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3 A letalidade seletiva da política pública de segurança como paradigma de extermínio no Rio de Janeiro Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não têm cultura, e sim folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. (Eduardo Galeano – Os ninguéns) O debate atual sobre direitos fundamentais se vê confrontado com uma nova realidade, relacionada com o conceito de sociedade de risco 1 , a qual começa a pautar as políticas públicas e legislativas. Assiste-se hoje ao confronto dos ideais de liberdade e segurança, no qual talvez se possa falar na substituição do primeiro pelo segundo. O ideal da liberdade é limitado pelo aumento ineficaz e desarrazoado do poder punitivo do Estado, contribuindo inclusive para a própria desestruturação do Estado Democrático de Direito. O fortalecimento do aparato repressivo do Estado surge como uma espécie de resposta ao problema da criminalidade e a busca por segurança. Ainda que legítima, a demanda social por proteção não pode justificar a submissão dos cidadãos ao poder cada vez maior do Estado, uma vez que a transição do desejo de segurança em desejo de punição é fortemente manipulado pela mídia e o aparato governamental, atuando unicamente no campo simbólico, sem correspondência objetiva com a realidade, ou seja, a diminuição efetiva da criminalidade. 1 Essa expressão foi trabalhada por Beck sobre a constatação do risco como um fator onipresente na sociedade, até se tornar uma normalidade. O risco se tornou não um momento de estranhamento, mas um elemento central da vida, parte da rotina na “sociedade industrial de risco”. Ver: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. Ed. 34, 2002.

3 A letalidade seletiva da política pública de segurança ... · legítima, a demanda social por proteção não pode justificar a submissão dos cidadãos ao poder cada vez maior

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3

A letalidade seletiva da política pública de segurança como

paradigma de extermínio no Rio de Janeiro

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida

Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições.

Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos.

Que não têm cultura, e sim folclore. Que não têm cara, têm braços.

Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas

páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

(Eduardo Galeano – Os ninguéns)

O debate atual sobre direitos fundamentais se vê confrontado com uma

nova realidade, relacionada com o conceito de sociedade de risco1, a qual começa

a pautar as políticas públicas e legislativas. Assiste-se hoje ao confronto dos ideais

de liberdade e segurança, no qual talvez se possa falar na substituição do primeiro

pelo segundo. O ideal da liberdade é limitado pelo aumento ineficaz e

desarrazoado do poder punitivo do Estado, contribuindo inclusive para a própria

desestruturação do Estado Democrático de Direito.

O fortalecimento do aparato repressivo do Estado surge como uma espécie

de resposta ao problema da criminalidade e a busca por segurança. Ainda que

legítima, a demanda social por proteção não pode justificar a submissão dos

cidadãos ao poder cada vez maior do Estado, uma vez que a transição do desejo

de segurança em desejo de punição é fortemente manipulado pela mídia e o

aparato governamental, atuando unicamente no campo simbólico, sem

correspondência objetiva com a realidade, ou seja, a diminuição efetiva da

criminalidade.

1 Essa expressão foi trabalhada por Beck sobre a constatação do risco como um fator onipresente na sociedade, até se tornar uma normalidade. O risco se tornou não um momento de estranhamento, mas um elemento central da vida, parte da rotina na “sociedade industrial de risco”. Ver: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. Ed. 34, 2002.

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O caso do Rio de Janeiro é emblemático do cenário descrito no campo da

segurança pública, e será objeto de análise neste capítulo. A substituição da

liberdade por segurança representa a transformação de um Estado reativo para um

Estado com postura pró-ativa, no qual o objetivo é desviado da defesa da

sociedade contra ameaças, para o controle cada vez maior, com a finalidade de

prevenção dos riscos potenciais, indefinidos e desconhecidos, intervindo na

liberdade coletiva e individual de todos que possam representar risco. O

paradigma da segurança agora permite que a violência estatal seja exercida de

forma aleatória, pois todos passam a condição de suspeitos.

“No que tange ao sistema punitivo, o ideal de liberdade está ligado a um conceito de Estado de direito e a um sistema estrito e rígido de garantias do indivíduo frente às pretensões punitivas do Estado, enunciado a partir das construções filosóficas do liberalismo político, do iluminismo e do racionalismo e que tem como corolários a legalidade, proporcionalidade, culpabilidade e ofensividade real da conduta. De outro lado, o ideal de segurança aponta para um sistema punitivo hipertrofiado, simbólico e informalizado (flexibilização das garantias), com objetivo de aumentar o poder do Estado contra eventuais “inimigos”, conquanto esse poder aumentado se faça sentir sobre todos os cidadãos, já que a intervenção punitiva deixa de ser a ultima ratio para se tornar regra. O pensamento da segurança carrega dentro dele um risco essencial. Um Estado que tenha a segurança como sua única tarefa e fonte de legitimidade é um organismo frágil; pode sempre ser provocado pelo terrorismo para tornar-se, ele próprio, terrorista”2.

A partir disso, um direito de emergência surge como resposta para a

“crise” da violência urbana carioca. A sensação de uma criminalidade fora de

controle é transmitida para a sociedade, a qual responde com uma demanda

crescente por medidas emergenciais, legitimando dessa forma medidas

excepcionais imediatistas e com forte cunho repressor. Essa forma de política

carrega um forte apelo simbólico e por isso consegue envolver a opinião pública.

Essa é uma tendência mundial, mas no caso das políticas implementadas no Rio

de Janeiro, ela adquire detalhes dramáticos. Pois uma sociedade historicamente

excludente como a brasileira, após sair de um regime autoritário e violento que

durara décadas, deveria estar construindo sua base democrática, com princípios e

valores libertários. Ao contrário, ela ainda é profundamente marcada pela

ideologia opressora, comandada pela minoria detentora do poder. A norma não é

mais criada para proteger bens jurídicos, ela passa a ser criada para proteger a

2 AMARAL, Thiago Bottino do. A segurança como princípio fundamental e seu reflexo no sistema punitivo. Revista Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Ano 11, nº 15/16, 1º e 2º semestres de 2007. p. 301.

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própria norma. A lei antecipa a tipificação dos crimes para o momento

preparatório, quando ainda não há uma lesão a um bem jurídico. Passamos então

do direito a segurança para a segurança dos direitos, no qual se desenvolve uma

política extremamente repressora e, sob uma perspectiva excludente, mantém a

segurança de poucos3.

No caso brasileiro, o movimento “lei e ordem” e o Estado de polícia são

duas faces da mesma moeda. Não se pode mais negar o caráter político do sistema

penal em todas as suas ramificações. O olhar seletivo está sempre presente, seja na

escolha das condutas a serem tipificadas pela norma penal, seja pela dosimetria

das penas, sempre mais rigorosas com os chamados crimes de rua. Ou por meio

do seu braço policial, que é quem realiza o primeiro filtro sobre a clientela da

máquina punitiva, sendo justamente a polícia que irá determinar quais sujeitos se

enquadram no tipo suspeito, qual postura desperta ameaça a ordem pública,

devendo o sujeito ser reprimido, coagido e encarcerado nas masmorras brasileiras.

E, se isso não for possível, deve ser eliminado. Dessa forma, o estado de exceção

vai tomando conta, sempre alimentado pelas propagandas midiáticas. “Vende-se a

ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito comum sancionando

leis que reprimam acima de qualquer medida os raros vulneráveis e

marginalizados tomados individualmente e aumentando a arbitrariedade

policial”4. Assim, o Estado de Polícia vai progredindo cotidianamente, invadindo

os espaços conquistados após muitos anos de luta pelo Estado Democrático de

Direito.

A violência urbana articula um complexo de práticas que compõem uma

grande parcela do conflito social no Rio. Com o advento dos governos militares e

a Doutrina de Segurança Nacional, conforme tratado no primeiro capítulo do

presente trabalho, algumas mudanças foram sentidas na forma de tratamento da

sociedade pelo Estado e pelas polícias. A questão do controle social passa a ser

politizada e novos pontos considerados estratégicos começam a ser planejados.

Como o caso da militarização da polícia, deslocando o foco de repressão do crime

comum para as questões de segurança do Estado. Então assim se desenvolve a

3 SULOCKI, Victoria-Amália. Museu de novidades: discursos da ideologia da defesa social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Op. Cit. p. 12. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 75.

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base do problema da segurança pública atual, na qual começa a se questionar as

formas legítimas e ilegítimas de manutenção da ordem social, qual seja, a

transferência do controle social cotidiano para as questões de segurança do Estado

e a militarização das polícias associada com a autonomia dos aparelhos policiais.

Os discursos das autoridades oficiais sobre a guerra ao tráfico de drogas é

uma forma de simplificação da questão de manutenção da ordem pública, usando

essa guerra como um pano de fundo para a justificação das intervenções rotineiras

na vida social, atribuindo a culpa a um segmento específico – os moradores das

favelas – o qual, a partir de sua criminalização, torna-se o perfil ideal do outro: o

suspeito que precisa ser eliminado5.

A análise dos excessos da atuação policial, em que se busca entender o uso

da força moderada, ignora que essa instituição é resultado de uma perspectiva

coletivamente construída sobre o limite para manutenção da ordem pública. Para

Machado da Silva, a violência policial se mostra na história brasileira como uma

condição de possibilidade do conflito institucionalizado no Estado. Explica-se. A

violência tem sido a condição intrinsecamente presente no processo de integração

política e sociocultural, responsável pela segregação por meio da força e da

desqualificação simbólica de determinado grupo. Aberta ou camuflada, a

violência sempre atuou como mediadora das relações sociais. A violência

camuflada operava por meio do “tecido social”, ou seja, uma pregação ideológica

com a função básica de recalcar a violência inerente a exploração econômico-

social. No que tange a violência aberta, o seu braço executor é incorporado na

autoridade policial.

3.1

A favela e o paradigma do campo

5 Assim afirma Machado da Silva: “(...) convergem para os aparelhos policiais demandas de recomposição de uma ordem social tida como ameaçada. Cresce o clamor por uma ação “dura” – isto é. Ilegal -, de modo que a única possibilidade de evitar a contaminação moral de todo o sistema, preservando os aspectos institucionalizados do conflito social, é deixar a “dureza” da repressão ao arbítrio da polícia. Esse é o segredo, praticado mas não tematizado, da paradoxal convivência entre dois processos que, na aparência, deveriam ser incompatíveis: a democratização e a expansão da violência criminal e policial.” MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Violência Urbana”, Segurança Pública e Favelas – O caso do Rio de Janeiro. Cadernos CRH, Salvador, v.23 n.59, Maio/Agosto de 2010. p. 292.

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A política de segurança pública no Rio de Janeiro sempre foi muito

particular em relação aos outros estados do Brasil, em grande parte devido a

circunstância de sua geografia. A ocupação urbana de maneira segregacionista é

comum em diversas cidades do Brasil. Entretanto, uma característica peculiar no

caso do Rio de Janeiro é que esses espaços situam-se muito próximos uns dos

outros, o que só acentua o aspecto segregacionista da política de construção do

espaço urbano. O caso do Rio de Janeiro mostra explicitamente uma política de

cunho higienizador.

Sem entrar na questão histórica, que foge ao escopo deste trabalho, é

importante mencionar que, a partir dos anos 60, o Estado começa a intervir no

processo de ocupação, removendo as favelas da zona sul e deslocando a

população para a zona norte. Nessa época começa a se delinear o mapeamento da

cidade atual - a vida a beira-mar é privilégio dos ricos, enquanto as classes mais

baixas vão se distanciando cada vez mais do centro. Durante muitos anos e

sucessivos mandatos políticos, segmentos das classes subalternas ficaram

expostos a exclusão social e política, o que permitiu a formação de fronteiras de

uma “cidade partida”6.

De acordo com Andrelino Campos, “como a favela, ainda hoje, está

umbilicalmente ligada à questão do “risco”, as classes dominantes criam, em cada

momento, um discurso que vinha dando sustentação às suas práticas sócio-

espaciais, baseando-se quase sempre nos ideários discriminatórios e

segregacionistas”7. A questão da higiene sempre foi fundamental para justificar a

produção do espaço no Rio de Janeiro, primeiro para afastar da área central os

cortiços que abrigavam escravos, posteriormente usou o discurso do “risco

ambiental” para remover centenas de favelas, e atualmente busca soluções contra

o “risco” para segurança pública, especialmente na questão do tráfico de drogas.

Essas justificativas sempre precederam as intervenções do Estado no espaço

favelado, seja de forma “cirúrgica”, seja removendo as favelas, como uma espécie

de “doença urbana”, ou promovendo programas de pacificação com custos sociais

6 Interessante observar a descrição que o autor faz sobre a separação velada que existe na cidade do Rio de Janeiro, na qual está inserida duas realidades completamente diferentes, podendo mesmo ser considerada uma cidade dividida. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. 7 CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à Favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2011. p. 69.

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muito altos. É o “medo branco de almas negras” conforme denomina Sidney

Chalhoub8, o temor de uma rebelião popular.

Durante esse processo aprofunda-se a “cidadania diferenciada”. Ou seja, as

favelas são abandonadas pelas políticas públicas na área de saúde, saneamento

básico e educação, por exemplo. Em contrapartida, esses espaços passam a ser

ocupados por relações clientelistas, por meio da fragmentação urbana e o

fortalecimento de líderes locais, seitas religiosas, contravenção ou mesmo pelo

crime organizado. Assim, se observa o fortalecimento da distinção entre direitos

humanos e cidadania, na qual o primeiro passa a ser visto ironicamente pela

sociedade como privilégio dos delinqüentes, enquanto cidadania seria restrita aos

sujeitos cumpridores da lei, para os contribuintes9.

“Esse tipo de pensamento higienista, que é recorrente na nossa sociedade, foi expresso por Marcus Jardim, Comandante do 1° Comando de Policiamento de Área (CPA) do Rio de Janeiro, ao afirmar que: “A PM é o melhor inseticida social”, no dia 15/04/08 em referência a ação da polícia militar na favela de Vila Cruzeiro, onde foram mortas nove pessoas e feridas seis, tendo como justificativa o combate ao tráfico de drogas. Agindo dessa maneira, os representantes da política de segurança do estado do Rio de Janeiro visam naturalizar suas práticas, comparando seres humanos a insetos que podem ser mortos sem que ocorra qualquer investigação sobre os fatos”10.

Ao se analisar a formação histórica do Rio de Janeiro torna-se evidente a

constância de políticas públicas desenvolvidas e pensadas de cima para baixo,

equacionadas pelas elites e voltadas para os seus interesses. Não foram

direcionadas para o desenvolvimento social, mas sim para o controle das massas;

não planejadas para a segurança de todos, mas sim para instalação da ordem.

O padrão bélico da segurança pública carioca estabelece um cenário

político que conjuga o conceito de estado de exceção analisado por Agamben,

com uma característica particular, qual seja, a política de segurança fundada no

extermínio sem qualquer tipo de decisão soberana anterior concedendo plenos

poderes, inclusive para violação de direitos fundamentais. No contexto carioca, é

a constituição material biopolítica que confere poderes para o exercício da

8 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p. 64. 9 DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit.

p.161. 10 RIBEIRO, Camila; DIAS, Rafael; CARVALHO, Sandra. Discursos e práticas na construção de uma política de segurança: O caso do governo Sérgio Cabral Filho (2007-2008). In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro. (Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p. 7.

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violência institucional. Ou seja, é um estado de exceção sem a autorização da

constituição formal, não positivado. É um estado de exceção difuso, de fato e não

de direito. Dessa forma, a política de segurança vigente sob a exceção permanente

recai sobre a superioridade do nomos em relação a lei, do direito material sobre o

direito formal. A exceção, segundo Agamben é mais uma técnica de governo do

que uma medida excepcional propriamente dita, sendo conjuntamente, um

paradigma constitutivo da ordem jurídica.

O estado de exceção acionado pela metáfora de guerra as drogas divide a

cidade em áreas sob a jurisdição do Estado de Direito, e áreas urbanas do estado

de exceção – as favelas. A partir da polarização estigmatizante, os territórios das

favelas e seus moradores são historicamente criminalizados e abandonados pelo

Estado, o que remete ao conceito agambeniano de bando, como o excluído,

banido, “o bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva,

que liga os dois polos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e

o soberano”11.

A violência na instituição policial está presente de diversas formas. Nos

casos de mortes de civis em confronto com a polícia ou grupos de extermínio, os

agentes muitas vezes camuflam a natureza real dos homicídios, fato muito comum

principalmente em casos de autos de resistência; da mesma forma que os

investigadores não tomam as medidas necessárias para averiguar a verdade dos

fatos, os agentes distorcem ou não preservam as provas que seriam essenciais para

determinar a legitimidade da ação policial12. Essa situação impede a

responsabilização dos agentes e contribui para a manutenção das altas taxas de

letalidade policial, já que esses atos cometidos pelos agentes internos da polícia

ficam impunes. A questão do corporativismo na instituição policial é um legado

do regime militar que não conseguiu ser rompido, podendo ser percebido na falta

de independência na condução das investigações de um membro da corporação,

onde a imparcialidade e independência das investigações são totalmente

prejudicadas.

11 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 35. 12 Ver RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit.

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O aumento da corrupção policial e o crescimento da criminalidade13 são

faces distintas da mesma moeda, que representa a ascensão de uma cultura menos

propensa a aceitar imposições de autoridades, se isto contrariar seus interesses.

Alguns estudiosos tentam explicar o “fracasso” no controle da criminalidade a

partir da corrupção policial e da impunidade. No entanto, essa linha não abrange o

ponto do descontrole do Estado, tanto da corrupção como da criminalidade, no

qual ambos têm a mesma raiz – a crise da autoridade. Esse fato, paradoxalmente,

provoca um aumento do encarceramento das classes ditas perigosas e um

incremento das práticas genocidas14.

As elevadas estatísticas de mortes15 do Rio de Janeiro transmitem a

situação de crise permanente que vive a segurança pública. Luiz Antonio

Machado da Silva analisa o conceito de criminalidade violenta e afirma que “a

criminalidade organizada é uma realidade social com lógica própria, até agora não

estudada, e que funciona com certa independência em relação a outros problemas

e fenômenos sociais, como a crise do Estado”16. A realidade é que vivemos sob a

metáfora da guerra já enraizada na mentalidade policial e o discurso de

emergência é empregado frequentemente para justificar ações extremas de

violência institucional. Reduzir o crime violento se tornou o objetivo maior e

legitimador de toda e qualquer prática. Paradoxalmente, ao invés de reduzir a

violência, as polícias acabam por incrementá-la com o uso ilegal da força letal. O

estado de exceção trabalhado por Agamben se mostra presente, ao serem

suspensos os direitos dos cidadãos para buscar o fetiche do controle da violência e

da criminalidade urbana.

O poder punitivo hoje só consegue atuar violando sistematicamente

direitos garantidos formalmente na carta constitucional, sob o discurso da

necessidade justificante da exceção. Aproximadamente ¾ dos presos estão

submetidos a medidas de contenção, eles estão sendo processados, mas ainda não

foram condenados, no entanto já se encontram presos como medida de controle. 13 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 30. 14 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 111. 15 Nos últimos dez anos uma média aproximada de 1000 pessoas foram mortas no estado do Rio de Janeiro sob o discutível instituto dos autos de resistência. Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública. 16 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Criminalidade Violenta: por uma nova perspectiva de análise. In Dossiê Cidadania e Violência. Revista de Sociologia e Política nº 13: 115-124 Nov. 1999.

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“Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,

segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder

punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou

por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática”17.

A presunção de periculosidade funciona como uma certeza absoluta no caso dos

indesejáveis. O sistema carcerário está falido, na medida em que não

“ressocializa” e não "reeduca"18 - seus objetivos institucionais e justificantes do

sistema. O que temos hoje são grandes depósitos humanos, onde se despejam

pessoas que cometeram pequenos delitos para conviverem lado a lado com

assassinos violentos e traficantes inescrupulosos. As condições degradantes a que

estão submetidos os presos transformam-nos em verdadeiras “feras feridas”.

Como afirma Marildo Menegat, o século XXI pode ser nomeado como a

“atualidade da barbárie”19. A democracia realmente deixa de ser efetiva, tornando-

se uma falsa aparência de governo, com a finalidade de legitimar as barbáries

cometidas nos regimes atuais. O paradigma da segurança funciona como um

instrumento discursivo para a generalização da exceção como técnica normal de

governo, a qual torna-se difusa e permanente. Nas palavras de Agamben,

“conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a

declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma

generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal

de governo”20.

Um tratamento seletista direcionado ao inimigo afetará as garantias legais

de todos os cidadãos, no entanto sua suposta eficácia no combate a criminalidade

é ilusória. Mas quando se coloca que os direitos de todos os cidadãos serão

afetados, imediatamente é invocado o eficientismo penal, característico do Estado

autoritário e sua razão de estado, colocando a falsa opção entre eficácia e

garantias. Dessa forma, aumenta a discricionariedade investigadora das agencias

policiais, o que significa a tradução para o aumento das práticas de tortura e

17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 70. 18 Sobre esse tema ver WACQUANT, Loic. Prisões da miséria. Tradução: André Telles. São Paulo: Jorge Zahar, 2001; Punir os Pobres – A Nova Gestão Penal da Miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 19 MENEGAT, Marildo. A atualidade da barbárie. Discursos sediciosos. Ano 2004. p. 145. 20 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 27.

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homicídios21. Isto por que, essa tática de contenção está destinada ao fracasso,

pois não reconhece que a exceção sempre invoca uma necessidade que não

conhece lei nem limites.

Vive-se hoje um novo tipo de autoritarismo. É uma espécie inserida nas

democracias ocidentais, o que Zaffaroni chama de autoritarismo cool: “é cool

porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda,

à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar

e para não perder espaço publicitário”22. É um autoritarismo que se propaga com o

auxílio publicitário de apelo puramente emocional.

Segundo Massimo Pavarini, para entender o objeto da criminologia é

preciso entender a demanda por ordem. Essa ideia norteia qualquer entendimento

que se busca sobre uma política de segurança em determinado local e numa

determinada época. Nos dias atuais, o que se percebe como objetivo para

manutenção da ordem é a questão do território. Para Milton Santos, o território

seria “um conjunto de lugares e o espaço nacional como um conjunto de

localizações; temos que estar sempre mudando, não obstante o lugar fique o

mesmo, em vista do constante rearranjo de valores atribuídos a cada lugar e às

atividades presentes”23. E para falar de lugar é preciso tratar do conceito de

localização, entendido como um movimento do mundo apreendido em um ponto

geográfico. E por isso mesmo, está sempre mudando de significação devido o

movimento social.

É de se comentar o projeto do governo estadual das UPPs – Unidades de

Polícia Pacificadora – que sob o falso discurso de representar um projeto de

redução da violência, na realidade consiste na ocupação territorial sob os moldes

militares demarcando espacialmente as zonas de interesse do estado. As UPPs se

estendem hoje por 17 favelas da cidade, o que envolve cerca de 280 mil pessoas24.

A crítica que se faz é que a UPP não consiste em um projeto de segurança pública,

mas sim um projeto de cidade. Para perceber isso basta olhar para o mapa das

21 HUMAN RIGHTS WATCH. Força Letal – Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009. 22 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 69. 23 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1996, p.121. 24 Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública. Disponível em: www.isp.rj.gov.br.

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UPPs instaladas e analisar suas localizações. A lógica é clara, corresponde a

região hoteleira da Zona Sul da cidade, o entorno do Maracanã, o “Porto

Maravilha” e a Cidade de Deus.

Vale destacar que polícia pacificadora é diferente de polícia comunitária.

Isto porque, a UPP não contempla a participação popular nem na formulação nem

no controle das políticas de segurança. O comando da UPP cumpre a função de

síndico ou gerente da favela. A política dessas unidades reforça as relações sociais

de segregação e estigma, de desigualdade e repressão, sacramentando a favela

como um “território a ser neutralizado pela polícia”. O discurso de implantação

das UPPs, com o maciço apoio das grandes mídias produziu um macabro

consenso político sobre a ocupação militar das favelas pela sofisticação do

discurso da guerra às drogas, uma vez que a UPP não resolve o problema do

crime, mas sim, dos conflitos armados em trechos estratégicos da metrópole, que

é a única preocupação dos interesses hegemônicos. Para tanto, basta a produção

de “cinturões de segurança” para viabilizar a gestão dos riscos produzidos pela

pobreza vizinha.

Ao mesmo tempo, a UPP funciona como bandeira eleitoral de “pacificação

da cidade”. Só que esta ocupação não tem sido tão pacífica assim, haja vista

alguns casos em destaque na grande mídia como a ocupação do Chapéu

Mangueira, Babilônia, Pavão Pavãozinho e Cantagalo onde foi necessário o

confronto com uso de violência e armas de fogo entre policiais e moradores para a

implementação da “pacificação”. Estratégia essa, pra dizer o mínimo,

contraditória. A população apavorada, induzida pelos jornalões televisivos,

embarca na onda punitiva e apóia todo e qualquer tipo de atrocidade que se

cometa em nome da volta a "normalidade". Desde que essas atrocidades não

sejam cometidas contra os "seus" e nem aconteçam em seu território.

“É claro que tudo isso nos evoca a idéia de ocupação de um território em que o capitalismo estabeleceu um espaço criminalizado, dominado pela lógica brutalizante das commodities ilícitas, mas muito rentáveis. Regular coexistências nos territórios da desigualdades não é também uma tarefa fácil, num mundo que já nem deseja transformar-se, já deixou para trás uma utopia de escola aonde os jovens possam desfrutar de suas potências, ou de uma sociabilidade prazerosa entre diferentes na construção de redes coletivas de apoio e cuidado. É porque antes da ocupação territorial já se tinham ocupado as almas”25.

25 BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Op. Cit.

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A estratégia das UPPs investiu mais uma vez na pacificação por meio da

paz armada. Ou seja, mais uma vez a estratégia do controle da criminalidade por

meio da repressão. A pacificação diminuiu o contingente de armas pesadas nas

mãos do tráfico, mas aumentou na mão da polícia. E a classe média que ingressou

na luta armada contra a administração militar no passado, hoje apoia os projetos

belicosos. Segundo Patrícia Birmam “o que o governador destaca é

essencialmente uma proposta de tratamento epidemiológico da população

favelada, que é coerente com o atributo através do qual ele a identifica: ‘uma

fábrica de marginais’”26.

Outra estratégia em curso de segregação territorial é a construção de muros

na cidade sob a justificativa de se estabelecer “ecolimites”27. Em 2009 o

governador Sergio Cabral anunciou o projeto, consistindo no levantamento de

14,6km de barreiras de concreto no entorno de 13 favelas que “estariam

avançando sobre áreas da Mata Atlântica” gerando um “problema ecológico”.

Das 13 favelas que compõem a lista do governo, 11 ficam em áreas nobres da

Zona Sul da cidade: Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu

Mangueira, Rocinha, Babilônia, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Vidigal, Parque

da Cidade, Benjamim Constant e Santa Marta. Assim como, em outubro de 2009,

foi noticiado oficialmente que barreiras acústicas e de proteção começariam a ser

construídas nas linhas Amarela e Vermelha28. Os módulos do muro, que impedem

a visualização das favelas do entorno, são estampados com pinturas de ícones

turísticos da cidade, como o Pão de Açúcar e o Corcovado, para o desfrute

daqueles que transitam de carro em alta velocidade. O “problema do barulho” foi

o que legitimou o anúncio oficial dos muros nas vias expressas que conectam o

aeroporto internacional aos corredores turísticos do mercado carioca, com o único

e real intuito de tornar a vista mais “limpinha” para os que saem do aeroporto em

direção à Barra e Zona Sul. 26 BIRMAM, Patrícia. Favela é comunidade? In: Machado da Silva, Luís Antônio (org.) Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ/ Nova Fronteira, 2008. p. 99-114. 27 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009. Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013) 28 Fonte: O GLOBO, (11/10/2009). Disponível em: www.oglobo.com.br

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O dispositivo mais simbólico do atual modelo de segurança fluminense

pode ser encontrado nas garagens das polícias do Rio de Janeiro. A militarização é

também sentida pelo enorme gasto financeiro com a compra de todo um aparato

repressivo no modelo de guerra, para as operações policiais cotidianas, como a

compra de vários tanques blindados, chamados de “caveirão” e de helicóptero

blindado, apelidado de “caveirão do ar”29. Esse aparato militar promove

verdadeiras práticas de extermínio nas favelas cariocas, pois favorecem o total

anonimato dos policiais. Fato este que tornou extremamente difícil responsabilizar

os agentes em caso de violência e morte. “A luta contra a violência e os abusos de

uma polícia historicamente conhecida por sua arbitrariedade contra as camadas

economicamente e socialmente desfavorecidas, fica ainda mais difícil quando as

vítimas e as testemunhas não conseguem reconhecer os policiais que cometem

violações de direitos humanos”30. Apesar da posição oficial ser no sentido de

emprego do “Caveirão” apenas em momentos “especiais” e “de exceção”, na

prática, o que ocorre é um uso cada vez mais incisivo, regular e cotidiano31, sendo

justificado pelo discurso do estado de exceção permanente proporcionado pela

política de guerra contra o tráfico.

Outro fator determinante na política carioca é a atuação de grupos

paramilitares – as milícias – nas periferias urbanas e na baixada Fluminense. O

fenômeno das milícias é uma questão delicada pois quando elas surgiram, existia

uma benevolência sobre o assunto por parte do poder público. Elas não eram

incentivadas, mas eram conhecidas pelas autoridades públicas e aceitas como uma

alternativa de controle ao tráfico de drogas em determinadas comunidades32. As

milícias constituem grupos armados, seus membros são agentes públicos, das

forças policiais, agentes penitenciários e bombeiros, que afirmam seu poder

alegando ser representantes da lei. Eles introjetam a figura do xerife nas

29 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca da segurança cidadã. Relatório Rio 2007. 30 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br. (Acesso em 06/11/2012) 31 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca da segurança cidadã. Relatório Rio 2007. 32 O ex-prefeito César Maia declarou que essas organizações eram “autodefesas comunitárias”. Assim como o atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes declarou ao RJTV em 2006 “Jacarepaguá é um bairro em que a tal da polícia mineira, formada por policiais, trouxe tranquilidade para a população. O morro do São José Operário era um dos morros mais violentos desse estado, e agora é um dos lugares mais tranquilos”.

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comunidades, mesmo controlando e extorquindo os moradores das áreas

dominadas, nos diversos serviços prestados na comunidade como luz, gás,

transporte público alternativo, eles se apresentam como integrantes do Estado33.

As milícias também se diferenciam dos grupos de extermínio, muito comuns na

Baixada Fluminense, na medida em que esse último grupo mantém relação com a

política na questão da venda de segurança local. De acordo com o sociólogo

Ignacio Cano, as características das milícias são:

“o controle de um território e da população que nela habita por parte de um grupo armado irregular; o caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; o ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; a participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos”34.

Em dezembro de 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

concluiu o relatório em que apurou que centenas de membros de milícias no Rio

de Janeiro controlam um número significativo de comunidades, chegando à cifra

de 171 bairros no estado do Rio de Janeiro35.

Ausente o Estado das suas funções de controle territorial e garantia dos

direitos individuais, as favelas ficam mais vulneráveis aos grupos armados com

maior poder de fogo, no caso a milícia, que se apresenta como força menos

tirânica e menos perversa que o tráfico. O discurso de legitimação da milícia

não pode se apresentar simplesmente como um grupo de crime organizado, que

lucra à custa da comunidade, ela precisa se apresentar como uma alternativa a

algo pior, por exemplo, a tirania e o crime36. Ou seja, a milícia se legitima pelo

seu oposto, pelo seu inimigo encarnado no tráfico, objeto de uma estigmatização

total até representar quase a figura do mal absoluto. Mesmo que eles possam ser

33 Os grupos de extermínio nascem como estratégia de alguns segmentos da sociedade para abolir grupos sociais ou políticos indesejados. Faz parte de uma cultura arraigada à sociedade brasileira, que tem se utilizado de grupos de extermínio para promover a chamada limpeza social. Eles atuam normalmente em zonas pobres e periféricas. 34 CANO, Ignacio. Seis por meia dúzia? In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro.(Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p. 59. 35 ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar a Ação de Milícias no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Aprovado em 16 de dezembro de 2008. p. 220-228. 36 ALVES, José Claudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias-RJ: APPH, CLIO, 2003.

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definidos como integrantes de uma rede de crime organizado, eles “são o estado”

nas favelas e, portanto, os teóricos inimigos naturais da criminalidade.

“As leis estabelecidas em lugares onde o Estado – que deveria determinar as regras cotidianas das pessoas que ali vivem – se mostra ausente não são as que estão na Constituição ou que são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal” que julga os conflitos ocorridos nesses espaços urbanos nada tem a ver com o Judiciário. Na mesma lógica, a presença de grupos armados ilegais faz com que o uso da força deixe de ser exclusividade do poder público. Isso vale tanto para as áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas controlam o varejo das drogas ilícitas. O mais grave é que esse complexo domínio de território envolve a vida de aproximadamente um terço da população da cidade do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer”37.

Não se pode contar com a proteção do Estado se os próprios funcionários

encarregados de fazer cumprir a lei são os que a desrespeitam. Na verdade, o

abandono por parte do estado começou muito antes, mas o fato de que os agentes

públicos sejam agora os titulares do poder em certas localidades inviabiliza ainda

mais qualquer recurso formal.

O ponto chave da atuação das milícias é reconhecer que esses grupos não

são um tipo de estado paralelo, mas sim a atuação do próprio Estado por meios

anômalos. Segundo Marcelo Freixo, trata-se de um “Estado Leiloado”38, que

atende a interesses particulares. A sua dinâmica de funcionamento evidencia uma

confusão entre o público e o privado no aparato coercitivo. Ela é um indício

concreto não só do estado de exceção permanente dentro do estado democrático

de direito como também a sua expansão39. Os grupos milicianos são responsáveis

por várias execuções extrajudiciais, assim como outros crimes, como a tortura,

corrupção e extorsão.

A questão das milícias é importante para discutir a relação entre Estado,

governabilidade, território e soberania, a fim de redefinir a concepção política de

segurança pública. A polícia não disputa com as milícias os territórios controlados

37 FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Fonte: www.diplomatique.uol.com.br. Versão eletrônica do jornal Le Monde Diplomatique. 38 FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Op. Cit. 39 Em agosto de 2011, a juíza Patrícia Acioli foi atingida por vinte e um tiros em frente a sua casa no município de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. A magistrada vinha recebendo ameaças de morte devido a sua postura inflexível diante das milícias e da criminalidade policial. Dez policiais e o comandante do batalhão de São Gonçalo foram presos e acusados de envolvimento no assassinato. Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança pública. Fonte: www.amnesty.org.

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por ela. Esse ponto é revelador da metáfora da guerra contra o inimigo. Com

efeito, a guerra deve ser travada contra um inimigo claramente definido,

encarnado na figura do narcotraficante. Segundo um alto oficial da Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) numa reunião privada em 2007, “não

adianta enviar os policiais para as áreas de milícia porque a milícia não vai

confrontar, vai se retirar e esperar a gente sair”40. Esse cenário leva a concluir que,

aparentemente, quando não há confronto, a polícia não encontra um papel para

fazer dentro desta política de segurança pública dramaticamente militarizada.

Uma vez sumido ou, melhor dito, descaracterizado o inimigo, a guerra não parece

ter mais objeto.

É claro que esta situação não se aplica nas áreas em que o tráfico é forte e

ameaça retomar os territórios perdidos, mas em muitos outros locais a chegada da

milícia implica uma certa pacificação decorrente do fim das incursões policiais. É

uma dinâmica tautológica. Os policiais ocupam as favelas e garantem o fim das

suas próprias incursões. Considerando que as incursões são provavelmente o

momento que gera mais insegurança nos moradores dessas áreas, não há dúvida

de existir um aspecto positivo da ocupação das milícias, mesmo que seja com uma

lógica invertida. A realidade de sua atuação traduz a ambigüidade do seu papel, a

promiscuidade extrema entre o público e o privado. O miliciano é uma autoridade

pública, mas atua à revelia da lei. Ele representa o Estado naquela localidade, mas

ao mesmo tempo o trai, pois tira proveito da sua condição pública para extrair

lucros privados.

É de se ressaltar nesse ponto do trabalho que a classificação como estado

de exceção é meramente descritiva, haja vista que a exceção não é determinada

sob critérios objetivos pelo direito. Normalmente ela é encontrada quando a

aspiração do Estado é norteada por estratégias violentas de controle, com o

objetivo de manter a estrutura social de desigualdade. Para manutenção dos

interesses hegemônicos, o poder soberano não encontra limites, nem que seja

necessário reduzir a vida de seus cidadãos a mera vida nua. Por isso, ao longo da

40 No entanto, contraditoriamente, “a informação de que existe tráfico de drogas em algumas áreas de milícias é tão relevante, pois tira a última máscara que separa a milícia do seu inimigo formal, o último álibi na sua pretensão de legitimidade. Qual será a diferença entre o tráfico e uma milícia que trafica?” CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Revista Justiça Global, setembro de 2003. p. 69-70.

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história brasileira, com suas rupturas e permanências, a exceção constitui uma

presença contínua, se mostrando inclusive como um aspecto constitutivo.

3.2

A letalidade da ação policial

“Em todos os casos ecoa a tragédia fundadora de Canudos. Em todos os casos a vida nua da população pobre brasileira é exposta com crueza pornográfica. O

que mais nos estarrece é o eterno retorno da barbárie. O trauma provocado pelo genocídio não gera anticorpos, não permite ao corpo social criar defesas que

impediriam uma nova tragédia.” (Guilherme Preger)

Canudos ainda está presente. Só muda o crime, mas a estética é a mesma.

A trajetória das ideologias de controle social no Brasil evidencia nitidamente as

estratégias de dominação das classes hegemônicas, em que o estado policial e o

direito penal são utilizados como instrumentos de gestão da pobreza e manutenção

das relações de poder dominantes, forjadas por meio da naturalização da

desigualdade. A formação política brasileira aponta desde a sua formação

colonial, fenômenos políticos de humilhação social e estigmatização de

determinados segmentos, espelhados na produção da figura do inimigo e na

criação de medos coletivos. A violência endêmica se firmou no imaginário social

das classes dominantes como única forma possível, capaz de viabilizar o modelo

segregacionista. Pois como afirma Darcy Ribeiro, “todo ciclo econômico é um

moinho de gastar gente”41. Os instrumentos de submissão forçada empregados

para a população indígena, posteriormente para os negros africanos submetidos a

escravidão, incorporaram-se aos métodos de controle social formal. De acordo

com Nilo Batista, o extermínio é o grande signo de abertura do processo histórico

brasileiro, estando a violência impregnada desde o projeto colonizador, seja por

meio do assasínio direto ou não42.

41 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 106-141. 42 Sobre a formação do sistema jurídico brasileiro e sua intrínseca relação com a violência desde o início do projeto colonizador, ver BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: ICC, 2000.

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Pesquisa feita pela UNESCO demonstrou que entre 1979 e 2003 mais de

550 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de disparos de algum tipo de arma de

fogo. Desse total 44,1% foram jovens na faixa entre 15 a 24 anos. Nesse período

destacado, os homicídios com armas de fogo cresceram 542,7%43. Adorno já

tratava dessa barbárie institucional quando afirmou que “a civilização devora seus

filhos”44. A ideologia e as estratégias de controle penal na realidade

contemporânea assumem características dramáticas, reproduzindo o eterno retorno

dos dispositivos racistas, excludentes e letais. O fato da experiência democrática

brasileira ser recente não permitiu a formação de instituições com força política

para conter a ânsia repressora da explosão de conflitos diante da complexidade

das relações sociais. Dessa forma, essas instituições não conseguiram até hoje

romper com um longo passado de invisibilidade pública e humilhação social,

decorrentes da desigualdade naturalizada.

“As amplas demandas de justiça material, historicamente reprimidas e escamoteadas pelos sucessivos regimes ditatoriais, exacerbaram os conflitos e choques em virtude do aumento da complexidade da luta de classes na sociedade brasileira atual. Inegavelmente, o processo de reabertura política conduziu a uma explosão de litigiosidade decorrente do fenômeno da radicalização ideológica, que, permitindo os espaços para a (re)legitimação da ordem política, acabou por desaguar no déficit de legitimidade das instituições, em face da incapacidade dos governos gerirem democraticamente a estabilização econômica e a necessária e sempre adiada reforma social”45.

Nesse contexto, segmentos sociais menos abastados vivem num estado de

guerra perpétua, ficando à mercê da violência institucional e simbólica, mantendo-

os vinculados ao sistema jurídico por meio das sanções normalizadoras e alijando-

os das garantias constitucionais. Assim, um verdadeiro estado de natureza

hobbesiano se instala, suprimindo gradativamente as conquistas de um direito

penal liberal.

Por isso diz-se que o homo sacer está presente no atual contexto político,

pois vive-se um estado de exceção permanente. E a decisão da excepcionalidade

parece não inquietar as classes dominantes, pois ela é acionada exatamente para

43 Ver: UNESCO. A crise oculta: conflitos armados e educação. Relatório Conciso, 2011. Disponível em: www.unesco.org. 44 ZAMORA, José Antonio. Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008. p. 61. 45 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013).

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manter o seu status quo. A preocupação com a violência institucional das agencias

punitivas apenas afetou a classe média quando esta se viu perseguida pela ditadura

militar, sendo vitima de tortura, perseguição, mortes e desaparecimento. Após a

abertura política, muitos dos antigos militantes políticos de esquerda viraram

reprodutores do discurso “lei e ordem”, já que agora as autoridades punitivas

voltam-se para os mesmos perseguidos de sempre na história, os segmentos

marginalizados – antes escravos, hoje a juventude negra e pobre das periferias

urbanas, “porque para pobre pode”46. A vida do homo sacer aparece como o

objeto principal da violência soberana. A violência cotidiana das incursões

policiais nas favelas e o genocídio aberto promovido pela racionalidade do

sistema penal dão o tom das estratégias de segurança, caracterizadas por uma

enorme carga de racismo e estigmatização, impregnados no imaginário social e na

truculência das ações policiais de extermínio.

Quando o terrorismo de Estado torna-se a política oficial, o espectro do

homo sacer emerge de forma pungente, de tão visível que se torna a relação com a

população pobre. A vida nua aparece na sua forma mais descontrolada, uma vida

abandonada à própria sorte, na sua condição de insacrificável e escancaradamente

matável.

A cultura do extermínio vem se afirmando como o contraponto dos

direitos humanos e a tendência contemporânea47. Os movimentos de luta pela

dignidade, sintetizados na construção gradual dos direitos fundamentais,

expressam uma relação íntima entre direito e violência, diante da imposição dos

poderes violadores dessa mesma dignidade. E se a vida humana sempre consistiu

na base do poder, cabe se questionar o limite de intervenção do poder sobre a

administração dos corpos dos homens. Sobre esses questionamentos e diante da

política contemporânea de poder ilimitado sobre os corpos de forma legítima,

Agamben propõe que “a implicação da vida nua na esfera política constitui o

núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano”48, no sentido de

constatar que colocando a vida biológica como fator principal nos cálculos de

46 YUKA, Marcelo. Não acredito em paz armada. Entrevista a Caros Amigos, janeiro de 2013. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 230. 48 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 14.

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poder, o Estado somente retira o véu que encobre o vínculo secreto entre o poder e

a vida nua.

O homo sacer vive continuamente o signo da ambivalência entre vida nua

e existência política, exclusão e inclusão. O vínculo oculto que une o homo sacer

ao poder soberano - a dimensão política - significa justamente ingressar na vida

politicamente qualificada por meio do direito de vida e morte sobre ele próprio.

Sendo o soberano aquele que decide a exceção, ele pode ao suspender a lei, inserir

a vida nua como o referente da decisão soberana. Isto por que, “a sacralidade da

vida, que se desejaria hoje fazer valer como um direito humano em todos os

sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição

da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de

abandono”49. Assim, o soberano decide sobre a inclusão e exclusão de um

indivíduo na comunidade.

Acredito que em termos contemporâneos, o homo sacer é o indivíduo que

não é definido pelas leis positivas nem detentor dos direitos fundamentais. Ele não

encontra amparo nem no direito posto nem no direito pressuposto, evidenciando

sua situação de dupla exclusão, seu total abandono, exatamente proporcional a

capacidade do soberano de violar sistematicamente a vida (nua) dos indivíduos.

Ele pode a qualquer momento instalar a exceção, matar sem cometer homicídio.

O homo sacer é o arquétipo do homem contemporâneo: cada vez mais

privado da lei positiva quanto da eficácia das garantias fundamentais, o indivíduo

se vê na condição de ser matável e insacrificável. No cenário atual de emergência,

a vida digna colide com as medidas de exceção e urgência, tornando-se vidas

descartáveis.

A igualdade e a dignidade humana são as fontes simbólicas com força

balizadora da dimensão insacrificável do homo sacer, que ao mesmo tempo

encontra-se assujeitado ao poder soberano de suspender a lei e violar justamente

esses valores. Exatamente por isso, são esses valores que demarcam o ponto

limítrofe de suspensão da lei, vale dizer, de radicalização do estado de exceção,

fornecendo ao mesmo tempo uma aparência de sacralidade da vida.

49 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 85.

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“No mundo contemporâneo, porém, a biopolítica se caracteriza essencialmente como cultura do genocídio e do extermínio. Enquanto objeto do poder soberano, os valores da igualdade e da dignidade humana parecem refugar diante do altar da cultura do individualismo possessivo, em virtude do acionamento global de estratégias perversas de poder, impulsionadas pela lógica da expansão dos mercados e por padrões de superioridade racistas, étnicos, culturais e ideológicos. Para os ditames do capitalismo globalizado, é como se a reprodução de um modo de vida, tal qual imposto pela cultura hegemônica do individualismo, da competição e da guerra, exigisse, como contrapartida necessária, o extermínio daquelas outras vidas que pervertem, sincretizam e hibridizam esse modelo puro e axiologicamente incólume de existência”50.

De acordo com Agamben, as políticas do biopoder pretendem reger a

natureza humana de acordo com suas prescrições, sua definição de realidade

social e vida digna, desenvolvendo para isso um discurso de legitimação dos

mecanismos de vitimação de contingentes populacionais. O paradigma do campo

surge como a face embrutecida da realidade contemporânea de extermínio em

massa e estagnação das saídas democráticas. O mercado excludente de reprodução

do capital expõe os indivíduos a competição desenfreada e à crise das relações

humanas, empurrando enormes fileiras populacionais para o subemprego, numa

sociedade que já os considera supérfluos. Novos tipos de delinquência surgem da

nova configuração político-econômica, o que aumenta uma forte sensação de

insegurança. Como contraponto para contenção do tecido social, a repressão se

apresenta como saída imediata. E como já exposto, são exatamente os fracassos da

democracia que justificam o uso da força como única alternativa viável para

gestão dos conflitos. As demandas por regulação e segurança dos setores

excluídos do consumo e do acesso aos bens, conduzem a reafirmação do estado de

exceção como paradigma político. Assim, a teia jurídica, buscando a manutenção

da ordem, e buscando convencê-la como permanente e necessária, sedimenta-se

na lógica da excepcionalidade e terror da ação policial.

A biopolítica se transmuta em tanatopolítica no momento em que a relação

da lei com a vida deixa de ser a regulação e se transforma num controle maior, na

captura dos corpos sob a ordem do estado de exceção, dotado da capacidade de

decidir o instante e qual a vida que deixa de ser politicamente relevante. Para a

legitimação dessa execução, se faz necessário processos de vitimação, que

50 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013)

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consistem na suspensão de direitos sob uma hierarquia biopolítica discriminatória.

A ótica reaparece nesse momento, hierarquizando quais os sujeitos são morais e

portadores de direitos, e quais os outros têm a sua qualidade moral degradada e

portanto podem ter seus direitos suspensos, pois são considerados perigosos. Isto

posto, torna-se legítimo, política e juridicamente, o extermínio de enormes

contingentes populacionais.

Num mundo de incertezas e conceitos éticos imprecisos, é fácil a

instalação da barbárie civilizada51, pois conduz ao individualismo e a

invisibilidade coletiva. O sujeito se coisifica e se dilui numa ideia perene de

invisibilidade. No momento em que se legitima o caráter residual de segmentos

sociais inteiros, torna-se possível executar o extermínio em massa, devido a perda

de seu valor de uso.

A barbárie civilizada atua na pacificação das consciências e possui um

argumento ao mesmo tempo simples e cruel: quem não é sujeito moral não é

humano; eliminar quem não é humano e, portanto não possui direitos está

moralmente justificado se com isso se recompõe a ordem social. Paga-se o preço

da restituição da ordem social com inúmeras vidas humanas e o esfacelamento do

Estado de Direito. As vidas descartáveis alimentam a falsa imagem construída de

uma comunidade materialmente democrática, na qual o homo sacer paga o preço

da violência institucionalizada. Por meio da dinâmica da exceção e da ação

policial inescrupulosa, o poder soberano elimina as vidas supérfluas. Trata-se na

realidade de um aparato concreto e ideológico com objetivo preciso de legitimar a

segregação e a eliminação dos dejetos humanos.

A seletividade punitiva, que se manifesta por meio dos processos de

criminalização primária e secundária evidencia a operacionalidade real do sistema

penal. “A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, que é

muito significativo, pois se trata da característica estrutural mais vulnerável à 51 Para Thiago Fabres de Carvalho, a barbárie civilizada seria a barbárie tipicamente moderna, e estaria associada ao caráter formal e abstrato da racionalidade jurídica moderna, na medida em que considera a vida humana somente uma variável política. A vitimação ocorre sob diversos procedimentos, como a ruptura do nexo entre ação violenta e seus efeitos com a quebra da distância física entre os sujeitos envolvidos; a exigência de higienização social; a ausência de responsabilização moral; e a invisibilidade das vítimas. CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013).

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crítica política e social do poder punitivo”52. Como já visto anteriormente no

primeiro capítulo, de acordo com Baratta, o discurso do direito penal é construído

em cima do princípio da igualdade. No entanto esse fundamento é uma

problemática concreta, haja vista a constatação de que a igualdade na aplicação da

lei penal só ocorre no âmbito formal, sendo a regra no direito penal,

contrariamente, a desigualdade substancial. No entanto, o poder punitivo não se

realiza somente no sistema legal, para se punir alguém é suficiente somente a

utilização de força. Por isso, fica claro que é possível a imposição de penas fora

do sistema legal, como no caso da pena ilícita, na qual muitos casos podem

assumir a feição de verdadeiros genocídios.

À margem da legalidade, o sistema penal legitima um poder que restringe

direitos e garantias individuais sob o manto do exercício do poder de polícia. O

sistema penal chancela o controle social sobre as populações pobres. Na

contemporaneidade, ser pobre é sinônimo de ser perigoso e criminoso em

potencial. Dessa forma, o sistema punitivo se concretiza por meio do poder de

polícia nas periferias urbanas53.

A exclusão de uma grande parte da população do mercado de consumo,

fez surgir o que Zygmunt Bauman chamou de “consumidores falhos”54 - que são

os excluídos como trabalhadores e estimulados como consumidores - formando a

nova clientela do sistema penal. “Dispositivos criados para a gestão daqueles que

sobram, consomem pouco e sujam muito. Numa realidade que prima pela

assepsia, controlar os inimigos internos da ditadura do mercado neoliberal de

controle globalizado se faz por biopolíticas”55. Sistema esse que “pretende

remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado econômico

e social que é a própria causa da escalada generalizada de insegurança objetiva e

subjetiva em todos os países”56. A insegurança objetiva é sentida pelo aumento da

criminalidade que não consegue ser controlada pelo aparato policial. No que tange

52 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 88. 53 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 129. 54 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.49. 55 NASCIMENTO, Maria Livia. e RODRIGUES, Rafael Coelho. A convergência social/penal na produção e gestão da insegurança social. In: BATISTA, Vera (Org.) Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 201-202. 56 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria. Op. Cit. p.7.

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a insegurança subjetiva, criam-se espaços que devem ser evitados, por meio da

delimitação de zonas proibidas e permitidas.

“Cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o

produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de

azar, drogas, vadiagem e vagabundagem”57. O clamor pelo incremento do poder

punitivo como solução para reorganizar o caos é cada vez maior58, assim, surge o

traficante do imaginário social. Um sujeito sem nenhum limite moral, cujo único

objetivo é o lucro infinito as custas da desgraça alheia, que age de forma violenta

e bárbara. Ele é a encarnação perfeita do sujeito perigoso e sua eliminação se

justifica não só como um direito, mas muitas vezes como uma necessidade diante

da sua natureza de “fera”.

“Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos úteis e potencialmente mais perigosas da população, aquelas que Spitzer chama de lixo social, mas que na verdade são vistas como mais perigosas que o lixo. Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido social, e ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação. Na terminologia de Spitzer, elas se tornam ao mesmo tempo lixo e dinamite”59.

Associando a imagem do traficante a um ser violento e cruel, o discurso

moral passa a exercer um papel relevante no sistema punitivo. Enquanto a imensa

maioria de traficantes desarmados e não violentos são mortos ou encarcerados, os

veículos de comunicação justificam ações violentas extremamente repressivas por

meio do chamado combate a violência. Cria-se na verdade uma presunção de

violência, sem amparo legal, para as figuras que se encaixam no estereótipo60 do

suspeito.

57 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas.Op. Cit. p.59. 58 Essa tese é confirmada em pesquisa realizada por Orlando Zaccone sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e seus agentes, a realidade penitenciária confirma que “a miséria talvez seja a única característica que identifica os 1.467 presos na cidade do Rio de Janeiro, pelo tráfico de drogas ilícitas, em 2003. A cifra inclui 120 mulheres e 1.347 homens presos em flagrante no tráfico de drogas pelas delegacias da capital. Dos 313 adolescentes e crianças infratores e 1.154 adultos, somente duas possuíam curso superior completo e 210 tinham emprego.” ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 124-25. 59 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.117. 60 Zaccone, ao estudar o estereótipo do traficante de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, afirma que o termo estigma é uma relação entre atributo e estereótipo, de forma a necessitar de uma linguagem de relações, “embora o termo estigma seja usado em relação a um atributo profundamente depreciativo, ele é na realidade um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Assim, para definir um estigma, é preciso uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem; portanto, ele não é em si mesmo nem honroso nem desonroso. O estigmatizado, segundo Gofman, é um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana, mas possui um

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Como afirma Zaffaroni, “a reação que suscita a presença descarnada do

inimigo da sociedade no direito penal é de caráter político, porque a questão que

se coloca é – e sempre foi – dessa natureza”61. Isso fica claro ao se constatar que

as guerras são declaradas de forma unilateral, assim como, o poder hegemônico

sempre fabricou inimigos e emergências para justificar suas intervenções, e com o

consequente estado de exceção. A excepcionalidade justifica a coisificação dos

indivíduos perigosos, na medida em que a anulação da sua condição de pessoa é

decorrente da razão que essa privação ocorre. Isto é, quando um sujeito é privado

de seus direitos simplesmente por ser considerado perigoso. E no entanto, o grau

de periculosidade do suposto inimigo depende do juízo subjetivo do

individualizador, exercido por quem detém o poder. Consequentemente, a

priorização da segurança como certeza sobre a conduta futura de alguém e sua

absolutização provoca a despersonalização de toda a sociedade.

Sobre a forma como a mídia exerce o seu poder de influência, é

interessante destacar aquilo que Silvia Moretzsohn denominou como “recriação

do caos”:

“Jornais, já se disse, são uma forma de mapear o mundo. Um mapeamento muito particular, porém: trabalho ativo de produção de sentido, resultante da interação dos elementos verbais e não-verbais no espaço da página e nas edições de rádio e TV. Como diz Todd Gilin, “os enquadramentos dos media, que em grande parte são tácitos e não admitidos, organizam o mundo tanto para os jornalistas que o descrevem como, num grau muito importante, para nós que confiamos nas suas descrições. Os enquadramentos de media são padrões persistentes de cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão, através dos quais os manipuladores de símbolos organizam habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal”62.

O papel da mídia foi apontado no primeiro capítulo, mas vale retomar esse

ponto, por ser um fator essencial na naturalização gradativa da violência. A mídia

é especialmente determinante na formação do senso comum penal, quando ela

promove a despolitização dos conflitos sociais e a politização da questão criminal.

A manifestação da violência simbólica construída pelas grandes mídias é

identificada no processo de etiquetamento e criação do estereótipo, na medida em

traço que pode impor-se à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção a outros atributos seus”. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 57. 61 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 16. 62 MORETZSOHN, Sylvia. A ética jornalística no mundo ao avesso. Revista Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade, no. 9 e 10. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 2000. p. 318.

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que os detentores da comunicação definem determinados grupos sociais como

melhores ou piores, confiáveis ou não, “quem tem a palavra constrói identidades

pessoais ou sociais”63. Cria-se uma (anti) estética na qual o delinquente é

construído como a antítese dos padrões adequados para a sociedade. A mídia

como construtora da violência simbólica atua como ferramenta de controle social,

sendo um substituto da violência física. Esse lugar comum alcança os operadores

jurídicos que se preocupam somente em transmitir um discurso superficial que no

mínimo aponta uma condescendência, quando não a adesão explícita ao modelo

repressor.

O papel da mídia fica muito nítido na política carioca de pacificação das

favelas e comunidades, ela faz parte da estratégia de instalação das UPPs. É a

mídia quem confere o tratamento estético vendido para a opinião pública, é ela

quem dá o suporte no imaginário social para implantação das UPPs. E esse

tratamento estético foi se modificando nos últimos tempos. Isso pode ser

observado ao comparar a “pacificação” do Complexo do Alemão em 2010 e na

Barreira do Vasco em março de 2013. Na época da ocupação do Complexo do

Alemão tanques do Exército foram acionados e mostrados na grande mídia,

mostrando o prenúncio de uma guerra que estava por vir, evento o que a Rede

Globo denominou como “Tropa de Elite 3”. Essa operação de “pacificação”

deixou um número de mortos até hoje não contabilizados oficialmente. Já na

ocupação da Barreira do vasco e o entorno do Caju em março deste ano a imagem

da ocupação vendida pela mídia foi outra. Agora não são mais tanques de guerra,

mas um menino morador da comunidade subindo no cavalo do policial após a

ocupação64. A estética vendida na grande mídia se modificou. Após passados

alguns anos desde a primeira ocupação no morro Santa Marta, a tônica das

campanhas midiáticas é a sensação de paz. A cidade do Rio de Janeiro não é mais

uma “cidade partida”, como afirmou Zuenir Ventura, ela agora é uma “cidade

cerzida”, o carioca é feliz, a sociedade não é mais passiva e o Rio de Janeiro não é

mais uma cidade de exclusão. Essa imagem vendida faz parte da estratégia

63 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007. 64 Fonte:O GLOBO. Disponível em: www.g1.globo.com (Acesso em 03/03/2013)

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política. Vender o sucesso das UPPs é importante para camuflar a manutenção do

estado de exceção permanente nessas localidades.

As ações do poder em tempos de guerra e numa conjuntura política

apresentam diferenças profundas, principalmente no que tange ao inimigo. De

acordo com Zaffaroni, o inimigo de guerra é aquele que pertence ao outro lado,

enquanto “o sistema penal seleciona uns poucos inimigos políticos e os exibe

como inimigos de guerra da maioria”65. No entanto, a vinculação da guerra ao

sistema repressivo penal torna-se muito mais complexa do que a simples

categorização do sujeito como inimigo da pátria, pois o processo seletivo de

apenas alguns criminosos a serem punidos se projeta num processo de produção

de delinquência, no qual os atores serão rotulados e condicionados para serem

considerados inimigos de guerra.

A imposição de uma política intolerante de combate ao crime, que se

manifesta na guerra as drogas, de acordo com Salo de Carvalho, é estabelecida por

meio da conjunção das ideologias da Defesa Social e da Segurança Nacional, que

prepararam o terreno para a política de Tolerância Zero. “Apesar de ter como

objetivo específico a eliminação do “inimigo interno” – o alter “subversivo” que

questiona o establishment - , a ideologia da Segurança Nacional, agregada à

ideologia da Defesa Social, estabelece pauta de ação específica em relação ao

combate a criminalidade”66.

“Produz-se, então, um direito penal e processual penal de emergência, simbólico, com efeito sedativo, cuja eficácia é a tranquilização da opinião pública, diante da insegurança urbana. Em suma, faz-se uso do direito penal e processual penal de uma forma promocional, difusora de ideologia, pois, abrandando a ansiedade em torno da (in)segurança, induz a população a acreditar que inexistem riscos em torno das medidas adotadas. Trata-se de um deliberado fortalecimento do Estado de polícia em prejuízo das conquistas democráticas do Estado de direito”67.

Nas palavras de Vera Malaguti, se assiste a um filicídio68, pois estamos

exterminando os nossos jovens. O número de homicídios cometidos pela polícia

65 ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 225. 66 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. Op. Cit. p. 143. 67 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007. 68 BATISTA, Vera Malaguti. Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo. In: Silene de Moraes Freire. (Org.). Direitos Humanos: violência e pobreza na América Latina contemporânea.

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leva a conclusão de que está ocorrendo o extermínio de uma parcela da população,

e grande parte dessas mortes é em decorrência da ação policial, nas mais diversas

formas. A polícia brasileira é uma das que mais mata e que mais morre, o que

fornece pistas concretas para sua medíocre eficiência e despreparo. Em 2010, a

polícia do Rio de Janeiro matou 43,73 pessoas para cada policial morto em

serviço. Ao passo que, a polícia dos Estados Unidos matou 9,05 pessoas para cada

policial morto69. Esse alto índice é considerável, sob a suspeita de que em muitos

casos a polícia falsamente relata mortes como tendo sido produto de confrontos

que não teriam ocorrido naturalmente.

A força letal da polícia só é legitimamente justificável quando for uma

situação para defender a vida ou a integridade física do policial ou algum cidadão,

sob a condição dessa força empregada ser proporcional para evitar o risco criado.

Ou seja, somente é autorizado o poder de letalidade quando absolutamente

necessário. No entanto, o modelo adotado por aqui de “lei e ordem” justifica o

emprego de toda força necessária para a neutralização do perigo. Em

contrapartida, esse modelo coloca em risco a vida e a incolumidade física dos

próprios policiais, uma vez que ao adotar a metáfora da guerra, esses agentes são

submetidos a situações de risco extremo de forma frequente, o que aumenta as

chances do resultado morte.

Execuções sumárias ou extrajudiciais são expressões utilizadas pelos

padrões internacionais de direitos humanos para referir-se a um homicídio

praticado por forças de segurança do estado, não somente policiais civis e

militares, mas também agentes penitenciários e guardas municipais, em situação

na qual a vítima tenha tido seu direito de defesa restringido em um processo legal

regular, ou então, em caso de estar respondendo a um processo, a vítima seja

eliminada antes do seu julgamento. Nesse sentido, a colocação de Ignacio Cano

mostra-se pertinente, ao afirmar que “o uso da força policial pode ser entendido

como um continuum, com dois polos opostos. No primeiro extremo, o agente faria

uso da sua arma de forma legítima e proporcionada. (...) No outro extremo,

estariam os casos de pessoas detidas que são friamente assassinadas por policiais,

69 Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública da secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: www.isp.rj.gov.br. (Acesso em 10/02/2013).

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ou seja, as execuções sumárias”70. O poder de utilizar a violência para

manutenção da ordem é constantemente usado de forma abusiva pelas autoridades

policiais, gerando os excessos resultantes em violências físicas ou mesmo a morte.

Esse limiar entre a força moderada necessária e o abuso de violência é um dos

grandes desafios para o controle da violência urbana.

No modelo de segurança do Rio de Janeiro, os agentes são treinados na

Academia de Polícia com a mentalidade da guerra, ainda resquício da Doutrina de

Segurança Nacional. Sua preparação ideológica e técnica é voltada no sentido de

combater uma guerra, na qual o inimigo é perene, enquadrado na figura do

suspeito – definição extremamente importante para a atividade policial e

paradoxalmente indefinida em critérios exatos71. Nesse continuum, o policial

tende ao uso excessivo da força, como aponta Ignacio Cano. Isso pode ser

observado por meio de alguns indicadores, como “a proporção de homicídios

dolosos cometidos pela polícia atingir uma percentagem próxima a 10% de todos

os homicídios; a razão entre mortos e feridos nas vítimas das ações policiais

mostra que há vários mortos para cada ferido provocado pela polícia”72. Esta

razão é o chamado índice de letalidade. E as proporções demonstram que em

muitos casos a real intenção do policial é de matar e não prender.

Diversos fatores revelam que o uso da força pela polícia é excessivo,

inclusive quando comparado a violência geral do estado. Nesse sentido:

“- a proporção entre policiais mortos em confronto e civis mortos pelos policiais excedia a razão de 1 a 10, o que indica, de acordo com o Prof. Chevigny, um uso

70 CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Op. Cit. p. 15. 71 Um elemento muito utilizado nas comunicações internas das polícias é o termo “elemento suspeito de cor padrão”, sugerindo uma forte presença da seletividade racial na atuação cotidiana da polícia. Nota-se aqui nitidamente a metáfora do espelho, quando o policial reconhece que o elemento suspeito tende a coincidir com estereótipos negativos relacionados a idade, classe social, raça e local de moradia. Entretanto, essa mesma ferramenta de grande importância para a atividade policial não é definível de forma exata. Nesse sentido, conclui Silvia Ramos após trabalho sobre o elemento suspeito “Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa junto à PM é a pobreza do discurso sobre a suspeita. Não só não conseguimos localizar um único documento que definisse parâmetros para a constituição da “fundada suspeita”, como encontramos nas falas de oficiais, antigos ou jovens, de alta ou baixa patente, uma articulação tão precária a respeito desse tema quanto a observada na “cultura policial de rua” expressa pelas praças de polícia. É surpreendente, para não dizer espantoso, que a instituição não elabore de modo explícito o que seus próprios agentes definem como uma das principais ferramentas do trabalho policial (a suspeita).” RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 54. 72 CANO, Ignacio. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Op. Cit.

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abusivo da força;. No Rio de Janeiro, essa razão excede às vezes o patamar de 30 ou 40 a 1. No ano de 2007, dados oficiais até junho apontam a 694 civis mortos contra 16 policiais mortos em confronto.

- a proporção de homicídios dolosos devidos à intervenção policial situa-se entre 10 e 20% do total, muito superior ao que acontece em várias cidades do exterior.

- a razão entre opositores mortos e opositores feridos nas ações policiais é o indicador mais claro. Essa razão, denominada índice de letalidade, evidencia que, em muitos casos, há uma intenção de matar e não de prender o oponente, visto que os combates armados genuínos costumam produzir maior número de feridos do que de mortos. De fato, em outros estados (MG, RS) o número de civis feridos em confronto é superior ao de mortos. No Rio de Janeiro, pesquisas mostraram um número de mortos mais de 3 vezes superior ao número de feridos”73.

Como diversas organizações internas e internacionais de direitos humanos

apontam, as evidências da política de segurança do Rio de Janeiro demonstram

uma enorme diferença entre os índices de mortes em confronto com a polícia em

comparação com o número total de assassinatos “comuns”, prisões, mortes de

policiais e número de pessoas feridas pela polícia. De acordo com a Anistia

Internacional, as práticas policiais em 2012 continuaram a se caracterizar por

discriminação, corrupção, pelo caráter militar das operações policiais e as

prometidas reformas na segurança pública não ocorreram devido a cortes no

orçamento e falta de vontade política74.

A letalidade policial é um problema particularmente grave nos espaços

urbanos do país. Os estados com maiores níveis de violência letal tendem a ser os

estados com maior letalidade policial. No entanto, essa relação não é absoluta,

pois não é possível justificar os altos níveis de mortes em ações policiais apenas

devido a um contexto violento. O índice de letalidade é mensurado pela razão

entre o número de mortos e o número de feridos nas operações policiais,

constituindo um dos indicadores clássicos de uso excessivo da força, pois o

esperado é um número maior de feridos do que de mortos. Quando o número de

mortos é maior, isto evidencia uma maior intenção de matar ao invés de

simplesmente prender o opositor. No continuum do uso da força policial podem

existir diferentes casos, como o cidadão vítima do auto de resistência ou as

vítimas de balas perdidas. Os dois casos estão nos dois polos opostos do uso da

73 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012) 74 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança pública. Fonte: www.amnesty.org

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força letal pelo policial, mas ambos entram na cifra. As vítimas de bala perdida

podem acontecer quando ocorrem incursões policiais nas favelas, os tiroteios

provocados por armas automáticas contra supostos criminosos, atingem vítimas

que poderiam ter sido poupadas com uma abordagem mais cuidadosa. Essa

predisposição ao uso excessivo da arma de fogo provoca outras vítimas que são

feridas ou mortas simplesmente por estarem no meio do fogo cruzado75.

A mobilização de um grande aparato estratégico e de policiais, com o

resultado elevado saldo de mortos, sempre apresentados como “traficantes”, tem

sido o padrão “pacificador” da política de segurança pública nas favelas do Rio de

Janeiro. E ainda assim, a polícia insiste em utilizar como critério de eficiência o

alto índice de letalidade policial. O fetiche das autoridades públicas e da grande

mídia com o combate ao crime organizado, conforme afirma Zaccone, de

organizado não tem nada, tem sido nos últimos tempos o salvo conduto

legitimador para todas as espécies de violações de direitos e a prática do

extermínio em massa. Em nome dessa justificativa, as favelas cariocas são

invadidas cotidianamente pelos policias, intimidando moradores e constrangendo

trabalhadores, para que eles jamais ousem se organizar para defender seus

direitos. Essa forma de atuação é operada para desarticular as frágeis organizações

espontâneas desenvolvidas nas favelas e periferias urbanas. O terrorismo de

Estado não atua de forma casual, mas na verdade, evidencia o desprezo das forças

hegemônicas pela população miserável, já que os policiais não atiram

aleatoriamente. Pelo contrário, as operações policiais ocorrem em lugares certos e

contra pessoas certas, evocando o ciclo do eterno retorno da barbárie. Chacinas

como as da Candelária e Vigário Geral, perpetradas por policiais na década de 90

são absolutamente impensáveis de ocorrer em Copacabana. Vigora o pensamento

de que nas favelas e periferias cariocas não há inocentes, uma vez que todos já são

culpados pelo simples fato de nascer e ousar sobreviver.

Em todas as incursões policiais, as autoridades responsáveis, como o atual

governador Sérgio Cabral e o secretário de Segurança Pública José Mariano

Beltrame, deixam evidente a política do estado: mortes são entendidas como

75 CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Op. Cit. p. 16.

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meios necessários para o enfrentamento da criminalidade; o que significa dizer

que, a letalidade da ação policial é encarada como parâmetro de sucesso76.

Num período de 30 anos que atualmente disponibiliza o Sistema de

Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, o Brasil passou de 13.910

homicídios em 1980 para 49.932 em 2010, o que significa um aumento de 259%.

Entretanto, segundo os censos nacionais, a população do país também cresceu,

embora de forma bem menos intensa. Passou de 119,0 para 190,7 milhões de

habitantes, crescimento de 60,3%. Por isso, considerando o crescimento da

população, passamos de 11,7 homicídios em 100 mil habitantes em 1980 para

26,2 em 2010. Isso é equivalente a um aumento real de 124% no período ou 2,7%

ao ano77.

No total, de 1980 a 2010, ou seja, num período de 30 anos o país já

ultrapassou a casa de um milhão de vítimas de homicídio. Esses números são de

tal magnitude que fica difícil construir uma imagem mental para entender a sua

significação. Pode ser dada uma ideia do que esses números representam, se

compararmos os mesmos com o número de vítimas em diversos conflitos armados

ao longo do mundo. Vemos que a média anual de mortes por homicídio no país

supera, e em casos de forma avassaladora, o número de vítimas em muitos e

conhecidos enfrentamentos armados no mundo.

No que tange a as estatísticas de homicídios e a questão racial no Brasil, o

índice de mortes entre a população branca é de 18.852 mortes em 2002; 15.753

mortes em 2006; 13.668 mortes em 2010. Entre a população negra, foram 26.952

mortes em 2002; 9.925 mortes em 2006; 33.264 mortes em 2010. Mesmo com

grandes diferenças entre as Unidades Federadas, a tendência geral desde 2002 é:

queda no número absoluto de homicídios na população branca e de aumento nos

números da população negra: em 2002, para cada branco temos 1.497 negros; em

2006, para cada branco temos 1.896 negros; em 2010, para cada branco temos

2.4337 negros.

76 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009. Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013) 77 Ver. Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. CEBELA: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).

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De acordo com o relatório do Mapa da Violência 2012, “não é tarefa

simples periodizar o histórico dos homicídios no Rio de Janeiro. Em primeiro

lugar, pelas fortes oscilações facilmente perceptíveis nos dados a seguir, com

repentinas e marcadas quedas e/ou aumentos em curtos lapsos de tempo. Em

segundo lugar, pela peculiaridade do estado: sua região metropolitana (RM)

abrange 74% dos homicídios e 73% da população estadual, motivo pelo qual seu

interior tem limitado peso nas estatísticas”78. Mesmo assim, as pesquisas feitas no

Rio de Janeiro apontam que entre a população branca a taxa de homicídios foi de

2.863 mortes em 2002; 2.363 mortes em 2006; 1.344 mortes em 2010. Já entre a

população negra a taxa de homicídios é maior, sendo de 4.907 mortes em 2002;

4.417 mortes em 2006; 2.638 mortes em 2010. Embora os índices gerais tenham

diminuído, a relação Branco x Negro se mantém sempre a mesma: para cada

branco vítima de homicídio, temos cerca de dois negros vítimas de homicídio.

Os números revelam uma marca letal que vai além da questão racial, ela é

determinada principalmente pelo aspecto social. A força letal da policia brasileira

tem um foco maior nos jovens negros. Não somente por serem negros, mas

principalmente por serem pobres. É a eterna associação entre pobreza e crime.

Essa visão remonta ao tempo da escravidão. Para os oprimidos, o estado de

exceção vigora como regra na administração colonial, expressão da violência

soberana. Seu exercício encontra no genocídio o alicerce para dominação. Para

esse segmento social a barbárie se tornou cotidiana. Os moradores das favelas são

vistos como sujeitos perigosos, generaliza-se a condição de potenciais criminosos

a todos os trabalhadores e estudantes que ali vivem.

A letalidade policial segue também uma lógica geográfica que confirma a

seletividade de sua atuação baseada na questão social. Já que sua força letal é

empregada com maior incidência em áreas pobres das comunidades ou favelas.

Mais de 70% de todos os autos de resistência envolvendo a polícia do Rio, no ano

de 2008 ocorreram em 10 das 40 Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs).

São elas 3ª, 7ª, 9ª, 12ª, 14ª, 15ª, 16ª, 20ª, 22ª e 40ª. Dados estatísticos dessas zonas

demonstram que em cada um dos supostos autos de resistência nesses bairros, são

mortas entre 10 e 103 pessoas para cada policial morto. Essas áreas juntas

78 Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos - CEBELA. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).

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representavam cerca de 53% dos assassinatos cometidos no estado em 2008.

Também se concentra nessas áreas uma grande proporção das mortes por policiais

no estado. Juntas apresentam 825 mortes em 2008, o que significa 73% das

mortes oficialmente reconhecidas e cometidas por policiais em todo o estado79.

Em relatório elaborado por diversas organizações de defesa dos direitos

humanos, atuantes no Rio de Janeiro, a conclusão foi a seguinte:

“A partir de uma cartografia da violência institucional do Estado brasileiro, vemos que o valor da vida e da dignidade de uma determinada parcela dos cidadãos (que podem ser recortados por sua etnia, faixa etária, classe social e geografia urbana ou rural) está se tornando "descartável" pelas estratégias gerais das políticas governamentais do país. Hoje o Brasil lidera o ranking mundial nos índices de homicídio de jovens devido a armas de fogo e o Rio de Janeiro abriga a polícia que mais mata no mundo, há inúmeras denúncias de práticas regulares de tortura tanto no sistema prisional quanto no sistema sócio-educativo, e cada vez mais o regime político brasileiro desenvolve e aprimora um projeto militarizado de segurança pública”80.

As mortes em intervenções policiais são consideradas pelo Estado apenas

como uma externalidade do trabalho policial e não como uma dimensão central.

Uma prova disso é que, até 1999, os registros oficiais não realizavam uma

contagem de quantas pessoas eram mortas por policiais ou em decorrência de

intervenção policial. “A elevada letalidade policial no Rio de Janeiro não apenas

em termos de qualquer comparação internacional, mas também em relação a

outros estados do Brasil. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública

mostravam que, no ano 2000, o Rio de Janeiro apresentava a maior taxa de mortes

de civis em intervenções de policiais militares para cada mil policiais, entre todos

os estados considerados”81.

Como afirma Zaccone, “em se tratando de segurança pública, não são os

índices que determinam a política, mas a política que determina os índices. Assim,

os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia

judiciária do que a atividade criminal”82. Isso é muito relevante para interpretar os

dados colhidos e o que eles realmente significam. Ou seja, eles não espelham uma

79 Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Indicadores de Criminalidade. Diário Oficial. Janeiro a dezembro de 2008. 80 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012) 81 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Op. Cit. 82 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 17.

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sociedade na qual existem mais criminosos negros. Eles demonstram a

seletividade punitiva da atividade judiciária no seu lado mais cruel: a eliminação

da vida.

Primeiramente é importante destacar a categoria da “cifra oculta da

criminalidade”, apontada pela criminóloga Lola Aniyar de Castro, na qual ela

distingue a criminalidade legal, da aparente e real. A criminalidade legal seria

aquela divulgada nas estatísticas oficiais, enquanto a criminalidade aparente é

aquela conhecida pelos órgãos de controle penal, como a polícia e o ministério

público, por exemplo, mesmo que ela não seja demonstrada nas estatísticas. E a

criminalidade real, que é o número de delitos realmente cometidos. “Entre a

criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos

que jamais serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina cifra

obscura, cifra negra ou delinquência oculta. A diferença entre a criminalidade real

e a aparente seria, pois, dada pela cifra negra”83. Ou seja, Lola percebeu que as

próprias estatísticas evidenciam a seletividade operada pelas instituições de

controle social84.

Ao observar os dados demonstrados acima, não se pode concluir que a

maioria dos indivíduos envolvidos em confrontos armados com a polícia seja

negra e, por isso são alvo mais fácil de homicídios. Não necessariamente. Os

negros e pobres são a clientela majoritária das operações letais da polícia

justamente por serem o alvo certo de operações de grande perigo, em que a

preocupação com o risco de vida é menor, por se tratarem de vidas matáveis, sem

que seja cometido um homicídio condenável. As estatísticas não funcionam como

um espelho da atividade criminal, uma vez que um aumento no índice de crimes

cometidos pode representar simplesmente um incremento na atividade

persecutória da polícia, e não que a prática de crimes tenha aumentado.

A violência está tão enraizada no cotidiano do carioca, que o imaginário

social acredita viver numa situação de guerra permanente. No entanto, a

83 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. 84 Augusto Thompson apontou quatro fatores explicativos para esse fenômeno. Apesar de não ser objeto do presente estudo, vale destacar algumas possíveis razões para a cifra obscura como um dado elucidativo. São eles: a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do criminoso construído pela ideologia hegemônica; a incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção; e a vulnerabilidade à violência. Para mais informações, ver THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1998.

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identidade do inimigo obedece a critérios geográficos e raciais, que impõe às

camadas mais vulneráveis da população a triste generalização entre pobreza, raça

e crime. Diante do contexto apresentado nota-se o avanço de políticas de

segurança autoritárias como estratégias de controle da vida das classes mais

miseráveis, numa sociedade extremamente desigual como a brasileira. Na cidade

do Rio de Janeiro, as políticas repressivas com a grife tolerância zero chegam a

níveis dramáticos de mortes de civis e uso extremo da força policial.

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