Giorgio Agamben - Tempo e História

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INFNCIA E HISTRIADESTRUiO DA EXPERINCIA E ORIGEM DA HISTRIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitora: Ana Lcia Almeida Gazzola Vice-Reitor: Marcos Borato Viana EDITORA UFMG Diretor: Wander Meio Miranda Vice-Diretora: Heloisa Maria Murgel Starling CONSELHO EDITORIAL Wander Meio Miranda (presidente) Carlos Antnio Leite Brando Heloisa Maria Murgel Starling Jos Francisco Soares Juarez Rocha Guimares Maria das Graas Santa Brbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Srgio Lacerda Beiro

TraduoHENRIQUE BURIGO

Belo Horizonte Editora UFMG

2005

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Toda concepo da histria sempre acompanhada de uma certa experincia do tempo que lhe est implcita, que a condiciona e que preciso, portanto, trazer luz. Da mesma forma, toda cultura , primeiramente, uma certa experincia do tempo, e uma nova cultura no possvel sem uma transformao desta experincia. Por conseguinte, a tarefa original de uma autntica revoluo no jamais simplesmente mudar o mundo, mas tambm e antes de mais nada mudar o tempo. O pensamento poltico moderno, que concentrou a sua ateno na histria, no elaborou uma concepo correspondente do tempo. At hoje o prprio materialismo histrico furtou-se assim a elaborar uma concepo do tempo altura de sua concepo da histria. Em virtude dessa omisso, ele foi inconscientemente forado a recorrer a uma concepo do tempo que domina h sculos a cultura ocidental, e a fazer ento conviver, lado a lado, em seu prprio mago, uma concepo revolucionria da histria com uma experincia tradicional do tempo. A representao vulgar do tempo como um continuum pontual e homogneo acabou ento desbotando sobre o conceito marxista da histria: tornou-se a fenda invisvel atravs da qual a ideologia se insinuou na cidadela do materialismo histrico. Benjamin havia j denunciado este perigo nas suas Teses sobre a filosofia da histria. chegado agora o momento de trazer luz o con- l), ceito de tempo implcito na concepo marxista da histria.

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Dado que a mente humana tem a experincia do tempo mas no a sua representao, ela necessariamente concebe o tempo por intermdio de imagens espaciais. A concepo que a antiguidade greco-romana tem do tempo fundamentalmente circular e contnua. Dominado por uma idia de inteligibilidade que assimila o ser autntico e pleno quilo que em si e permanece idntico a si mesmo, ao eterno e ao imutvel, o grego considera o movimento e o devir como graus inferiores da realidade, em que a identidade no mais compreendida seno - no melhor dos casos - como permanncia e perpetuidade, ou seja, como recorrncia. O movimento circular, que assegura a manuteno das mesmas coisas atravs da sua repetio e do seu contnuo retorno, a expresso mais imediata e mais perfeita (e, logo, a mais prxima do divino) daquilo que, nOBp.a~ mais alto da hierarquia, absoluta imobilidade (Puech)l. No Timeu de Plato, o t_~!lipo, riledid pela revoluo cclica das esferas celestes, definido como uma imagem em movimento da eternidade: O criador do mundo fabricou uma imagem mvel da eternidade e, ordenando o cu, fez, a partir da eternidade imvel e una, esta imagem que se move sempre conforme as leis do nmero e que ns denominamos tempo. Aristteles reafirma o carter circular do tempo concebido como tal: Eis por que o tempo parece ser o movimento da esfera, porque este movimento que mede os outros movimentos e mede inclusive o tempo ... e tambm o tempo parece ser uma espcie de crculo ... razo pela qual dizer que as coisas geradas constituem um crculo dizer que existe um crculo do tempo. A primeira \\ conseqncia desta concepo a de que o tempo, sendo , essencialmente circular, no tem direo. Em sentido prprio, no tem incio, nem centro, nem fim, ou melhor, ele os tem somente na medida em que, em seu movimento circular, retorna incessantemente sobre si mesmo. Como explica uma passagem singular dos Problemas de Aristteles, impossvel

dizer, deste ponto de vista, se ns somos posteriores ou anteriores guerra de Tria: Aqueles que viveram no tempo da guerra de Tria so anteriores a ns, e so anteriores a eles os que viveram em um tempo ainda mais antigo, e assim por diante ao infinito, os homens que se encontram mais atrs no passado sendo sempre anteriores aos outros? Ou seja, se verdade que o universo tem um incio, um meio e um fim; se aquilo que, envelhecendo, chega ao seu fim, retornando tambm, por isso mesmo, ao seu incio; se verdade, por outro lado, que anteriores so as coisas mais prximas do incio: o que impede ento que estejamos mais prximos do incio do que aqueles que viveram no tempo da guerra de Tria? .. Se a seqncia dos acontecimentos um crculo, pois o crculo no tem propriamente incio nem fim, ns no podemos, devido a uma maior proximidade do incio, ser anteriores a eles, nem eles se podem dizer anteriores a ns. Mas o carter fundamental da experincia grega do tempo que, atravs da Fsica de Aristteles, determinou por dois mil anos a representao ocidental do tempo, o que faz dele um continuum pontual, infinito e quantificado. O tempo assim definido por Aristteles como nmero do movimento conforme o antes e o depois, e a sua continuidade garantida pela sua diviso em instantes (to tryn, o agora) inextensos, anlogos ao ponto geomtrico (stigme). O instante, em si, nada mais que a continuidade do tempo (.ryncheia chrnou), um puro limite que conjunge e, simultaneamente, divide passado e futuro. Como tal, ele algo que no pode ser aferrado, cujo paradoxal carter nulificado expresso por Aristteles na afirmao de que o instante sempre outro, na medida em que divide o tempo ao infinito, e, contudo, sempre o mesmo, na medida em que une o porvir e o passado garantindo a sua continuidade; e esta sua natureza o fundamento da radical alteridade do tempo e do seu carter destrutivo: Visto que o instante , simultaneamente, fim e incio do tempo, no da mesma poro dele, mas fim do passado e incio do futuro, assim como o crculo no mesmo ponto cncavo e convexo, da mesma maneira o

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~.L ;);/,',D')'Jtempo estar sempre prestes a comear e a terminar e, por esta razo, ele parece sempre outro. A incapacidade do homem ocidental de dominar o tempo (e a sua conseqente obsesso de ganh-lo e de faz-lo passar) tem o seu primeiro fundamento nesta concepo grega do tempo como um continuum quantificado e infinito de instantes pontuais em fuga. Uma cultura com semelhante representao do tempo no poderia ter uma experincia genuna da historicidade. Afirmar que a antiguidade no tivesse uma experincia do tempo vivido certamente uma simplificao, mas tambm certo que o lugar em que os filsofos gregos tratam o problema do tempo sempre a Fsica. O tempo algo de opjetivo e de natural, que envolve as coisas que esto dentro dele como em um invlucro (periechn): assim como cada coisa est em um lugar, ela est no tempo. Fez-se freqentemente remontar o incio da concepo moderna s palavras com as quais Herdoto abre as suas Histrias: Herdoto de Halicarnasso expe aqui os resultados de suas buscas, a fim de que o tempo no apague os feitos dos homens ... o carter destrutivo do tempo que as Histrias desejam combater e isto confirma a natureza essencialmente no histrica da concepo antiga do tempo. Assim como a palavra que indica o atQdeconhecer (eidnaz), tambm a palavra histora deriva da raiz id-, que significa ve~. Hstor , na origem, a testemunha ocular, aquele que viu. A supremacia grega da vista encontra tambm aqui a sua confirmao. A determinao do ser autntico como presena ao olhar eJ(clui uma experincia da histria, que aquilo que j est sempre l sem jama.is -estar s~h os olhos como tal. uma.li~Sfa, Ao contrrio do helenismo, o mundo, p~;a" o cristo, criado no tempo e deve acabar no tempo. De um lado, a narrativa do G~.!1ese,de outro:'~ perspectiva escatolgica do Af>~.s~JiPse.E a criao, o ]uzo Final, o perodo intermedirio que se desdobra de um a outro desses dois eventos, so nicos. Este universo criado e nico, que comeou, dura e acabar no tempo, um mundo finito e limitado dos dois lados de sua histria. No nem eterno nem infinito em sua durao, e os ev~ntos que se desenrolam nele no se repetiro nunca (puech). Alm disso, em contraste com o tempo sem direo do mundo clssico, este tempo tem uma direo e um sentido: ele se estende irreversivelmente da criao ao fim e tem um ponto de referncia central na reencarnao de Cristo, que ca:iact~ri~~ o seu desenvolvimento como um pr8E!!9.ir da queda ln1Clal redeno final. Por isso santo Agostinho pode opor aos fa{~r"circu!i dos filsofos gregos a via recta do Cristo, eterna repetio do paganismo, na qual nada novo, a novitas crist, em que tudo acontece sempre uma vez s. A histria da humanidade mostra-se assim como uma histria da sade, 1 ou seja, da realizao progressiva da redeno, cujo fundamento se encontra em Deus. E , nesta conJ'untura , ~,:~yento nico e insubstituveL \..'" Malgrado o seu aparente desprezo pelo sculo, foi o cristianismo a estabelecer as bases para uma experinc'da historicidade, e no o mundo antigo, ainda que to atento aos eventos mundanos. O cristianismo , de fato , separa resolutamente o tempo do movimento natural dos astros para fazer dele um fenmeno essencialmente humano e interior. Se os astros no cu se detivessem - escreve santo Agostinho, com uma expresso que soa singularmente moderna - e a roda do oleiro continuasse a girar, no haveria porventura o tempo para medir as suas rotaes, para nos permitir dizer que elas se realizam a intervalos iguais ou ora mais lentos, ora mais rpidos? ... Pois que no me venham

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mais dizer que o movimento dos corpos celestes que constitui o tempo ... em ti, meu esprito, que eu mensuro o tempo. \

Todavia, o tempo assim interiorizado ainda a sucesso contnua de instantes pontuais do pensamento grego. Todo o dcimo primeiro livro das Confisses de Agostinho, com a sua angustiosa e irresolvida interrogao sobre o tempo inaferrvel, mostra que o tempo contnuo e quantificado no abolido, mas simplesmente transferido do curso dos astros durao interior. Alis, foi justamente o fato de ter mantido intacta a concepo aristotlica do instante pont.ual que impediu a Agostinho elucidar o problema do tempo: Como so estes dois tempos, ento, o passado e o futuro, uma vez que o passado no mais e o futuro no ainda? Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente, se no fosse juntar-se ao passado, no existiria tempo, mas eternidade. Se o presente deve, portanto, juntar-se ao passado, como podemos dizer que ele , visto que no pode ser seno cessando de ser? .. Se concebemos um ponto de tempo tal ~).Y' que no possa ser dividido em partculas menores, somente ,.este pode ser denominado presente: mas este ponto voa to ;)'\ (' rapidamente do futuro ao passado que gopossl1iduuo ) a,!g.tyna. Pois se fosse extenso, dividir-se-ia em passado e futuro, mas\.()presente no tem. extenso.}r

imensa e, dentro dela, a roda do tempo, de modo que esta ltima toque a primeira em um s ponto. Na verdade, como sabes, se um crculo ou esfera toca um outro crculo ou esfera, quer isto acontea a partir do interior, quer do exterior, o contato pode dar-se somente em um ponto. Dado que, como disse antes, a eternidade totalmente imvel e totalmente simultnea, toda vez que a roda do tempo toca a roda da eternidade, tal contato ocorre apenas pontualmente em sua rotao, razo pela qual o tempo no simultneo.

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A concepo do tempo da idade moderna. uma laicizao g().1~!!1PoTrlsi~oretiHneo e ir reversvel, di;sociad-~-po~m, de toda idia de um fim e esvaziado de qualquer sentido que no seja o de um processo estruturado conforme o antes e o;d~pois. Esta f~pr~sentao do tempo como h?~5?gneo, re_t_1Y~~O e,vazio. nasce da experi~n~ia do trabalho nas ma nufaturas e e .sa~clOnada pela mecamca moderna, a qual estabelece a pnondade do movimento retilneo uniforme sobre \ I.,)-)r'-- ~}j.r-;~

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, j logia escolstica. A eternidade, como regime da divindad_~ ~!1de a nulificar com o seu crculo im~>>. implicao A de representaoes espaciais e experincia temporal, que domina a concepo ocidental do tempo, desenvolvida por Hegel no sentido de conceber o tempo como negao e superao dialtica do espao. Enquanto o ponto espacial -simples negatividade indiferente, o ponto temporal, ou seja, o instante, ariegao desta negao indifer~nciad.a, a superao da imobilidade paralisada do espao hc/devir. Ele , portanto, neste sentido, negao da negao.

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Contra isso tem um bom trunfo a crtica lvi-straussiana, que mostra a natureza cronolgica e descontnua do cdigo historiogrfico (