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INTRODUÇÃO O direito de defesa está arraigado à consciência coletiva, sendo explicado sem a menor sombra de dúvida pelo instinto inerente à natureza humana de proteção e preservação de bens que lhe são afetos. Afirmam os contratualistas que a formação da sociedade é justificada pela necessidade existente nos homens de se defender dos mais poderosos, sendo natural, pois, que aos indivíduos insertos em determinado contexto social seja dado o direito de defesa quando agredidos. Ocorre, todavia, que a evolução da sociedade obrigou também que houvesse por parte do direito uma limitação à defesa, razão pela qual passou a ser considerada um instituto de natureza jurídica, limitada e regularizada ante o império da lei. A racionalização paulatina da legítima defesa fez com que determinados excessos cometidos sob o seu nome fossem gradativamente expurgados do ordenamento. A defesa para ser considerada legítima deveria se pautar na necessidade e na moderação dos meios escolhidos, colimando o excesso na descaracterização do instituto e conseqüentemente na criminalização do agente. Não obstante, verifica-se dos casos concretos que são inúmeras as causas aptas a ensejar um excesso na defesa, nem todas susceptíveis de descaracterizar sua legitimidade. Fatores numerosos podem influir na conduta do indivíduo agredido, tornando sua conduta impunível ante o ordenamento ou no mínimo menos reprovável à sua pessoa.

MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

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Page 1: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

INTRODUÇÃO

O direito de defesa está arraigado à consciência coletiva, sendo explicado

sem a menor sombra de dúvida pelo instinto inerente à natureza humana de

proteção e preservação de bens que lhe são afetos. Afirmam os contratualistas que

a formação da sociedade é justificada pela necessidade existente nos homens de se

defender dos mais poderosos, sendo natural, pois, que aos indivíduos insertos em

determinado contexto social seja dado o direito de defesa quando agredidos. Ocorre,

todavia, que a evolução da sociedade obrigou também que houvesse por parte do

direito uma limitação à defesa, razão pela qual passou a ser considerada um

instituto de natureza jurídica, limitada e regularizada ante o império da lei.

A racionalização paulatina da legítima defesa fez com que determinados

excessos cometidos sob o seu nome fossem gradativamente expurgados do

ordenamento. A defesa para ser considerada legítima deveria se pautar na

necessidade e na moderação dos meios escolhidos, colimando o excesso na

descaracterização do instituto e conseqüentemente na criminalização do agente.

Não obstante, verifica-se dos casos concretos que são inúmeras as causas

aptas a ensejar um excesso na defesa, nem todas susceptíveis de descaracterizar

sua legitimidade. Fatores numerosos podem influir na conduta do indivíduo agredido,

tornando sua conduta impunível ante o ordenamento ou no mínimo menos

reprovável à sua pessoa.

Constatar as modalidades de excesso existentes e suas características se

mostra, então, empreitada fundamental para eventual imposição de pena ao agente

pelo seu cometimento. Na prática significa atentar que compete aos operadores do

direito a correta subsunção do comportamento excessivo com o preceituado na lei,

sob pena de serem cometidos equívocos irreparáveis ao ius dignitatis e libertatis dos

indivíduos. Ademais, averigua-se que são inúmeras as decisões anuladas em

julgamentos de Tribunais do Júri tendo em vista decisões manifestamente contrárias

às provas coligidas nos autos, como por exemplo, no errôneo entendimento acerca

da natureza do excesso.

Desta forma, o presente trabalho se destinará a analisar de maneira objetiva,

justamente o delineamento do instituto da legítima defesa e a configuração do

Page 2: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

excesso, tendo-se como paradigma a proporcionalidade na defesa e a auto

determinação da conduta defensiva..

Para cumprir com tal desiderato num primeiro momento serão ponderadas

algumas legislações que continham em seus bojos elementos constantes da legítima

defesa. Após, introduzir-se-á o instituto defensivo no ordenamento jurídico, mais

especificamente na teoria do delito, considerando-se a conduta criminosa como o

ato típico, antijurídico e culpável. Por conseguinte, analizar-se-á o instituto próprio,

dando especial relevo aos seus limites pré-estabelecidos, como o uso moderado dos

meios e a intensidade da reação. Por derradeiro será apreciado o excesso na

defesa, constatando-se suas modalidades e seus efeitos no ordenamento.

2

Page 3: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

CAPÍTULO IBREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LEGÍTIMA DEFESA

A análise da evolução histórica da legítima defesa se mostra significativa,

pois, somente a partir dela é possível se indicar os atuais limites e princípios que

norteiam os modelos de conduta a serem seguidos pelos indivíduos na atuação

defensiva.

A legítima defesa como situação fenomênica abstraída da realidade foi

normatizada e sofreu inúmeras transformações no aprazar dos tempos. Aos estados

Mesopotâmio e Romano, claramente individualistas, constituía a legítima defesa

límpida proteção à vida e a integridade física e moral dos indivíduos. O Estado

Grego e a civilização do Ganges ao revés, fundamentavam a legítima defesa não

somente na concepção individualista dos seus concidadãos, mas também na

perspectiva coletiva de defesa da ordem social.

Através da digressão histórica da legítima defesa constata-se que o ius

defensionis se fundamentava basicamente sob a égide de dois princípios. Pelo

princípio da proteção individual de bens (para Romanos e Mesopotâmios) e pelo

princípio da proteção coletiva de bens (para Gregos e Indianos). E em que pese a

grande volatilidade e mutabilidade do pensamento humano, em linhas gerais estes

dois princípios foram considerados a até pouco tempo verdadeiros sustentáculos do

direito de defesa do indivíduo.

Nas palavras de LINHARES “o instituto da legítima defesa refletiu em todos

os tempos uma necessidade imposta ao homem pela lei natural, sendo por isso

mesmo reconhecida no direito das gentes como a harmoniosa manifestação dos

sistemas jurídicos que as regeram durante sua longa evolução social”1. Tem como

escopo, portanto, expressar o instinto máximo de sobrevivência que emana do

espírito humano, exprimindo-se em eras pretéritas num sentimento de vingança para

com o próximo e atualmente na realização de um ato necessário para a salvaguarda

de um direito.

1.1 A LEGÍTIMA DEFESA NO CÓDIGO DE HAMMURABI

1 LINHARES, Marcelo. Jardim. Legítima Defesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p 14.

3

Page 4: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Segundo os historiadores o Código de Hammurabi foi redigido

aproximadamente no ano de 1694 a.C. e é com toda a certeza, uma das criações

jurídicas mais notáveis de toda a Antigüidade.

Em linhas gerais o Código de Hammurabi consagra “uma fusão de

elementos sobrenaturais, princípios de autotutela e retaliação e penas ligadas à

mutilação e ao castigo físico”.2

Acerca da legítima defesa vale lembrar que se encontra prevista no § 129 do

código a denominada legítima defesa da honra. Ao esposo que surpreende a

consorte em flagrante delito de adultério, caberá, segundo sua vontade, deixá-la

viver ou morrer.3

Do mesmo modo se configura a legítima defesa no § 130.4 A hipótese em

questão constituiu a denominada legítima defesa de terceiro, onde verificado o

flagrante delito de estupro ou atentado violento ao pudor contra mulher virgem, que

vive na casa dos pais, criar-se-ia a legitimação do agente para atuar em legítima

defesa e repelir a injusta agressão sofrida pela mulher.

A legítima defesa poderia ser desempenhada ainda quando a ofensa

objetivasse o direito de propriedade do indivíduo mesopotâmio, pois a “primeira

parte do código de Hammurabi é dedicada ao direito de propriedade e nela está

disciplinada a faculdade de poder matar quem fosse encontrado apropriando-se de

bens alheios”.5 Assim, o instituto era permitido também em casos de furto e

acolhimento de escravos fugidos, uma vez que na sociedade mesopotâmia os

escravos eram considerados bens móveis, tutelados desta forma pela legítima

defesa da propriedade.

Insta salientar que diferentemente da doutrina atual, na legítima defesa

mesopotâmia a proporcionalidade da repulsa para com a agressão não era elemento

essencial ao ato, subsistindo até mesmo quando a reação colimasse em ato com

intensidade muito superior à defesa necessária.

2 WOLKMER. A. C. Fundamentos de História do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 50. 3 “Se a esposa de um awilium foi surpreendida dormindo com um outro homem, eles os amarrarão e os lançarão n’água. Se o esposo deixa viver sua esposa, o rei, também, deixará viver seu servo.”4 ALTAVILA, J. de. Origem dos Direitos dos Povos. 7ª ed. São Paulo: Ícone, 1989, p.40. “se alguém amarra e viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre.”5 LINHARES. M. J. Obra citada, p.18.

4

Page 5: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

1.2 A LEGÍTIMA DEFESA NO CÓDIGO DE MANU

O Código de Manu foi redigido aproximadamente entre os anos de 1.300 a

800 a.C. em forma poética e imaginosa, tendo suas regras expostas em versos.

A forte segmentação social que condicionava a cultura indiana influenciava

grandemente a possibilidade de se agir em legítima defesa. Assim, estabelecia o

código determinadas garantia àqueles que matassem a outrem em guerras, a fim de

defender direitos sacros, direitos de uma mulher ou direitos de um brâmane,

eliminando a responsabilidade de quem assim agisse.6

A legítima defesa é também encontrada no código conforme se constata do

art. 347, explicitando que “um homem deve matar, sem titubeios, a quem se atire

sobre ele para assassina-lo, se não tem nenhum meio de escapar, quando, mesmo

fosse seu direito, ou uma criança ou um ancião; ou ainda um brâmane muito

versado na Escritura Santa”.7 Neste artigo em especial constata-se verdadeiro direito

de legítima defesa independentemente da casta a qual pertença o legitimado. Ao

homem que se vê acossado pelo potencial matador e que não tem outro meio de

escapar da injusta agressão, restaria garantida a possibilidade de utilizar-se do

instituto defensivo. Note-se, no entanto, que o instituto estaria descaracterizado

quando houvesse possibilidade de fuga por parte do agredido, fato este que não se

coaduna com o entendimento atual, cujo delineamento é expresso ao afirmar que

mesmo existindo a possibilidade de fuga por parte do agredido subsistiria a defesa

legítima.

1.3 A LEGITIMA DEFESA PARA OS GREGOS

Apesar do fascínio que a cultura Grega sempre exerceu em nosso meio e de

todos os elementos históricos que corroboram nosso atual entendimento acerca do

seu "modus vivendi", faltam notícias fidedignas de fontes jurídicas sobre o direito

punitivo desta extraordinária civilização. Seus aspectos legais nos são indicados em

grande parte por sua maravilhosa literatura, dentre os quais vemos poetas, oradores

e filósofos.8

6 VIEIRA, J.L. Clássicos: Código de Hamurabi, Código de Manu, Lei das XII Tábuas, São Paulo: Edipro, 2000, p. 89. “Por sua própria segurança em uma guerra empreendida para defender direitos sagrados e para proteger uma mulher ou um Brâmane, aquele que mata justamente não se torna culpado”.7 VIEIRA, J.L. Idem, ibidem.8 Cf. BRUNO, A. Direito Penal 2. Tomo 1º. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.76.

5

Page 6: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Acerca da grande dificuldade de se encontrar legislações gregas, René Ariel

DOTTI salienta que “textos daquela legislação (grega) foram quase totalmente

destruídos, razão pela qual a investigação sobre o direito penal grego antigo é

promovida através dos fragmentos e da tradição oral e escrita de filósofos, poetas e

oradores”.9 Neste sentido remete-nos a mitologia grega à primeira aparição de

legítima defesa da antigüidade, caracterizando tal ato isenção de culpa do autor.

Conta a tradição grega, que Heracles (Hércules), filho de Zeus com a mortal

Alcmena, era um prodígio entre os homens, aprendendo desde pequeno as artes da

luta, da esgrima e do manejo com arco e flecha, como ninguém antes o houvera

feito. Todavia, as coisas se complicavam bastante quando Heracles tinha que provar

suas habilidades com a música e a poesia. Seu mestre nestas artes, Lino, inventor

do ritmo e da melodia, após frustradas tentativas de aprendizado, o repreendeu,

espancando-o. Em reação imediata, Heracles lhe tomou a lira das mãos e o golpeou

violentamente na cabeça, matando-o. Acusado de assassinato foi levado ao tribunal

da cidade sendo julgado pelo juiz Radamantis, designado pelo próprio Deus

Poseidón. Em sua decisão afirmou o juiz ser inocente aquele que mata um agressor

em legítima defesa, inocentando Heracles da pena.10

Com a gradativa sistematização do pensamento grego, ocorreu uma

desvinculação paulatina, ainda que não absoluta, de idéias puramente religiosas

com a justiça penal.

O homem entendido como "a medida de todas as coisas", racionalizava e

verificava seu verdadeiro papel na polis como ser atuante e condicionante na

consecução de fins comuns. Por conseguinte, não se enquadrava mais na idéia

primitiva de que era mero instrumento condicionado nas mãos de deuses

sanguinários.

Acerca da legítima defesa, restaria caracterizada quando salvaguardasse a

propriedade do cidadão grego, constituindo-lhe direito inerente, pois, “no tocante ao

direito de propriedade, se alguém matasse o ladrão noturno que lhe invadisse o lar

para roubar, ou um assaltante, não seria criminoso; também lícita era a legítima

defesa contra quem violentamente cuidasse de roubar durante o dia”.11

9 DOTTI, Rene Ariel. Curso de Direito Penal/ Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 132.10 NARDINI, B. Mitologia: O Primeiro Encontro. São Paulo: Circulo do Livro, 1982, p.122. 11 THONISSEN, Le Droit Pénal de La République Athenienne, Paris, 1875. p.22. apud. LINHARES, M. J. Legítima Defesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980,

6

Page 7: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Podemos afirmar que a legítima defesa para os gregos era considerada e

estimulada como medida necessária à proteção do Estado e proteção ao cidadão.

Aquele que mata para proteger um interesse do Estado ou mata defendendo direito

inerente à cidadania grega não poderia ser considerado culpado, visto estar em

ambos os casos amparado por um dever cívico que por conseguinte não é factível

de punição.

1.4 A LEGITIMA DEFESA NA LEI DAS XII TÁBUAS

De forma objetiva e prática esboçava a Legis XII Tabelarum ou Lei das XII

Tábuas verdadeira legitimação da defesa, tornando-a impunível em determinadas

circunstâncias aos olhos do Estado. A Tábula Segunda da Lei que trata dos

Julgamentos e dos Furtos tem em seu item 3º que “si nox furtum factum sit, si im

occisit, jure coesus esto - Se alguém comete furto à noite e é morto em flagrante, o

que matou não será punido”.12 Averiguamos ainda passagem importantíssima acerca

da legítima defesa13, onde constatamos que a reação desempenhada tendo em vista

o cometimento de adultério, por parte da mulher, nada mais é do que a normal

reação de uma vítima agredida. A honra e o sentimento de dignidade do homem

romano eram garantidos como bens juridicamente tutelados pelo Estado. O direito à

incolumidade moral referente à reputação no meio em que vive e ao seu decoro

poderiam ser preservados desta forma pela legítima defesa.

CAPÍTULO IIA LEGÍTIMA DEFESA NA TEORIA GERAL DO DELITO

O instituto da legítima defesa deve necessariamente ser estudado tendo em

vista sua inserção na teoria geral do delito. Para tanto, a caracterização dos

12 VIEIRA, J. L. Obra citada, p.100.13 VIEIRA, J. L. Idem, p. 147. “Se uma mulher bebe vinho ou comete um ato vergonhoso com homem estrangeiro, que o marido e a família desta mulher a julguem e a punam; e se é surpreendida em adultério, que o marido tenha o direito de matá-la”.

7

Page 8: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

pressupostos atinentes à teoria serão analisados partindo-se de um conceito geral

de delito e de seus aspectos intrínsecos, chegando-se até o atual conceito analítico

de delito (conduta típica, antijurídica e culpável).

Devemos ter em mente que o comportamento humano só se aperfeiçoará

como crime se valorado na tríplice ordem dogmática da tipicidade, da ilicitude e da

culpabilidade, insurgindo neste contexto a legítima defesa como antítese à ilicitude

que num primeiro momento era constatada no tipo penal.

Ilicitude aparente, pois se é verdade que o tipo acolhe em seu bojo os

primeiros aspectos estratificados da ilicitude, também é verdade que as causas de

justificação “constituem um segundo modo de constatação da exclusão da ilicitude,

quando a aparente tipicidade do fato imputado não tenha permitido anteriormente

uma solução definitiva”.14 Deste modo constata-se que ações justificadas como a

legítima defesa, são ações consoante o direito, tendo em vista que tem o escopo de

excluir a antijuridicidade indicada no tipo penal.15

Assim sendo, passaremos a analisar o delito e suas implicações na teoria,

para a posteriori analisarmos a antijuridicidade e sua correlação com a legítima

defesa.

1.1 O DELITO

O delito é um fenômeno social que acompanha a humanidade desde seus

primórdios, acompanhando todos os estágios evolutivos que os seres humanos

percorreram e por isso mesmo, se enraizando nas relações sociais.

Constata-se num primeiro momento que a origem da palavra delito remonta a

um sentimento de desvio do padrão, de aparente anormalidade de fatos e atos.

Refere-se hodiernamente ao comportamento humano que se desvirtua do

consenso geral, de um modelo prescrito, comportamento este não desejado por

determinada sociedade, cujas pautas previamente delineadas mostram o que pode

ser considerado idôneo e o que é considerado inidôneo em determinado momento

histórico e em determinado enfoque cultural.

14 TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001,p.170.15 Cf., SANTOS. Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p.134.

8

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Por certo que os indivíduos somente se unem em sociedade a fim de lograr

êxito em seus objetivos comuns. A necessidade de paz, ordem social e bem estar

comum levam os indivíduos a personalizar a sociedade, criando institutos que serão

responsáveis pela guarda e instrumentalização dos valores erigidos como

determinantes da própria vida em sociedade16.

O Direito é assim criado para regular as relações sociais, constituindo não um

fim em si mesmo, mas sim verdadeiro instrumento com o qual os indivíduos

procuram garantir sua harmonia e evoluir.

Os sujeitos ao se estabelecerem em sociedade amalgamam seus ideais,

valores, expectativas e os convertem em conceitos jurídicos, nitidamente culturais e

por isso mesmo, variáveis. Por essa razão, origina-se ”uma consciência jurídica

relativa a cada momento histórico, sendo o direito um instrumento orientador e

condicionador da realização in concreto daqueles valores e fins”.17

As leis criadas no seio da sociedade com tal intuito assimilam os valores

básicos que o corpo social estima e vive diuturnamente, tornando o delito fenômeno

contrário aos objetivos e aspirações sociais, uma idéia diametralmente oposta a de

“societas”.

Por seu caráter eminentemente mutável, o delito foi estudado por diversas

escolas penais, ora levando-se em consideração o modo de mostrar seus efeitos na

sociedade ora analisando sua origem.

Todos estes estudos acerca do conceito do delito culminaram basicamente

em três grandes grupos, quais sejam, a analise do delito quanto aos seus aspectos

materiais, no tocante aos seus aspectos formais e referentes ao seu conceito

analítico, indicativo dos seus elementos constitutivos.

1.1.2 ASPECTOS MATERIAIS DO DELITO

Aspectos materiais do delito estariam coligados a danosidade da ação ou

omissão perpetrada pelo agente no seio social. Juarez CIRINO DOS SANTOS

afirma que tais aspectos “indicam a gravidade do dano social produzido pelo fato

punível, como lesão de bens jurídicos capazes de orientar a formulação de políticas

criminais“.18

16 Cf., NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.17 REALE JUNIOR. Miguel. Teoria do Delito. 2ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.18.18 SANTOS. J. C. dos. Obra citada, p.01.

9

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As ações socialmente danosas desestruturam os valores erigidos como

finalísticos à atividade humana, tendo em conta que o homem, como ser de ação,

elabora e põem em prática seus escopos objetivando alcançar fins pré-

estabelecidos.19

Deste modo, erigindo-se no ordenamento jurídico “objetos de proteção” ou

bens jurídicos, verificáveis como importantes ou até mesmo como indispensáveis em

determinado momento histórico e em determinado processo cultural, constataremos

se a ação ou omissão praticada pode ser considerada como delituosa.

A análise do conceito material do delito se constitui na medida que ações ou

omissões prescritas na lei, lesionam efetivamente ou criam uma situação de perigo

de lesão a bens protegidos pela norma penal. Corresponderia, nada mais que “uma

violação de um bem penalmente protegido”.20

Sua importância para o presente estudo deve-se ao fato de que o fenômeno

do delitivo é nitidamente uma criação da própria sociedade, “operada em último

termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo

informais (família, escola, igrejas, clubes, vizinhos) de controle”.21 Desta forma

colima a legítima defesa à proteção dos indivíduos em face de agressões

socialmente danosas que tendem a desestruturar os valores erigidos como

finalísticos à atividade humana.

1.1.3 ASPECTOS FORMAIS DO DELITO

De igual modo a análise do conceito de delito pode ser estudada tendo como

ponto de partida uma violação de uma norma legal que consubstancia em seu

preceito secundário uma sanção, ou seja, o que os doutrinadores denominam de

conceito formal de delito.

O direito positivado determina objetivamente quais condutas sofrerão a

imputação de uma pena. Estas condutas, por óbvio, para serem consideradas

delituosas, devem se subsumir ao preceito primário contido na norma penal, de

modo exato, irretorquível.

19 Cf., NADER, P. Obra citada, p. 20 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º V. 2ª Edição, ampliada e atual. São Paulo: Saraiva, 1980. p.133.21 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p.62/63.

10

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A contrariedade entre o fato praticado e a lei penal, consubstanciaria o

conceito de delito na esfera formal, nada diverso do que preceitua Franz VON LISZT

ao afirmar que o “delito é o fato ao qual a ordem jurídica associa a pena como

legítima conseqüência”.22 No mesmo contexto afirma DAMÁSIO DE JESUS que este

conceito deriva da análise do crime sobre o "aspecto da técnica jurídica, do ponto de

vista da lei".23

O conceito de delito verificado sob o aspecto formal nos remete

necessariamente ao princípio constitucional da Estrita Legalidade.

A formalidade do conceito reside no fato de que sua definição exclui

valorações filosóficas, psicológicas ou axiológicas, facilmente verificáveis no

conceito material de delito. Para os doutrinadores do conceito formal, o delito é uma

contradição existente entre a conduta humana e a proibição da lei, facilmente

verificável e objetivamente imputável ao agente.

Doutrina, não obstante, FIGUEIREDO DIAS que a apreciação formal do delito

consubstancia fenômeno inaceitável. Para o autor a incoerência no conceito reside

principalmente no fato de reduzir/esvaziar um fenômeno que necessariamente deve

conter aspectos que existem fora do âmbito do direito penal.24

1.1.4 CONCEITO ANALÍTICO DO DELITO

Por derradeiro, o delito pode ser analisado ante seu aspecto analítico,

dogmático ou operacional. Tal análise tem como escopo estratificar os elementos

que compõem o fenômeno delitivo, decompondo-os de modo racional, lógico,

tendente a funcionar como verdadeira garantia para os indivíduos. Primeiramente,

como garantia de previsão de ações tidas como criminosas pelo ordenamento,

correspondendo neste aspecto ao conceito formal de delito. E de igual modo, como

garantia de uma melhor sistematização científica do fenômeno delitivo.

Devemos levar em consideração que o fato criminoso é um todo unitário que

somente é estratificado a fim de melhor ser compreendido e estudado. ZAFFARONI

ao doutrinar sobre a estratificação do delito explana que o mesmo se integra em

“vários estratos, níveis ou planos de análise, mas isto de nenhuma maneira significa

22 LISTZ. Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Tomo II. 4ª ed. Madrid: Réus S.A. 1999, p. 262.23 JESUS, D. E. Obra citada, p.142.24 Cf. DIAS, J. F. Obra citada, p. 42.

11

Page 12: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

que o estratificado seja o delito: o estratificado é o conceito que do delito obtemos

por via da análise”.25

Com tal afirmação pretende demonstrar o autor que o delito não pode ser

apreendido levando-se a cabo uma análise estancada de seus elementos

constitutivos obtida verificando-se seus planos como entes distintos do todo

analisado. Se assim o fizéssemos estaríamos incorrendo em um absurdo

metodológico26, fato inadmissível para qualquer ciência, tendo em conta que o

próprio objetivo da análise estratificada do delito é garantir a escolha dos meios mais

racionais a fim de verificarmos se as ações podem ser tidas como delituosas ou não.

Para tanto a doutrina contemporânea, em que pese a enorme discussão

doutrinária acerca do tema, define crime como a ação ou omissão típica, antijurídica

e culpável, nos demonstrando ser um “conceito formado por um substantivo

qualificado pelos atributos de adequação ao modelo legal, da contradição aos

preceitos proibitivos e permissivos e da reprovação de culpabilidade”27 que recai ao

agente por ter praticado o injusto.

Tendo em vista a necessidade de sua análise conjunta, consoante supra-

explicitado, verifica-se que os planos de apreciação do delito se entrelaçam e se

completam de modo recíproco. A análise da ação/omissão típica, por exemplo, não

desconfigura o fato criminoso por ter sido estudado separadamente da contradição

que eventualmente ocorrerá com o ordenamento jurídico (antijuridicidade) e sim o

complementa. Da mesma forma a análise da antijuridicidade, quando não verificada

causa de justificação, não obstaculizará a análise da culpabilidade como juízo de

reprovação que recai ao agente por ter realizado um tipo de injusto, ou seja, por ter

praticado uma ação/omissão típica e antijurídica.

O sistema tripartido de fato punível tem como atual fundamento metodológico

a estrutura finalista da ação desenvolvida por Hans Welsel no ano de 1931, adotada

pelo Código Penal Brasileiro na reforma de 1984.

25 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. E., Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 386.26 Metodologia: (“methodo” significa caminho; “logia” significa estudo. Significa ciência ou estudo de métodos).27 SANTOS. J C. Obra citada, p. 5.

12

Page 13: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Explana os adeptos da teoria finalista que a vontade é a “energia propulsora

da ação, enquanto a consciência do fim é sua direção inteligente”.28 A ação humana

necessariamente está coligada com elementos de ordem subjetiva (vontade) e é

dirigida conscientemente para um fim pré-determinado. Desta forma, com a escolha

dos fins e com a conseqüente seleção dos meios, verifica-se que a “vontade não

pode ser separada de seu conteúdo, isto é, de sua finalidade, posto que cada

conduta humana deve ser voluntária e toda vontade tem um fim”.29

Para a teoria finalista a estratificação do delito restaria assim explicada:

1)Conduta – É a ação humana entendida como exercício da atividade finalista; 2)

Tipicidade – No sentido mais amplo significa a totalidade dos pressupostos da

punibilidade, núcleo do injusto. Contém o dolo e a culpa. 3) Antijuridicidade – É o

desacordo da ação com as exigências que impõem o direito para as ações que se

realizam na vida social. É o desvalor jurídico que corresponde à ação praticada. 4)

Culpabilidade – É a reprovação que recai sobre o autor, que podendo agir consoante

o ordenamento jurídico, ou seja, tendo liberdade de vontade e capacidade de

imputação, não o faz.30

Neste contexto, nos dizeres de Hans WELSEL, a legítima defesa

consubstanciaria elemento justificador tendente a eliminar a antijuridicidade indicada

pelo cumprimento do tipo. 31

Assim, a fim de constatar se determinada conduta pode ser legitimada no

ordenamento, primeiramente verificaríamos se a mesma amolda-se ao tipo penal.

Sendo a resposta afirmativa deve-se constatar então a existência ou não de alguma

causa de justificação (legítima defesa, estado de necessidade, etc.). Ocorrendo tal

justificação a conduta seria jurídica, consoante o direito.

Frise-se, contudo, que mesmo sendo a conduta típica e antijurídica, nos

vincula necessariamente a estratificação do delito à análise da culpabilidade do

agente. Desta forma a justificação da conduta por uma causa de exclusão da

ilicitude não é a única capaz de afastar o caráter criminoso da conduta, pois a

28 SANTOS. J. C. dos. Idem, p. 13.29 ZAFFARONI, E. R; PIERANGELI, J. E. Obra citada, p. 399.30 Cf. WELZEL, Hans. Direito Penal, traduzido por Afonso Celso Rezende, 1ª ed. Campinas: Romana, 2003. p. XX 31 WELZEL, H. Idem, p.139.

13

Page 14: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

inexistência de culpabilidade obsta igualmente a configuração do crime (“Nullum

crimen sine culpa”).

2. A LEGÍTIMA DEFESA COMO ANTÍTESE DA ANTIJURIDICIDADE

A antijuridicidade ou ilicitude é a contradição existente entre uma conduta

humana e o ordenamento jurídico, nas palavras de Juarez CIRINO DOS SANTOS “o

conceito de antijuridicidade é oposto ao de juridicidade: assim como juridicidade

indica conformidade ao direito, antijuridicidade indica contradição ao direito”.32

Hans WELZEL doutrina que a antijuridicidade é o “desacordo da ação com as

exigências que impõem o direito para as ações que se realizam na vida social. É o

desvalor jurídico que corresponde à ação, conseqüência desta divergência”.33

Deste modo, a antijuridicidade colima verdadeiro juízo de valor acerca da

conduta realizada e o preceituado na lei. Sua avaliação concreta deve ser realizada

primeiramente na contrariedade do ato com o ordenamento jurídico, mas depende

igualmente, da constatação da ilicitude material, ou seja, da lesividade que a

conduta acarretará a bens jurídicos protegidos pela norma. Atente-se, porém, que

isso não significa que existam duas espécies de antijuridicidades. Nos dizeres de

ZAFFARONNI, “a antijuridicidade é una, material porque invariavelmente implica a

afirmação de que um bem jurídico foi afetado, formal porque seu fundamento não

pode ser encontrado fora da ordem jurídica”.34

Existem, todavia, determinadas causas que excluem a ilicitude do fato que

inicialmente se apresentava como típico. A conduta descrita no artigo 121, caput do

Código Penal (homicídio simples), por exemplo, consubstancia um fato típico que,

no entanto, não será ilícito se quem o cometeu agiu em legítima defesa.

Assim, afirma Santiago MIR PUIG que:

las causas de justificación suponen la concurrencia de ciertas razones que conducen al legislador a valorar globalmente de forma positiva el ataque a un bien jurídico-penal (sin que por ello desaparezca su consideración de <mal> aislamente considerado). Aunque estos bienes son valiosos para el derecho penal, pueden entrar en conflicto con otros intereses que aquel puede considerar preferentes, en determinadas cicurstancias (...) Así, p. eje. la legítima defensa justifica la realización

32 SANTOS. J. C. dos. Obra citada, p.127.33 WELZEL, H. Obra citada, p. 99.34 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. E., Obra citada, p. 571.

14

Page 15: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

de un tipo penal porque el interés en que el injusto agresor no pueda imponer su actuación antijurídica se considera mayor que el representado por los bienes jurídicos del agresor que el defensor no tenga más remedio que lesionar para repeler la agresión.35

Deste modo, para a ocorrência de um delito, se torna imperiosa a realização

de um comportamento humano subsumido a um tipo previamente descrito na lei

(nullum crimen sine previa lege). No entanto, a mera constatação da subsunção do

comportamento ao tipo penal não se mostra suficiente para a caracterização do fato

como criminoso. A conduta poderá ser justificada sopesando-se os valores/bens que

se encontram em oposição in concreto, protegendo-se aquele que por uma questão

de política criminal for considerado na situação em foco “mais importante”, ou seja,

secund legem.

As causas permissivas, discriminantes ou justificadas, segundo nosso Código

Penal, tendem a excluir a ilicitude da conduta. Em seu artigo 23 afirma o codex que

“não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em

legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular

de direito”.

Desta forma, por ser a legítima defesa causa suficiente para a exclusão da

antijuridicidade, quando restar comprovado seus requisitos no caso concreto, não

poderá mais a conduta não ser considerada contra legem, mas sim um ato lícito,

uma ação amparada pelo direito.

CAPÍTULO IIIANÁLISE OBJETIVA DO INSTITUTO NA LEGISLAÇÃO PÁTRIA

A legítima defesa consubstancia direito inerente a todos os sujeitos,

constituindo atualmente uma causa de exclusão da antijuridicidade. Erige nosso

Código Penal, a qualquer cidadão, o direito inexpugnável à defesa legítima quando

constatar que direito seu ou de terceiro está sendo violado por uma injusta agressão.

Todavia, verifica-se igualmente que ação de defesa não pode ser desproporcional à

gravidade da ameaça sofrida, sob pena de descaracterização da causa justificativa.

35 PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal, Parte General. 6ª ed. Barcelona: Editora Reppector, 2002, p. 171.

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Page 16: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Nosso atual Estado Democrático de Direito, verdadeiro contendor de

práticas abusivas e de atitudes absolutistas, cuja lei surge como emanação da

vontade do povo e não como expressão unilateral da vontade do governante,

garante a legítima defesa aos indivíduos, determinando seus pressupostos de modo

expresso.

A conduta defensiva é declinada como um direito àquele que se vê agredido,

mas tal prerrogativa não se mostra livre dos pressupostos atinentes ao império da

lei, ao qual todos indistintamente estão sujeitos.

Na justa medida em que surge ao indivíduo o direito de se defender

legitimamente de agressões a que não estaria sujeito a suportar, exsurge igualmente

aos demais cidadãos a garantia de que o outro somente poderá agir com as próprias

mãos se sua conduta se subsumir e coadunar com os preceitos declinados na lei.

A atividade de se defender não mais está corroborada na vingança privada e

na lei do talião que outrora suportavam e legitimavam a contra agressão do

indivíduo. Está sim alicerçada na proteção individual de bens que a legítima defesa

visa amparar e na necessidade do prevalecimento do direito sobre a agressão

injusta sofrida, como medidas imperiosas para a construção de verdadeiro Estado

Democrático de Direito.

Desta forma, o livre alvedrio do agredido na ação defensiva não encontra

mais guarida no ordenamento jurídico, restando seu direito à defesa, não cerceado,

como poderia inicialmente parecer, mas sim legalizado e autorizado nos limites

impostos da proporcionalidade e da racionalidade.

1. PRINCÍPIOS FUNDAMENTADORES DA LEGÍTIMA DEFESA

O direito de agir em legítima defesa se corrobora hodiernamente em dois

princípios fundamentais: o princípio da proteção individual de bens e o princípio do

prevalecimento do Direito sobre o injusto sofrido.

Acerca do princípio da proteção individual de bens ou interesses, resta

enraizada em nossa consciência a possibilidade inderrogável de auto-proteção e de

proteção aos que nos cercam. Nos dizeres de Juarez CIRINO DOS SANTOS, “o

princípio da proteção individual justifica ações típicas necessárias para a defesa de

16

Page 17: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

bens jurídicos individuais contra agressões antijurídicas, atuais ou iminentes”.36

Desta forma o instinto de auto-preservação/conservação de bens é a lei máxima que

norteia a legítima defesa na esfera individual.

Em linha de percepção análoga teoriza Günther JAKOBS que “el derecho a

la legitima defensa legitima la violencia privada y por ello es dependiente en su

configuración de los modelos políticos acerca de la relación entre el estado y los

ciudadanos”37. Para o autor a legítima defesa detém os pressupostos atinentes à

teoria da preservação individual de bens, entretanto, por questões de política

criminal, a utilização da autodefesa somente ocorrerá quando nitidamente

subsumida ao preceituado no ordenamento, translúcida na política criminal adotada

pelo Estado.

MAURACH também entende que a política criminal adotada pelo Estado

deve ser levada em consideração a fim de se apreender o delineamento da legítima

defesa, assim afirma que:

hasta ahora no se ha prestado mucha atención a la dimensión político-criminal y criminológica del derecho a legítima defensa. Desde una perspectiva político-criminal, el aspecto principal se refiere a la incorporación del (potencialmente) lesionado dentro del complejo proceso de lucha contra la delincuencia. En tal sentido, la legítima defensa constituye una forma de autoprotección y autoayuda, ante la cual es preciso prevenir el peligro de su deslizamiento hacia una justicia por la propia mano.38

O segundo princípio, por sua vez exprime o prevalecimento do direito sobre

a agressão injusta sofrida.

Consoante afirma Juarez CIRINO DOS SANTOS “o princípio da afirmação

do direito justifica defesas necessárias para prevenir ou repelir o injusto e preservar

a ordem jurídica, independentemente da existência de meios alternativos de

proteção”.39

Nesta linha de cognição aclara Santiago MIR PUIG que “agresor e defensor

no se hallan en una posição igualmente válida frente al orden jurídico. Mientras que

el agresor niega el derecho, el defensor lo afirma. Siendo así, el derecho se inclina a

36 SANTOS, J. C. Obra citada, p.135.37 JAKOBS, Gunther. Derecho Penal-Parte General-Fundamentos y teorías de la imputación. Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, S.A, Madrid, 1995, p. 457. 38 MAURACH, R. Derecho penal parte general 1. 7ª .ed. Buenos Aires: Astrea, 1994. p. 439.39 SANTOS, J. C. Obra citada, p.135.

17

Page 18: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

favor del defensor y, in principio, le permite lesionar al agresor en la medida en que

resulte necesario para impedir que el injusto prevalezca sobre el derecho.” 40

Desta forma resta consagrada a máxima de que o sujeito não necessita

ceder ao injusto sofrido. Trata-se em verdade de uma situação de conflitos de

interesses, onde o sujeito pode agir legitimamente, ”porque o direito não tem outra

forma de garantir o exercício de seus direitos, ou, melhor dito, a proteção de bens

jurídicos”.41

A manutenção da ordem jurídica como expressão necessária, mas não

exclusiva da ordem social, origina a legitimação da reação ante a agressão sofrida,

aplicando-se o princípio da solidariedade “com apoio no qual quem estiver em

condições de exercer a legítima defesa, própria ou de outrem, estará legitimado a

fazê-lo, desde que se contenha nos limites da norma permissiva”.42

Sem embargo, não podemos confundir o princípio do prevalecimento do

direito sobre o injusto sofrido, supra explanado, com o princípio da proteção coletiva

de interesses da ordem social, que em uma analise perfunctória poderiam ser

confundidos.

Criticado por grande número de autores, dentre os quais Roxin43, nos remete

tal princípio à proteção coletiva de interesses da ordem social. Constata-se do

denodado princípio que a legítima defesa poderia ser invocada para a tutela de bens

coletivos, como a tranqüilidade e a ordem pública. Assim, ocorrendo uma violação

da paz (tranqüilidade) pública, por exemplo, exsurgiria aos membros da comunidade

a possibilidade de se atuar em legitima defesa do Estado.

40 PUIG, S. M. Obra citada, p. 422.41 ZAFFARONI, E. R; PIERANGELI, J. H. Obra citada, p. 578.42 TOLEDO, F. A. Obra citada, p.192.43 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General, Tomo 1: Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Tradução e notas, Diego Manuel Lúzon Peña, Miguel Dias e Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2ªed. Madrid: Civitas, 1997, p. 608: “El derecho a la legítima defensa actualmente vigente se basa en dos principios: la protección individual y el prevalecimiento del Derecho. Es dicir: en primer lugar la justificación por legítima defensa presupone siempre que la acion típica sea necesaria para impedir o repeler una agresión antijurídica a un bien jurídico individual; la legítima defensa es para el particular un derecho protector duro y enraizado en la convicción jurídica del pueblo. De ello se pueden derivar ya diversas consecuencias que son importantes para la interpretación del derecho de legítima defensa. Así no son susceptibles de legítima defensa los bienes jurídicos de la comunidad. (...) De lo contrario cada ciudadano se erigiría en polícia auxiliar y podria invalidaer el monopolio de la violencia por parte del Estado. Por ello por regla general el ciudadano no puede hacer frente com la legítima defensa a una perturbación del orden público..., en la medida en que no sean lesionados sus derechos.”

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Page 19: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

2. A LEGÍTIMA DEFESA NO CÓDIGO PENAL PÁTRIO

O atual artigo 25 do Código Penal pátrio delineia a legítima defesa nos

seguintes termos:

“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Verifica-se que a estrutura da legítima defesa é composta basicamente por

dois componentes interligados, quais sejam, uma situação justificante (agressão

injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem) e uma ação defensiva do

agredido (uso moderado dos meios necessários, consciência da situação

justificante).44

Assim sendo, para uma melhor compreensão do excesso na legítima defesa,

passaremos a analisar os elementos que a compõem e posteriormente

ingressaremos na temática propriamente dita.

Destarte, consideraremos primeiramente as situações que justificam a

reação ante à agressão, para em seguida analisar as conjunturas da ação de defesa

e seus limites.

2.1. SITUAÇÃO JUSTIFICANTE

Nos termos do artigo 25 do Código Penal a legítima defesa a fim de ser

caracterizada, deve apresentar-se ante uma agressão injusta, atual ou iminente, a

direito próprio ou de terceiro.

2.1.1. AGRESSÃO INJUSTA

Agressão é todo comportamento humano que tende a lesionar ou por em

perigo um bem jurídico.45 "Somente o ser humano é capaz de agressão, não

havendo legítima defesa, mas estado de necessidade contra ataques de animais. Há

44 Cf. SANTOS, J. C. Obra citada, p. 158.45 CF HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. 1. Tomo 2º. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 282. “Entendem-se por agressão toda atividade tendente a uma ofensa, seja ou não violenta.”

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Page 20: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

agressão, entretanto, quando o agente se serve de um animal para atingir a

vítima".46

Segundo Hans WELZEL agressão “é a ameaça de lesão, mediante uma

ação humana, de interesses vitais juridicamente protegidos (bens jurídicos).

Agressão é, em princípio, um comportamento positivo”47, mas também pode se

consubstanciar por omissões.

Doutrina Santiago Mir PUIG que agressão é o cometimento físico contra

uma pessoa. É também cometimento de ataques a bens imateriais como a

honestidade e a honra. A agressão sofrida não necessita estar consumada, contudo,

não se considera como agressão a tentativa inidônea (disparar com uma pistola

descarregada). Do mesmo modo, para o autor, é imperioso que ocorra

voluntariedade na conduta agressora não excluída por força irresistível,

inconsciência ou atos reflexos, a fim de que ocorra verdadeira agressão48.

No mesmo escólio doutrinário se arrima Juarez CIRINO DOS SANTOS,

atentando que “o conceito de agressão não abrange as chamadas não-ações, nos

casos de lesões a bens jurídicos relacionadas a ataques epilépticos ou estados de

inconsciência, como o sono, desmaio ou embriaguez comatosa (...) porque

movimentos corporais meramente causais não constituem ações humanas”.49

Deve-se observar, entretanto, que a omissão da ação ou os denominados

delitos omissivos por comissão (omissão de ação imprópria), são considerados

como verdadeira agressão, sendo passível nestes casos a atuação em legítima

defesa. Ao agente que cabia realizar a ação por sua posição de garante e não o faz,

por exemplo, deixando de alimentar a mãe idosa impossibilitada de fazê-lo,

exsurgiria a terceiro a possibilidade de atuar em defesa da senhora idosa,

alimentando-a ou forçando o filho a alimentá-la.

Neste sentido Claus ROXIN atenta que:

la legítima defensa frente a una agresión omisiva se puede realizar, o bien obligando al garante a efectuar la actividad que evite el resultado, o bien siendo el propio tercero defensor quien evite el resultado. Por tanto, si una madre deja morir

46 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte Geral .3º ed. Rio de janeiro: Forense, 1993. p. 186.47

WELZEL, H. Obra citada, p.141.48

Cf. PUIG, S. M. Obra citada, p. 425.49 SANTOS, J. C. Obra citada, p.159.

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Page 21: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

de hambre a su hijo, estará justificado por legítima defensa de terceros el sujeto que la obligue con violencia o amenazas a alimentar al niño; pero también quien penetre en la vivienda, deje fuera de combate a la madre que se oponía y alimente él mismo al niño.50

A agressão deve ser também ilegítima, ou seja, antijurídica. Salienta MIR

PUIG que “siendo el dolo o la imprudencia elementos que condicionan el injusto en

nuestro esquema finalista, la agresión ilegítima deberá ser dolosa o imprudente. No

cabrá legítima defensa frente a una agresión en caso fortuito, pues tal agresión no

será antijurídica.51

Hans WELZEL por sua vez atenta que a antijuridicidade deve ser entendida

em sentido não técnico. ”Não precisa ser nem antijurídico-adequado ao tipo, nem

menos culpável por este fato, a legítima defesa é admissível contra uma ameaça de

danos de bens, não dolosa e contra agressões de incapazes de culpa (criança e

enfermos mentais)”.52 Assim difere substancialmente da doutrina de MIR PUIG, pois

entende que a antijuridicidade da agressão deve ser entendida em sentido não

técnico, independente do dolo ou imprudência do agente que a pratica.

No escólio de Nélson HUNGRIA a agressão injusta não necessita constituir

um injusto penal, bastando que seja contrária ao direito in genere. Para o autor, é

injusta a agressão desde que seja ameaçado, sem causa legal, um bem ou

interesse juridicamente tutelado.53

Francisco Muñoz CONDE atenta que a agressão deve necessariamente pôr

em perigo bens juridicamente relevantes para que a legítima defesa seja possível,

assim:

a agresión ha de ser en todo caso 'ilegítima', es decir, antijurídica. Frente a quien actúe lícitamente (por ej. , en legítima defensa o en ejercicio legítimo de un derecho), no cabe hablar de legitima defensa. Pero esta antijuridicidad no debe ser puramente formal, sino material; es decir, debe darse una efectiva puesta en peligro de bienes jurídicos defendibles, que con la agresión estén en verdadero riesgo inminente de ser lesionados.54

50 ROXIN, C. Obra citada, p. 613.51 PUIG, S. M. Obra citada, p. 426.52

WELZEL, Hans. Obra citada, p. 142.53 CF. HUNGRIA, N. Obra citada, p. 287.54 CONDE, Francisco Munhoz; BITENCOURT. Cezar Roberto. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 246.

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Page 22: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

ROXIN afirma que a agressão não é já antijurídica quando somente ameace

provocar um desvalor de resultado, mas sim ao suportar também um desvalor de

ação na conduta.55 Nesta esteira doutrinária se arrima também Juarez CIRINO DOS

SANTOS, atentando que “injusta ou antijurídica é a agressão imotivada ou não

provocada pelo agredido e, neste sentido, marcada pelo desvalor de ação e de

resultado, o que exclui ações justificadas (não há legítima defesa contra legítima

defesa, estado de necessidade ou outras justificações) e ações conformes ao

cuidado objetivo exigido.”56

2.1.2. AGRESSÃO ATUAL OU IMINENTE

Uma agressão pode ser considerada atual enquanto estiver no seu processo

de desenvolvimento. Por conseguinte, exclui-se do conceito de atualidade agressões

pretéritas sofridas e agressões futuras prometidas.

Francisco Munhoz CONDE aduz que para a configuração da legítima defesa

"la agresión ha de ser, además, actual. No cabe, pues, apreciar legítima defensa

cuando la agresión ha cesado. Matar, por ejemplo, al agresor cuando esté huye,

disparándole por la espalda, es un exceso extensivo que impide apreciar la legítima

defensa. En este caso, más que de legítima defensa se puede hablar de un acto de

venganza"57

Aníbal BRUNO explana na mesma linha de cognição que a agressão a fim

de justificar a legítima defesa deve ser atual ou iminente, devendo, portanto:

manifestar-se no momento presente ou estar em termos de manifestação imediata. Não pode justificar a defesa uma agressão já passada nem o perigo de uma agressão futura. Não é vingança ou medo o que explica e legitima a reação, mas a necessidade de defesa urgente e efetiva do bem ameaçado, o que só a agressão atual justifica. Enquanto se mantém a agressão a legítima defesa tem lugar. Mesmo se a lesão já se deu, procede a defesa, se persiste o perigo de que o dano seja continuado ou agravado. Consumada a lesão, isto é, extinto o perigo, já não cabe a defesa como legítima.58

55 ROXIN, C. Obra citada, p. 615.56 SANTOS, J. C. Obra citada p.160.57 CONDE, F. M. BITENCOURT, C. R. Obra citada, p. 248.58 BRUNO, A. Obra citada, p. 378.

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Page 23: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Desta feita a atualidade do ataque condiz com a agressão ainda não

consumada, pois se assim o fosse não seria mais atual, consubstanciando em

verdade vingança privada e não direito.59

A agressão iminente por sua vez é aquela que está em vias de se

desenvolver. Iminente, pois ainda não ocorreu (não é atual), mas que de qualquer

modo não admite demora na repulsa, pois do contrário poderia se tornar inócua.

Configura-se como iminente a agressão que objetivamente se apresenta como uma

ameaça séria aos direitos de outrem ou aos próprios direitos.60

Declina César Roberto BITENCOURT acerca da reação justificadora da

legítima defesa que a mesma:

deve ser imediata à agressão, pois a demora na repulsa descaracteriza o instituto da legítima defesa. Se passou o perigo, deixou de existir, não se pode mais fundamentar a legítima defesa, que se justificaria para eliminá-lo(...) A ação exercida após cessado o perigo caracteriza vingança, que é penalmente reprimida. Igual sorte tem o perigo futuro, que possibilita a utilização de outros meios, inclusive a busca de socorro da autoridade pública.61

Deve-se ter em conta que a agressão iminente não pode caracterizar uma

falácia na mente do agredido, mas sim um perigo concreto de agressão a bens

juridicamente protegidos.62 Se o agente em suas elucubrações mentais entende que

a agressão era iminente, por medo, por exemplo, mas na verdade não existia sequer

59 Nossos Egrégios Tribunais, a título de exemplificação do exposto, já acordaram que “inexiste legítima defesa contra agressão pretérita, derivada de luta corporal já ultrapassada” (TJMG- RO – Rel. Roney Oliveira – j. 26.08.1999 – JM 150/402); que “não há se falar em legítima defesa na conduta daquele que, em momento posterior a injusta provocação, agride a vítima em fuga com golpe de facão” (TJPR – Ap. j. 10.06.1999 – Rel. Oto Luiz Sponholz – RT 771/671); que “não se pode invocar e ter reconhecida em seu favor a discriminante da legítima defesa aquele que muito tempo depois da ofensa recebida vai se armar e parte para o desagravo e a desforra, eliminando o desafeto” (TJDF – AC – Rel. Silva Leme – RT 570/318) e acerca de legítima defesa em ação futura já declinou o Tribunal de Justiça de São Paulo que a “legítima defesa contra ato futuro de agressão é inadmissível em Direito Penal” (TJSP – Rec. – Rel. Onei Raphael – RT 549/316).60 CF. AMERICANO. O. Idin Brasil. Legítima Defesa. Estudo Técnico-Jurídico do Instituto da Legítima Defesa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1949. p. 118.61BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. Vol. 1. 7ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2002, p.262.62 Entendem de modo geral nossos egrégios tribunais que “a atitude da vítima, que antes mesmo de ser perseguida, ante sucessivos procedimentos indignos, em relação ao acusado, chegando até mesmo a iminência de agressão física pessoal, é hipótese que se não oposta violenta repulsa à agressão iminente, sem dúvida acarretaria agressão sucessiva, efetiva e atual. Caso típico de legítima defesa real”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Fortes Barbosa – JUTACRIM 84/362), e que “não é concebível legítima defesa sem a certeza do perigo e que esta só existe, só pode existir, em face de uma agressão imediata, isto é, em que o perigo se apresenta ictu oculi como realidade objetiva. O perigo de uma agressão futura, por mais verossímil, não passa de uma hipótese, com a qual não pode cooperar o instituto da legítima defesa “. (TJSP – AC – Rel. Márcio Boninha – RT 486/292)”.

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Page 24: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

agressão, não agirá o agente em legítima defesa real, mas em um estado de erro

que poderá caracterizar a legítima defesa putativa.63

Assim, "se o dano ainda não está realizado, mas se apresenta como perigo

atual ou iminente, cabe a legítima defesa, a reação que busque evitar a lesão do

bem jurídico. Mas se esta já se produziu, não se pode mais falar em defesa, mas em

vingança, e então já não se aplica a isenção de crime”.64

Afere HUNGRIA nestes termos que a reação é, “em qualquer hipótese,

preventiva: preventiva do começo de ofensa ou preventiva de ofensa maior. Não é,

assim, admissível legítima defesa contra uma agressão que já cessou, ou contra

uma agressão futura, ou contra uma simples ameaça desacompanhada de perigo

concreto e imediato”.65

2.1.3. DOS BENS DEFENSÁVEIS (DIREITO PRÓPRIO OU ALHEIO)

A legítima defesa poderá ser exercida nos termos do artigo 25 do Código

Penal quando seu autor objetivar a defesa de um direito próprio ou de terceiro. De

tal sorte, constata-se que a defesa legítima tem como escopo a tutela de bens

jurídicos individuais, como a vida, a liberdade, a honra, a saúde, a liberdade, a

propriedade etc., entendendo alguns autores, não obstante, que bens jurídicos da

comunidade, como a tranqüilidade e a ordem pública, seriam insusceptíveis de

legítima defesa.

Acerca do tema salienta WELSEL que todo bem jurídico é defensável e não

somente os penalmente reconhecidos. Assim, indica dentre os possíveis bens

susceptíveis de legítima defesa, o corpo, a vida, a liberdade, a honra, o

compromisso matrimonial, a propriedade e a posse.66

No mesmo escólio doutrinário se arrima MAURACH, atentando que “todo

interés jurídicamente reconocido puede ser objetivo de legítima defensa. Es

irrelevante que tenga o no el carácter de bien jurídico penalmente protegido, como,

por exemplo, la facultad de uso común de una superficie de estacionamiento”. 67

63 CF. TOLEDO, F. de A. Obra citada, p.195.64 BRUNO, A. Obra citada, p. 379.65 HUNGRIA, N. Obra citada, p. 283.66 Cf. WELZEL, H. Obra citada, p.141.67 MAURACH, R. Obra citada, p. 442.

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Page 25: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

JAKOBS, inclusive, corrobora tais entendimentos afirmando que o sentido de

bens susceptíveis de defesa está compreendido muito além dos bens jurídicos

penalmente protegidos. Assim, para ele, todo bem juridicamente protegido,

configurado absolutamente é amparado e apto de defesa.68

Neste sentido também se inclina ROXIN ao afirmar que “en principio son

legítimamente defendibles todos los bienes jurídicos individuales, o sea vida, salud,

libertad, propiedad, custodia, honor, derecho sobre la morada. A este aspecto no es

preciso que los bienes estén protegidos jurídicopenalmente para que sean

susceptibles de legítima defensa.”69 Todavia, acautela o autor não ser possível a

defesa de bens jurídicos da comunidade, visto que:

es ciertamente que la legítima defensa también sirve para el prevalecimiento del Derecho, es dicir, para la protección de la comunidad; pero sólo lo hace allí donde simultáneamente se ha de proteger un bien jurídico individual. Al orden social pacífico le produciría más perjuicio que beneficio que cada ciudadano lo pudiera defender violentamente aunque no haya ningún particular que necesite protección; pues en ese caso, ante cada violación del Derecho real o imaginaria se podrían producir escenas de lucha que son precisamente las que el Estado quiere evitar estableciendo ‘guardianes del orden’ específicos(la policía).70

Consoante teoriza Nelson HUNGRIA, o vocábulo direito tem sentido amplo,

abrangendo todo bem ou interesse juridicamente garantido, seja ele inerente à

pessoa ao não.71 Deste modo, afirma num rol meramente exemplificativo, que seriam

susceptíveis de legítima defesa, a vida, a integridade corpórea, a honra, o pudor, a

liberdade pessoal, a tranqüilidade domiciliar, o patrimônio, o segredo epistolar, o

pátrio poder etc. E conclui deduzindo que ”todo direito é inviolável e nenhum,

portanto, pode ser excluído da área da legítima defesa. Também aqui, não se

68 Cf. JAKOBS, G. Obra citada, p. 458.69 ROXIN, C. Obra citada. p. 623.70 ROXIN, C. Idem, p. 625.71 HUNGRIA, N. Obra citada, p. 288. No mesmo escopo doutrinário nossos egrégios tribunais têm entendido que “o direito tutelado pela lei - artigo 21 do CP (atual 25) tem sentido amplo, compreendendo todo e qualquer bem ou interesse juridicamente assegurado, seja ou não, inerente à pessoa – vida, integridade corporal, honra, pudor, liberdade pessoal, tranqüilidade domiciliar, patrimônio, segredo epistolar, pátrio poder etc.” (TACRIM-SP – AC – Rel. Ítalo Galli – RT 412/282) e, ainda que “todos os direitos merecem proteção” (TACRIM – SP – AC – Rel. Francis Davis – JUTACRIM 8/161). Entretanto, já se decidiu que “só os direitos suscetíveis de ofensa material podem ser protegidos pela excludente do artigo 25 do código penal . Não cabe, assim a justificativa da legítima defesa no delito de difamação” (TACRIM – SP – AC – Rel. Prestes Barra – RT 378/233).

25

Page 26: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

selecionam tais ou quais direitos, com exclusão de outros: o mais humilde dos

direitos não pode ficar à mercê de injusto ataque”.72

2.2 A AÇÃO DEFENSIVA DO AGREDIDO

A defesa é individualmente um reflexo da agressão. É o golpe de retorno, o

contra ataque do agredido em desfavor da ofensa causada pelo agressor.

Entretanto, a intervenção do agente que pratica a defesa legítima deverá se pautar

nos limites da moderação e da necessidade dos meios escolhidos. O agente deve

ter consciência da situação justificante em que se encontra, tendo em vista que o

animus de defesa é o elemento que distingue ações justificadas de ações injustas

sofridas.73

2.2.1 USO MODERADO DOS MEIOS NECESSÁRIOS

A legítima defesa só configurar-se-á se a ação perpetrada advier do

emprego moderado dos meios necessários. Este meio necessário deverá ser

observado levando em conta a força real da agressão sofrida, sob o ponto de vista

do agredido e não do agressor.74

Doutrina WELSEL que a necessidade do meio independe de uma

proporcionalidade entre o bem agredido e a conseqüente lesão necessária para sua

proteção. Desta forma afirma que “se um tiro à longa distância é a defesa

necessária, então está justificada”. Entretanto atenta que “o direito de legítima

defesa deve ter seu limite, onde a gravidade da lesão seja socialmente intolerável,

em relação com a irrelevância da agressão; por exemplo, na morte do agressor por

roubo de um pedaço de pão”.75

Nesta linha doutrinária MAURACH afirma que “la defensa necesaria se

determina según el conjunto de las circunstancias del caso particular bajo las cuales

se desarrollan la agresión y la defensa; especial trascendencia tienen la fuerza y

peligrosidad del agresor, así como los medios de ataque utilizados por él y las

posibilidades de defensa del afectado.”76

72 HUNGRIA, N. Idem, p. 289.73 SANTOS, J. C. Obra citada, p.144.74 CF WELZEL, H. Obra citada, p. 143.75 WELZEL, H. Idem, ibidem. 76 MAURACH, R. Obra citada, p. 450.

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Page 27: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Günther JAKOBS, por sua vez, acerca da utilização dos meios necessários

na legítima defesa atenta que:

el defensor sólo está justificado cuando elige de entre los medios apropiados para la defensa, el que comporta la perdida mínima para el agresor (...) La defensa permitida no se corresponde fijamente con una agresión determinada, sino que depende de la fortaleza de autor y víctima, de las perspectivas de resultado y de los medios defensivos disponibles, en cuyo empleo la defensa necesaria puede ser distinta a igualdad de agresión por lo demás.77

Assim, para o autor, em uma situação de legítima defesa a

proporcionalidade entre o meio defensivo e a agressão sofrida se tornam

relativizadas, tendo em conta que cabe àquele que sofreu a injusta agressão a

escolha dos meios mais apropriados para efetivar concretamente sua defesa. No

entanto, esta escolha que surge àquele que vai se defender encontra limites na

própria ação injusta sofrida. O indivíduo que age sob o pálio da legítima defesa deve

escolher os meios adequados para se defender, mas dentre eles, deve dar primazia

àqueles que comportem ao agressor a menor perda a seus bens jurídicos.

Afirma ROXIN de igual modo que a necessidade da defesa não está

vinculada com a proporcionalidade entre o dano causado e o dano que é impedido.

Deste modo declina como exemplo que quem só pode escapar de uma surra

apunhalando o agressor, exerce a defesa necessária e está justificado pela legítima

defesa mesmo que a lesão do bem jurídico causado com o homicídio seja muito

mais grave que a que se poderia produzir com a surra. Dá como exemplo ainda, que

pode ser necessário disparar contra o ladrão que foge, se este é o único meio para

preservar a propriedade.78

O uso moderado dos meios, por sua vez, diz respeito à “intensidade dada

pelo agente no emprego dos meios de defesa.”79 Está nitidamente coligado com a

“violência” empregada para contra atacar o agressor, tanto no uso de ameaças

verbais, como no cometimento de ferimentos não mortais ou até mesmo em atos

finais de supressão do bem jurídico tutelado.

Para Francisco de Assis TOLEDO ”o requisito da moderação exige que

aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do

77JAKOBS, G. Obra citada, p. 472.7880Cf. ROXIN, C. Obra citada, p. 632.79 TOLEDO, F. Obra citada, p. 204.

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Page 28: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão”.80 De tal

sorte, leciona como pressuposto básico à legítima defesa, a ponderação entre a

ação de defesa com a do ataque sofrido, frisando que a atuação defensiva não pode

aviltar-se para além do necessário ao impedimento da agressão.

Aníbal BRUNO aduz que em geral:

a medida da repulsa é a violência da agressão, mas na proporcionalidade entre o ataque e a defesa, não se pode deixar de tomar em consideração o valor do bem ameaçado, as circunstancias em que atua o agente e os meios de que no momento podia dispor. Mas, afinal, o que o Direito permite ou mesmo requer é que o bem seja definido por todos os meios que as circunstâncias apresentem como necessários, empregados, porém, esses meios com a devida moderação.81 De tal sorte, a moderação demandada na reação equivale à

proporcionalidade entre os dois termos do binômio – ofensa e defesa – ou seja, a

reação individual não deve ser abstrata, discricionária, muito menos um ato de

vingança. Deverá por outro lado, na medida do plausível, ser proporcional ao

ataque, condizente com as circunstâncias fáticas e emocionais que o agredido

estava envolto no ato extremo.

Cumpre salientar que a verificação da proporcionalidade do ato de agressão

para com o ato defensivo, consoante nos ensina Nelson HUNGRIA, deve ser

realizada objetivamente, caso a caso, pois:

não se trata de pesagem em balança de farmácia, mas de uma aferição ajustada às condições de fato do caso vertente. Não se pode exigir uma perfeita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão, desde que o necessário meio empregado tinha de acarretar, por si mesmo, inevitavelmente, o rompimento da dita equação.82

80 TOLEDO, F. Idem, ibiden. 81 BRUNO, A. Obra citada, p. 380.82 HUNGRIA, N. Obra citada, p. 291. Ademais nossos egrégios tribunais se coadunam com o pensamento doutrinário, onde vemos que “tratando-se de legítima defesa, desnecessária é a precisa proporcionalidade no revide à agressão injusta, visto que é incabível a exigência que o agente em tal instante dramático tenha ânimo calmo e refletido para medir arimeticamente a sua reação em relação ao ataque, usando moderadamente os meios necessários, mormemente na hipótese em que o meio empregado era único existente no momento que tornava possível a repulsa violência”(TJSP – Rec. – j. 08.11.1999 – Rel. Oliveira Passos – RT 774/568). Além do mais, já se decidiu que para extrair-se o conceito de moderação na legítima defesa, é imprescindível ater-se ao homem e às circunstâncias que o rodeiam? e que “não se pode pretender aja o agente da legítima defesa com matemática proporcionalidade. Defesa própria é um ato instintivo, reflexo. Ante a temibilidade do agressor e o inopinado da agressão, não pode o agredido ter reflexão precisa para dispor sua defesa em equipotência com o ataque” (TJSP – RT 698/333).

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Page 29: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Razão assiste deste modo à afirmação de que um meio que numa primeira

impressão poderia parecer excessivo ante o alarido da situação, não se configuraria

como tal, quando as circunstâncias fáticas evidenciassem sua necessidade no caso

in concreto. Assim, quando um sujeito franzino se defende com uma arma de fogo

em face de um agressor desarmado, mas de porte muito mais avantajado, não fica

suprimida a defesa legítima83, pois no caso concreto, este era o único meio

disponível e eficaz para rechaçar a agressão.

Questão relevante vem à tona quando a reação defensiva extrapola os

limites legais da legítima defesa estabelecidos para a justificante. Em tais casos

estaremos na seara do excesso na legítima defesa, pois quando a reação dolosa ou

culposamente extrapolar os limites legais estabelecidos ou quando for dispensável o

meio defensivo selecionado (pois poderia ter o agente selecionado outro meio

também eficaz para interromper a ação), ou porque mesmo escolhendo o meio

necessário não os usou moderadamente para obstruir a agressão, vê-se que a

legítima defesa não mais subsistirá, ocasionado àquele que num primeiro momento

laborou defensivamente, a punição. Todavia, a questão do excesso será analisada

no capítulo a seguir.

2.2.2 ELEMENTOS SUBJETIVOS (animus defendendi)

Verifica-se hodiernamente que a questão acerca da existência ou não de

elementos subjetivos nas causas de justificação não encontra solução jurídica

pacífica, entendendo alguns doutrinadores por sua existência84 e outros por sua

desnecessidade.85

83 HUNGRIA, N. Idem, ibidem.84CF. TOLEDO. F. A. Princípios Básicos de Direito Penal. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 205; SANTOS. J. C. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p.135; PRADO. L R. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte geral. 2ª ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2000, p.252; MAURACH. R. Derecho penal parte general 1. 7ª .ed. Buenos Aires: Astrea, 1994. p. 448; WELZEL, H. Direito Penal, traduzido por Afonso Celso Rezende, 1ª ed. Campinas: Romana, 2003, p. 142.85CF. ROXIN, C. Derecho Penal Parte General, Tomo 1: Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Tradução e notas, Diego Manuel Lúzon Peña, Miguel Dias e Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2ªed. Madrid: Civitas, 1997. p.667; ZAFFARONI, E.R; PIERANGELI, J.E, Manual de Direito Penal Brasileiro,Parte Geral. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.386.

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Page 30: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Integrante do primeiro grupo, afirma WELSEL que a ação de justificação

deve ser realizada para o fim de defesa. Assim, para ele, não há legítima defesa se

o autor quis lesionar, e com isso, sem ter a idéia, rechaça a agressão do outro.

Atenta na mesma glosa doutrinária Santiago Mir PUIG, afirmando que em

grande parte ao finalismo, a existência de elementos subjetivos nas causas de

justificação se torna imperiosa. E conclui que se somando a tais elementos

subjetivos, ainda devem ser observados os elementos objetivos da justificação.

Desta forma, os pressupostos objetivos devem ser conhecidos e queridos pelo autor

do mesmo modo que o tipo precisa do dolo, pois “para la estimación plena de las

distintas causas de justificação el código penal exige que los presupostos objetivos

de tales causas de justificación sean conocidas y queridas por el autor, del mismo

modo que en el tipo positivo es preciso el dolo”.86

Nesta linha de cognição já decidiu o Tribunal de Justiça da Bahia que “a

legítima defesa somente justifica as ações defensivas necessárias para afastar uma

agressão antijurídica de forma menos lesiva o possível para o agressor. A

necessidade deve ser considerada de acordo com as circunstâncias fáticas em que

a ação e reação se desenvolvem. O animus defendendi é elemento estrutural do

conceito de legítima defesa. Por isso, não o apresenta quem, irrogando-se uma falsa

representação, mata outrem a tires de revólver, pelas costas.” (RT 594/385)

Em percepção diversa aduz ROXIN que é necessário somente o

conhecimento da situação defensiva para restar caracterizada a legítima defesa,

mas que não é preciso posterior animus defensivo para sua manutenção, assim “en

consecuencia, para que el defensor esté justificado ha de actuar con conocimiento

de la situación de la legítima defensa; pero en cambio, no es necesaria una ulterior

voluntad de defensa en el sentido de que el sujeto tenga que estar motivado por su

interés en la defensa (y no, p. Ej., por cólera o por la intención de dañar al agresor.87

Assim já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao acordar seus

desembargadores que “no sistema do Código Penal, basta a presença concreta do

perigo para que surja, sem qualquer outra indagação, a necessidade da legítima

defesa. A existência desta ajuíza-se pela situação externa, meramente objetiva, e

86 PUIG, S. M. Obra citada, p. 413.87CF. ROXIN, C. Obra citada, p. 667.

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Page 31: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

não pela íntima posição do agente, independendo, pois, de elemento subjetivo” (RT

589/295).

CAPÍTULO IVO EXCESSO NA LEGÍTIMA DEFESA

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

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Page 32: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Consoante declina o artigo 23, parágrafo único do Código Penal pátrio, se o

agente exceder os limites da causa de justificação responderá pelo excesso

causado, seja ele doloso ou culposo.

Nos capítulos supra declinados, aduziu-se sucintamente os limites impostos

pelo ordenamento jurídico pátrio no tocante à atuação em legítima defesa. Observa-

se agora que tais limites se mostram imperiosos a fim de determinar concretamente

se o agente realmente laborou em legítima defesa ou se por razão diversa excedeu

seus limites.

Deve-se ter em conta que somente poderá ocorrer um excesso na

justificação defensiva, quando num primeiro momento se fizerem presentes os

elementos constantes da justificação, assim, “quando se fala em excesso de legítima

defesa, pressupõe-se evidente que houve legitima defesa, e que o agredido, por

uma circunstância qualquer, ultrapassou a legítima defesa para praticar um ato

substancialmente diverso do inicial”.88 De tal sorte, poderá caracterizar um excesso

na legítima defesa o ato do agente que podendo escolher um meio menos prejudicial

ou usar moderadamente do mesmo, não o faz, mesmo quando estiver ante uma

agressão injusta, atual ou iminente a direito próprio ou alheio.

Aduz AMERICANO que:

quando conceituamos o excesso, verificamos que ele é um prolongamento da legítima defesa. Encerrado o ciclo natural da legítima defesa, o agredido dá mais um passo e se transforma em agressor. A sua ação não se altera na causa, porém no efeito. A natureza do excesso é a mesma da agressão, pois que quebrando a proporção da defesa, com a agressão se identifica o ato inicialmente defensivo. E assim um mal ou prejuízo, uma diminuição do interesse protegido ou do bem jurídico.89

Entretanto, cumpre distinguir se o agredido in concreto: a) excedeu-se de

forma deliberada no atuar, com o animus livre e consciente de infligir ao agressor

maior lesão ou potencialidade de lesão a seus bens jurídicos, caracterizando tal ato

um excesso doloso; b) se o agredido avaliou mal a situação concreta em que se

encontrava, exorbitando, por exemplo, na escolha dos meios necessários para a

defesa, caracterizando tal ato um excesso culposo90; c) se o excesso na legítima

88 AMERICANO. O. I. B. Obra citada, p. 118. 89 AMERICANO. O. I. B. Idem, p. 119.90 CF. HUNGRIA. N. Obra citada, p. 294.

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Page 33: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

reação teve sua gênese tendo em conta fatores psicológicos, notadamente nos

denominados elementos astênicos91, como medo, perturbação, susto, surpresa; ou

d) se o excesso ocorreu por um caso fortuito, evento inopinado e imprevisto à esfera

de cognição do agredido.

Desta forma, levando em consideração tais fatores que se amalgamam em

elementos subjetivos e objetivos, poderemos aduzir a conseqüente

responsabilização do agredido.

Constatando-se que laborou com dolo no excesso, será responsabilizado

pelo delito correspondente à atuação dolosa. Verificando-se, tendo em vista a teoria

limitada da culpabilidade, que o agente avaliou mal a conjectura em que se

encontrava incorrendo em um erro de tipo permissivo, inescusável ou escusável,

responderá pelo excesso a título de crime culposo ou restará isento de

responsabilidade.92 Advindo, por sua vez, o excesso por fatores psicológicos

astênicos, não poderá ser censurável ao autor tal ato, devendo ser exculpado por

ausência de culpabilidade. E finalmente não será responsabilizado por caso fortuito,

ante a ausência absoluta de culpabilidade.

1.1 O EXCESSO DOLOSO

Partindo-se do pressuposto que o dolo consubstancia a vontade livre e

consciente de realizar os elementos constantes do tipo penal, tem-se que o excesso

a fim de ser considerado doloso tem de estar inserido no aparelho cognitivo e volitivo

do agente, correspondentes na consciência do fato praticado e na vontade de

produção do resultado lesivo a bens jurídicos tutelados.

Assim, o excesso doloso nas palavras de LINHARES:

corresponde à intenção de infligir ao adversário um mal supérfluo, dada a evidente desproporção entre ação defensiva e a ofensiva, evidenciando-se ostensivamente, porque, se é certo que há, no processo doloso, de início um processo defensivo, concluir-se-á, pela conduta do agredido, achar-se o mesmo associado a um propósito delituoso, obedecendo à consciência de produzir um mal desnecessário à remoção do perigo.93

91 Elementos astênicos: medo, perturbação, susto, surpresa. Diferem dos denominados elementos estênicos: ódio, excitação, ciúme, inveja. Os primeiros tendem a tornar o excesso escusável os os estênicos não.92 CF. HUNGRIA. Obra citada, p. 294.93 LINHARES, M. J. Obra citada, p. 394.

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Page 34: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

O dolo no excesso pode ser apreendido levando-se em consideração a

situação concreta da agressão e da defesa. A escolha dos meios defensivos que

dispunha o atacado no momento da agressão e o modo pelo qual os lançou mão

pode nos indicar se a reação foi ou não desproporcional e, por conseguinte, qual foi

o animus do agente na situação concreta.

Pari pasu, cabe indagar se o meio empregado foi utilizado com a devida

proporcionalidade, tendo sempre em conta a agressão sofrida e as circunstâncias

em que se encontrou o defensor ao ser agredido. Todavia, deve-se atentar que se o

meio empregado era o único disponível para rechaçar a agressão, não fica excluída

a moderação ou proporcionalidade na defesa, ainda que infrinja um dano superior ao

que era protegido 94.

Para Francisco de Assis TOLEDO o excesso doloso se forma quando o

agente ao se defender de uma agressão injusta, emprega um meio desproporcional

e dispensável (por exemplo, uma pessoa ao receber um tapa mata a tiros o

agressor). Ou ainda quando age com imoderação (quando o agredido depois de

efetuar o primeiro tiro ferindo e imobilizando o agressor, continua desferindo tiros até

sua morte).95 Declina o autor que:

esse excesso, que como se viu pode ser de variada natureza será doloso quando o agente consciente e deliberadamente vale-se da situação vantajosa de defesa em que se encontra para, desnecessariamente, infringir uma lesão mais grave do que a necessária e possível impelido por motivos alheios à legítima defesa (ódio, vingança, perversidade e assim por diante).96

Por sua vez Altayr VENZON entende “por excesso doloso o fato de alguém

que, defendendo-se inicialmente, utiliza a legítima defesa, para agredir a pessoa que

tomou a iniciativa da agressão. Trata-se de emprego dos meios de defesa que

podem ser configurados quer por sua escolha, quer por sua utilização”.97 Deste

modo, ensina o autor que se o agredido escolhe conscientemente meios que “por

seu tamanho, força, potência, intensidade, profundidade, peso, natureza - podem ser

94 CF. HUNGRIA, N. Obra citada, p. 290.95 CF. TOLEDO, F. A. Obra citada, p. 208/209.96 TOLEDO, F. A. Idem, ibidem. Tais dimensões emocionais (ódio, ira, vingança, ciúme, inveja) são denominadas pela doutrina majoritária como aspectos emocionais estênicos. Estes elementos, quando presentes na conduta do agente, diversamente dos elementos astênicos que podem exculpar o excesso, não têm tal condão e, ainda, podem até mesmo qualificar ou agravar o delito.97 VENZON. Altair. Excesso na legítima defesa. Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 65.

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Page 35: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

desproporcionais ao ataque e, na opção, despreza outro que poderia ser menos

prejudicial”98, laborará em excesso, devendo responder pelo delito praticado em sua

forma dolosa.

Abordando a matéria, doutrina Damásio E. de JESUS que:

no excesso doloso, o sujeito tem consciência após ter agido licitamente da desnecessidade de sua conduta. Ele pressupõe tenha o agente, numa primeira fase, agido acobertado por uma discriminante. Numa segunda, consciente de que, p. ex., a agressão injusta ou a situação de perigo cessou, continua agindo, neste caso ilicitamente. O excesso intencional leva o sujeito a responder pelo fato praticado durante ele a título de dolo.99

Nada diverso do preceituado por Giuseppe BETTIOL, para quem “o excesso

doloso ocorre quando, com plena consciência dos limites dentro dos quais se é

autorizado a agir, estes são intencionalmente superados. Não há dúvida de que,

nesta hipótese, o agente deve ser chamado a responder pelo mais que consciente e

voluntariamente ocasionou”.100

Assim, pouco importa o estado inicial de legítima defesa que se encontrava

o agredido ao sofrer a ofensiva. Se a agressão à sua pessoa era injusta e atual, mas

se apesar disso obrou conscientemente no excesso querendo um resultado mais

danoso que o exigível para o caso concreto, agiu inequivocamente com dolo.

Desta forma, ocorreria o excesso doloso, por exemplo, quando o agressor já

impossibilitado de atacar, prostrado ao chão devido à primeira investida defensiva do

agredido, continua a receber golpes, exorbitando o agredido conscientemente na

moderação necessária para repelir a injusta agressão. De igual modo, ocorreria o

excesso doloso no caso de uma criança que dá socos e pontapés em um adulto e

este reage, por sua vez, dando-lhe uma facada no peito, matando-o. Assim o fez

porque sem dúvida deseja matar seu agressor ou no mínimo pôr em risco sua vida,

devendo responder por homicídio doloso devido a desproporção patente dos meios

escolhidos e pelo uso imoderado dos mesmos.101

98 VENZON. A. Idem, p. 56.99 JESUS, D. E. Obra citada, p. 360.100 BETTIOL. G. Diritto Penale, p. 398, 12ª ed., 1986. apud Código penal e sua interpretação jurisprudencial. Vol 1. Parte Geral. Cordenação STOCO. A. S. F. R. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 370.101 Nossos egrégios tribunais têm acordado que o excesso doloso desconfigura a legítima defesa quando ocorrer uma desproporção na repulsa defensiva.E de igual modo que o “exercício da auto-defesa é condicionado a uma série de requisitos. Dentre eles, o da moderação de meios. É suficiente

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Page 36: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

Os doutrinadores são unânimes ao afirmar que o resultado advindo do

excesso doloso é imputado ao seu autor a título de crime doloso. Assim, “não se

leva em conta, nesta hipótese, o estado inicial de legítima defesa. Pode ser

reconhecida, contudo, a circunstância atenuante do inciso III, letra c, in fine do artigo

65 do Código Penal, ou seja, ausência de provocação por parte do autor. Ausente,

entretanto, o requisito da moderação, desconstitui-se a legítima defesa e,

conseqüentemente ocorre a punição a título de dolo”.102

De tal sorte, consoante o melhor entendimento doutrinário e jurisprudencial,

o agente pode se exceder na legítima defesa tanto pelo uso imoderado dos meios

disponíveis, quanto pela utilização de meios desnecessários para a repulsa. Assim

sendo, negado pelos conselho de sentença um destes quesitos ou ambos, deverá o

juiz presidente submeter os jurados ainda aos quesitos do excesso doloso e, se este

for negado, ao quesito referente ao excesso culposo, sob pena de nulidade do

julgamento.

1.2 O EXCESSO CULPOSO

O excesso culposo é aquele derivado de um erro de percepção do agredido,

que valora mal a situação concreta da agressão e acaba por exceder os limites

impostos para a atuação em legítima defesa.

Nas palavras de CARRARA o excesso culposo ocorre com “aquele que,

iludido sobre a gravidade e sobre a inevitabilidade do próprio perigo, mata e fere,

não possui a vontade, não possui a consciência de delinqüir. Não se acha, pois, em

dolo, porque não conhece a contradição do seu ato e a lei. Pode-se reprovar-lhe um

erro de cálculo, uma precipitação,e, assim, o que constitui a culpa.”103

Entende o autor, portanto, que o indivíduo que avalia mal uma situação

concreta e erra na sua atuação, incidirá em culpa e não dolo. Assim, o ato não

um golpe para impedir a continuidade do ataque injusto, a continuação do reagir não pode mais ser considerada excesso culposo, senão explícito dolo subsequente a início de legítima defesa (TJSP – AC – 108.968 – 3/5 – Rel. Renato Nalini). E de que “alegada a legítima defesa, ainda quando os jurados responderem negativamente ao quesito sobre o uso dos meios necessários, é obrigatória, sob pena de nulidade do julgamento, a formulação dos quesitos sobre a moderação e o elemento subjetivo do excesso. Precedentes (STJ – HC – Rel Assis Toledo – RT 721/538).102 VENZON. A. Obra citada, p.56.103 CARRARA, F. Programa do Curso de direito criminal. Parte geral. Vol. 1 São Paulo: Saraiva, 1956, § 301. p. 223.

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Page 37: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

poderá ser punido se o erro foi escusável (invencível), respondendo a título de culpa

se o erro for inescusável (vencível).104

Da mesma forma Nelson HUNGRIA aduz que o excesso culposo ocorre

quando o agente não quis o excesso, advindo este resultado por um erro de cálculo

quanto à gravidade do perigo ou quanto do modus da reação. Desta forma, afirma

que para a identificação do excesso culposo devem ser apreciadas, no seu conjunto,

as circunstâncias objetivas e subjetivas do caso concreto.105

Para Francisco de Assis TOLEDO o excesso culposo é aquele resultante de

uma imprudente falta de contenção por parte do agente, quando tal fato era possível

nas circunstâncias, a fim de se evitar um resultado mais grave do que o

indispensável à tutela do bem.106

Doutrina o autor que se caracterizará o excesso culposo, primeiramente,

quando o agente esteja em uma situação de reconhecida legítima defesa. Então, ou

na escolha dos meios de reação ou no modo imoderado de utiliza-los, age imbuído

por culpa estrito sensu. Por fim, atenta que o resultado ocasionado pela reação do

agente deve estar tipificado como crime culposo.107

Jardim LINHARES apreende que o excesso culposo não deve ser nem

consciente, nem voluntário, pois se assim o for se cuidará de excesso doloso e não

de excesso culposo. De tal sorte, quando o agredido errar na avaliação da gravidade

do perigo ou se exceder no emprego dos meios reclamados pela necessidade,

mesmo substituindo a causa de legitimação ou de justificação, falar-se-á de excesso

se faltar a proporção entre a necessidade e o comportamento a esta imposto108. Para

o autor:

a culpa no excesso consiste nesse erro de avaliação da necessidade de defender-se, erro que, a seu turno, leva como conseqüência os preparativos dos meios de defesa excessivos em ralação à entidade do perigo. O indivíduo conhece todos os

104 CARRARA, F. Idem, p. 222. “Seria injusto reprovar a alguém o não ter feito coisa que era inepta a salva-lo, ou da qual ele não podia conhecer a utilidade. O moderamen deve sempre medir-se segundo a opinião razoável de quem se viu ameaçado em sua vida; não segundo aquilo de que, com frio cálculo e maduro exame, tomou conhecimento o juiz. Se o erro foi grosseiro e inescusável, haverá precipitação e imprudência; se foi uma credulidade razoável e escusável, não haverá sequer culpa. Mas em ambos os casos, aquele que errou no calculo do perigo e dos meios para a própria salvação, agiu com a consciência de praticar ato legítimo, e jamais se poderá imputar-lhe dolo.” 105 CF. HUNGRIA, N. Obra citada, p. 294.106 CF. TOLEDO, F. A. Obra citada, p. 208.107 TOLEDO, F. A. Idem, p. 209.108 CF. LINHARES M. J. Obra citada, p.389.

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Page 38: MONOGRAFIA LEGÍTIMA DEFESA

dados da realidade fenomênica, mas excede porque a causa de excessiva precipitação atribui ao próprio comportamento aquela característica de conformidade com o direito que subsiste só ao fim de um certo limite: acha-se em erro sobre a legalidade da própria conduta.109

Desta forma, devemos ter em mente que o agente não só prevê o resultado

contrário ao ordenamento jurídico, como igualmente quer seus efeitos. Contudo, tal

fato deve ser imputado à sua pessoa tendo em conta o erro de avaliação das

circunstâncias fáticas concretas, que ocorrem, por exemplo, quando o agente supõe

erroneamente que pelo tamanho avantajado do agressor, somente um tiro não será

suficiente para fazer cessar a agressão. Assim, dispara três, quatro, cinco vezes

sobre seu algoz, exorbitando os limites da legítima defesa, de forma dolosa, mas

que devido ao erro de tipo permissivo inescusável (vencível) de percepção que

incorreu, deve ser atribuído ao agente como crime culposo.110

Interessante lição acerca do excesso culposo na legítima defesa nos traz o

Desembargador Amorin Lima, asseverando que:

é indiscutível que o terror, o arrebatamento e a obcecação momentâneas são modalidades do fenômeno psicológico da emoção. E a emoção, mesmo violenta, no sistema repressivo do código, não exclui a imputabilidade. Logo, se o excesso tiver como antecedente causal esses estados emotivos, haverá culpa, porque, muito embora envolvida por circunstâncias impeditivas de sua expansão completa, a vontade ainda tem livre um certo campo de ação, pode ser frenada pela previsão do resultado excessivo da repulsa.111

De tal sorte, para o desembargador, quando o excesso advir de elementos

emocionais astênicos, terá como conseqüente causal a geração de um excesso

culposo e não doloso. Assim, na ótica do desembargador, um indivíduo que é

atacado injustamente e se exceder na repulsa devido a grande emoção que lhe

arrebatar, deverá ser punido a título de culpa, visto que tal emoção lhe obscurece a

vontade para atuar dolosamente, deixando, contudo, certo campo de ação para frear

seu comportamento e prever o resultado que lhe será imputado a título culposo.

Data vênia, em que pese o circunspeto entendimento, a verdade é que os

elementos emocionais nem sempre estão eqüidistantes dos elementos subjetivos do

tipo, notadamente do dolo. O agente que tem como antecedente causal um

109 LINHARES, M. J. Idem, ibidem.110 O erro inescusável ao autor verificável no caso concreto é aquele erro que poderia ser evitado com a devida atenção, ponderação, perspicácia ou diligência. 111 Anais do 1º congresso nacional do ministério Público, São Paulo, vol. III, p. 142. apud VENZON. A. Excesso na legítima defesa. Porto Alegre: Fabris, 1989. p.62.

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elemento emotivo (agente atacado de surpresa, causando-lhe tal fato violenta

emoção) poderá atuar com dolo no excesso e não somente com culpa. E mais,

dependendo das circunstâncias concretas, poderá ter sua conduta exculpada tendo

em vista a não reprovabilidade da reação pela inexigibilidade de conduta diversa

ocasionada pelos elementos emocionais.

Destarte, concluímos do exposto que o excesso culposo deriva de um ato

intencional do agente, constituindo em sua natureza intrínseca um elemento doloso.

O excesso querido pelo agente ocorre, consoante se aduziu, por uma errônea

representação da realidade, mas este fato não se constitui suficiente para suprimir

do agente sua vontade livre e intencional de praticar o ato querido no plus defensivo.

Assim, devemos ter em mente que no ordenamento jurídico brasileiro o

excesso da defesa quando advindo de um erro sobre algum dos pressupostos da

causa de justificação, deverá ser tratado como um erro de tipo permissivo. Tal fato

se verifica da leitura do artigo 20, § 1 do Código Penal112, tendente a afastar a

culpabilidade dolosa e a culposa se o erro se mostrar inevitável na situação in

concreto e somente o dolo se for evitável.

1.2.1 NATUREZA JURÍDICA DO EXCESSO CULPOSO

A questão do erro nas causas de justificação se mostra atualmente um dos

assuntos mais debatidos da teoria do delito, sobretudo no modo de analisar a

representação dos pressupostos objetivos das causas justificativas.

Consoante a teoria adotada para a abordagem do problema do erro,

teremos concepções e aplicações diversas na teoria do delito, colimando em

respostas na maior parte das vezes díspares umas das outras.

Adotada a teoria dos elementos negativos do tipo, que conjuga em seus

delineamentos as causas justificativas como elementos contrapostos (negativos) dos

tipos legais (positivos), consubstanciando verdadeiras causas típicas de justificação,

derradeiro tipo total de injusto, a suposição equivocada de uma circunstância

justificante é um erro de tipo que exclui o dolo e permite a punição por delito

112 Erro sobre elementos do tipo. Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. Discriminantes putativas. § 1º. É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

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culposo.113 Assim, uma vez que o erro incide sobre um pressuposto da causa

justificante e esta por sua vez é considerada um elemento contraposto ao tipo

positivo; tal qual o erro de tipo, o erro de tipo permissivo deve eliminar o dolo e a

culpa da conduta se invencíveis, restando a punição a título culposo se vencível.

Para a teoria extremada da culpabilidade o erro sobre uma circunstância

justificante deve ser tratado como um erro de proibição e não erro de tipo. Desta

forma o erro não tem o condão de excluir o dolo da conduta, mas sim a

culpabilidade, no caso de ser invencível. Ao contrário, se o erro é vencível, a

culpabilidade do agente persiste, porém é diminuída pelo erro, sendo imputado ao

agente a conduta por crime doloso, de qualquer modo atenuada.114

A teoria extremada da culpabilidade procura seu embasamento teórico na

doutrina finalista, para quem é nítida a distinção entre o dolo e a consciência da

ilicitude.115 Se o erro recai sobre um pressuposto do dolo, o erro será de tipo,

tendente a excluí-lo. Contudo, se o erro do agente recai sobre a potencial

consciência da ilicitude (elemento da culpabilidade), o dolo permanecerá intacto e a

culpabilidade estará afetada. Desta forma, se o agente exorbita na legítima defesa

por um erro que lhe anule a consciência da ilicitude, por exemplo, para a teoria em

tela este erro será de proibição, com as conseqüências já descritas.

Constatamos, portanto, que para a teoria extremada a condenação do

agente por delito culposo nunca iria ocorrer, visto ser escusável pelo erro

plenamente justificado ou imputado a título de dolo se inescusável.116

Por sua vez, adotada a teoria restrita da culpabilidade ou teoria limitada, o

erro que incide sobre as causas de justificação ou mais especificamente o erro que

recai sobre algum pressuposto fático de uma causa de justificação deve ser tratado

como um erro de tipo permissivo e não como erro de proibição.117

De tal sorte, para a teoria em tela, o erro na causa de justificação afasta o

dolo da conduta perpetrada e não a culpabilidade do agente. Para ROXIN, quem

supõe uma circunstância cuja ocorrência justificaria o fato, atua em razão de uma

113 CF. ROXIN, C. Obra citada, p. 580.114 CF. ROXIN, C. Idem, p. 582.115 CF. BITENCOURT. César Roberto. Erro de Tipo e Erro de Proibição. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 91.116 CF. GOMES. Luiz Flávio. Erro de Tipo e Erro de proibição. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 93.117 CF. BITENCOURT, C. R. Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 92.

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finalidade que é completamente compatível com as normas do direito. Assim, se a

conduta do agente se dirige ao preceituado na norma, mas produz um resultado

indesejado por falta de atenção e cuidado, apesar de atuar dolosamente, ser-lhe-á

imputado um delito culposo.118

Doutrina Juarez Cirino dos SANTOS que “o erro de tipo permissivo constitui

exceção à regra: o erro inevitável (plenamente justificado pelas circunstâncias)

exclui o dolo, por que o comportamento real do autor é orientado por critérios iguais

aos do legislador, o erro evitável admite a atribuição da modalidade imprudente, se

prevista em lei”.119

Para Cezar Roberto BITENCOURT o:

erro de tipo incriminador impede a configuração do fato típico doloso, enquanto o erro de tipo permissivo inevitável impede a configuração da culpabilidade dolosa. E quem sabe que mata, por exemplo, porém crê, erroneamente, que pode fazê-lo, mata dolosamente e não simplesmente por culpa. Circunstâncias especialíssimas, no entanto, imaginadas pelo agente, reduzem a censurabilidade da sua conduta, porque a fidelidade subjetiva ao Direito fundamenta sempre uma menor reprovação de culpabilidade que a desobediência consciente da lei.120

A conclusão a que se pode chegar é de que na teoria limitada da

culpabilidade o erro de tipo permissivo se constitui na falsa crença do autor de que a

norma proibitiva é afastada, excepcionalmente, diante de uma proposição

permissiva, ocasionando na mente do mesmo a diregibilidade da conduta consoante

o direito e, portanto, dentro dos limites legais. Contudo, como tal realidade não é

verdadeira, devido a uma questão de Política Criminal é o agente responsabilizado

pelo delito culposo, afastando-se a tipicidade dolosa devido a menor reprovabilidade

de sua conduta.

1.2.2 ERRO DE TIPO PERMISSIVO CULPOSO E CRIME CULPOSO

Consoante aduziu-se, o erro de tipo permissivo é na realidade uma conduta

dolosa que por uma questão de Política Criminal é representada como se culposa

fosse. Assim, o agente no erro de tipo permissivo prevê e quer os resultados

descritos no tipo objetivo (age com dolo), diferentemente do que ocorre na conduta

118 CF. ROXIN. C, Obra citada, p. 584.119 SANTOS, J.C. Obra citada, p. 201.120 BITENCOURT. C. R. Erro de Tipo e Erro de Proibição, p.109.

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culposa, em que o autor orienta-se para um fim lícito, sendo defeituosa, contudo,

sua execução. Por conseguinte, a espécie de erro em tela não pode ser confundida

de modo algum com os crimes culposos, visto serem intrinsecamente distintas.

Por derradeiro, o agente que mata a outrem tendo em conta uma falsa

percepção da realidade sabe muito bem que seu ato é típico. Frise-se, mesmo

levando-se em conta o erro que incorreu, poderia ter a percepção de que seu ato era

ilícito. Atua, portanto, dolosamente, mas devido ao erro vencível que lhe arrebata,

fazendo com que sua censurabilidade seja diminuída no caso in concreto é

responsabilizado a título de culpa.

Conclui-se então que “entre a impossibilidade de isenta-lo de pena e a

injustiça da grave censura dolosa, opta-se por uma censura mais branda, por uma

culpabilidade culposa, embora o delito praticado permaneça doloso.”121

1.3 O EXCESSO ESCUSÁVEL/EXCULPÁVEL

O excesso escusável nas palavras de Jardins LINHARES “é o que não pode

ser censurado ou incriminado, o que não compromete o agente. Ocorre quando este

se encontra em situação psicológica tal, que mesmo pretendendo executar o seu

limite de legítima defesa dentro dos limites objetivos e subjetivos traçados pela lei, o

faz em realidade, fora destes confins”.122

Atenta Francisco de Assis TOLEDO que o estado de perturbação mental, de

medo ou de susto, pode, em tais circunstâncias, configurar o mencionado excesso

excludente da culpabilidade do agente. Desta forma, verificando-se:

o conjunto das circunstâncias fáticas e emocionais que envolveram o agente no momento da reação, constataremos se o agente agiu, ou não, culpavelmente, isto é, se podia ter evitado o excesso em que incorreu ou, se, ao contrário, era-lhe humanamente impossível, no quadro emocional em que se abateu, medir e pesar, racionalmente, a agressão e a reação para ajustar a última, em peso e tamanho, à primeira.123

Por derradeiro, circunstâncias há em que o agente obra imbuído de uma

carga emocional violentíssima, o que em termos gerais diminui ou exclui a

capacidade de entendimento de sua conduta, tornando-a exculpável ante o

121 BITENCOURT. C. R. Idem, p.110.122 LINHARES, M. J. Obra citada, p. 395.123 TOLEDO, F. A. Obra citada, p. 331.

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ordenamento. Este entendimento não se choca com o preceituado no artigo 28, I do

Código Penal Pátrio, que taxativamente afirma que a emoção e a paixão não

excluem a imputabilidade penal. Não são divergentes pois o artigo 28, I do CP está

condizente com estados emocionais que não tem o condão de excluir a

culpabilidade, ou seja, seu grau de interferência na conduta do agente não se traduz

numa causa de inexigibilidade de conduta diversa. Pelo contrário, quando o agente

excede os limites da legítima defesa em virtude do estado de confusão, susto ou

medo que lhe arrebatam violentamente o espírito no momento da agressão, verifica-

se a impossibilidade de agir consoante o preceituado na norma, o que segundo

nosso ordenamento exclui a reprovabilidade da conduta.

De tal sorte, o excesso na legítima defesa pode “ser exculpado por defeito

na dimensão emocional do tipo de injusto, determinado por medo, susto ou

perturbação na pessoa do autor (afetos astênicos, ou fracos) – mas não por ódio ou

ira (afetos estênicos, ou fortes)”.124 E assim manifesta-se MAURACH afirmando que:

no obstante, bajo determinados presupuestos, el trasgresor de los límites de la legítima defensa (quien excede en la legítima defensa) podrá ser liberado de responsabilidad por el hecho, debido a que, a raíz de la situación creada por la agresión, no le podía ser exigida una conducta adecuada a la norma; en este caso, el respeto de los límites de la legítima defensa.(...) Ella se da cuando el autor ha ido más allá de los límites de la defensa, debido a confusión, temor o pánico.125

Milita o agente no excesso exculpável sob um estado emocional altamente

deformado, situação esta que lhe exime completamente de culpabilidade. O excesso

na legítima defesa deve estar condicionado precisamente por estes estados

anímicos; o privilégio (exculpação) não pressupõe uma atuação em estado de

confusão, medo, etc., mas sim, devido a eles.126 Destarte, o agente que se excede

na legítima defesa deve ter em seu antecedente causal a gênese de um elemento

emocional astênico para ser exculpado em sua ação. Não o sendo, será punido a

título de dolo se obrou conscientemente na busca do resultado mais lesivo ou punido

a título de crime culposo se agiu tendo em conta um erro de avaliação das

circunstâncias fáticas concretas.

124 SANTOS. J. C. Obra citada, p.222.125 MAURACH, R. Obra citada, p. 578.126 MAURACH, R. Idem, p. 579.

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Para CARRARA, a paixão, embora excitada pela representação de um mal

sofrido ou por sofrer, quando não possuir os caracteres de imprevisão e de injustiça,

não poderá atribuir qualquer eficácia de escusante ao ato.127 Isto ocorre, pois não

obstante toda alteração que a emoção pode criar no agente, ainda tal fato não chega

a lhe determinar a força criminosa se não contiver no mínimo os elementos da

violência e da instantaneidade.128

Aduz Juarez Cirino dos SANTOS acerca da exculpação por fatores

emocionais astênicos que “na verdade, os estados afetivos de medo, susto ou

perturbação podem explicar a redução dos controles, a anormalidade psicológica, a

redução da culpabilidade ou a desnecessidade de prevenção (...) e assim, como

emoções insusceptíveis de controle consciente, fundamentam a exculpação do

excesso de legítima defesa, independentemente de previsão legal”.129 Desta forma

os estados emotivos astênicos que exorbitem os aspectos psicológicos normais do

indivíduo tem o condão de suprimir a censura ou incriminação da conduta do agente

que excedeu na legítima defesa.

Neste escólio doutrinário se arrima Santiago MIR PUIG, afirmando que a

reprovação penal não se afasta somente quando o sujeito se encontra em condições

psíquicas distintas das normais (imputabilidade), mas também quando atua em uma

situação motivacional anormal a qual o homem médio teria sucumbido.130 Nada

diverso do que atenta Gunther JAKOBS ao afirmar que:

Sólo disculpa el comportamiento debido a los estados pacionales asténicos: ofuscación, miedo o terror; en los estados pacionales esténicos - ira , rabia, ganas de pelea, furor homicida - sigue dándo-se la responsabilidad en el marco de las reglas generales, ya que la impuitación al agresor solo es posible cuando el agredido no se comporta de forma drasticamente delictiva(...). Restando la culpabilidad disminuida.131

Frise-se que um dos elementos constantes da culpabilidade e da

conseqüente reprovabilidade da conduta é a exigibilidade de comportamento

consoante o direito. Se o indivíduo no caso concreto age pela influência de fatores

que lhe suprimem a capacidade de agir consoante o ordenamento, tal fato

127 CARRARA, F. Obra citada, § 331. p. 236.128 CARRARA, F. Idem, p. 234.129 SANTOS, J. C. Obra citada, p. 222.130 PUIG, S. M. Obra citada, p. 586.131 GUNTHER. J. Obra citada, p . 706.

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demonstra uma sensível redução da capacidade de comportamento conforme à

norma, tornando a conduta do autor exculpável.132

Note-se por fim que o excesso só pode ser apreciado “em relação ao

chamado excesso intensivo, não tendo aplicação quanto ao excesso extensivo, em

que falta a atualidade da agressão, quer dizer, que esta não é iminente ou já se

concluiu, de tal modo que a situação excludente da pena praticamente não resulta

delimitável com precisão”.133

1.4. O EXCESSO FORTUITO

Salientam os doutrinadores e de modo geral consolida-se na jurisprudência

o entendimento de que o excesso ocasionado por caso fortuito não pode servir como

base para a punição do agente.

O fortuito no direito está condizente com acontecimentos de ordem natural

que tem o escopo de gerar efeitos na esfera jurídica dos sujeitos de direito, como

por exemplo, a queda de um raio, o frio intenso, avalanches, erupções vulcânicas,

maremotos, terremotos, dentre outros fenômenos de ordem natural.

Entretanto, se é verdade que o caso fortuito pode gerar efeitos na esfera

jurídica dos sujeitos de direito, também é verdade que as normas de direito penal

somente são imputáveis aos sujeitos quando os mesmos detiverem o mínimo de

culpabilidade em suas condutas, indicada em seu grau mais ínfimo na culpa

inconsciente. O caso fortuito por ser inteiramente atribuído à forças estranhas ao

132 Assim já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “É bom deixar enfatizado que o excessus defensionis pode ser excusável ou não. Se é antijurídico, pode ser doloso (o agente responde pelo resultado na forma de crime doloso) ou culposo (o agente responde pelo resultado na forma de crime culposo). Todavia, pode não ser censurável , o que ocorre quando deriva de escusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo” (TJMG – AG – Rel.. Freitas Barbosa – RT 622/334). E também a 1 Câmara Criminal do mesmo Tribunal na apelação criminal nº 23.239: “É possível que o réu se tenha excedido na repulsa. Mas, diante do estado de perturbação em que devia se achar, face à brutal agressão a seu filho, naquela situação, é natural que não se tenha podido conter nos apertados limites do “moderamen”. Ao que parece, agiu com excesso na escolha dos meios ou em seu uso. Não com aquele excesso criminoso na causa, fruto da vingança maligna ou de um impulso de perversidade, citado por VENZON. A. Excesso na legítima defesa. Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 77. E ainda assim já se decidiu no Tribunal de Justiça do Distrito federal - “Reconhecida pelo júri a ocorrência do excesso no exercício da legítima defesa e, negado que tal tenha sido doloso ou culposo, conclui tratar-se de excesso inevitável, escusável, portanto, impunível, porque exculpante, restando o agente absolvido pela legítima defesa inicialmente reconhecida. (TJDF – APR 20010550057952 – DF – 1ª T.Crim. – Rel. Des. Everards Mota E Matos – DJU 04.06.2003 – p. 80)”.133 RUI STOCO. A. S. P. Obra citada, p. 376.

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sujeito não tem o condão de integrar o juízo de culpabilidade atribuído ao agente por

sua conduta defensiva.

Para Francisco de Assis TOLEDO a culpabilidade do agente atinge seu mais

elevado grau no fato doloso, notadamente no dolo direto. “A partir daí, passando

pelo dolo eventual e pela culpa consciente, vai decrescendo até atingir a linha

fronteiriça da culpa inconsciente, para além do qual deixa de existir”.134 Razão pela

qual estando o caso fortuito além deste limite fronteiriço da culpa inconsciente, não

poderá a conduta do agente ser reprovável ante a existência de fatos ocasionados

por um puro fortuito, exteriores à esfera de sua cognição e de decisão do agente.

Assim se manifesta Galdino SIQUEIRA, afirmando que “o erro pode derivar

de caso fortuito. Quando o erro é fortuito, trata-se de um erro pelo qual se

permanece nos limites do exercício do direito e por isso o agente não pode ser

punido a título de excesso, mas serão aplicáveis as disposições sobre as

justificativas, não obstante o excesso”.135

É também neste sentido a doutrina de Anibal BRUNO atentando que “o

excesso pode resultar sem dolo nem culpa do agredido, reduzindo-se a um puro

fortuito, que não afeta a legitimidade da defesa.”136 De tal sorte, se o excesso é

fortuito (imprevisto/inopinado/acidental), apresentando-se no caso in concreto

apesar da reação moderada do agente e da escolha dos meios necessários,

subsiste a legítima defesa apesar do posterior dano ou potencialidade de dano a

bens jurídicos do agressor.137

134 TOLEDO. F. A. Obra citada, p. 339.135 Apud, GUERRERO. H. V. Obra citada, p. 182.136 BRUNO, A. Obra citada, p. 384.137 STF. Recurso Extraordinário nº 21.112, RT, nº 240/647 “Reconhecendo o excesso como não culposo e não tendo o júri sido questionado sobre a dolosidade de tal excesso, fica-se em dúvida sobre o fato de ter sido a imoderação dolosa ou meramente causal e, como na dúvida prevalece a liberdade, deve ser reconhecido que esse excesso foi resultante de caso fortuito ou isento de qualquer culpabilidade, absolvendo-se o acusado.”

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CONCLUSÃO

A legítima defesa deve ser entendida como verdadeiro direito inerente a

todos os indivíduos, cuja atuação é limitada pelo ordenamento jurídico por meio de

pressupostos racionalmente estabelecidos.

A fim de averiguar sua existência mostra-se imperiosa a observação in

concreto de todos os elementos que a circundam, tais como os bens defendidos

pelo agredido no momento do ataque, a intensidade e a violência da agressão

sofrida, bem como o estado emocional em que se encontrava o agredido antes,

durante e após a agressão, a fim de estremar seu derradeiro entendimento acerca

da situação em que se encontrava.

Para a justa apreciação do ius defensionis há de laborar-se detidamente o

operador do direito na analise dos elementos subjetivos do agredido na derradeira

hora, bem como na apreciação dos elementos objetivos. A agressão também deve

ser examinada, necessitando ser atual ou iminente e em qualquer caso sempre

injusta.

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Realizada por sua vez a defesa fora dos limites da moderação e da

necessidade, cumpre constatar se o plus defensivo foi originado pela vontade livre e

consciente do agredido em infringir bens jurídicos do agressor, reconhecendo-se

nesse caso o excesso doloso. Quando o ato, porém, for praticado pela influencia de

elementos astênicos (medo, surpresa, susto, perturbação etc.) não pode ser

reprovado, por clara ausência de culpabilidade. De igual modo o excesso devido a

um erro de tipo permissivo, regulado por nosso código penal em seu artigo 20, § 1º.

E por fim constar se o excesso não ocorreu por um caso fortuito, que não pode

servir como base para a punição do agente.

Frise-se novamente que a constatação do animus do agente por si só não é

causa suficiente para imputar ao agredido qualquer modalidade de excesso, por

mais ilógica que essa assertiva possa parecer. Como se verifica, o agente que atua

dolosamente no excesso pode estar praticando um excesso doloso querido e

consciente, devendo responder pelo delito a título de dolo, mas também pode estar

agindo nos moldes do excesso culposo ou até mesmo estar agindo no excesso

escusável/exculpável. Nas três formas de excesso supra referidas pode o dolo ser o

elemento orientador da conduta, mas tal fato não implica conseqüências jurígenas

iguais simplesmente pela semelhança aparente do aspecto subjetivo. Note-se que

nas três modalidades de excessos aludidos as conseqüências ao agente são

distintas.

De qualquer modo é necessário realizar-se um exame profundo da situação

fática. O ato da agressão deve ser minuciosamente estudado, devendo ser

respondidas no mínimo as seguintes perguntas: 1) quando a agressão se iniciou e

quando terminou (qual foi a sua duração); 2) como se iniciou (foi de surpresa ou o

agredido esperava pela agressão); 3) qual a intensidade da agressão (meio e força

utilizados). Da mesma forma a análise do contexto tendo em vista a perspectiva do

agredido, devendo ser respondidas as seguintes questões; 1) o agredido supunha

no caso concreto estar em desvantagem patente ante o agressor (tanto pela força

física, como pela desproporção dos meios utilizados); 2) o estado emocional do

agredido se alterou pela agressão (qual estado emocional imperava no ato

defensivo); 3) agiu o agredido pela influência deste estado emocional distorcido; 4) o

agredido supunha existir alguma causa de justificação que lhe outorga-se o direito

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de agir; 5) qual a espécie de erro que levou o agredido à avaliar mal a causa de

justificação.

Deste modo podemos concluir acerca do excesso que:

a) Somente poderá caracterizar-se o excesso quando num primeiro

momento se fizerem presentes os elementos constantes da justificação defensiva.

b) O excesso doloso caracterizar-se-á quando se constatar que o agredido

agiu conscientemente no excesso, querendo um resultado mais prejudicial que o

exigível para o caso concreto.

c) O excesso culposo é o derivado de um erro de percepção do agredido,

que valora mal a situação concreta da agressão acabando por exceder os limites

impostos para a atuação em legítima defesa.

d) Ocorrerá o excesso escusável quando o indivíduo agir pela influência de

fatores que lhe suprimam a capacidade de agir consoante o ordenamento,

demonstrando tal fato clara redução da capacidade de comportamento conforme à

norma, tornando a conduta do autor exculpável ante a ausência de culpabilidade.

e) O excesso fortuito se consubstanciará quando apesar da reação

moderada do agente e da escolha dos meios necessários, por um evento inopinado

e imprevisto, ocorrer maior lesão aos bens jurídicos do agressor do que a

cognoscível, não podendo tal fato ser imputado ao agente.

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