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FACULDADE DE DIREITO DA UIVERSIDADE DE LISBOA EXAME ESCRITO / FREQUÊNCIA DA 1.ª ÉPOCA – 1.º SEMESTRE DO ANO LECTIVO 2008/09 07 Janeiro de 2009 DIREITO PROCESSUAL PEAL 5.º ANO – TURNO DE DIA Coordenação e regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e António Araújo Sol e Lic.º Bruno eves de Sousa Duração: 2 horas Hipótese António, Bento e Carla foram acusados, como autores materiais, de: a) António – 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal (CP) 1 ; b) Bento – 1 crime de receptação, p. e. p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP 2 ; c) Carla – 1 crime de receptação, p. e. p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP 3 . Nos termos da acusação: Em 14/12/07, o António retirou da residência de Daniel, em Lisboa, 1 leitor de DVD e 1 pulseira de ouro, descritos nos autos. António é amigo do Bento. António é ainda irmão de Carla. O Bento e a Carla vivem em união de facto, em Loures. Em casa deles, o António contou ao Bento e à Carla como se tinha apropriado daqueles objectos. O Bento ficou com o leitor de DVD, em troca de montante económico não apurado. A Carla ficou com a pulseira de ouro, a título de oferta. Responda às seguintes questões: A. António, Bento e Carla podiam ser ouvidos em primeiro interrogatório por OPC? B. Daniel podia deduzir pedido de indemnização, se o proprietário do leitor de DVD e da pulseira de ouro fosse a sua mãe, Eduarda? C. Carla podia requerer a abertura da instrução por entender que a doação da coisa não integra o crime de receptação? D. Na instrução foram descobertos vários antecedentes criminais de receptação por parte de Bento, que o juiz mencionou no despacho para fundamentar a pronúncia por crime agravado pela circunstância de o agente fazer da receptação modo de vida 4 , nos termos do art. 231.º, n.º 4 5 , ademais pedindo a sua condenação como reincidente 6 . Podia fazê-lo? E. Daniel podia aderir ao despacho de pronúncia para acrescentar a qualificação do furto pelo valor da pulseira de ouro (art. 204.º, n.º 1, al. a), do CP), juntando para o efeito uma avaliação pericial que lhe atribuiu um valor de €5000,00? F. Seria possível algum dos Arguidos ser julgado sem saber que tinha sido constituído Arguido? G. Qual é o Tribunal competente para julgar António, Bento e Carla? 1 Punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 Igualmente punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 3 Como na nota anterior. 4 O “modo de vida” é uma circunstância modificativa agravante especial nominada. 5 Punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 6 A reincidência é uma circunstância modificativa agravante comum nominada que, nos termos do art. 76.º, n.º 1, CP, eleva de um terço o limite mínimo da pena aplicável ao crime, deixando o limite máximo inalterado.

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EXAME ESCRITO / FREQUÊNCIA DA 1.ª ÉPOCA – 1.º SEMESTRE DO ANO LECTIVO 2008/09

07 Janeiro de 2009

DIREITO PROCESSUAL PE�AL 5.º ANO – TURNO DE DIA

Coordenação e regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e António Araújo

Sol e Lic.º Bruno eves de Sousa

Duração: 2 horas

Hipótese António, Bento e Carla foram acusados, como autores materiais, de: a) António – 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal (CP)1; b) Bento – 1 crime de receptação, p. e. p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP2; c) Carla – 1 crime de receptação, p. e. p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP3. Nos termos da acusação: Em 14/12/07, o António retirou da residência de Daniel, em Lisboa, 1 leitor de DVD e 1 pulseira de

ouro, descritos nos autos. António é amigo do Bento. António é ainda irmão de Carla. O Bento e a Carla vivem em união de facto, em Loures. Em casa deles, o António contou ao Bento e à Carla como se tinha apropriado daqueles objectos. O Bento ficou com o leitor de DVD, em troca de montante económico não apurado. A Carla ficou com a pulseira de ouro, a título de oferta.

Responda às seguintes questões: A. António, Bento e Carla podiam ser ouvidos em primeiro interrogatório por OPC? B. Daniel podia deduzir pedido de indemnização, se o proprietário do leitor de DVD e da pulseira de

ouro fosse a sua mãe, Eduarda? C. Carla podia requerer a abertura da instrução por entender que a doação da coisa não integra o crime

de receptação? D. Na instrução foram descobertos vários antecedentes criminais de receptação por parte de Bento, que

o juiz mencionou no despacho para fundamentar a pronúncia por crime agravado pela circunstância de o agente fazer da receptação modo de vida4, nos termos do art. 231.º, n.º 45, ademais pedindo a sua condenação como reincidente6. Podia fazê-lo?

E. Daniel podia aderir ao despacho de pronúncia para acrescentar a qualificação do furto pelo valor da pulseira de ouro (art. 204.º, n.º 1, al. a), do CP), juntando para o efeito uma avaliação pericial que lhe atribuiu um valor de €5000,00?

F. Seria possível algum dos Arguidos ser julgado sem saber que tinha sido constituído Arguido? G. Qual é o Tribunal competente para julgar António, Bento e Carla?

1 Punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 Igualmente punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 3 Como na nota anterior. 4 O “modo de vida” é uma circunstância modificativa agravante especial nominada. 5 Punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 6 A reincidência é uma circunstância modificativa agravante comum nominada que, nos termos do art. 76.º, n.º 1,

CP, eleva de um terço o limite mínimo da pena aplicável ao crime, deixando o limite máximo inalterado.

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H. Durante o julgamento, o MP requereu a aplicação da medida de proibição de contactos entre a Arguida Carla e as testemunhas arroladas no processo, uma vez que o funcionário judicial assinalara ao Tribunal que a Arguida todos os dias da sessão de julgamento conversava e mostrava documentos às testemunhas à porta da sala de audiências?

I. Durante o julgamento, o Tribunal verificou que António, ouvido no inquérito, fora agredido pelos agentes policiais que levaram a cabo o interrogatório, assim levando-o a “confessar” o crime e a identificar as pessoas a quem tinha “passado” os objectos furtados. Que decisão devia proferir o Tribunal?

FUNDAMENTE TODAS AS SUAS RESPOSTAS, FORNECENDO SEMPRE O RESPECTIVO ENQUADRAMENTO LEGAL, E RETIRE AS DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS PARA O PROCESSO DE CADA UMA DAS SUAS CONCLUSÕES. PROCURE SER SUCINTO, POIS A SUA CAPACIDADE DE SÍNTESE TAMBÉM SERÁ APRECIADA.

Cotações: A – 1; B – 1; C – 2; D – 2,5; E – 2; F – 2; G – 3; H – 2; I – 2,5; ponderação global – 2.

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TÓPICOS PARA A CORRECÇÃO DO EXAME ESCRITO / FREQUÊNCIA DA 1.ª ÉPOCA – 1.º SEMESTRE

DO ANO LECTIVO 2008/09 07 Janeiro de 2009

DIREITO PROCESSUAL PE�AL 5.º ANO – TURNO DE DIA

Coordenação e regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e António Araújo

Sol e Lic.º Bruno eves de Sousa

Questão A:

De acordo com os dados da hipótese, António, Bento e Carla não foram detidos nos termos dos arts. 254.º e ss. do CPP, nem se encontravam presos preventivamente, pelo que se encontravam em liberdade.

Correndo inquérito contra António, Bento e Carla, estes teriam de obrigatoriamente ser constituídos Arguidos quando prestassem declarações perante autoridade judiciária ou OPC, nos termos do art. 58.º, n.º 1, al. a), do CPP, mediante a observância das formalidades prescritas nos n.ºs 2, 3 e 4 da mesma disposição legal.

Nos termos do art. 144.º, n.º 1, do CPP, quaisquer interrogatórios de Arguido em liberdade durante o inquérito, incluindo o primeiro, são feitos pelo MP, sendo ainda possível a realização dos mesmos por OPC no qual aquele tenha delegado a sua realização, conforme o disposto nos arts. 144.º, n.º 2, e 270.º, n.ºs 1 e 4, do CPP.

Assim, os Arguidos, estando em liberdade, podiam ser ouvidos em primeiro interrogatório pelo OPC competente para o efeito, se tivesse havido uma delegação expressa e concreta da competência.

Também poderá ser considerado o seguinte: a delegação genérica de competência nos OPC (Circular 6/2002 do Procurador-Geral da República), nos termos e para os efeitos do art. 270.º, n.º 4, do CPP e art. 12.º, n.º 2, al. b) da Lei 60/98, de 27 de Agosto, não deve ser aceite para dispensar a exigência de uma delegação expressa e concreta da competência, menos ainda depois da Revisão de 15 de Setembro de 2008, através da qual se visou reforçar o domínio efectivo do inquérito pelo MP. Todavia, reconhece-se que esta prática pode não estar ainda totalmente estabelecida. Seja como for, cada vez mais se assiste à exigência de um despacho do Procurador titular do processo a confirmar que a competência para investigação dos factos se encontra delegada por via da referida Circular, devendo o Procurador fixar um prazo para a conclusão da investigação.

Questão B:

Nos termos do art. 74.º, n.º 1, do CPP, quem tem legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil é o lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos provocados pelo crime. Cabe ainda referir que, de acordo com o disposto no art. 129.º do CP, tal indemnização é regulada pela lei civil.

Assim, Daniel não poderá deduzir pedido de indemnização civil, por não ser lesado (lesada é a sua mãe, pois foi o seu direito de propriedade que foi ilícita e culposamente violado pelos Arguidos, constituindo-os em responsabilidade civil perante aquela, nos termos gerais do art. 483.º, n.º 1, do CC). É certo que o art. 1284.º do CC prevê a indemnização de prejuízos e encargos com a restituição ao possuidor esbulhado, pelo que se Daniel, apesar de não ser proprietário, fosse possuidor dos bens, poderia deduzir pedido de

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indemnização civil pelos danos sofridos, nos termos dos arts. 74.º, n.º 1, do CPP e 1284.º do CC. No entanto, não há dados que permitam inferir a posse daqueles objectos por parte de Daniel (não sendo naturalmente suficiente o facto de os mesmos se encontrarem na sua residência), pelo que a resposta à presente questão será negativa.

Também poderá ser considerado o seguinte: a distinção lesado e ofendido.

Questão C:

A resposta deve ser afirmativa, desde que verificados os requisitos legais do requerimento para abertura da instrução (doravante, RAI). Em especial, o requisito da legitimidade, nos termos do art. 287.º, n.º 1, al. a), do CPP. Senão, vejamos:

A receptação abrange, de facto, o caso da doação, como resulta da expressão “adquirir a qualquer título” (art. 231.º, n.º 1, CP)7.

Seja como for, tratava-se de discutir uma questão-de-direito.

O ponto é saber se o requerimento para abertura de instrução (doravante RAI) por parte do Arguido pode servir para discutir meras questões-de-direito (art. 287.º, n.º 1, al. a), CPP);

É verdade que há uma divergência doutrinária sobre se é permitido usar o RAI só para discutir questões-de-direito: por um lado, há quem sustente que a discussão dessas questões-de-direito é inútil, dado que a liberdade de qualificação jurídica por parte do Tribunal faria com que as eventuais alterações ganhas na pronúncia fossem irrelevantes para a sentença, que é a posição de Cecília Santana8; mas, por outro lado, há quem aponte a desigualdade de armas que resultaria de o Assistente poder sempre discutir meras questões-de-direito na acusação subordinada (art. 284.º CPP), não se devendo, pois, impedir o Arguido de usar de equivalente faculdade, além de que o RAI tão-pouco está circunscrito à alegação das razões de facto (art. 287.º, n.º 2, CPP), como é referido por Frederico Isasca9. Acresce que não é seguramente a mesma coisa ser pronunciado com uma ou outra qualificação jurídica, pois a argumentação jurídica será sempre levada em conta pelo Tribunal, nem que seja para a rebater10;

No caso vertente, porém, todos os Autores aceitariam a possibilidade de recurso ao RAI, incluindo Cecília Santana, dado que a Arguida pretendia obter uma não-pronúncia, o que tornaria sempre indiscutível a utilidade daquele requerimento11;

Não importa que, do ponto de vista do direito material, a Arguida não tivesse razão.

Também poderá ser considerado o seguinte: enumeração dos restantes requisitos do RAI.

7 Cf. PEDRO CAEIRO, “Receptação”, in AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial

(dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), Tomo II (artigos 202.º a 307.º), Coimbra: Coimbra Editora, 1999, (pp. 471-503) p. 482.

8 Cf. CECÍLIA SANTANA, “Dos limites do requerimento do Arguido para abertura da instrução”, in AA.VV., Questões avulsas de processo penal (coord.: Paulo de Sousa Mendes), Lisboa: AAFDL, 2000, (pp. 47-73) pp. 65-67.

9 Cf. FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, 2.ª ed. (2.ª reimp.), Coimbra: Almedina, 2003 (1.ª ed., 1992), pp. 164-166, n. 2.

10 Daí a importância para o Arguido de poder atacar a imputação que lhe é feita também no plano da pura argumentação jurídica, como refere Raúl Soares da Veiga no seu prefácio à 2.ª ed. da obra citada na nota anterior.

11 Cf. CECÍLIA SANTANA, Questões avulsas…, cit., p. 63.

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Questão D:

A descoberta, na instrução, de antecedentes criminais de receptação constitui um facto novo, que não é totalmente independente do objecto do processo em curso, antes constituindo uma alteração de factos, ademais substancial (art. 1.º, al. f), do CPP, segundo o critério quantitativo), se tais antecedentes forem tomados em consideração para agravar a medida legal da pena, como foi o caso (art. 231.º, n.º 4, do CP).

Tratando-se da fase de instrução, o regime da alteração substancial de factos consta do art. 303.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, devendo a alteração ser comunicada ao MP para abrir inquérito, mas só se tais factos puderem constituir objecto de um processo autónomo, por virtude do princípio ne bis in idem.

No caso vertente, dado que os novos factos não são autonomizáveis, pois não são susceptíveis de configurar só por si um facto punível, o processo deveria continuar com sacrifício do conhecimento dos mesmos para efeitos da agravação da medida legal da pena (art. 303.º, n.º 3, do CPP).

Resta saber se a Revisão do CPP de 15 de Setembro de 2007 afastou totalmente a antiga querela doutrinária. Talvez ainda se possa defender que a inclusão da expressão "extinção da instância"12 não exclui o instituto da "suspensão da instância", o que permitiria reavivar a doutrina dantes defendida por Frederico Isasca13. Contudo, a doutrina que até à data se manifestou ex professo sobre a questão rejeita a possibilidade de suspensão da instância em face da redacção actual14.

Tal significa que o JIC deveria ter ignorado o "modo de vida" e apenas pronunciado o Arguido pelo crime de que vinha acusado. Consequentemente, a pronúncia era nula, na parte em que pronunciar o Arguido por factos que constituam alteração substancial (art. 309.º, n.º 1, do CPP).

Só que a questão passa ainda pela relevância do instituto da reincidência no presente contexto.

A reincidência é uma circunstância modificativa agravante comum nominada, que conta para agravação do limite mínimo da pena legal do crime em causa (arts. 75.º e 76.º do CP)15.

Em princípio, a reincidência não tem de ser alegada na acusação, nem na pronúncia, e pode ser conhecida a qualquer momento, pois só conta verdadeiramente para a determinação da pena na fase da deliberação e votação da decisão (art. 369.º, n.º 1, do CPP)16. Portanto, a reincidência que só se torna conhecida na instrução pode ser referida na pronúncia, mas isso nem sequer é necessário. Aliás, o que bem se percebe pelo facto de a reincidência até poder ser superveniente à acusação ou à pronúncia.

12 Em processo civil, são causas de extinção da instância as mencionadas no art. 287.º do Código de Processo

Civil (CPC). 13 Cf. FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos, cit., pp. 184-187. Com efeito, Frederico Isasca

defendia a aplicação analógica dos arts. 276.º, n.º 1, al. c), e 279.º, n.º 1, in fine, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP, dando assim lugar à suspensão do processo e, por essa via, à reabertura do inquérito, devendo, por conseguinte, os novos factos ser eventualmente reintegrados na acusação do MP, de modo a poderem depois vir a constar da pronúncia (arts. 48.º e 283.º, n.º 1, CPP).

14 Cf. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CPP à luz da CRP e da CEDH, 2.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, em anotação ao art. 303.º, n.º 12, p. 772.

15 Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português – Parte geral, Vol. II (As consequências jurídicas do crime), Lisboa: Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 201-202.

16 Cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade – Os critérios da culpa e da prevenção, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 42.

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Até se pode dizer que a reincidência pode surgir no processo como facto novo, mas não integra o tipo de crime, nem o tipo de culpa, constituindo apenas uma causa de agravação da pena circunscrita ao limite mínimo da pena, devendo, quando muito, seguir o regime da alteração não substancial de factos17.

Questão E:

A resposta deve ser negativa, uma vez que não há norma que faculte ao Assistente uma tal prerrogativa. Poder-se-ia, no entanto, discutir a eventual aplicação analógica do art. 284.º do CPP e as alegadas vantagens que tal aplicação comportaria, tais como a possibilidade de o Assistente aderir ao despacho de pronúncia para requerer determinadas diligências probatórias (na medida em que o Assistente, na ausência deste instrumento, só o poderia fazer nos termos do art. 340.º, n.º 1, do CPP), bem como para aperfeiçoar o RAI. Mas deve concluir-se pela inadmissibilidade da aplicação analógica do art. 284.º do CPP, posto que o Assistente poderia suscitar esta alteração não substancial de factos em sede de julgamento, juntando, para o efeito, a avaliação pericial da pulseira de ouro. Não existe, pois, incompletude do sistema jurídico nesta matéria.

Questão F:

A resposta deve ser negativa, porquanto, nos termos do art. 58.º, n.º 2, do CPP, a constituição de Arguido opera-se através de comunicação, oral ou por escrito, feita pessoal e directamente ao visado por autoridade judiciária ou por OPC, de que a partir daquele momento aquele deve considerar-se Arguido num específico processo penal e da indicação e explicação dos direitos e deveres processuais referidos no art. 61.º do CPP.

Ora, para que os Arguidos fossem julgados na ausência seria necessário que tivessem sido sujeitos a termo de identidade e residência (TIR), o qual, por sua vez, tem como pressuposto básico a constituição de Arguido, nos termos do art. 196.º, n.º 1, do CPP. Do TIR deverá constar a indicação de que foi dado conhecimento ao Arguido da possibilidade de realização da audiência na sua ausência, nos termos do art. 333.º do CPP (art. 196.º, n.º 3, al. d), do CPP). Portanto, eles foram necessariamente informados da cominação do julgamento na ausência, depois de efectuadas as notificações por via postal simples. Se porventura deram moradas erradas, é risco que corre por conta deles.

A única hipótese possível, aliás remota, de o Arguido ser julgado na ausência sem conhecimento de que é Arguido num processo ocorrerá se alguém tiver usado um documento de identificação furtado, usando essa identidade. O que não foi o caso.

17 Entendimento perfilhado pelo STJ, no Acórdão de 19.02.2003, proferido no Proc. n.º 02P4512, Relator:

Armando Leandro.

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Questão G:

António, Bento e Carla deveriam ser julgados por um dos Juízos Criminais da Comarca de Loures ou de Lisboa (dependendo de qual tivesse primeiro tivesse obtido a notícia de qualquer dos crimes).

A jurisdição penal pertence aos tribunais judiciais (art. 8.º do CPP).

Quanto à competência em razão da hierarquia e da estrutura dos vários tribunais judiciais, que são os dois aspectos em que se decompõe a chamada competência material, é regulada nos arts. 11.º a 16.º do CPP e na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ)18.

Quanto à competência em razão da fase do processo, a chamada competência funcional, é regulada nos arts. 17.º19 e 18.º do CPP e nos arts. 79.º ss. e 91.º ss. da LOFTJ.

Quanto à competência territorial, a mesma é regulada no art. 19.º ss. do CPP, na LOFTJ e no Regulamento da LOFTJ20.

António foi acusado de um crime de furto qualificado (art. 204.º, n.º 1, al. f), do CP), que é um crime público, punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Assim, a competência em razão da hierarquia pertencia ao tribunal de 1.ª instância, por exclusão de partes, dado não preencher o âmbito dos arts. 11.º e 12.º do CPP. A competência em razão da estrutura cabia ao tribunal singular (art. 16.º, n.º 2, al. b), do CPP, dado não ser aplicável nenhum critério qualitativo). A competência territorial cabia na área de Lisboa, dado ser o lugar da consumação do crime (art. 19.º, n.º 1, do CPP), por exclusão dos critérios especiais (art. 20.º ss. do CPP). O território subdivide-se sucessivamente em distritos judiciais, círculos judiciais e comarcas (art. 15.º, n.º 1, LOFTJ). De acordo com os Mapas I, II e III anexos ao Regulamento da LOFTJ, Lisboa é sede de distrito judicial, tendo também círculo judicial e comarca próprios. De acordo com o Mapa VI, a comarca de Lisboa está desdobrada em vários tribunais de competência específica (art. 96.º, n.º 1, LOFTJ), entre os quais varas criminais, juízos criminais e juízos de pequena instância criminal. No caso concreto, o julgamento cabia a um juízo criminal, nos termos conjugados dos arts. 96.º, n.º 1, al. d), e 100.º da LOFTJ. Ou seja, a um dos juízos criminais de Lisboa previstos no Mapa VI.

Bento e Carla foram acusados, cada um por si, de crime de receptação (art. 231.º, n.º 1, do CP), que é crime público, punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Assim, a competência em razão da hierarquia pertencia ao tribunal de 1.ª instância, por exclusão de partes, dado não preencher o âmbito dos arts. 11.º e 12.º do CPP. A competência em razão da estrutura pertencia ao tribunal singular (art. 16.º, n.º 2, al. b), do CPP, por exclusão dos critérios qualitativos). A consumação do crime ocorreu em Loures, em casa deles (art. 19.º, n.º 1, do CPP). A comarca de Loures, integrada no distrito judicial de Lisboa, tem varas mistas e juízos criminais. No caso concreto, o julgamento cabia a um dos juízos criminais de Loures, nos termos conjugados dos arts. 96.º, n.º 1, al. d), e 100.º da LOFTJ. Ou seja, a um dos juízos criminais de Loures previstos no Mapa VI.

Deveria ainda analisar-se a competência por conexão. Havendo uma pluralidade de processos, bem como pluralidade de tribunais com competências diferentes, presumindo que se encontrem todos na mesma fase (art. 24.º, n.º 2, do CPP) e que não se verifica nenhuma excepção à conexão, deveria organizar-se um único processo (art. 29.º do CPP). Neste caso, a conexão de processos impunha-se por serem vários crimes praticados por vários agentes, sendo uns (i.e., os dois crimes de receptação, um imputado a Bento e outro a

18 Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com as alterações em vigor. 19 O art. 264.º CPP regula a competência do MP para a realização do inquérito. 20 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio, com as alterações em vigor.

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Carla) o efeito dos outros (i.e., o crime de furto qualificado imputado a António), nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. d), do CPP.

No caso concreto, é difícil de dizer qual dos crimes determinaria a competência de um dos tribunais para o julgamento de todos. Na verdade, o furto qualificado deveria ser julgado por um juízo criminal de Lisboa, ao passo que cada um dos crimes de receptação deveria ser julgado pelo mesmo juízo criminal de Loures, sendo, todos eles, tribunais da mesma espécie, de modo que o art. 27.º do CPP acabava não dirimindo a questão. Seria necessário recorrer ao art. 28.º do CPP para a decidir, mas como para todos esses crimes é cominada a mesma pena legal, não havendo Arguidos presos, faltaria saber qual foi o lugar onde primeiro houve notícia de qualquer dos crimes (art. 28.º, al. c), do CPP), sendo esse o tribunal competente para conhecer de todos os crimes.

Questão H:

Condições gerais:

Pressuposto geral de aplicação de qualquer medida de coacção é, por um lado, a prévia constituição e audição como Arguido (artigo 192.º e 194.º, n.º 3, do CPP), estatuto de que Carla, sem dúvida, gozava, uma vez que o processo se encontrava em fase de julgamento, pelo que Carla teria de ter sido constituída como Arguida, o mais tardar com a prolação do despacho de acusação (art. 57.º, n.º 1, do CPP).

De igual modo, é necessário tratar-se de medida legalmente prevista (princípio da tipicidade - art. 191.º do CPP) o que se verificava no presente caso (art. 200.º, n.º 1, al. d), do CPP);

Pressupostos gerais:

Com excepção para o Termo de Identidade e Residência, terá ainda de verificar-se, no caso concreto, um dos perigos cautelares enunciados no art. 204.º do CPP (pericula libertatis), podendo, no caso presente, defender-se, desde que com fundamentação adequada, que a circunstância de a Arguida todos os dias da sessão de julgamento conversar e mostrar documentos às testemunhas à porta da sala de audiências constitui elemento de facto concreto que fundamenta a existência do perigo referido no art. 204.º al. b)21;

Deveria referir-se que a Arguida, devendo ser ouvida previamente à aplicação da medida (194.º, n.º 3, CPP), poderia justificar o seu comportamento, uma vez que o Arguido não está proibido, de uma forma geral, de contactar com os restantes sujeitos e intervenientes no processo, desde que esse contacto não se materialize na prática de ilícito criminal, quer como autor (p. ex. art. 154.º do CP), quer como comparticipante (p. ex. art. 359.º ou 360.º do CP).

É também necessária a existência de indícios da imputação de crime ao Arguido (fumus comissi delicti), verificada necessariamente no caso concreto, uma vez que, para dedução de acusação, é necessária a existência de indícios suficientes (art. 283.º, n.º 1 e 2, do CPP);

21 No sentido de que o termo instrução “não se quer referir apenas à fase processual da instrução, mas a toda a

actividade instrutória (= recolha e produção de prova no processo), quer decorra na fase de inquérito, na instrução ou no julgamento, cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. II, 4.ª ed. revista e actualizada, Lisboa: Verbo, 2008 (1.ª ed., 1993), p. 298 .

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Requisitos específicos:

Tratava-se, efectivamente, de crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos (art. 200.º do CPP);

A medida prevista no art. 200.º do CPP requer, ainda, a existência de fortes indícios, o que só poderia afirmar-se em concreto;

Finalmente, a medida proposta terá de ser necessária, adequada e proporcional ao afastamento daquele perigo, bem como à gravidade do crime e às sanções aplicáveis (art. 193.º, n.º1, do CPP), o que deveria ser aferido em concreto.

Questão I:

Os meios de prova não devem ser obtidos mediante procedimentos contrários aos direitos de liberdade22, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição (CRP).

Nas garantias constitucionais do processo penal cabem as proibições de prova, subentendidas na cominação da nulidade de “todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (art. 32.º, n.º 4, CRP). Neste tocante, é preciso estabelecer uma distinção entre as proibições absolutas e as proibições relativas (ou condicionais) de obtenção de meios de prova. A tortura, a coacção ou a ofensa da integridade física ou moral da pessoa em geral são métodos absolutamente proibidos de obtenção de meios de prova. Já a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações são métodos relativamente proibidos, pois a proibição é afastada quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à inviolabilidade desses direitos constantes do art. 34.º, n.os 2, 3 e 4, CRP.

Sob a epígrafe de “métodos proibidos de prova”, o art. 126.º CPP repete a citada distinção entre as proibições absolutas e as proibições relativas de obtenção de meios de prova. No caso do art. 126.º, n.os 1 e 2, do CPP, vigora uma proibição absoluta de obtenção das provas através dos meios ali indicados, ainda que sejam obtidas a coberto do consentimento do titular dos direitos em causa. No caso do art. 126.º, n.º 3, do CPP, a proibição é afastada pelo acordo do titular dos direitos em causa, ou então é removida mediante as ordens ou autorizações emanadas de certas autoridades, nos termos da lei.

Em princípio, a consequência processual do reconhecimento do carácter proibido das provas é a proibição de as mesmas serem utilizadas como fundamento de decisões prejudiciais ao Arguido, devendo essas provas ser desanexadas dos autos, uma vez que, perdida a sua única utilidade, serviriam apenas para as entidades decisórias continuarem a avaliar, na prática, algo que verdadeiramente não deviam conhecer23.

Essa é a consequência especialmente cominada no art. 126.º, n.º 1, do CPP, onde se diz que as provas obtidas mediante tortura, coacção , etc., “não pode[m] ser utilizadas”.

22 Acerca da classificação dos tipos de direitos fundamentais, especialmente com referência aos direitos de

liberdade, cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pp. 125-153.

23 Cf. MANUEL AUGUSTO ALVES MEIREIS, O regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal, Coimbra: Almedina, 1999, p. 233.

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A teoria dos frutos da árvore envenenada (fruit of the poisonous tree doctrine)24 e a sua equivalente germânica, a teoria da nódoa (Makel-Theorie, a metáfora da nódoa de ilegalidade)25, dizem que as provas que atentam contra os direitos de liberdade implicam com um efeito-à-distância, que consiste em tornarem inaproveitáveis as provas secundárias a elas causalmente vinculadas, a menos que, numa versão mitigada da Makel-Theorie, essas provas secundárias pudessem ter vindo a ser obtidas directamente, mesmo na falta da prova nula, através de um comportamento lícito alternativo26. Semelhante é, nos tribunais americanos, a solução decorrente da doutrina da independent source, “[que] legitima a valoração de provas secundárias sempre que elas foram ou poderiam ter sido obtidas por via autónoma e legal, à margem da exclusionary rule que impende sobre a prova primária. Cabendo, contudo, precisar as exigências particularmente apertadas de que os tribunais americanos fazem depender a valência duma causalidade hipotética. Tal só ocorrerá nos casos em que a produção da prova secundária, por via independente e legal, se possa, em concreto, considerar como ‘imminent, but in fact unrealized source of evidence’ (‘inevitable discovery exception’)”27.

O efeito-à-distância é a única forma de impedir que os investigadores policiais, os procuradores e os juízes se aventurem à violação das proibições de produção de prova na mira de prosseguirem sequências investigatórias a que não chegariam através dos meios postos à sua disposição pelo Estado de Direito.

O Direito Processual Penal português contém estatuições de efeito-à-distância. Por um lado, o art. 122.º, n.º 1, do CPP (efeitos da declaração de nulidade), atendendo ao facto de as proibições de prova estarem associadas às nulidades, embora sendo vários os regimes das nulidades: “As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”28. Por outro lado, o legislador optou por proibir, sem mais, a valoração das provas obtidas mediante recurso aos métodos proibidos de prova. Essa formulação denuncia a intenção de, em vez de circunscrever a proibição de valoração às declarações directamente obtidas, generalizá-la a todas as provas inquinadas pelo “veneno” do método proibido29.

Em função disso, o Tribunal devia absolver António, Bento e Carla, caso concluísse que todas as provas estavam “contaminadas” pela utilização de um método absolutamente proibido de prova no inquérito.

Ademais, o Tribunal devia denunciar ao MP os factos constitutivos da coacção grave (art. 155.º, n.º 1, al. d), do CP), para aquele proceder contra os agentes policiais (art. 126.º, n.º 4, do CPP).

24 Cf. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra: Coimbra

Editora, 1992 (reimpressão de 2006), p. 170. 25 Cf. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de prova em processo penal, cit., pp. 175-176. 26 É a solução preconizada por Wolter, apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de prova em

processo penal, cit., p. 178. 27 Idem, p. 172, itálicos no original. 28 Contra a necessidade de aplicação do art. 122.º, n.º 1, do CPP no presente contexto, cf. HELENA MORÃO, "O

efeito-à-distância das proibições de prova no Direito Processual Penal português, RPCC 4 (2006), (pp. 575-620) p. 596. 29 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de prova em processo penal, cit., pp. 313-314 (itálicos

no original).