é

uma

relação

de

represe

ntação

ou

de

simbolizaçáo,

mas

algo di

fe

r

ente

e mais essencial:

elas foram "postas

em

jogo" naquela s frases, nelas a sua liberdade e a sua des

ventura foram riscadas e decididas.

Onde está

Ma t

hurin Milan?

Onde

está Jean-Antoine Touzard? Não nas

lacônicas observações

que

registram a sua presença

no

arquivo

da

infâmia.

em

sequer fora

do

arquivo, em uma realidade biográfica

de

que literalme

nt

e

5 )

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7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

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n.ul.a . .ahnll ·

·

Flt·., C\t.ao 1111 llllllll.d dll tcxt11 n11 <

JII

<

lw.un

I' ·  ' 'lll

i l'.

1111,

lJU<:m sabe, a sua ausência, o seu

voltar

as coM.t.\ para nús para semp re pücm

nas bordas do arquivo, como o gesto

que,

ao mesmo tempo, o tornou

po

ssível

e

lhe

excede e

anula

a intenção.

Vidas

reais foram 'postas

em

jogo'

(jouées) é,

nesse

contexto,

uma expres

são ambígua, que as aspas procuram sublinhar. Não ramo porque

jotter

tam

bém tem

um

significado teatral (a frase poderia significar também foram

colocadas

em

cena, recitadas"), mas

porque, no

texto, o

agen

te,

quem

pôs

em

jogo

as vidas, fica

intenciona

l

mente

na sombra.

Quem

pôs em jogo as vidas?

Os próprios homens infames,

abandonando-se sem

reservas, como Mathurin

M ilan, ao seu vagabundear, ou Jean-Antoine Touzard,

à sua

paixão sodomita?

Ou então, como parece mais provável, a conspiração de familiares, funcionários

anônimos, de

chanceleres e policiais, que levou à internação dos mesmos? A

vida

infame não

parece pertencer integralmente nem a uns nem a outros, nem

aos registros dos

nomes

que no final deverão responder por isso, nem aos fun

cionários

do

poder que, em rodo

caso, e no final

das contas,

decidirão a respei

to dela. Ela é apenas jogada, nunca possuída, nunca representada, nunca dita

por

isso

ela

é

o l

ugar

possível, mas vazio,

de uma

ética,

de

uma

forma-de-v

i

da.

O

que

significa, porém, para uma vida, pôr-se-

ou

ser posta- em jogo?

Nastasja Filippovna- no Idiota de Dostoievski-

entra na

sala de visit as

de

sua casa na noite em que decidirá sobre sua v ida

Prometeu

a Manasij lvanovic

Tockij, o homem que a desonrou e manteve até então, dar-lhe uma resposta à

sua oferta de casar com o jovem Canja

em

troca de 75 mil rublos.

Na

sala de

visitas estão presentes rodos os seus amigos e conhecidos, também o general

Epanein,

também

o inefável Lebedev, o venenoso Ferdyseenko, o príncipe

Myskin,

também Rogozyn, que

em certo

momento entra

à resta de um ban

do

inapresentável, trazendo nas

mãos um

pacote de cem mil rublos, destinados a

Nastasja. Desde o início a noitada tem algo de

doentio,

de febril. De resto, a

dona

da

casa não cansa

de

repeti-lo: tenho febre, estou mal.

Ao aceitar jogar o

desag

radável jogo de sociedade proposto

por

Ferdyscenko,

no qual

cada

um deve co nfessar a própria abjeção, Nastasja põe imediatamen te

roda a noitada

sob

o signo do jogo. E é por

jogo

ou

capricho que fará com

que

a sua resposta a Tockij seja dada pelo

príncipe

Myskin, que para ela é quase

um

60

de·,,., ,, , .. ' " dq>oÍ\, tudo p• n•.ion.t, tudu ptn il'it .t. lnap oVi• <d llll<:llll: da

.1u·iu ' , · ·u t 111 o

plÍnt

ipc,

p .11.1

se dt·sdrt.t'l inwdi.tl.lllltltl< ' ,. t'scolhcr o

t·h•io

R o ~ o i v n

E, a C<:rta altura, co mo se estivesse perturbada, agana o pacote

com

os ce

m mil rubl

os

e

os joga

no fogo,

prometendo ao

ávido Canja

que

o

dinheiro

será seu , se o conseguir retirar das chamas com as suas mãos.

O

que

dirige as ações

de

Nastasja Filippovna?

Certamente

os

seus

gestos,

por mais exagerados que sejam, são incomparavelmente superiores aos cálcu

l

os

e aos

modos

contidos

de

todos os

presentes

(com uma ún

i

ca

exceção, que é

Myskin).

No

entanto,

é impossível divisar neles al

go

pa recido com uma deci

são racional ou

um

princípio moral. Nem sequer se pode

afirmar

que aja para

se vingar (de Tockij, por exemplo). Do início ao fun, Nastasja parece

tomada

pelo

delírio, conforme os

seus amigos não se cansam de observar ("mas o

que

estás

dizendo,

tens

um

ataque , "não a entendo, perdeu a cabeçà').

Nastasja Filippovna

pôs

em jogo a sua vida- ou, talvez,

permitiu

que da

fosse posta

em

jogo

por

Myskin,

por

Rogozyn, por

Lebedev

e,

no fundo,

pelo

próprio capricho. Por isso, o seu

modo contido

é inexplicável, por isso ela fica

perfeitamente

ilibada e incompreendida em todos os seus atos. Érica não é a

vida que simplesmentese submete

à

lei moral, ma s a que aceita, irrevogavelmente

e sem reservas, pôr-se em

jogo

nos seus gestos.

Mesmo

correndo o risco

de

que,

dessa maneira, venham a ser decididas, de uma vez por todas, a sua felicidade

e a sua infelicidade.

O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada, não

expressa; jogada, não realizada.

Por

isso, o

autor

nada

pode

fazer além de

conti

nuar, na

ob

ra,

não

realizado e não dito. Ele

é

o ilegível que torna possível a

leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso. O gesto

do

autor

é

atestado na obra

a

que

também dá vida,

como uma

presença

incongruen

te e estranha, exatamente como, segundo os teóricos da comédia de arte, a

trapaça de Arlequim incessantemente

interrompe

a hist6ria que se desenrola

na cena, desfazendo obstinadamente a

sua

trama.

No

entanto, precisamente

como,

seg u

ndo

os mesmos teóricos, a trapaça deve seu nome ao faro de que,

como um laço, ele volta cada vez a reatar o fio que solto u e desapertou, assim

também

o gesto

do autor

garante a vida da obra

unicamente

através

da

presen

ça irredutível de

uma

borda inexpressiva. Assim como o mímico no seu

6 1

Page 5: AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

7/23/2019 AGAMBEN, Giorgio - Profanações, O Autor Como Gesto

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t Uc

de mesmo

criou. E assim

como em

certos livros vdltn·.

que

reproduzem ao

lado do frontispício o

retrato

ou a fotografia do aucor, nós

procuramos

em vão decifrar,

nos

seus traços enigmáticos, os

motivos

e o

senti

do

da obra como o exergo intratável,

que

pretende ironicamente deter o seu

inconfessável segr

edo.

No entanro,

precisamente o gesto ilegível, o

lugar que

ficou vazio é o

que

torna possível a leitura. Isso acontece com a poesia

que co

m

eça com

Padre

polvo que mbes de

Espana

Sabemos- ou, pelo menos,

assim

nos

foi

dito- que

ela foi escrita em

algum

dia de

1937,

por

um

homem chamado

César

Vallejo,

que havia nascido no

Peru

em

1892

e que agora

está enterrado

no

cemitério de

Montpamasse,

m Paris,

ao lado de sua mulher Georgette,

que

lhe

sobreviveu

por

muitos anos

e é responsável, pelo que parece, pela má

edição daquela

poe

sia e

dos outros

escritos

póstumos. Tentemos

identificara relação que

constitui

a poesia

como obra de César

Vallejo

(ou César

Vallejo

como autor daquela

poesia). Deveremos entender tal relação no

sentido de

qu

e,

um

dia, aquele

sentimento

particular, aquele

pensamento

incomparável, passou

por

um

átimo

na mente e no espírito do

indivíduo

com o nome César Vallejo?

Nada

é

menos

certo. provável, pelo

contrário,

que só depois de

ter

escrito - o u enquanto

escrevia - a poesia, aquele

pensamento e

aquele

sentimento se lhe tornaram

reais, precisos e indesapropriáveisem cada detalhe, em cada matiz (assim como

s

os tornam para nós apenas no

momento em que

lemos

a poesia).

Porventura

isso significa que o lugar do

pensamento

e do

sentimento

está

na própria poesia, nos sinais que compõem o seu texto?

Mas

de que maneira

uma paixão e um pensamento

poderiam estar contidos

em uma folha de pa

pel?

Por

definição, um

sent

i

mento

e um

pensamento

exigem um sujeito

que

os

pense

e experimente. Para

que

se façam presentes,

importa,

pois,

que

alguém

tome pela

mão

o livro, arrisque-se

na leitu

r

a. Mas

isso pode significar apenas

que tal

indivíduo ocupará

no

poema exatamente

o

lugar

vazio q u l n am o r ali

deixou,

que ele repetirá o mesmo gesto inexpressivo através

do <p

t d o autor

tinha sido testemunha de

sua

ausência na obra.

O lugar- ou

melhor,

o

ter lugar-

do

poema

não está, pois, tH·m no texto

nem no

autor

(ou no

leitor): está

no

gesto

no qu a

l

autor

e lcitot \t

põem

em

62

jogo no tcxw c, ao

mesmo

tempo,

infinitamente

fogem disso. O autor não é

mais

que

a

testemunha,

o fiador

da

pr

ópria

falta na

obra

em que foi

jogado; e

o leitor não pode deixar de soletrar o testemunho, não pode, por

sua

vez, deixar

de

transformar-se

em fiador do

próprio

inexausto ato de

jogar

de não se

ser

suficiente

. Assim como, segundo a filosofia

de

Averróis, o pensamento

é único

e

separado dos indiv

íd

uos

que, de

cada

vez, se unem a ele através

das

suas

imaginações e

dos

seus fantasmas,

também

autor e leitor estão

em

rc:lação

com

a

obra sob

a

condição de continuarem

inexpressos.

No

entanto,

o texto

não tem

outra

luz

a

não

ser aquela-

opaca- qu

e irradia do testemun ho dessa ausência.

Precisamente por

isso,

po

r

ém,

o

autor

estabelece

também

o

limite para

além

do

qual nenhuma

interpretação

pode ir. Onde a leitura

do

poetado en

contra,

de qualquer modo, o lugar vazio do vivido, ela deve parar. Pois tão

ilegítima quanto a tentativa de

construir

a personalidade

do autor

através da

obra é a

de tornar seu

gesto a chave secreta da leitura.

Talvez, nessa altura, a

aporia de Foucault

esteja

começando

a ficar

menos

enigmática. O

sujeito-

assim

como

o autor, como a vida

dos

homens infames -

não

é algo que possa ser alcançado diretamente

como uma

realidade substancial

presente

m

algum

lugar; pelo contrário, ele

é

o que resulta do encontro e

do

corpo-a-corpo

com os dispositivos

em

que foi

posto

- se

pôs

-

em

jogo. Isso

porque também

a escritura -

toda

escritura, e

não

só a

dos

chanceleres

do

arquivo da infâmia-

é um dispositivo,

e

a história

dos homens

talvez não seja

nada mais que um incessante corpo-a-corpo com

os

dispositivos que eles mes

mos produziram

-

antes de qualquer outro,

a linguagem. E ass

im como

o

autor

deve

continuar inexpresso na obra e no entanto, precisamente desse

modo testemunha a

própria

presença irredutível, também a

subjetividade

se

mostra

e resiste

com

mais força

no ponto em que

os dispositivos a

capturam

e

põem em jogo.

Uma subjetividade produz-se onde o

ser

vivo,

ao encontrar

a

linguagem

e pondo-se

nela

em jogo sem reservas, exibe em

um

gesto a

própria

irredutibilidade

a ela. Todo o resto é psicologia e em nenhum lugar na psicolo

gia

encontramos

algo parecido

com

um sujeito ético,

com uma forma de

vida.

63