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1 23 de julho de 2012 Viu-oVocê nos olha e nós, Senhor, conseguimos te ver?” Carlo e Maria Carla Volpini Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de ladrões, que o despojaram; e depois de o terem maltratado com muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o meio morto. Por acaso desceu pelo mesmo caminho um sacerdote, viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, chegando àquele lugar, viu-o e passou também adiante. Mas um Samaritano que viajava, chegando àquele lugar, viu-o... Perdoem-nos se mais uma vez relemos alguns versículos do evangelho que já ouvimos esta manhã e que há alguns dias estamos todos aprofundando. Certamente esta parte do texto nos deixa quase sem fôlego pela sucessão dos acontecimentos, uns acontecimentos que não têm apenas um significado físico, mas que exprimem, com um dinamismo extraordinário, os pensamentos e os sentimentos daqueles que vivem as ações descritas. Descer, dar de frente, despojar, maltratar, retirar-se, deixar, descer novamente, chegar, passar adiante, viajar, passar adiante novamente: 2 versículos, 5 linhas e 10 verbos que exprimem uma série de ações consecutivas e num rápida sucessão. E, por fim, o verbo ver repetido 3 vezes: um sacerdote o viu, um levita o viu, um samaritano o viu.., ver é o único verbo que não exprime movimento físico mas contém, neste contexto, uma infinidade de movimentos interiores do coração, do espírito, da mente, da alma. Juntos procuraremos entender plenamente o que o Senhor quer nos dizer através destes versículos da parábola, concentrando em particular nossa atenção no verbo “ver. O contexto A cena situa-se na estrada que de Jerusalém conduz a Jericó. Do alto para baixo é um movimento de descida que se realiza continuamente na nossa vida: cada idéia rumo à sua realização, cada sentimento rumo à sua manifestação. Neste contexto o alto é representado por Jerusalém e o baixo por Jericó, uma cidade que se encontra 300 metros abaixo do nível do mar; Jerusalém é a cidade santa em direção à qual subirão todos os povos; Jericó é a cidade do mundo pagão e secular. Digamos logo que tudo se refere, de forma alegórica, à nossa condição de homens: de fato, de Adão em diante, cada homem que “desce” de Jerusalém para Jericó cumpre a viagem que o afasta de Deus. Jerusalém é simbolicamente a cidade celeste para a qual todos nos dirigimos e quando descemos de Jerusalém quer dizer que nos afastamos de Deus, de sua Palavra, de sua lei do amor. Afastar-se de Deus, como fizeram Adão e Eva no jardim do Éden, só pode levar a situações em que não há felicidade, porque longe de Deus o homem não pode alcançar aquela plenitude de vida para a qual é chamado e para a qual foi criado. As personagens deste texto evangélico encontram-se também na estrada que desce da vida para a morte.

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23 de julho de 2012

“Viu-o”

“Você nos olha e nós, Senhor, conseguimos te ver?”

Carlo e Maria Carla Volpini

Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de ladrões,

que o despojaram; e depois de o terem maltratado com muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o meio morto. Por acaso desceu pelo mesmo caminho

um sacerdote, viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, chegando àquele lugar, viu-o e passou também adiante. Mas um Samaritano que viajava,

chegando àquele lugar, viu-o...

Perdoem-nos se mais uma vez relemos alguns versículos do evangelho que já ouvimos esta manhã e que há alguns dias estamos todos aprofundando. Certamente esta parte do texto nos deixa quase sem fôlego pela sucessão dos acontecimentos, uns acontecimentos que não têm apenas um significado físico, mas que exprimem, com um dinamismo extraordinário, os pensamentos e os sentimentos daqueles que vivem as ações descritas. Descer, dar de frente, despojar, maltratar, retirar-se, deixar, descer novamente, chegar, passar adiante, viajar, passar adiante novamente: 2 versículos, 5 linhas e 10 verbos que exprimem uma série de ações consecutivas e num rápida sucessão. E, por fim, o verbo ver repetido 3 vezes: um sacerdote o viu, um levita o viu, um samaritano o viu.., ver é o único verbo que não exprime movimento físico mas contém, neste contexto, uma infinidade de movimentos interiores do coração, do espírito, da mente, da alma. Juntos procuraremos entender plenamente o que o Senhor quer nos dizer através destes versículos da parábola, concentrando em particular nossa atenção no verbo “ver”. O contexto

A cena situa-se na estrada que de Jerusalém conduz a Jericó. Do alto para baixo é um movimento de descida que se realiza continuamente na nossa vida: cada idéia rumo à sua realização, cada sentimento rumo à sua manifestação. Neste contexto o alto é representado por Jerusalém e o baixo por Jericó, uma cidade que se encontra 300 metros abaixo do nível do mar; Jerusalém é a cidade santa em direção à qual subirão todos os povos; Jericó é a cidade do mundo pagão e secular. Digamos logo que tudo se refere, de forma alegórica, à nossa condição de homens: de fato, de Adão em diante, cada homem que “desce” de Jerusalém para Jericó cumpre a viagem que o afasta de Deus. Jerusalém é simbolicamente a cidade celeste para a qual todos nos dirigimos e quando descemos de Jerusalém quer dizer que nos afastamos de Deus, de sua Palavra, de sua lei do amor. Afastar-se de Deus, como fizeram Adão e Eva no jardim do Éden, só pode levar a situações em que não há felicidade, porque longe de Deus o homem não pode alcançar aquela plenitude de vida para a qual é chamado e para a qual foi criado. As personagens deste texto evangélico encontram-se também na estrada que desce da vida para a morte.

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O primeiro a dar esta interpretação foi santo Ambrósio, um dos mais respeitáveis padres da Igreja, que define os ladrões da parábola os "anjos da noite e das trevas" os quais, em consequência do pecado de Adão, despiram o homem dos dons que havia recebido de Deus e o deixaram no estado da natureza humana necessitada e incompleta, onde é difícil conhecer a verdade, e é fácil ser atraído e seduzido pelo instinto e por falsos sentimentos. Onde estamos então? Entre Jerusalém e Jericó, entre a vida e a morte: e é exatamente assim que os ladrões deixam o homem. Um quadro que se adapta bem à história da humanidade e da nossa vida: escolher a vida ou escolher a morte. Quando Padre Caffarel apóia a caneta sobre o papel para dar início à Carta das Equipes de Nossa Senhora, a primeira frase que escreve é “vivemos numa época de contrastes.” Estávamos em 1947: acaso não poderíamos nós todos dizer a mesma coisa hoje? Provavelmente cada tempo da história da humanidade é uma época de contrastes porque toda a história do homem é, de um lado, a fadiga e a luta que nos empurra a descermos de Jerusalém, a nos afastarmos de Deus, repetindo todas as vezes o pecado de orgulho e soberba cometido por Adão e Eva, e, de outro lado, a buscarmos incessantemente Deus porque sabemos que só nele está a nossa plenitude e a nossa paz. Este texto escrito pelo evangelista Lucas é de uma extraordinária atualidade: que época, mais do que a nossa, atormentada por crises sociais, econômicas e religiosas, aparece suspensa entre a vida e a morte? É fácil então entender que os “ladrões” não são outra coisa que todos os limites, as insatisfações, as solidões, os vazios, as dificuldades, os obstáculos, os incômodos e as inquietudes que experimentamos no decorrer da nossa vida... os “ladrões” são os males pessoais e sociais que nos atingem, nos espancam, nos deixam nus, nos deixam meio mortos... Os “ladrões” estão sempre conosco, prontos a nos agredir, a nos iludir, a nos tentar, a nos fazer acreditar na nossa potência e onipotência para depois nos deixar vazios no espírito e no coração. Descer, dar de frente, despojar, maltratar, retirar-se, deixar, chegar, passar adiante, passar do lado, viajar… assim como é a nossa vida num contínuo ir e vir frenético, cansativo, descontrolado que às vezes nos dá a ilusão de ter encontrado serenidade e paz no coração e depois nos leva de novo ao desconforto, à desorientação, à perturbação e à incerteza, E as tentativas de escapar dos ”ladrões”, de nos safar, estão ali, ao alcance de nossas mãos... como o sacerdote e o levita que “chegando àquele lugar” viram o homem meio morto. O sacerdote, símbolo da Lei e o levita símbolo do culto: eu sou o sacerdote e quando sigo somente a lei não respondo às necessidades do irmão; eu sou o levita e quando sigo apenas o ritual, o culto estéril, também não respondo às necessidades do irmão. Mas eu sou também o samaritano que, tendo vivido a experiência do amor de Deus, tendo sido tocado e transformado por este amor, sou finalmente capaz de olhar, ver e amar como Cristo. “Viu-o”

Porque só o samaritano viu o homem meio morto estendido no chão? E o sacerdote? E o levita? Acaso não o viram eles também? Quer dizer então que existem diversos modos de ver e não todos permitem chegar à plenitude e à completude do ver. Se forem procurar no dicionário o verbo ver encontrarão esta explicação: captar imagens pela visão, perceber por meio dos olhos. Ver com os olhos é portanto suficiente para captar uma imagem, uma figura mas não mais do que isso. E, de fato, a raiz etimológica

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deste verbo está na língua sânscrita, língua que pertence ao grupo indo-europeu, e em particular na palavra ved-mi que significa distinguir, saber. A raiz etimológica nos leva, portanto, a outro ver que não é somente olhar com os olhos mas distinguir, discernir, e depois saber, isto é, entender, no sentido não apenas de ter conhecimento mas de ter discernimento. Para ver de verdade devemos nos contentar, portanto, de utilizar o sentido da visão ou devemos aprender a abrir os olhos do espírito? Precisaríamos ser uns mestres neste sentido porque todos nós, homens e mulheres unidos pelo sacramento do amor, sabemos que quando amamos profundamente o nosso cônjuge somos capazes de ver muito além de sua imagem exterior, vemos na profundez de seu coração e de sua alma. E o amor, quando é verdadeiro, faz logo ver você “além” porque o ver dado pelo amor não tem tempos.

Carlo: Quando eu te vi pela primeira vez o coração começou a pular no meu peito, a fazer cambalhotas, e tudo ficava estranho ao meu redor... estava te vendo pela primeira vez e ao mesmo tempo te via comigo por toda a vida... Estávamos numa quadra de basquete, eu era o treinador, precisava ter uma postura perante todas as minhas alunas, porém não conseguia mais manter o controle da situação... Pensei assim de aproveitar um teu erro para te afastar da quadra, talvez fosse melhor para mim, mas o teu olhar me fulminou: como eu ousava fazer isso com você? Se não quisesse fechar para sempre um encontro que tinha acabado de acontecer, eu precisava absolutamente reparar esta ofensa e assim imediatamente me aproximei para te dizer umas palavras desconexas e, sobretudo, para te convidar a sair comigo após o treino... Tinha te visto, tinha te encontrado, não queria te perder...

Maria Carla: quando cheguei à quadra de basquete estava atrasada e, além do mais, eu era uma nova aluna porque o exame de latim na faculdade tinha me impedido de treinar desde o começo. Orgulhosa por ter passado na prova de latim dei-me conta que estava numa quadra de esporte onde, realmente, não sabia fazer muita coisa, mas achava que correr atrás de uma bola não fosse muito mais difícil do que estudar latim... Quando os meus olhos cruzaram com os teus o meu coração quase parou, parecia que te conhecia desde sempre, no entanto era a primeira vez que te via, não sabia sequer o teu nome... Você vestia um suéter azul que furava o céu… mas o que estava me acontecendo? Não ouvia mais a tua voz, não via e nem corria atrás da bola, mas, aquele teu suéter azul!... cometia erros seguidos e você me afastou da quadra, onde já se viu? Sai da quadra e decidi não voltar mais... mas de repente vi você ao meu lado, estava me dizendo alguma coisa: quer sair comigo após os treinos?... Vi os teus olhos, o teu sorriso … a que hora nos encontramos?

Carlo: desde aquele dia passaram-se mais de quarenta anos, você ainda guarda escondido em algum lugar o meu suéter azul e eu ainda posso me espelhar nos teus olhos azuis. Os nossos olhares nunca se perderam com o tempo, aliás, se enriqueceram de tudo aquilo que a vida nos deu. No início da nossa história ninguém, familiares e amigos, achava que a nossa relação pudesse ir em frente, porém nós, teimosamente continuamos a caminhar juntos acreditando no nosso amor, não nos “perdemos de vista” mesmo quando os inúmeros compromissos e o cansaço sem fim, em alguns momentos da vida, nos empurravam longe um do outro. Mas o amor de todos estes anos de vida juntos modificou mil vezes o seu rosto: fez-se paixão, é verdade, mas também acolhida e ternura diante de nossas derrotas, fez-se cumplicidade silenciosa e vital diante de projetos só nossos, apóio nas horas de tristeza diante de sonhos que desvaneceram e amizade no compartilhamento de pensamentos e ideais... Quantas vezes nos olhamos e na profundeza de nossos olhares vimos nossas alegrias e nossos cansaços, encontramos a capacidade de aceitar nossos limites e nossos recursos, nossas fraquezas, nossos medos, nossos entusiasmos. Por meio daquele nos ver em profundidade procuramos

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tornar viva todos os dias a promessa do matrimônio. Quantas vezes o teu olhar para mim quis dizer 'eu estou, eu estou sempre ao teu lado'. Quantas vezes continuamos a alimentar o amor com olhares que ainda se procuram e mãos que ainda se encontram e projetos que ainda adquirem vida para o futuro."

O quadro de Murillo: Jesus Menino, o bom pastor

Os homens de hoje vivem na civilização das imagens, sua visão está treinada de

forma contínua e incessante, mas, então, porque tanto egoísmo, tanta violência, tanta solidão, tanta indiferença, porque tantos homens de hoje se parecem com os sacerdotes e com os levitas da parábola, incapazes de ver? Onde podemos aprender a enxergar com os olhos do espírito, como podemos aprender a ver as coisas com os olhos de Cristo? Talvez fixando o nosso olhar no dele. Em nossa casa temos um lindo quadro que meu pai reproduziu de uma obra do pintor Murillo1; representa “Jesus menino o bom pastor” e desde o início do nosso casamento ficou em nosso quarto de casal: este Jesus Menino parece que nos dá todos os dias, com o seu olhar, o primeiro bom dia e a última boa noite.

Meu pai não reproduziu o quadro inteiro, mas só uma pequena parte: o rosto deste Menino Jesus, um rosto diferente dos comuns porque não tem a cara rechonchuda dos recém-nascidos, não está no colo da mãe, não está enrolado em faixas, não aparece radiante. Uma vez perguntei ao meu pai porque ele quis reproduzir da pintura do Murillo só o rosto, e ele me respondeu “porque este olhar fala e não quero perdê-lo no conjunto dos outros elementos do quadro!”

É verdade, este olhar fala: em qualquer posição nós estejamos agora, cada um de nós terá a sensação, olhando para este rosto, de entrar numa relação direta com este olhar. É um olhar que não nos deixa, e mesmo que nos desloquemos para outro lado, nós o percebemos fixo em nós, mas ele não julga, simplesmente interroga. Ele nos segue se nos deslocamos, parece que se mexe se trocamos de lugar, e neste caso se torna ainda mais forte o contraste entre as feições infantis do Menino, os seus cachos escuros, e este

1 Bartolomé Esteban Murillo (1617, Sevilha - 1682, Sevilha), Jesus menino o bom pastor, obra de aprox. 1660, Museo do Prado, Madrid

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olhar adulto que parece querer nos lembrar sempre a necessidade de viver a fé de forma consciente e adulta, de buscar no Cristo, mesmo em sua imagem de criança, as respostas adultas e responsáveis.

É o olhar de um menino e chega direto ao coração não porque nos enternece ou é alegre e feliz como tantos outros olhares de crianças. Não, é um olhar quase severo, não triste, mas profundo e exigente e parece querer nos interrogar sem deixar espaço para muitas distrações: “em que ponto da tua vida você está? que nome você dá às coisas que você faz? que sentido e que valores orientam as tuas escolhas? Qual é a fidelidade e qual é a coerência na tua vida entre o teu pensar, o teu crer e o teu agir? Sentir-se interrogados pelas crianças às vezes é bonito, mas outras vezes cria uma sensação de desconforto porque quando as crianças nos olham desta forma não nos é possível dissimular. E se quem nos olha desta maneira é um Deus-Menino que vê o nosso coração, vê os nossos pensamentos mais profundos, os bons e autênticos e aqueles mais falsos e enganosos, os de amor e aqueles que nascem do egoísmo... nós não podemos nos esconder diante dele... como o primeiro homem, como Adão e Eva que não conseguiam se esconder de Deus após ter cedido à tentação…

Vós me perscrutais e me conheceis, sabeis tudo de mim... Perscrutai-me, Senhor, para conhecer o meu coração... Lembram o salmo 138? Talvez meu pai, quando decidiu pintar só o rosto deste Jesus menino pastor, tinha em seu coração este salmo.

Este rosto do Menino Jesus nos faz lembrar uma frase muito bonita do teólogo De La Potterie: A fé cristã é um caminho do olhar e – diria – também a exegese.2 A fé cristã é um "caminho do olhar" significa que para ter fé devemos aprender a ver e significa também que o nosso olhar deve continuamente caminhar, estar em movimento na busca contínua de Deus que está em todo lugar, em qualquer tempo, em cada história do homem. Muitas vezes, no entanto, a nossa fé é apenas nos prendermos às leis, aos preceitos, aos esquemas, aos conceitos que frequentemente são apenas o fruto dos nossos pensamentos que não caminham pelas estradas do mundo. Às vezes o nosso modo de ver as coisas, as pessoas, as situações é imediatamente acompanhado de um querer programar, planejar, predispor... Mas quando fazemos muitos planos e muitos programas facilmente nos tornamos incapazes de ver verdadeiramente Deus que, no entanto, se faz presente no inédito, no não esperado, no além do meu programa. Quando ficamos dentro de esquemas que não aceitam a novidade, não somos capazes de ver Deus que é o sempre novo da vida.

“Lembramos com emoção um dia de fim de verão de alguns anos atrás: era o dia 27 de agosto. Se a nossa amiga de equipe Felicina ainda estivesse viva, aquele dia teríamos conversado por telefone com a desculpa de seu aniversário e dos parabéns, mas, sobretudo, para contar os últimos acontecimentos do verão. Era, por assim dizer, um compromisso tácito: nós nos deixávamos no fim de junho em ocasião da última reunião de equipe, a de balanço, que se fazia sempre na sua casa, desfrutando do esplêndido terraço que dava para a Villa Pamphili, um magnífico parque de Roma. Ela e Marcello, seu marido, nos pediam sempre para chegar um pouco antes do horário previsto, para podermos gozar a luminosidade do pôr-do-sol que sobre o verde do parque adquiria tons de luz especial, desejavam nos mostrar as flores no seu terraço, em particular as rosas, fazer-nos sentir o perfume dos limões sicilianos misturado ao perfume do alecrim e da

2 Ignace De La Potterie, Olhar para crer, extraído de: Il Sabato, 14.11.1992, n. 46, p. 60-65.

jesuíta e teólogo belga, biblista, estudioso da Sagrada Escritura, professor da Faculdade Bíblica do Pontifício Instituto bíblico.

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sálvia, a sua pequena horta particular... queriam compartilhar a serenidade de um ano de trabalho concluído e a alegria da perspectiva de um período de descanso e de férias. Em sua casa realizávamos, todos os anos, as noites do balanço final da équipe, das verificações, mas também dos novos projetos esboçados para o ano seguinte. O debate, a verificação, o projeto: a vida que continuamente se renova. A despedida final e o desejo de um bom verão. A gente iria se reencontrar no dia 27 de agosto, o dia do aniversário da nossa amiga, depois que o verão nos tivesse dispersados um pouco para aproveitar umas férias aqui ou ali, na praia, viajando, na montanha, depois as nossas vidas voltavam a entrecruzar-se e a retomar o caminho normal: como vocês estão? O que vocês fizeram? quando vamos marcar a primeira reunião?

Mas o dia 27 agosto daquele ano, o primeiro após a morte de ambos, nos sentíamos muito tristes e a saudade deles era mais pungente. Entramos numa igreja muito pequena no centro de Roma, onde dia e noite está exposto o Santíssimo e onde há sempre alguém orando: parecia-nos, no silêncio da igreja, poder senti-los mais perto, poder fazer ressoar dentro de nós suas vozes, sentir a ternura de seu olhar... mas a saudade tinha se tornado desejo de tê-los de alguma forma novamente ao nosso lado, senti-los através de um gesto, alguma coisa capaz de reconduzi-los à vida entre nós. Ao voltar para a nossa casa, ocupados com outros compromissos, não pensamos mais neles, nem que tínhamos rezado, quase com um sentido di pretensão, lembrando ao Senhor que algumas vezes também a nossa fé tem o desejo e a urgência de uma resposta. Nós não pensávamos mais, mas talvez Ele nos houvesse escutado e daquela vez também respondido: dois telefonemas de seus filhos chegaram inesperados naquela tarde. Primeiro foi o Sergio, o filho menor do casal nosso amigo de équipe, que queria nos comunicar que naquela mesma manhã tinham recebido a permissão para a adoção que ele e sua esposa tinham pedido. E para nós que havíamos vivido a mesma emoção na espera de um filho para adotar, era motivo de alegria compartilhar a mesma emoção. Após poucas horas, mais um telefonema: era Claudio, o outro filho que tinha se tornado pai pela primeira vez poucos meses antes. Felizes de falar com ele também pedimos notícias de sua filhinha, manifestando o desejo de revê-los logo. Estávamos para encerrar o telefonema, já satisfeitos por ter falado com eles num dia em que tínhamos pensado em todos eles de modo especial, quando chegou inesperado o presente mais bonito: “a bem da verdade, disse o Claudio, ligamos para convidá-los a ser os padrinhos da nossa menina”. Que grande alegria renovar e fortalecer a união que nos ligou ao Marcello e à Felicina, por mais de trinta anos de equipe, através de uma maternidade e de uma paternidade espiritual de sua primeira netinha que eles haviam muito desejado e que não puderam conhecer, que maneira mais bonita, o Senhor, para senti-los perto, que potência do Espírito que acolheu e respondeu de forma tão inesperada à nossa oração naquele dia!

Porque o samaritano consegue ver? Porque não se coloca barreiras com os pensamentos racionais que talvez tenham feito desviar o sacerdote e o levita, posso aproximar-me? É-me lícito tocar? É conveniente para mim? O que diz a lei a respeito? O samaritano, assim como os outros dois homens quase tropeça no corpo do homem meio morto: trata-se de uma coisa nova, inesperada, imprevista, mas o samaritano vê isso porque é capaz de acolher este imprevisto, aproxima-se-lhe e não sabemos se o faz por grande espírito de solidariedade porque o evangelho não o diz, aproxima-se-lhe porque aquela coisa nova aconteceu, um homem meio morto no seu caminho, e ele não olha do outro lado, mas se faz presente na realidade do momento. O samaritano vê aquele homem meio morto porque se deixa interrogar pelo seu olhar que é aquele de um homem necessitado e responde àquele olhar: a necessidade do homem, a pergunta do homem se torna naquele momento mais importante do que qualquer outra coisa. “Não basta viver ao

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lado, é preciso viver junto. Faltar ao compromisso com o outro significa faltar ao compromisso com a vida.3.

O levita e o sacerdote passaram pelo outro lado e faltaram ao compromisso com a vida porque naquele momento era Deus mesmo que os esperava no corpo ferido daquele homem. O levita e o sacerdote não compreenderam que “a vocação dos cristãos é compartilhar generosamente o amor nos diversos caminhos que hoje percorre a humanidade, caminhos novos e às vezes perigosos, mas sempre abertos às pessoas que estão caminhando”4

O sacerdote, o levita e o samaritano encontraram de repente diante deles o corpo daquele homem: este também é um encontro, diferente, mas sempre um encontro. A palavra en-contrar significa ir de encontro a alguma coisa que faz oposição, deparar com alguém ou alguma coisa por acaso diante de si e, efetivamente, também neste caso o corpo do homem meio morto está por acaso num ponto do percurso dos três homens e se opõe a um programa que cada um tinha estabelecido. Mas, se se opõe também se relaciona porque cria uma relação entre o eu e o você. Toda a questão está no modo com que cada um destes três homens responde a este chamado a se relacionar. Toda a questão está no modo com que eu homem, eu mulher respondo às coisas que vêm ao meu en-contro, como eu homem e eu mulher respondo ao chamado a um relacionamento. Toda a questão está em de que modo e com quais olhos eu vejo as pessoas, as coisas, as situações, a vida.

Nós homens podemos nos tornar capazes de ver as realidades de mil formas diferentes e, portanto, ter uma resposta diferente para cada realidade vista e de estabelecer relações diversas conforme o nosso modo de ver. O Senhor conhesce só uma: ver e amar. E este samaritano faz aquilo que o sacerdote e o levita, e talvez também nós, não foram capazes de fazer: ele ama. Não ama só com os sentimentos, ama com toda uma série de gestos concretos: vê o homem, tem compaixão, aproxima-se, enfaixa as feridas, derrama óleo, derrama vinho, carrega-o sobre o jumento, leva-o à hospedaria, trata-o, tira dois denários e os dá ao hospedeiro, dá umas instruções e promete que o reembolsará na volta…Tem-se a impressão que se trata de uma série de ações que querem sobrepor-se às ações sucessivas expressas pela série de verbos de movimento do início do Evangelho, mas se todos estes verbos parecem expressar quase uma vontade de fugir da situação, as ações do samaritano têm, pelo contrário, um único objetivo: cuidar deste homem. Uma série de gestos que, fundamentalmente, tem um significado muito simples: eu quero que aquele homem viva; vou fazer tudo o que puder para que aquele homem possa se recuperar.5

Adquire ainda mais significado o fato de que o Evangelho descreva aquele homem estendido no chão como meio morto, isto é, entre a morte e a vida. Quem o vê assim, entre a morte e a vida, é chamado a escolher se vai ficar do lado da morte e prosseguir sem se importar com ele, ou ficar do lado da vida e cuidar dele. Este homem samaritano ao se aproximar dele parece que quer lhe dizer: “eu tomo posição a favor da tua vida”. O samaritano é o Cristo que vê o homem, vê cada homem na sua realidade de vida, o ama, nos ama e cuida de nós ao escolher nos dar a vida até a sua morte. A esperança que aquele homem possa se recuperar gera no samaritano uma série de comportamentos

3 Dom Tonino Bello, bispo de Molfetta,Italia,1935- 1993, processo de beatificação em andamento

4P. Poupard, What will give us Happiness?, Veritas, Dublin, 1992, p. 124.

5 Mons. Luciano Monari, bispo de Brescia

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concretos que são comportamentos eficazes, nascem com um sentimento que insiste naquela expressão: viu-o e teve compaixão, isto é, amou-o. O homem meio morto poderia representar muitas coisas da nossa realidade atual: por exemplo, aquelas pessoas em situações dramáticas de pobreza, de doença, de dificuldade, todas aquelas pessoas que experimentam a maior solidão por causa de amores doentes e feridos, ou a marginalização devido a escolhas pessoais erradas ou que são oprimidas pela dificuldade de viver. É uma carga pesada que não podem carregar sozinhos, é necessário que alguém os veja, pare junto deles para escutar, compartilhar e servir. O homem meio morto pode ser também um ícone não de pessoas, mas da situação de povos inteiros que não podem trilhar o caminho do desenvolvimento sem a intervenção solidária de outras nações. A nossa realidade da crise socioeconômica mundial nos chama também a esta interpretação atual. Nestes casos é necessário perguntar quem foram os ladrões que despojaram aqueles povos para deixá-los no limite da sobrevivência. O homem meio morto pode ser também o ícone de uma igreja ferida hoje no seu interior por tantas vicissitudes dolorosas. Todos, homens, povos, igreja esperam o encontro com o samaritano capaz de devolver a vida.

E a vida renascerá para todos quando tivermos compreendido que abrir-nos a Cristo é deixar-se acariciar pela brisa fresca e renovadora do suo espírito santo, é não ter certeza de nada, é saber que a obra de Cristo e do seu Espírito está sempre presente no meio de seu povo, é acreditar que Cristo é o ser vivo que pode realmente transformar a nossa vida e o mundo inteiro sem outro poder a não ser a força nua da sua Palavra.6 Diante das infinitas situações de necessidades que acompanham o homem contemporâneo, o nosso coração se faz pequeno porque nos sentimos tão impotentes que é mais fácil procurar não ver, virar do outro lado, encontrar as mais sutis justificações, para evitar se sentir interrogado pessoalmente pelo Cristo que vem ao nosso encontro através do rosto do irmão. Com certeza, criar a disponibilidade ao relacionamento com o outro, admite o risco do encontro, já que não todos os relacionamentos são agradáveis e fáceis. No entanto, todos permitem iniciar um caminho feito primeiramente pelo reconhecimento do outro, e depois de respeito pelo outro até o desejo da promoção do outro, introduzindo assim uma relação humana fundada na reciprocidade. Não por acaso, João Paulo II dizia que o necessitado, homem ou povo, pode ser visto como um importuno e um fardo, ou como “uma ocasião de bem em si e a possibilidade de uma riqueza maior”7. Para renascer devemos nos tornar capazes de ver. O infeliz que se encontra na poeira da estrada, para o sacerdote e o levita é um obstáculo a ser evitado e um contratempo para seus projetos, enquanto para o samaritano é um capital de graça para um investimento em humanidade.8 “Viu-o”, o samaritano viu o homem ferido e meio morto e se lhe aproxima, isto é se faz seu próximo. Não faz mais sentido então perguntar-nos “quem é o meu próximo”, mas sim “de quem devo ser o próximo”. A resposta é simples: de cada homem que, na situação real do momento, precisa de nós. E o fato de que deste homem meio morto não nos é dada nenhuma informação contrariamente ao que é feito para as outras personagens, significa só uma coisa: ver um ser humano em condições de necessidade, seja quem for, nos obriga, como Cristo nos ensinou, a responder à sua condição de sofrimento, de pena, de necessidade.

6 Maffei Anna, pastor batista, ex presidente UCEBI, “Um Deus fora dos esquemas, 18 de junho de 2012

7 CA 58: EV 13/252

8 José Fidel Antón FdM - São Leonardo Murialdo

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No serviço de consultoria que prestamos às pessoas e aos casais em dificuldade, frequentemente nos deparamos com muitas situações de sofrimento e dor diante das quais, às vezes, encontramos dificuldade em enfrentá-las ainda que com uma palavra. Ao longo das dezenas e dezenas de encontros que tivemos, nos parece termos recebido um dom especial de Deus, um patrimônio imenso de humanidade que cada vez mais nos permite compreender como a única coisa da qual um homem e uma mulher precisam é a escuta, a acolhida, o sentir-se amados sem julgamento. As pessoas trazem em seu coração abismos infinitos de dor e de solidão por causa de abandonos, violências, perdas, humilhações e ofensas profundas que ferem para sempre o coração. A nossa tarefa não é encontrar para eles a solução de nenhum problema, nem para o mais simples, mas conseguir que renasça a confiança neles mesmos, fazer reencontrar recursos perdidos, fazer reviver a esperança de um projeto novo. Às vezes é suficiente escutar com atenção e interesse, é suficiente fixar o nosso olhar no deles e fazer sentir a quem está diante de nós, para além de qualquer gesto sofrido ou realizado, que a sua pessoa é bela e digna de amor. Em tudo isso, além das competências profissionais adquiridas, nos ajuda muito a experiência de muitos anos de equipe: um exercício contínuo de escuta durante a co-participação, do diálogo no dever de sentar-se, na reflexão do tema de estudo, no abandono confiante no Pai através da oração. Com certeza não falamos de equipe com as pessoas que encontramos, mas o carisma e a pedagogia das ENS estão conosco enquanto encontramos o outro, adotando a reflexão de P.Caffarel: “Há uma fecundidade intelectual que é fruto do amor. Rezar quer dizer estar disponível, acolhedor, presente ao Deus presente. Um olhar e um coração que escutam”9

Enquanto nós estamos aqui com vocês, em Roma deixamos um casal jovem que acompanhamos durante todo este ano e que carregamos no coração. No primeiro encontro chegaram muito zangados um com o outro, incapazes até mesmo de se olharem. Ele estava nervoso e agressivo, ela assustada e carregada de dor. Ela esperava um filho fruto de uma relação com outro homem casado e o marido, de família rica e abastada, a havia afastado de casa. Era muito grande para ele a ofensa recebida, mas dizia que amava esta sua jovem mulher e queria que ela abortasse em nome do seu amor para poderem retomar junto o caminho. Ela estava transtornada, ciente da dor e da raiva do marido, humilhada pelo erro cometido, amava seu marido, mas amava também aquela criança na sua barriga e não queria abortar aquele filho. Nós também estávamos perplexos: como ajudá-los? Pensávamos que a primeira coisa a fazer não fosse apenas reafirmar o valor da vida mas, antes de tudo, tínhamos que entender e acolher a dor de ambos, dores diferentes mas fortes e torturantes para os dois. Havia uma traição e uma ofensa para superar, havia um pedido de perdão para fazer e para acolher, havia a vida de uma criança e havia um amor que era preciso também salvar: quem e como poderia encontrar a solução? Com que palavras acompanhar este percurso? Com certeza, foram pronunciadas muitas palavras, mas foram utilizadas mais para descarregar a dor, para descer de Jerusalém a Jericó... Mas quando depois começou o caminho da subida, do re-acolher-se acolhendo também a vida desta criança, de compreender que o amor pudesse exigir também a superação desta imensa dor, então mais que as palavras serviram os silêncios e principalmente os olhares. Nós estávamos refletindo sobre esta parábola e sobre esta palestra que devíamos preparar. Aquele verbo “viu-o” ressoava profundo dentro de nós e queríamos que ressoasse profundamente também neles, com toda a sua potência de amor. Durante sucessivos encontros, os convidamos primeiro a colocar-se um de costas para o outro para que sentissem na pele o desconforto de não poder se ver, de não poder relacionar-se mutuamente; depois, devagar, os convidamos a colocar-se um

9 Caffarel Henri, Aux carrefours de l’amour, Parole et Silence, 2001

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em frente ao outro sem trocar palavras, mas só para fixar o olhar de um no do outro, para se verem na profundeza de sua alma, e reconhecer-se e perdoar-se, e tornar-se capazes de acolher na vida deste menino também o nascimento de um amor ainda mais profundo. E é neste profundo ver-se que a vida e o amor venceram.

O quadro de Caravaggio: Vocação de são Mateus Um outro quadro reproduzido por meu pai está em nossa casa e nos interroga todos os dias a respeito daquilo que estamos refletindo juntos... É uma reprodução da Vocação de São Mateus do pintor Caravaggio10

Conheço este quadro em cada particular, sempre o tive debaixo dos olhos, imagem impressa dentro de mim desde menina. Na época me parecia tão grande e quase me transmitia medo com seus tons escuros, depois quando adolescente comecei a olhá-lo com olhos diferentes e a demorar-me e a refletir, a senti-lo mais meu, porque as sombras pareciam representar os claros-escuros do meu crescimento e a inquietude do Caravaggio quase se tornava a minha inquietude ao me tornar adulta, numa busca da fé que oscilava entre a recusa da luz clara e dogmática de tudo aquilo que eu escutava na escola católica que frequentava e o titubear entre as sombras da dúvida que a juventude e o incipiente ’68 me traziam cada vez mais. Desde a morte de meu pai este quadro está na nossa casa, fica na sala de jantar e ocupa uma parede toda. Hoje o “vemos” ambos com muito “amor” e muitas vezes paramos para observá-lo em todos os seus detalhes para tentar descobrir todos os possíveis significados. Este quadro nos fala das histórias da vida que é feita, como a pintura, de cores alternadas, vislumbres e brilhos de luz e da escuridão profunda de certos dias; nos fala de nossa vida conjugal, cheia das sombras e dos limites que toda história de amor conhece, mas também da luz que abre sempre novas e inimagináveis esperanças, novos e imprevisíveis projetos, nos fala da nossa constante busca da fé que sempre conhece as zonas de sombra dos pecados que se chamam egoísmo, omissões, indiferença ou senso di auto-suficiência, e conhece o horizonte da luz que se faz experiência de oração profunda, adesão consciente ao projeto de Deus para nós, compartilhamento do caminho com quem está ao nosso lado.

Do canto escuro do quadro o rosto do Cristo emerge mais claro e o seu braço se estende num gesto de encontro que enche o vazio da sombra em que os dois grupos de personagens parecem estar presentes, sem na realidade se ver um ao outro. As personagens não vêem e não percebem o que está acontecendo no meio deles, ma não é assim para Cristo e para Mateus. Os dois olhares se entrecruzam, os dois homens se

10Vocação de São Mateus: pintado em óleo sobre tela de cm 322 x 340 realizado entre 1599 e 1600 pelo italiano Michelangelo Merisi

dito Caravaggio (1571-1610). É conservado na Cappella Contarelli na igreja de San Luigi dei Francesi em Roma.

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vêem e o seu ver-se se torna o ver do espírito. Cristo vê o jovem Mateus e o aponta com o dedo, Mateus olha para Cristo e aponta por sua vez para si próprio com sua mão esquerda: “É para mim o teu olhar Senhor?” O vazio e a escuridão preenchidos por um braço estendido que se faz oferta de união: quantas vezes um olhar nos interpelou, quantas vezes um braço se estendeu na nossa direção, quantas vezes uma palavra, um gesto, um sorriso se tornaram vislumbres de luz para trazer-nos novos horizontes de esperança?

Um homem se reconhece pelo seu olhar. Pelos olhos de Jesus não conhecemos a cor, mas eles deviam possuir uma força de atração extraordinária, quase magnética, se os pescadores do lago de Galiléia deixam tudo e vão com Ele. Também as multidões ficam encantadas, o evangelho muitas vezes fala de multidão de pessoas. Também o jovem cobrador de impostos Mateus fica seduzido. E nós? O olhar de Cristo era certamente penetrante e envolvente, capaz de penetrar no âmago da alma: olhar de ternura que pára sobre o jovem rico, mas que logo se enche de tristeza pela falta de resposta; olhar percorrido por lampejos de cólera contra os fariseus obstinados que tentam confundi-lo; olhar que se fixa para sempre na memória de Pedro que o renegou. Encontrar Jesus é para todos uma experiência muito forte e intensa.11

Aquele olhar de Cristo e aquele ver de Mateus, aquele braço estendido, nos convidam simplesmente a iniciar a nossa caminhada para não ficarmos presos às nossas seguranças, às nossas certezas, às nossas verdades, nos convidam a iniciar a nossa caminhada não só para ir “alhures”, mas sobretudo para nos tornar “outro” numa conversão contínua que abre uma porta após outra, um caminho após outro, na confiante certeza que se aquele braço nos chama para ir sempre em frente, através das palavras, das necessidades, das esperanças, dos medos e das expectativas de todos aquele que vivem perto de nós, se faz também suporte, apoio, segurança para as nossas necessidades, para os nossos medos, para as nossas expectativas. Se diante daquele olhar abaixamos os olhos para não ver, e àquele braço estendido não respondemos, quer dizer que caímos na tentação da auto-suficiência, que o nosso individualismo se impõe nas escolhas do cotidiano e no objetivo da nossa vida, quer dizer que damos pouco espaço a qualquer possibilidade de relacionamento: entre homem e homem, entre homem e mulher, entre homem e Deus.

E onde estamos nós, Senhor? Entre aqueles que, a exemplo do quadro do Caravaggio não levantam nem o olhar, tomados pela ansiedade de contar seu dinheiro, tomados pelas ansiedades e pelas preocupações do nosso viver? ou estamos entre aqueles que como os outros dois jovens te olham e que, como Mateus, se interrogam? Estamos entre aqueles que como o sacerdote e o levita tropeçam num homem e não o vêem ou como o samaritano que quando “o viu” foi tomado de compaixão por ele?

Assim como o samaritano sem nome, também o jovem Mateus do quadro, que não pertence historicamente àquele tempo, representa na realidade cada um de nós que é chamado, interrogado, interpelado por Cristo. Não é, com certeza, um esquecimento do evangelista Lucas o não dizer nada a respeito daquele homem no chão, apenas não havia necessidade. Também a personagem do primeiro quadro está na história e fora da história: com certeza não é um erro do Caravaggio quando mistura, na roupa das personagens, épocas diferentes, mas uma estupenda intuição de quem sabe que a pesquisa do sentido profundo da vida, se chegar através da chamada de Cristo, é porque está além da história do homem, mas pode se fazer resposta somente no presente da história em que todos os homens estão situados, e são chamados a viver a própria fé. É forte e quase perturbador pensar que um homem como o Caravaggio, homem de vida

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Jovens de SMdG, 4 de fevereiro de 2012

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rebelde e descontrolada, temperamento violento e extravagante, alma inquieta e atormentada, aparentemente longe e indiferente a qualquer idéia religiosa mas a serviço, como artista, dos eclesiásticos mais poderosos da época, um homem que conheceu várias vezes o tribunal e a prisão por ter agredido, ferido e por fim matado, este homem condenado a morte e depois salvo pelo perdão do Papa, este homem que frequentava os lugares mais sórdidos e degradados de Roma, que escolhia como modelos para as pinturas de suas Nossas Senhoras as prostitutas de Roma, este mesmo homem compreende que o chamado de Cristo é para todos os homens, que o olhar que aponta e o gesto do braço estendido é uma ponte de encontro para todos os homens e que a história de cada um é o lugar onde este encontro pode se realizar. Quantos homens presos só à lei ou ao culto seriam capazes de chegar à mesma compreensão?

“Viu-o.” Devemos, portanto, aprender a amar com os olhos, como fazia Cristo e entender que o percurso não é ver, avaliar, amar, como muitas vezes estamos acostumados a fazer, mas ver e amar como fez Cristo: «... fixou nele o olhar, amou-o...» (Marcos 10,21). O Senhor vê o homem e o ama enquanto nós o julgamos; o Senhor vê o pecado e perdoa enquanto nós separamos os bons dos maus, os fiéis dos infiéis, quem está dentro de quem está fora, o Senhor vê as nossas necessidades e nos dá gratuitamente o seu amor enquanto nós escolhemos quem é digno do nosso amor, o Senhor vê no nosso coração sem limites enquanto nós nos preocupamos de estabelecer limites e levantar barreiras; o Senhor põe a caridade como fundamento da fé, enquanto nós pensamos, às vezes, poder viver a nossa fé dentro de uma gaiola de normas e de regras que muitas vezes esquecem o homem.

“Viu-o”. Não podemos fazer nada mais do que conseguir ver com os olhos de

Cristo porque no fim a vida é somente um pouco de tempo que Deus nos doa para aprender a amar12 e, sobre este dom que nos foi entregue, Deus Pai, no fim dos nossos dias, nos interrogará fixando seu olhar sobre o nosso. Estaremos prontos para responder ao seu olhar?

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Abbé Pierre, Um pensamento por dia para viver melhor, Ed. Messaggero, 2010