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283 - mundocristao.com.br · recolhia folhas como se minha vida dependesse daquilo, pois eu real- ... sucedida tentativa de extermínio da história da Igreja. Alguns eram amarrados

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Duvido que al-guém nascido

nos últimos 30 anospossa imaginar o me-do que nós passamos,aqueles que estavam na adolescên-cia durante os anos mais sérios daGuerra Fria. Em nossos projetospara a escola, fazíamos abrigosantibomba, cavando buracos pro-fundos nos quintais e armazenan-do nossos gibis preferidos, além desalgadinhos. Assistíamos a filmeseducativos sobre os efeitos da guer-ra termonuclear e aprendíamos, aosom de uma vibrante trilha sono-ra, a técnica do �duck and cover�,1

rastejando por baixo das carteiras

CAPÍTULO 12

LU G A R DETRA I D O R E S

para diminuir a ex-posição às partículasnucleares. Eu viviaem Atlanta, Geórgia,na área de alcance

de Cuba. Durante a crise dos mís-seis cubanos, cada volta para casacomeçava com uma sessão de�duck and cover�.

Meu irmão e eu líamos em vozalta, um para o outro, horríveis re-latos daquilo que os comunistasfaziam a seus inimigos. Eles arran-cavam as unhas dos pés e dasmãos, ou colocavam palitos demadeira entre a unha e a pele.Amarravam a pessoa deitada nochão e deixavam água gotejando

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lentamente sobre a cabeça, até que ela ficasse louca. Colocavam ara-nhas, ratos e serpentes sobre o corpo nu da vítima de tortura. Corta-vam os dedos, um de cada vez. Enterravam pessoas vivas. Quandoinvadiam uma cidade, alinhavam todos os habitantes e faziam umainspeção em suas mãos. Se uma pessoa tinha calos, significava quepertencia à classe trabalhadora e deixavam-na viver. Se ela falasserusso � ou chinês, conforme o caso �, a pessoa também estava livre.Senão, seria torturada por alguns dias e, depois, executada.

Em um esforço determinado de permanecer vivos, nós dois lan-çávamos contramedidas. Fazíamos alguns esconderijos no bosque pró-ximo para que os inimigos não nos encontrassem. Alguns sulistas nãohaviam sobrevivido à investida do general Sherman,2 escondendo-seassim por vários meses? Recolhíamos folhas com as mãos nuas combastante vigor, para que tivéssemos feridas e calos nas nossas mãosde estudantes. Ainda temerosos, decidimos estudar as línguas comu-nistas. Meu irmão inscreveu-se num curso de russo e eu, num dechinês, de modo que, independentemente de onde viessem os inimi-gos, teríamos pelo menos uma chance de falar com eles e pedir quenão nos matassem (as histórias de meu professor de chinês, um refu-giado de classe alta que fugiu durante o governo de terror de Mao,fizeram pouco para acalmar meus temores).

A igreja incrementava ainda mais o nosso medo, agregando repul-sivos relatos daquilo que Stalin e Mao estavam fazendo aos cristãos.Os soldados entravam marchando em igrejas durante os cultos, fa-ziam uma fila de todos os cristãos e pediam que eles negassem a Jesus.Aqueles que concordavam eram imediatamente recompensados compresentes e comida. Os que se recusavam eram mortos, lenta e cruel-mente, diante de uma congregação aterrorizada.

�O que você diria?�, perguntava o pastor. �Permaneceria firme nafé ou trairia aquele que morreu por você?� Era uma pergunta horrívelpara ser analisada por qualquer pessoa, ainda mais para um garoto de14 anos assolado por dúvidas quanto à sua fé. Eu estudava chinês erecolhia folhas como se minha vida dependesse daquilo, pois eu real-mente acreditava naquilo.3

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Muito tempo depois, quando já havia crescido e esquecido minhasaulas de chinês, depois que a ameaça de guerra nuclear esmo-

receu, li relatos históricos de uma perseguição similar que aconteceuvários séculos atrás. Em determinada época da História, o Japão pare-cia ser o mais frutífero campo missionário na Ásia. Francisco Xavier, umdos sete jesuítas originais, chegou àquele país em 1549 e passou doisanos estabelecendo uma igreja. Em uma geração, o número de cristãoshavia aumentado para 300 mil. Xavier chamava o Japão �alegria domeu coração (...) O país oriental mais adequado ao cristianismo�.

Com o fim do século, porém, começou a crescer a suspeita que osshoguns tinham dos estrangeiros, especialmente exacerbada pela divisãoentre os cristãos, o que levou a uma mudança na política. Os shogunsexpulsaram os jesuítas e exigiram que todos os cristãos renunciassem àsua fé e se confessassem budistas. Ocorreram 26 crucificações, e a erado martírio de cristãos no Japão teve início.

O fumie � um retrato em bronze de Jesus ou de Nossa Senhora como menino enquadrado numa pequena moldura de madeira � tornou-se o derradeiro teste de fé. Os japoneses que concordavam em pisar nofumie eram declarados cristãos apóstatas e eram libertados. Os que serecusavam eram perseguidos pelos shoguns e assassinados, na mais bem-sucedida tentativa de extermínio da história da Igreja. Alguns eramamarrados em estacas na praia, esperando a maré alta que os afogarialentamente, enquanto outros eram amarrados e jogados de barcos; al-guns eram escaldados em fontes de águas quentes e ainda outros eramamarrados de cabeça para baixo em valas cheias de corpos mortos eexcrementos. Fui criado ouvindo histórias inspiradoras de mártires quepromoviam o crescimento da causa. �O sangue dos cristãos é a sementeda Igreja�, disse Tertuliano. Não foi assim no Japão, em que o sanguedos mártires provocou a quase aniquilação da Igreja.

Quase, mas não totalmente. No fim do século XIX, quando o Ja-pão finalmente permitiu que uma igreja católica em Nagasaki aten-desse a visitantes ocidentais, os sacerdotes ficaram surpresos ao vercristãos japoneses descendo das colinas. Eles eram os kakure kirishitans,ou os �cristãos das catacumbas�, os quais continuaram se reunindoem locais secretos por um período de 240 anos. Porém, a adoraçãosem o benefício de uma Bíblia ou de um livro de liturgia cobrou seupreço. Sua fé sobreviveu como um curioso amálgama de catolicismo,

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budismo, animismo e xintoísmo. Com o passar dos anos, as palavrasem latim da liturgia se transformaram num tipo de pidgin, uma misturade línguas. �Ave Maria gratia plena dominus tecum benedicta� tor-nou-se �Ame Maria karassa binno domisu terikobintsu�, e ninguémtinha a mínima idéia do que estas palavras queriam dizer. Os cristãosreverenciavam o �deus particular�, uma trouxa de panos enrolada emvolta de medalhas e estatuetas cristãs, as quais ficavam escondidasnum pequeno cômodo disfarçado de altar budista.4

Em uma das terríveis ironias da História, a segunda bomba atômicaexplodiu exatamente sobre a maior comunidade cristã do Japão, des-truindo a Catedral de Nagasaki. Nuvens haviam impedido a visão doalvo original, forçando a equipe de bombardeio a se desviar para umalvo secundário. Um museu da cidade, hoje reconstruída, traça a histó-ria do cristianismo no Japão, apresentando relíquias da época dos már-tires cristãos japoneses.

Na década de 1950, período no qual eu estava crescendo, cercadodo medo de um holocausto nuclear, um jovem escritor chamado ShusakuEndo costumava visitar esse museu numa das cidades que haviam ex-perimentado esse destino. Atraído pela história dos mártires, ele ficouolhando para uma das caixas de vidro em particular, dentro da qualhavia um fumie verdadeiro, do século XVII. Manchas escuras distorciam afigura de bronze, a qual estava tão usada que mal se podia ver a figurade Maria segurando Jesus � resultado, como descobriu Endo, de dedoshumanos que acumularam impressões digitais de milhares de cristãosque confiavam no fumie.

O fumie era a obsessão de Endo. �Teria eu pisado nele?�, pensava. Oque aquelas pessoas sentiam quando apostatavam? Que tipo de pessoaseram elas? Os livros de história católica registram somente os bravos ecorajosos mártires, não os covardes que renunciaram à fé. Eles forampunidos duas vezes: a primeira, pelo silêncio de Deus no momento datortura; mais tarde, pelo silêncio da História. Endo prometeu a si mes-mo que contaria as histórias dos apóstatas � e por meio de romancescomo Silence (Silêncio) e The Samurai (O samurai), ele cumpriu seu voto.

Quando descobri Shusaku Endo, automaticamente senti uma li-gação, pois ele havia crescido cercado pelo mesmo medo e pela mesmadúvida que tanto haviam assombrado minha juventude. Diante doVale do Inferno, um lugar onde muitos cristãos japoneses haviam sido

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martirizados, Endo conclui que ele mesmo provavelmente teria negadosua fé em lugar de suportar tamanha dor.

Mais tarde, Endo percebeu o que o havia atraído tão fortemente àvitrina do museu. A história dos cristãos japoneses do século XVII

produzia ecos perturbadores em sua própria vida, no século XX. Apesarde nunca ter enfrentado a ira dos shoguns, desde sua infância ele já haviasentido uma constante e não aliviada tensão quanto à sua fé. Externa-mente, ele era um cristão; mas e por dentro?

Aos dez anos, Endo voltou da Manchúria com sua mãe, saindo deum mau casamento. Sofrendo a dor e a rejeição social de um divórcio �uma raridade no Japão �, sua mãe encontrou consolo na fé devota desua irmã, e assim converteu-se ao catolicismo. Ela freqüentava fielmen-te a missa todas as manhãs. Visando alegrar sua mãe, Shusaku tambémse submeteu ao batismo. Mas ele realmente queria aquilo? Não seria eleum kakure ao contrário, um cristão que vivia de aparências, enquanto, ládentro, traía a Cristo?

�Tornei-me um católico contra minha vontade�, declarou ele maistarde, comparando sua fé a um casamento arranjado, uma união força-da com uma esposa escolhida por sua mãe. Ele tentou deixar essa esposa,trocando-a pelo marxismo, pelo ateísmo, pensando em suicídio durantealgum tempo, mas suas tentativas de ruptura sempre falharam. Ele nãopodia viver com essa esposa arranjada, e também não podia viver semela. Enquanto isso, ela o continuou amando e, para sua surpresa, elemesmo começou a amá-la em retribuição.

Reconheço que o fato de Endo caminhar em sua fé às apalpadelastem um estranho paralelo com minha própria vida, ainda que dentrode um contexto diferente. Durante os anos do segundo grau, freqüen-tei uma igreja fundamentalista que hoje vejo quase como apenasritualística. Fazia as orações, ia à frente nos momentos de apelo e reci-tava os testemunhos, mas minha dúvida interior não desaparecia. Seráque eu realmente acreditava ou estava apenas reproduzindo o com-portamento daqueles que me cercavam? Aprendi a fazer aquilo muitobem, o que só me causou rejeição e vergonha.

Até mesmo hoje essas cenas de vergonha retornam. Ficar diante daclasse numa aula de oratória, tentando explicar aos colegas por que eu

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não os acompanharia num passeio para assistir à versão de Otelo emfilme (muito �mundano�). Falar com o malicioso professor de EducaçãoFísica, pedindo permissão para ser dispensado das lições de dança dequadrilha baseado em posição religiosa (também muito �mundano�).Carregar uma enorme Bíblia vermelha por cima de meus livros para quetalvez alguém perguntasse sobre minha fé. Sentar-me num espalhafato-so ônibus vermelho e branco, com um piano dentro, com o nome ClubeBíblico Juventude para Cristo escrito em letras enormes, enquanto elevagarosamente manobrava no estacionamento, arrancando piadas dospassantes. Ouvir o professor de Biologia sarcasticamente explicar à clas-se por que meu trabalho de 20 páginas não havia conseguido derrubaro livro Origem das espécies, de Charles Darwin, com suas 592 páginas.Vergonha, alienação e inferioridade definiam minha adolescência. ComoEndo, cresci sentindo-me um proscrito.

Mais tarde, quando percebi que a Igreja havia me ensinado tantomentiras quanto verdades, senti-me perdido, sem lar, à deriva. Pelo quehavia eu sacrificado meu orgulho e me preparado para o martírio? Poruma religião de racistas, antiintelectuais e desajustados?

Seguindo outra analogia, Endo compara sua peregrinação de fé aum jovem em dúvida sobre qual roupa usar. Em vão, ele busca aquelaque seja mais adequada, talvez um quimono. Endo disse que estavaconstantemente �reformando, com minhas próprias mãos, as roupas oci-dentais que minha mãe colocava em mim, transformando-as numavestimenta japonesa que se adaptasse a meu corpo japonês�. Tambémexperimentei diversas roupas e nunca consegui encontrar uma que subs-tituísse as vestimentas cristãs com as quais fui vestido desde criança.

A história da vida de Endo se desenvolve como o roteiro de um deseus romances. Durante a infância, na Mandchúria, ele viveu como umestrangeiro, um desprezado dominador japonês. Voltando ao Japão, ondea Igreja Cristã representava menos de 1% da população do país, sofreunovamente a angústia de ser um alienígena. Colegas de classe o ameaça-vam por estar associado a uma religião ocidental. A Segunda GuerraMundial intensificou esse senso de estranhamento. Endo sempre virao Ocidente como sua pátria espiritual, mas era ele que agora estavavaporizando cidades japonesas.

Depois da guerra, Endo viajou para a França para estudar sobre osromancistas franceses católicos, como François Mauriac e George

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Bernanos. Mas a França também não o fez se sentir bem-vindo. Comoum dos primeiros alunos japoneses do programa de intercâmbio � e oúnico em Lyon �, foi rejeitado, dessa vez não pela religião, mas pelaraça. Os aliados haviam engendrado uma intensa campanha antija-ponesa, e Endo se viu como o alvo do abuso racial de seus companhei-ros cristãos. �Gringo de olhos puxados�, diziam alguns. Como eu, eleaprendeu que os cristãos tinham muitas formas de trair sua fé. Algunsa rejeitavam publicamente. Outros, mais sutis, viviam de uma maneiraque a negava.

Durante os três anos que passou na França, Endo caiu em depres-são. Pior, contraiu tuberculose, precisou remover um pulmão e passouvários meses num leito de hospital. Concluiu que, com efeito, o cristia-nismo o fizera adoecer. Rejeitado em sua terra natal, rejeitado por suapátria espiritual, Endo entrou numa grave crise de fé.

Antes de voltar ao Japão depois de seus estudos na Europa, Endo visitou a Palestina com o objetivo de pesquisar a vida de Jesus, e

enquanto esteve lá, fez uma descoberta transformadora: Jesus tambémconheceu a rejeição. Mais do que isso, a vida de Jesus foi marcada pelarejeição. Seus vizinhos o expulsaram da cidade, sua família questionousua sanidade, seus amigos mais próximos o traíram e seus compatriotastrocaram sua vida pela de um criminoso comum. Durante todo o seuministério, Jesus propositadamente andou entre os pobres e os rejeita-dos. Tocou os leprosos, comeu com os impuros, perdoou ladrões, adúlte-ros e prostitutas.

Este insight acerca de Jesus atingiu Endo com a força de uma revela-ção. A partir do longínquo ponto de observação no Japão, ele vira ocristianismo como uma fé triunfante, constantiniana. Já havia estuda-do o Sacro Império Romano e as resplandecentes cruzadas; admiradoas grandes catedrais da Europa; sonhado com uma nação onde pudesseviver o cristianismo sem sofrer desgraça. Agora, estudando a Bíblia naterra em que ela fora escrita, Endo viu que o próprio Jesus não evitou a�desgraça�. Muitas das representações de Jesus na cultura ocidentaleram simplesmente projeções de imagens romanas de glória e poderimperial. Jesus veio ao mundo como o Servo Sofredor apresentado porIsaías: �Desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de

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dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homensescondem o rosto, era desprezado� (53:3). Certamente esse Jesus, maisdo que ninguém, poderia entender a rejeição que o próprio Endo esta-va sofrendo.

Devo dizer que, no primeiro encontro que tive com esse Jesus, fuiatingido também com a força de uma revelação. Conforme estudei osevangelhos, notei um padrão tão consistente que quase podia ser re-duzido a uma fórmula matemática: quanto mais ímpia, imoral e inde-sejável era a pessoa, mais ela se sentia atraída a Jesus. Quanto maisjusta, segura de si e desejável, mais ela se sentia ameaçada por Jesus. Épraticamente o oposto do que a maioria das pessoas faz. Os cristãosevangélicos se apegam ao ideal de um cidadão equilibrado e sólido,que crê nos valores familiares e se relaciona com o �tipo certo� de pes-soas. Considere as pessoas que eram vistas com Jesus: uma prostituta,um homem com lepra, um proscrito moral, um centurião romano, umamulher mestiça com cinco divórcios no currículo. Enquanto isso, osfariseus � homens corretos, que estudavam as Escrituras e obedeciamrigorosamente à Lei �, a elite governante, os pilares da sociedade, todoseles viam Jesus como uma ameaça.

Por intermédio de Endo, descobri um Jesus ao contrário, justamenteno momento em que os evangélicos ganhavam atenção nacional e poderpolítico. Ocorreu-me que uma expressão como Maioria Arrependida ouMaioria Perdoada deveria ser uma forma mais correta de descrever oscristãos do que Maioria Moral.5 Tal rótulo daria o crédito a Deus nosurgimento de qualquer traço de bondade, assegurando assim que, comodisse Paulo: �ninguém se glorie�. Em vez disso, possuímos uma espéciede extrato que afasta as pessoas a quem a mensagem de Jesus foi dirigida:�Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos alivia-rei�, disse ele (Mt 11:28, ênfase do autor). Não pude encontrar qualquerincentivo ao sucesso ou à superioridade no convite de Jesus. A graça,assim como a água, corre para as partes mais baixas.

Que irônico, pensei eu, ver que um homem japonês rejeitado peloscristãos ocidentais estava me apresentando um Jesus como esse. Co-mecei a ler Shusaku Endo em busca do Servo Sofredor, que entendia arejeição melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Como jovemde uma igreja fundamentalista, conheci a rejeição e a vergonha a par-tir de uma cultura mais ampla. Como cristão, em minha caminhada

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conheci a rejeição da própria Igreja: ela queria que eu me conformassee não me preocupasse com os detalhes; que cresse e não questionasse.Agora, em Jesus, encontro alguém cuja mensagem concentra-se nosrejeitados.

Jesus contou histórias sobre ovelhas perdidas e um filho pródigo,sobre banquetes bizarros dos quais somente os pobres e os doentesparticipariam. Verdadeiramente, como os escravos americanos costu-mavam cantar, �ninguém conhece o meu labutar, ninguém, somenteCristo�. Comecei a crer que Jesus recebeu seguidores relutantes, atémesmo traidores, até mesmo eu. Meus livros O Jesus que eu nunca conhecie Maravilhosa graça nasceram de minha ponderação sobre esse ladonovo de Jesus e a maravilhosa graça de Deus.

Depois de sua pesquisa na Palestina, Endo voltou à sua terra natalcom a fé intacta, mas sentindo a necessidade de dar-lhe uma novaforma, de atualizar algumas roupas para que caíssem melhor. �Paraser eficiente no Japão, o cristianismo deve mudar�, decidiu ele. A ver-dade é que ele se tornou um romancista para trabalhar essas questõesna forma escrita. Um homem curvado e doente, usando óculos de len-tes grossas, à margem da sociedade, entrou rapidamente no estilo devida de um escritor. Começou lançando romances à proporção de umpor ano, e seu passo quase não diminuiu até sua morte, em 1996.

Visitei o Japão pela primeira vez em 1997, de modo que não tivechance de entrevistar Shusaku Endo. Percebi que o paradoxo de suavida continua até hoje. De maneira geral, a comunidade cristã não oreconhece como sendo um deles. Ele tinha dúvidas sobre doutrinas fun-damentais, o que fez que outros cristãos duvidassem dele. Em todas aspalestras nas quais mencionei seu nome, um cristão japonês veio atémim e solenemente aconselhou-me que Endo não era o melhor exemploa ser usado.

Em mais outra ironia, a fixação de Endo sobre a rejeição e a aliena-ção trouxe-lhe sucesso e aclamação numa cultura mais ampla. Ele setornou o mais conhecido escritor vivo do Japão, seus livros foram tradu-zidos para 25 idiomas diferentes, seu nome faz parte da curta lista deganhadores do Prêmio Nobel de Literatura. Graham Greene o chamava�um dos melhores romancistas vivos�, e luminares como John Updike eAnnie Dillard se juntavam ao coro de elogios. Em seus últimos anos devida, Endo serviu como um ícone cultural no Japão, destacando-se nos

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jornais e nas revistas. Por um tempo, dirigiu um programa de entrevistasna televisão. Numa nação em que os cristãos ainda não representam1% da população, parece notável que os livros de Endo tenham chega-do às listas dos mais vendidos, pois nenhum outro escritor importantetrabalhou tão exaustivamente com temas abertamente cristãos.

Endo fala ao ser interior, onde estão enterrados os sentimentos devergonha e rejeição que o japonês mediano costuma enfrentar numacultura que honra o comportamento adequado e correto, que é infali-velmente educada e civilizada no exterior. Pergunte a qualquer japonêsa diferença entre honne, aquilo que acontece no interior, e tatemae, aqui-lo que os outros enxergam, e eles balançarão a cabeça conscientemente.Faça a mesma pergunta a um americano, ou a um europeu ou a umafricano. Endo explora as fendas do fracasso e da traição que toda pes-soa da terra enfrenta e que, normalmente, procura esconder. Ao fazeristo, Endo lança uma nova luz sobre a fé cristã, uma luz tão reveladoraque expõe os cantos há muito escondidos, mas também tão suave queacaba com as sombras.

Desde o início, Endo procurou apontar as diferenças entre a visãode mundo do Ocidente e do Oriente. Ele foi educado na literatura

católica do Ocidente, que crê em um Ser Supremo separado da Criação.A maioria dos japoneses, porém, não acredita nesse Ser Supremo. Comoresultado, os profundos temas sobre Deus, pecado, culpa e crise moral,tão presentes na literatura ocidental, têm pouca relevância para o leitorjaponês comum.

Em seus primeiros romances, Endo retrata o Japão como um tipo depântano (e, às vezes, como um pântano verdadeiro) que traga tudo oque é estrangeiro, inclusive o cristianismo. Um de seus últimos trabalhos,Yellow Man, mostra um missionário francês abandonando o sacerdóciocom o objetivo de se casar com uma mulher japonesa e, mais tarde,escolhendo o suicídio. O sacerdote pondera em voz alta se seu Deus�poderia lançar raízes neste solo úmido, nesta raça amarela�. Em Volcano,escrito poucos anos depois, o sacerdote não apenas abandona o sacer-dócio, mas se torna um sedutor, atiçando outros a abandonar sua fé.Por trás dessas figuras, paira a silhueta de um jovem solitário diante deuma peça de museu na cidade de Nagasaki.

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No tempo devido, porém, o romancista Endo parece ter encontradouma saída nesse pântano. Os escritores japoneses têm o costume de pro-duzir obras de entretenimento entre os lançamentos de seus livros maissérios. Em um desses entretenimentos, transformado em série e publicadoem periódicos, uma nova figura surge de Endo: o tolo de bom coração,uma versão cômica japonesa de The Idiot, de Dostoievski. The WonderfulFool (O maravilhoso tolo) de Endo apresenta um missionário desajeitado,com cara de cavalo, que facilmente ganharia um concurso de feiúra nosEstados Unidos, não fosse o fato de ele ser francês � Gaston Bonaparteque, para ser mais preciso, era descendente do famoso imperador. Gastonofende seus convidados, comete uma gafe cultural a cada instante eparece ser atraído por todo tipo de pessoa ruim: um vira-lata vesgo,uma prostituta, um velho eremita, um assassino. Contudo, suas açõesestabanadas e simpáticas reacendem a vida em todos aqueles a quemtoca. A cena final acontece num pântano onde o amor de Gaston tocao assassino � que se chama Endo! � e o leva ao arrependimento.

Em The Samurai e O silêncio6, o choque de culturas apresenta-se naforma de uma tragédia, não de comédia. Os dois romances refletem fa-tos reais e personagens do início de 1600, quando os shoguns estavamapertando o cerco em volta da comunidade cristã no Japão. The Samuraiacontece no exato momento em que os shoguns estão reconsiderando suapolítica de abertura para o Ocidente. Um sacerdote leva quatro samuraisnuma missão comercial ao México e à Europa, onde, na esperança deaumentar o sucesso de sua tarefa, os samurais tornam-se cristãos nomi-nais. Durante o período que passam fora do país, porém, o Japão fechasuas fronteiras e, em seu retorno, eles são executados como traidores(traços da própria vida de Endo: o batismo nominal, a viagem ao exte-rior, rejeição dos que professam uma fé que ele mal conhece).

Contudo, pelo menos um dos samurais foi capaz de entender o ver-dadeiro significado da morte de um mártir. Seu servo Yozo fala de Jesusa ele. Não o Cristo triunfante e ressurrecto, mas o rejeitado, a quem opróprio Endo conhecera em suas visitas à Palestina.

Creio que, em algum lugar do coração do homem, há um clamor por alguémque esteja com ele por toda a vida, alguém que nunca o trairá, nunca oabandonará � mesmo que este alguém seja apenas um cachorro vadio esarnento. Este homem tornou-se este cão miserável por amor à humanidade.

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O samurai morre com as seguintes palavras de Yozo ecoando emseus ouvidos: �De agora em diante, ele estará ao seu lado. Ele vai tomarconta de você�.

Os críticos consideram o outro romance ambientado nesse períodohistórico, chamado O silêncio, a obra-prima de Endo. Sua prosa é simples eclara. O roteiro marcha inexoravelmente para uma conclusão trágica, ospersonagens apresentam uma profundidade rara na ficção de Endo e todaa atmosfera está repleta do poder do mito. O silêncio segue um sacerdoteportuguês, chamado Rodrigues, numa perigosa missão no Japão. Rumo-res chegaram ao comando dos jesuítas na Europa dizendo que o maisfamoso missionário no Japão, o padre Ferreira, havia apostatado.Rodrigues, que fora aluno do padre Ferreira no seminário, não podia acre-ditar que aquele grande homem, seu mentor, teria renunciado à fé depoisde 20 anos de corajosos serviços. Decide viajar para se encontrar comFerreira, ciente de que muito provavelmente não retornará vivo (tudoisso foi baseado em personagens e fatos reais, ocorridos em 1635).

Logo na chegada ao Japão, depois de uma angustiante viagem,Rodrigues ouve as confissões dos cristãos secretos � membros da Igrejasubterrânea dos kakure �, os quais não viam um sacerdote havia anos.Um deles, um astuto e mercenário pescador, entrega Rodrigues aos shogunsem troca de recompensa. Rodrigues se mantém fiel à sua fé mesmo sobtortura e diante de uma situação moral insustentável. Grupos de cristãosperfilam-se diante dele. Foi dito a Rodrigues que, se ele pisasse o fumie, oscristãos seriam libertados. Ele se recusa, e todos são mortos diante de seusolhos. �Ele viera ao país para dar sua vida por outros homens, mas o queestava acontecendo era que os japoneses estavam perdendo suas vidaspor causa de um homem.� Ainda assim, independentemente dos méto-dos que os shoguns usaram, Rodrigues não renunciou sua fé.

Como o título do romance nos indica, o silêncio permeia toda a obra.Por cerca de uma centena de vezes, Rodrigues vê a face de Jesus, umaface que ele ama e a quem serve. Mas a face não fala nada. Permanecesilenciosa quando o sacerdote é acorrentado a uma árvore para ver cris-tãos sendo mortos; silenciosa quando ele quer saber se deve pisar o fumiepara libertá-los; silenciosa quando ele ora em sua cela, à noite.

De início, parece que O silêncio fará uma homenagem àquilo queimpulsionou a Igreja durante séculos: a intrépida fé dos mártires heróis.Rodrigues, um sacerdote íntegro, dispôs-se voluntariamente a participar

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de uma missão suicida. Mas em O silêncio, o amor e a fé de Rodrigues vãoalém do martírio, além até mesmo da apostasia.

Certa noite, Rodrigues escuta um som semelhante a um ronco. Osom, que, na verdade, eram gemidos de dor, vinha dos cristãos que esta-vam pendurados de cabeça para baixo sobre os fossos, com suas orelhascortadas para que o sangue se esvaísse lentamente e eles morressem emgrande agonia. Aqueles dois poderiam ser libertados se Rodriguesabjurasse. Rodrigues fora alertado sobre essa tortura por Ferreira, que ovisitou em sua cela. Para seu horror, descobriu naquela visita que o gran-de missionário Ferreira havia realmente negado a fé, apenas cinco horasdepois de ficar pendurado sobre o fosso. Ferreira implora que Rodriguestambém pise no fumie. É apenas um símbolo, um ato exterior. Ele nãoprecisa realmente ter significado. Tal gesto salvará muitas vidas... E, nofim, o padre Rodrigues nega sua fé pelo amor aos outros.

Mais tarde, Endo reclamou que O silêncio foi mal interpretado porcausa de seu título. �As pessoas passaram a achar que Deus era silen-cioso�, disse ele, quando, na verdade, Deus fala no romance. Eis a cenadecisiva, quando o silêncio é rompido, no exato momento em queRodrigues está olhando para o fumie:

�É apenas uma formalidade. Para que servem as formalidades?�, pergunta,nervosamente, o intérprete. �Siga adiante com o ato exterior de pisá-lo.�

O padre levanta o pé. Sente uma dor profunda. Aquilo não era apenasuma formalidade. Ele está prestes a pisar naquilo que considerava a coisamais linda de sua vida, no que acreditava ser puro, que estava cheio dosideais e sonhos dos homens. Como seu pé dói! Então, o Cristo em bronze falaao padre: �Pise! Pise! Eu, mais do que ninguém, conheço a dor em seu pé.Pise! Foi para ser pisado pelos homens que vim ao mundo. Foi para compar-tilhar a dor dos homens que carreguei minha cruz�. O padre colocou o pésobre o fumie. O dia amanheceu. E lá, bem longe, o galo cantou.

Quando O silêncio foi lançado, em 1966, muitos católicos japonesesreagiram com ira. Respeitosos a seus antepassados, tinham objeçõesquanto a romancear apóstatas como Ferreira e Rodrigues. Quão facilmen-te esquecemos que a Igreja foi fundada por discípulos que traíram seumestre. Nenhum deles estava disposto a se colocar ao lado de Jesusquando as autoridades políticas e religiosas o condenaram à morte.

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Em seu momento de maior necessidade, os discípulos se esconderam nastrevas. O mais valente de todos, Pedro, foi o mesmo que xingou e o negoutrês vezes antes que o galo cantasse. Foi por traidores que Jesus morreu.

Em sua defesa, Endo coloca o tema central do romance como sen-do a transformação da face de Jesus, não a transformação dos perso-nagens. �Para mim, a coisa mais significativa do romance é a mudançana imagem heróica de Cristo�, diz ele. Antes daquele episódio,Rodrigues acreditava num Jesus de majestade e poder. A imagem deJesus que aparecera mais de uma centena de vezes era pura, serena,celestial. Gradualmente, porém, a missão de Rodrigues fracassa � e, naverdade, provoca a morte de muitos japoneses �, e a imagem de Jesuscomeça a se transformar, ficando marcada pelo sofrimento dos homens.Como deve ter sido para o próprio Jesus saber (e ele sabia) que a féque ele espalharia pelo mundo resultaria na perseguição e no martíriode muitos por toda a História, inclusive tantos japoneses? �Um irmãoentregará à morte outro irmão, e o pai, ao filho (...) Sereis odiados detodos por causa do meu nome� (Mt 10:21, 22).

Exausto, perseguido, próximo do desespero, Rodrigues vê seu reflexonuma poça d�água, uma visão que se transforma numa epifania:

Ali, refletida na água, estava a imagem de uma face cansada e deprimida.Não sei por quê, mas naquele momento pensei na face de outro homem (...)a de um homem crucificado (...) cheia de barro e detritos. Era fina e estavasuja. Era a face de um homem afligido, cheio de inquietações e, ao mesmotempo, vazio.

Deste ponto em diante, o romance usa palavras como �sofrido�, �enfra-quecido�, �desgastado� e �feio� para descrever a face de Jesus. Quandoo silêncio é finalmente quebrado, no momento em que Rodrigues estáprestes a pisar no fumie, essa face fala com ele, do meio do fumie: �Pise�,diz o rosto, já �enfraquecido e desgastado pelas constantes pisaduras�.

O esquema por trás da imagem transformada de Jesus vem à luz noseu trabalho não ficcional chamado Uma vida de Jesus7. O livro

vendeu mais de 300 mil cópias e, para muitos japoneses, permanececomo sua introdução básica à fé cristã. Shusaku Endo acredita que o

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cristianismo falhou em provocar um grande impacto no Japão porqueos japoneses ouviram apenas um lado da história. Eles ouviram sobre abeleza e a majestade. Os turistas japoneses visitam Chartres e a Abadiade Westminster com suas câmeras digitais e registram imagens de glória;corais japoneses executam as obras-primas religiosas de Handel e Bach.Mas, de alguma maneira, os japoneses sentem falta de outra mensagem:a de um Deus que �a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de ser-vo�; de um Filho de Deus que chorou, quase desesperado, quando seaproximava de Jerusalém.

Endo explica que esse ponto de contato com os japoneses baseia-senas experiências de fracasso e vergonha, porque, em sua cultura, essascoisas deixam o mais duradouro impacto na vida de uma pessoa. Endosente que as pessoas criadas numa cultura budista podem se identificarmelhor com uma pessoa que sofre com elas e que permite que tenhamosfraquezas. Para o próprio Endo, o mais tocante legado de Jesus foi seuamor infinito, até mesmo � e especialmente � por pessoas que o traíram.Quando Judas levou o esquadrão de linchamento ao jardim, Jesus refe-riu-se a ele como �amigo�. Seu país o executou. Quando estava ali, esti-rado e nu, numa postura de total desgraça, Jesus reuniu forças paradizer: �Pai, perdoa-lhes�. Para aqueles que ficaram escandalizados coma aparente apostasia de seus personagens Ferreira e Rodrigues, Endoaponta para os dois principais fundadores da Igreja cristã: Pedro negoua Cristo três vezes, e Paulo liderou a primeira perseguição aos cristãos.Se a graça não tivesse alcançado aqueles dois, é bem possível que a Igrejajamais tivesse se estabelecido.

Por que o cristianismo é virtualmente a única prática ocidental quefalhou em criar raízes no Japão, que tão rapidamente adotou o beisebol, oMcDonald�s e o rock? Seguindo outra linha de pensamento, Endo liga seufracasso à ênfase ocidental na paternidade de Deus. O terapeuta ErichFromm diz que um filho de uma família equilibrada recebe dois tipos deamor. O da mãe tende a ser incondicional, aceitando a criança, indepen-dentemente do que ela faça ou de como se comporte. O amor do paiapresenta a tendência de ser mais voltado à provisão, mostrando aprova-ção quando a criança apresenta certos padrões de comportamento. Numasituação ideal, diz Fromm, uma criança deveria receber e internalizar osdois tipos de amor. De acordo com Endo, o Japão, uma nação de paisautoritários, entendeu o amor de pai de Deus, mas não o amor de mãe.

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Um velho ditado japonês lista as quatro coisas mais horríveis domundo como sendo �incêndios, terremotos, relâmpagos e pais�. Emminhas viagens ao Japão, muitas pessoas me falaram de seus pais au-toritários que nunca pedem desculpas, são emocionalmente distantes,não demonstram nada que se pareça com amor ou graça, que fazemmuitas críticas e poucos elogios. Uma mulher chegou a dizer-me quehavia planejado matar seu pai quando tinha 13 anos, depois de tersido sexualmente abusada por ele. Com medo da pena capital, optoupor ir estudar nos Estados Unidos. Quando sua mãe morreu, o paiordenou que ela voltasse para cuidar dele e, de acordo com o costumejaponês, ela sentiu-se obrigada a fazê-lo. �No mês passado, pela pri-meira vez na vida, meu pai agradeceu por algo que eu havia feito�,disse-me ela. �Considero isto uma verdadeira vitória.�

A conclusão de Endo é que, para que o cristianismo apresente al-gum apelo ao povo japonês, precisará enfatizar o amor materno deDeus, o amor que perdoa erros, cura feridas e atrai os outros para si,em vez de forçá-los a vir (�Jerusalém, Jerusalém, que matas os profe-tas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reuniros teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo dasasas, e vós não o quisestes!� � Mt 23:37). �É na religião maternal queCristo vai a prostitutas, pessoas deformadas e sem valor, e as perdoa�,diz Endo. Segundo sua visão, Jesus trouxe a mensagem do amor mater-no para equilibrar o amor paterno do Antigo Testamento. O amor demãe nunca esmorece, mesmo diante de um filho que comete um crime:esse amor perdoa qualquer fraqueza. Para Endo, o que realmente im-pressionou os discípulos foi a percepção de que Cristo ainda os amava,mesmo depois de eles o terem traído. Ter seu erro apontado por al-guém não era nada de novo; ter seu erro descoberto e, ainda assim, seramado era realmente novo.

O livro Uma vida de Jesus completa o retrato do amor materno de Jesus:

Ele era magro, não era grande coisa. Havia, porém, uma coisa sobre ele:nunca abandonou alguém com problemas. Quando as mulheres vinham cho-rando, ele permanecia ao seu lado. Quando idosos estavam sozinhos, ele sesentava calmamente com eles. Não era nada miraculoso, mas os olhos fun-dos transbordavam de um amor ainda mais profundo do que um milagre.Considerando aqueles que o traíram e abandonaram, nem uma palavra de

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ressentimento saiu de seus lábios. Não importava o que acontecesse, ele erao homem de dores, e não orava por nada além de sua salvação.

É isso o que se pode dizer de Jesus. Ele chama a atenção pela pureza epela simplicidade, tal qual um ideograma chinês pintado sobre uma folha depapel branco.

Os cristãos tradicionais acharão que o retrato de Jesus pintado por Endoé incompleto. Ele não fala nada sobre os milagres de Jesus, e, franca-mente, eles parecem ser quase irrelevantes para seus objetivos. Ele deixade fora cenas que mostram a autoridade e o poder de Jesus. Apresentaum Jesus com quem os japoneses podem se relacionar e, para eles, qual-quer vestígio de poder torna Jesus uma figura intimidatória e difícil deaceitar. De maneira semelhante, Endo apresenta uma versão fraca daressurreição, o que, para ele, serve de barreira para a crença japonesa.Para os críticos que atacaram severamente sua teologia, ele responde:�Minha forma de retratar Jesus está baseada no fato de eu ser um ro-mancista japonês. Escrevi este livro para o bem dos leitores japoneses,que não têm tradição cristã alguma própria e que não conhecem prati-camente nada sobre Jesus�.

Nós, porém, que crescemos ouvindo sobre Jesus, também temosmuito que aprender com Endo. Lembro-me de uma vez em que abordeio assunto �guerra cultural� diante de um grande encontro que protestavacontra a influência da democracia liberal, e incluía uma forte minoriajudaica. Fui escolhido como o representante dos cristãos evangélicos paraparticipar de um painel que reunia os presidentes do Disney Channel eda Warner Brothers, assim como o reitor da Faculdade Wellesley e oadvogado de Anita Hill, que havia testemunhado fortemente contraClarence Thomas, juiz da Suprema Corte.8 Senti-me como se estivesseusando uma camiseta branca com um enorme alvo pintado nas costas,pois todos eles tinham histórias para contar sobre poderosos lobbies cris-tãos que haviam lutado contra eles.

Os batistas do Sul estavam boicotando a Disney, os evangélicosprotestavam fortemente contra uma exposição de arte blasfema naFaculdade Wellesley e Anita Hill ainda recebia cartas mal-humoradasde cristãos conservadores, mesmo depois de vários anos de sua apari-ção diante do Congresso. A integrante mais jovem do painel, LucindaRobb, neta do presidente Lyndon Johnson e filha do senador Chuck

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Robb, falou de uma campanha difamatória contra Oliver North, naqual cristãos direitistas faziam piquetes em todas as suas aparições.�Achei que éramos cristãos�, disse-me Lucinda. �Crescemos tendo BillyGraham como visita freqüente e sempre fomos ativos na igreja. Real-mente cremos. Mas estes manifestantes nos tratam como se fôssemosdemônios do inferno.�

Quando chegou minha vez de falar, mencionei que, em tais circuns-tâncias, eu buscava orientação na vida de um judeu do primeiro século,que também estava envolvido numa guerra cultural. Um rígido sistemareligioso o perseguiu em todo o tempo que passou na Terra, preocupadoque a mensagem daquele homem pudesse perturbar as autoridadesgovernantes. E certamente o império pagão sob o qual ele vivia davamargem a críticas. Roma tinha práticas � escravidão, execução em mas-sa, infanticídio, jogos públicos com gladiadores � que nenhum Estadomoderno toleraria. Jesus confiava na arma principal para lutar contra aguerra cultural: o amor sacrifical. Dentre as últimas palavras que eledisse antes de morrer, encontramos estas: �Pai, perdoa-lhes, porque nãosabem o que fazem� (Lc 23:34).

Depois do painel, uma celebridade da televisão, alguém que todoleitor saberia quem é somente pelo nome, veio até mim e disse: �Precisofalar uma coisa. Você me atingiu bem no coração. Eu estava pronto paranão gostar de você, pois não gosto dos cristãos da direita e presumi quevocê fosse um deles. Você não pode imaginar as cartas que recebo deles.Eu não sigo a Jesus � sou judeu. Mas quando você falou sobre Jesusperdoando seus inimigos, percebi quão longe estou desse espírito. Lutocontra meus inimigos, especialmente os direitistas. Não os perdôo. Te-nho muito que aprender com o espírito de Jesus�. O poder do amorsacrifical de Jesus estava atuando novamente.

Conforme se aproximava o fim de sua carreira, Endo passou a abor-dar temas mais pessoais, até mesmo autobiográficos. Em 1988,

foi lançado seu romance Scandal, que, surpreendentemente, apresen-ta como personagem central um famoso escritor católico no Japão queé acusado de freqüentar a região de meretrício de Tóquio. O leitor nun-ca se sente plenamente seguro se esse escritor, em sua óbvia semelhançacom Endo, está sendo favorecido por seus acusadores, se tem um lado

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sombrio ou se está experimentando algum tipo de alucinação. Endodesnuda a traição de sua própria alma. �Não me superestimem�, dizele a seus leitores. �É o máximo que posso fazer para lidar com meuspróprios problemas. Não posso assumir a responsabilidade por suasvidas também.�

Como escritor, considero Scandal o mais corajoso e, em muitos as-pectos, o mais tocante dos romances de Endo. Escritores que abordamos assuntos de fé apresentam uma tendência de purificar seus perso-nagens, retratando-os com um tipo de brilho sobre eles. Esta tendên-cia contradiz diretamente o exemplo da Bíblia, que relata as falhas deseus grandes personagens � Abraão, Moisés, Davi, Pedro, Paulo � combrutal realismo. Neste sentido, Endo é um dos mais bíblicos de todosos escritores ficcionais modernos, pois o tema da traição transpareceem todos os seus principais trabalhos. Em Scandal, Endo é seu própriotraidor.

�Um romancista não pode escrever sobre o que é santo�, diz Endo.�Ele não pode retratar o santo Cristo, mas pode escrever sobre Jesusatravés dos olhos do tipo de pessoas que pisaram o fumie, ou pelos olhosde seus discípulos, ou de outros que traíram o Cristo.� Ele deveria teracrescentado que o romancista só pode escrever sobre Jesus através dosolhos do próprio romancista, pois, no fim, Endo não se afastou muito daautobiografia. Por dentro, o estimado ancião das letras ainda era ummenino, lutando para fazer seu costume de roupas estrangeiras se en-caixar em seu corpo japonês.

Um dos contos de Endo, chamado Mães, fala de um homem quevisita um grupo de cristãos kakure numa ilha remota, em busca de al-guma verdade sobre si. Esses cristãos das catacumbas, devotos deMaria, com um profundo sentimento de fracasso histórico, chamam aatenção do visitante. Ele percebe neles um pouco do desejo que tinhaquando era criança, incapaz de se comunicar adequadamente comsua própria mãe. �Às vezes, enxergo um pouco de mim mesmo nesseskakure, pessoas que tiveram de viver uma vida de duplicidade, mentin-do para o mundo e nunca revelando seus verdadeiros sentimentos aninguém.�

Em um sonho recorrente, o narrador está numa cama de hospital,fortemente sedado. Entre os momentos de consciência e torpor, ele vêque, a seu lado, obstinadamente, está sentada sua mãe � ninguém mais,

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apenas sua mãe. Nos momentos de lucidez, ele pondera sobre a grandefé que sua mãe possui e sua instabilidade. �Quanto mais ela me compe-lia a compartilhar de sua fé, mais eu lutava contra seu poder opressivo,do mesmo modo que uma criança que está se afogando luta contra apressão da água.�

Enquanto o narrador tem esses pensamentos, ouvindo o ruído dasmáquinas que o mantêm vivo, alternando misteriosamente entre o pre-sente e o passado, preparando-se para um futuro que não pode imagi-nar, sua mãe senta-se ao seu lado, aguardando silenciosamente.

SHUSAKU ENDO PARA INICIANTES

Comece com O silêncio, o aclamado clássico de Endo. Admiro profunda-mente a obra Escândalo9. Um de seus últimos romances, chamado Rioprofundo10, revisita muitos dos temas dos primeiros romances: viagens aoexterior, uma fé abalada, o tolo de bom coração. Mas ele explora o novoterritório da comparação de religiões através dos olhos de um grupo deturistas japoneses que visitam a Índia. Muitos leitores consideram aficção de Endo repetitiva ou difícil de entender, talvez pelas diferençasculturais. Essas pessoas devem dar preferência aos contos reunidos emThe Final Martyrs. Uma vida de Jesus ajuda a explicar o ponto de vistaexpresso nos romances.

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