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3 A Metafísica Relacionada à Filosofia Natural Cartesiana “Hoje, nós estamos cientes que a axiomata sive leges motus [Leis do Movimento] do Principia de Newton era um tipo de transformação daquilo que Descartes chamou regulae quaedam sive leges naturae [Certas Regras, ou seja, Leis da Natureza] em seu Principia.” (COHEN & BUCHWALD, 2001, p.xiii). 3.1 A Influência da Metafísica, da Filosofia Natural de Aristóteles e da Escolástica na Filosofia Natural de Descartes Após análise do método utilizado por Newton na construção de sua Física, discutiremos neste capítulo a Filosofia Natural de Descartes, fonte máxima da inspiração newtoniana. Contudo, esta inspiração na maioria das vezes agiu em direção contrária à própria Filosofia Natural cartesiana, isto é, a Filosofia Natural newtoniana viria a questionar e reprovar muitos conceitos metafísicos e físicos defendidos por Descartes e os cartesianos. Especificamente, as hipóteses metafísicas da existência do espaço, tempo e movimento “absolutos” desempenharam um papel de aproximação da Física de Newton com a Física de Galileu e a geometria de Euclides afastando-o quase que definitivamente da Filosofia Natural de Descartes e seus seguidores. Newton teria ficado bastante contrariado com Descartes por conta de suas definições e crenças a respeito da substância, do corpo, do lugar, da extensão, do espaço, do movimento, da força, do vácuo, do átomo e principalmente, de seu conceito de metafísica associado à Filosofia Natural. Destarte, teria sido então uma metafísica anti-cartesiana, principalmente no que se referiu às investigações filosóficas do espaço, tempo e movimento e, as definições de massa e forças, que fundamentaram o marco divisor entre uma Filosofia Natural que ainda continha elementos escolásticos, como era a Filosofia Natural cartesiana -- e em alguns aspectos, também a de Galileu -- da Física como nós a conhecemos desde o século XVIII.

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3 A Metafísica Relacionada à Filosofia Natural Cartesiana

“Hoje, nós estamos cientes que a axiomata sive leges motus [Leis do Movimento] do Principia de Newton era um tipo de transformação daquilo que Descartes chamou regulae quaedam sive leges naturae [Certas Regras, ou seja, Leis da Natureza] em seu Principia.” (COHEN & BUCHWALD, 2001, p.xiii).

3.1 A Influência da Metafísica, da Filosofia Natural de Aristóteles e da Escolástica na Filosofia Natural de Descartes

Após análise do método utilizado por Newton na construção de sua Física,

discutiremos neste capítulo a Filosofia Natural de Descartes, fonte máxima da

inspiração newtoniana. Contudo, esta inspiração na maioria das vezes agiu em

direção contrária à própria Filosofia Natural cartesiana, isto é, a Filosofia Natural

newtoniana viria a questionar e reprovar muitos conceitos metafísicos e físicos

defendidos por Descartes e os cartesianos.

Especificamente, as hipóteses metafísicas da existência do espaço, tempo e

movimento “absolutos” desempenharam um papel de aproximação da Física de

Newton com a Física de Galileu e a geometria de Euclides afastando-o quase que

definitivamente da Filosofia Natural de Descartes e seus seguidores. Newton teria

ficado bastante contrariado com Descartes por conta de suas definições e crenças

a respeito da substância, do corpo, do lugar, da extensão, do espaço, do

movimento, da força, do vácuo, do átomo e principalmente, de seu conceito de

metafísica associado à Filosofia Natural.

Destarte, teria sido então uma metafísica anti-cartesiana, principalmente no

que se referiu às investigações filosóficas do espaço, tempo e movimento e, as

definições de massa e forças, que fundamentaram o marco divisor entre uma

Filosofia Natural que ainda continha elementos escolásticos, como era a Filosofia

Natural cartesiana -- e em alguns aspectos, também a de Galileu -- da Física como

nós a conhecemos desde o século XVIII.

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Para descrever precisamente sob que circunstâncias surgiu à Filosofia

Natural de Descartes, devemos ter em mente que o “pano de fundo” para o

desenvolvimento desta nova forma de ver o mundo foram: a) a Filosofia Natural

de Aristóteles; b) uma parte da metafísica aristotélica e c) a Filosofia Escolástica,

reinante durante um período da idade média e intensamente criticada e discutida

na renascença, porém, não totalmente abandonada até o final da segunda metade

do século XVIII quando, de acordo com Koyré (2002, p.84), as teorias de Newton

e seu método de resolução de problemas foram plenamente consagrados.

Segundo Michael J. Loux (2003, p.4), assim como Aristóteles, os

escolásticos acreditavam que era função da metafísica “delinear a estrutura

categorial da realidade e estabelecer a existência e a natureza da Substância

Divina”. Posteriormente, os filósofos racionalistas continentais do século XVII e

XVIII -- entre os quais citamos Galileu e Descartes – começaram a rejeitar os

objetivos da metafísica aristotélica e escolástica: para estes filósofos o objetivo

maior de se “fazer metafísica” era identificar e caracterizar o maior número de

coisas existentes na natureza e fora dela e, a principal forma de identificar e

caracterizar estas coisas seria através da “Substância Divina e Seu papel causal”.

A metafísica neste século começou a tomar uma forma empírica. E foi o próprio

Loux que afirmou: Para Aristóteles, o exame das mudanças dos objetos físicos, o delineamento do espaço entre coisas vivas e não vivas, e a identificação do que é único nos seres humanos, devem todos ser tratados no contexto das ciências naturais ou da física em lugar da metafísica. Mas os racionalistas, confrontados com uma visão intelectual onde [os objetos] da física Aristotélica são substituídos [por objetos] matemáticos e experimentos [provenientes] da nova física, pensaram sobre esses objetos como [objetos] metafísicos. Como eles [os filósofos racionalistas continentais] viam as coisas, a metafísica dizia a respeito não somente à existência e à natureza de Deus, mas à distinção entre mente e corpo, seu relacionamento nos seres humanos, e à natureza e ao grau de liberdade da vontade [humana]. (LOUX, 2003, p.4-5).

Tendo como base a metafísica e a Filosofia Natural aristotélica, a Filosofia

Natural escolástica era extremamente extensa, rica e complexa e, diferentemente

de Loux (2003, p.12), Koyré (1991, p.22) estreita os laços entre a Filosofia

Aristotélica e a Escolástica -- como um todo -- e a Filosofia dos racionalistas

continentais. Destarte, mesmo não tratando explicitamente da questão da

influencia da metafísica na construção da Filosofia Natural dos racionalistas

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continentais, Koyré pareceu não desaprovar por completo a hipótese de uma certa

inspiração escolástica na metafísica racionalista, pois sobre esta influência, o

filósofo comentou: Ora, a Filosofia Escolástica -- sabemo-lo agora -- foi algo de muito grande. Foram os escolásticos que promoveram a educação filosófica da Europa e criaram nossa terminologia, a terminologia de que ainda nos servimos. Foram eles que, por seu trabalho, permitiram ao Ocidente tomar ou, mais exatamente, retomar o contato com a obra filosófica da Antiguidade. Sem embargo das aparências, há uma verdadeira e profunda continuidade entre a filosofia medieval e a filosofia moderna. Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz, muitas vezes, não fazem senão continuar a obra de seus predecessores medievais. (KOYRÉ, 1991, p.22-23).

No entanto, Koyré parece concordar com Loux (2003, p.12) em relação à

utilização da metafísica por parte de Descartes e outros filósofos racionalistas

continentais, contrariamente a Stephen Gaukroger que afirma: “Descartes jamais

usaria de metafísica para gerar verdades físicas.” (GAUKROGER, 1999, p.257).

Por outro lado, Koyré discorda de Loux sobre a não utilização da metafísica na

Física de Aristóteles. O filósofo afirmou em vários textos que a física aristotélica

estaria impregnada da sua metafísica. Apesar da afirmação anterior de Gaukroger,

tomamos como base às palavras de Koyré (1991, p.23), quando este afirma que

foi dentro dessa instigante Filosofia Escolástica que Descartes fora educado pelos

jesuítas e a partir dela ele teria iniciado seus principais questionamentos. E foi o

próprio Gaukroger que, em outra passagem, nos falou sobre a formação de

Descartes:

O colégio [La Fléche] desempenhou um papel central em seu [de Descartes] desenvolvimento pessoal e intelectual, pois lhe serviu de lar durante oito anos formadores, além de lhe haver proporcionado sua única educação institucional significativa. (GAUKROGER, 1999, p.65).

E sobre os estudos de Filosofia Natural de Descartes, esse mesmo autor nos

diz que: “Os textos básicos estudados eram os escritos de Aristóteles sobre a

Filosofia Natural: a Física, o De Caelo, o De Mundo e o primeiro livro do De

Generatione.” (GAUKROGER, 1999, 84).

Lembramos que, diferente de Aristóteles e dos escolásticos, Descartes se

apoiara na metafísica para formular a sua Filosofia Natural, pois, para ele, a

metafísica era a “raiz” da Filosofia Natural. As regras da natureza teriam sua

origem na perfeição Divina. A existência de Deus e Seus feitos no ato da criação

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eram suficientes para o estabelecimento da existência das características naturais

de nosso ambiente. Em carta enviada a Mersenne, Descartes escreveu:

Em meu tratado sobre a física, discutirei alguns temas metafísicos e, em especial, este: o de que as verdades matemáticas tidas como eternas foram estabelecidas por Deus e são completamente dependentes d’Ele, tal como qualquer de suas criações. (DESCARTES apud GAUKROGER, 1999, p.258).

Face ao que discutimos até agora, acreditamos que, para uma melhor

compreensão da Filosofia Natural cartesiana, seja necessário apresentar uma visão

geral da Filosofia Natural aristotélica e em especial, alguns de seus aspectos que,

de acordo com Gaukroger (1999, p.81), foram adotados pelos escolásticos

principalmente por Santo Tomás de Aquino.

Aristóteles aceitava: a) a teoria das esferas celestes e supunha que estas

esferas tinham uma existência física real; b) a suposição de Empédocles quanto

aos quatro elementos -- terra, água, fogo e ar -- que chamou de “substâncias

corpóreas”, sugerindo em paralelo um quinto elemento -- o éter -- do qual todo

espaço celeste seria formado; c) que a “substância” era a categoria mais

fundamental sem a qual outras coisas não poderiam existir. Assim, por exemplo,

Aristóteles explicava a cor azul através da existência de uma “coisa qualquer” que

fosse azul - uma “azulidade”; d) que os corpos eram constituídos de uma

“substância primeira” e uma “substância segunda”, enquanto que os corpos

compartilhavam desta “substância primeira”, a “substância segunda” era o que

realmente diferenciava um corpo do outro. Deste modo, Aristóteles explicava

porque um cavalo era diferente de um homem e um homem diferente de outro; e)

que cada um dos quatro elementos teria o seu próprio lugar e o movimento --

metabolé -- era somente uma tentativa por parte desses elementos de voltarem ao

seu lugar natural. O movimento era um caso particular da mudança. A terra estaria

abaixo, a água acima desta, o ar acima da água e o fogo estaria acima de todos os

demais. Portanto, Aristóteles explicava que um elemento densamente formado por

terra, como uma rocha, cai espaço abaixo, enquanto que as bolhas de ar na água

movem-se liquido acima, a chuva cai e o fogo se eleva; f) que o mais pesado dos

objetos era aquele que teria a maior tendência de atingir mais rapidamente o seu

próprio lugar de origem. Assim, acreditava ele que o corpo mais pesado cairia

mais rapidamente que o mais leve; g) a idéia do “espaço plenum” e

conseqüentemente, rejeitava a idéia do vácuo e do atomismo de Demócrito,

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Epicuro, Leucipo e Lucrécio, levando a derrocada dos atomistas; h) que o

movimento não era um estado do corpo e sim um processo que levava o corpo ao

seu lugar natural ao estado de repouso; i) que a Lei do Movimento podia ser

definida por V � F/R e esta força provinha do meio e não do corpo14.

Por mais “ingênua” que pudesse parecer, à primeira vista, a Filosofia

Natural aristotélica, poderia e deveria ser chamada de ciência. Isto porque

Aristóteles, como todos os outros bons filósofos da natureza, estudou a natureza, o

mundo que ele via e sentia e não um mundo idealizado, mitificado. Ele possuía

uma teoria física articulada e coerente, fundamentada nos dados obtidos através da

observação. Como vimos anteriormente, Loux (2003, p.5) destacou bem este

ponto separando a Física aristotélica de sua metafísica. E sobre a importância da

Física aristotélica na idade média, Koyré afirmou:

O aristotelismo, (...), propaga-se nas universidades. Dirige-se a pessoas ávidas de saber. É ciência, antes de qualquer outra coisa, antes mesmo de ser filosofia, e é por seu valor de saber científico, e não por seu parentesco com uma atitude religiosa, que ele se impõe. (KOYRÉ, 1995, p.35).

Novamente observamos que Koyré concordou com Loux (2003, p.4), visto

que ambos deram um caráter puramente científico a Física de Aristóteles.

Daniel Garber (1995, p.286-287) e também Koyré (1991, p.156),

observaram que, assim como a Física aristotélica se colocaria como um

“obstáculo” -- um desafio -- a ser encarado e superado a contento no

desenvolvimento de uma nova Filosofia Natural, a Filosofia Natural cartesiana, o

atomismo antigo de Demócrito, Epicuro, Leucipo e Lucrécio, por outro lado, fora

uma fonte de inspiração para Descartes, já que essa corrente de pensamento

tentara explicar as características comportamentais dos corpos, não em termos de

“formas substanciais” -- como os aristotélicos e escolásticos -- mas em termos de

tamanho, forma e movimento dos corpos. Entretanto, Descartes não abraçaria o

atomismo antigo de Demócrito, Epicuro, Leucipo e Lucrécio em sua totalidade,

pois seu conceito de “substância” não permitiria a aceitação da existência do

espaço vazio e de uma “parte última da matéria”.

14 Onde V = velocidade, F = força e R = distância. Ressaltamos que, esta não fora a forma original pela qual Aristóteles definiu a relação entre a velocidade e a distância, porém, estamos utilizando-a com o objetivo de melhor esclarecer o pensamento aristotélico.

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3.2 As “Substâncias” e o Conceito de Extensão

Como será visto com mais detalhes nas próximas seções, havia uma

diferença crucial entre o atomismo antigo de Demócrito, Epicuro, Leucipo e

Lucrécio e o de Descartes: este não aceitava a indivisibilidade atômica e o espaço

vazio - o vácuo. Para Descartes, os átomos não existiriam, pois Deus, para quem

nada seria impossível, fonte todas as coisas, poderia dividir a matéria

indefinidamente se assim o desejasse. Assim, por que Ele teria determinado o

“último”? Decididamente, o filósofo não aceitava a indivisibilidade atômica: para

ele o mundo teria que ser infinitamente divisível, caso contrário, a onipotência

Divina estaria seriamente comprometida. Descartes pensava também que, a idéia

de vácuo era uma idéia tão incoerente quanto à idéia de um átomo indivisível,

pois, se o corpo era extenso, todo espaço estaria tomado por corpos e

conseqüentemente, o espaço só existiria em função destes corpos.

Devido à: a) explicação das características comportamentais dos corpos em

termos de tamanho, forma e movimento; b) rejeição ao vácuo e c) rejeição à

indivisibilidade atômica, podemos dizer que a Filosofia Natural -- a Física -- de

Descartes começaria com o conceito de “substância corpórea” - o corpo extenso.

Para o filósofo, a extensão -- altura, largura e profundidade -- seria o principal

atributo da “substância corpórea”. Descartes acreditava que a substância era a

primeira categoria de “ser” existente no mundo e existiriam dois tipos de

substâncias: a “pensante” e a “corpórea” ou “extensa”. As “substâncias pensantes”

se revelariam nos atributos que a mente do observador colocaria nas coisas, por

exemplo: cheiro, cor, sabor, entre outros. Por sua vez, a “substância extensa” ou

“corpórea” se revelaria através da largura, altura e profundidade que pertenciam

ao corpo, isto é, a “substância corpórea” era o próprio corpo.

Na definição cartesiana de substância, as “substâncias corpóreas” não

poderiam ser conhecidas por si só - como fora ensinado a Descartes pelos

escolásticos. Para estes, assim como para Aristóteles, a substância seria a primeira

natureza do ser. De acordo com Aristóteles:

É apenas a substância que é absolutamente primeira, tanto logicamente no plano do conhecimento, quanto temporalmente. Com efeito, por um lado, nenhuma das outras categorias existe separadamente, apenas a substância. Por outro lado, ela é

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também a primeira logicamente, pois na definição de cada ser está necessariamente contida a de substância. (ARISTÓTELES apud JAPIASSÚ & MARCONDES, 2001, P.255).

Para Descartes, contrariamente a Aristóteles, a simples “existência” de uma

“substância corpórea” seria insuficiente para identificá-la como tal. Portanto, para

a obtenção do reconhecimento pleno, por parte de Descartes, do que seria uma

“substância corpórea”, teríamos que levar em conta também seus atributos,

ocorrências, propriedades e qualidades que poderíamos conhecê-la. Segundo

Descartes: (...) e de fato uma substância pode ser conhecida através de quaisquer de seus atributos [ocorrências, propriedades e qualidades]. Mas ainda assim existe uma propriedade especial de qualquer substância, da qual sua natureza e essência são constituídas, e a qual todas as outras se referem (...). (DESCARTES, 1971, p.48).

Esta “propriedade especial de qualquer substância“ a qual Descartes se

referiu na citação acima era a extensão. Segundo Descartes, para entendermos

uma “substância corpórea” temos que entender sua extensão e vice-versa. Uma

não poderia existir sem a outra. Um corpo sem extensão seria somente um

pensamento sem representação na natureza. Numa crítica aos filósofos

escolásticos e à sua definição de substância, disse Descartes: (...) Quando [os filósofos escolásticos] distinguem substância de extensão ou quantidade, ou eles não conseguem entender o que seja ‘substância’, ou eles tem uma confusa idéia da existência de uma substância não-corpórea, a qual, de forma incorreta, eles atribuem a uma substância corpórea e deixam para a extensão (a qual, entretanto, eles chamam de acidente) a verdadeira idéia de substância corpórea. E assim, eles expressam plenamente em palavras outra coisa em vez daquilo que eles entendem em suas mentes. (DESCARTES, 1971, p.68).

Definitivamente, para Descartes, em oposição aos escolásticos, a

“substância extensa” -- o corpo -- se revelava através de sua altura, largura e

profundidade. Porém, os cartesianos não possuíam uma definição “forte” de lugar

associada ao corpo, como possuíam os escolásticos. Para estes, assim como para

Aristóteles, o lugar era: a) aquilo que imediatamente contém o seu contido, isto é,

o corpo; b) porém, ele mesmo não fazia parte do corpo; c) não era maior nem

menor que o corpo; d) poderia ser deixado pelo corpo, isto é, era dele separável e

e) possuía obrigatoriamente o acima e o abaixo. Para Descartes, o lugar se

resumiria na superfície que circundava o corpo. Descartes e seus seguidores

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acreditavam que somente a extensão do corpo seria relevante para sua existência e

entendimento.

Para Descartes, a distinção entre a “substância corpórea” e seu principal

atributo, a extensão, estaria no plano conceitual, ou seja, empricamente ela não

poderia ser feita. De fato, em nenhuma das obras de Descartes consultadas, o

autor definiu com clareza a diferença entre a “substância corpórea” e sua extensão

- talvez o filósofo não considerasse esta diferença relevante para sua Filosofia

Natural. Todavia, para complementar o conceito de extensão, Descartes definiria

também os conceitos de “modos” e “acidentes” de uma “substância corpórea”.

Abaixo se segue um diagrama que mostraria, resumidamente, a importância e as

relações entre os “modos” e “acidentes” de uma “substância corpórea”, isto é, as

relações envolvendo os conceitos de extensão, corpo, pensamento, “modos” e

“acidentes”. De acordo com Descartes:

MODOS “SUBSTÂNCIA CORPÓREA” ACIDENTES (TAMANHO (CORPO)

FORMA, (COR, SABOR

MOVIMENTO) FRIO, QUENTE)

DEFINE PERCEBE COLOCA

EXTENSÃO PENSAMENTO (OBJETO GEOMÉTRICO – “SUBSTÂNCIA EXTENSA”) (“SUBSTÂNCIA

PENSANTE”)

Conforme representado no diagrama acima, estes “modos” -- tamanho,

forma, movimento -- apesar de não serem essenciais para a identificação da

“substância corpórea” -- visto que, somente a extensão o seria -- podem ser

compreendidos através da extensão da mesma. Os “modos” seriam uma via pela

qual o corpo poderia ser reconhecido como extenso -- distinto -- diferentemente

dos atributos ou “acidentes” -- cor, sabor, frio, quente -- que apesar de também

distinguirem um corpo de outro, nada teriam haver com a extensão, pois, seriam

apenas frutos do pensamento daquele que percebe o corpo em questão. Gaukroger

em seu livro Descartes - Uma Biografia Intelectual, apresentaria de forma mais

detalhada os conceitos cartesianos de atributos, qualidades e modos:

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Aplicando o critério da clareza e distinção à questão do tipo de coisa que percebemos, Descartes distingue suas duas categorias fundamentais, o pensamento e a extensão, e uma categoria híbrida de apetites, emoções e paixões (...), bem como de ‘verdades eternas’ ou ‘noções comuns’, entre as quais ele inclui o princípio da não-contradição, a inalterabilidade do passado e o fato que a existência é necessária ao pensamento. Apresenta-se então um aparato metafísico bastante complexo, para lidar com o pensamento e a extensão. A distinção básica se dá entre a substância e suas propriedades, que são de três tipos: atributos, qualidades e modos. Os atributos são propriedades de uma substância sem as quais ela não pode existir. A substância corpórea tem que ser extensa, por exemplo, caso contrário, simplesmente não será a substância corpórea. Ademais, todas as outras propriedades de que uma substância é dotada pressupõe seus atributos, mas não o inverso. A extensão pode ser compreendida sem a forma e o movimento, mas não ao contrário, por exemplo, e o pensamento pode ser compreendido sem a imaginação e a sensação, mas não vice-versa. A forma e o movimento, bem como a imaginação e a sensação, são meros “modos” de suas respectivas substâncias. O modo é uma propriedade que não altera a natureza da substância. Cada substância, somos informados, tem uma propriedade principal (extensão, no caso da substância corpórea, e pensamento, no caso da mente), isto é, uma propriedade que constitui sua natureza e sua essência, enquanto suas demais propriedades são simples modos. Contudo, depois de introduzir esta terminologia, Descartes passa a usá-la de maneira frouxa e incoerente. Assim, diz, por um lado, que uma substância pode ser conhecida através de qualquer atributo, o que sugere que os corpos têm mais de um atributo, e, por outro, que qualquer coisa diferente da propriedade principal de um corpo é um modo, o que não significa outra coisa senão que a propriedade principal pode ser um atributo. Depois Descartes introduz uma terceira categoria, como que intermediária, da ‘qualidade’, uma propriedade que, apesar de não ser essencial a uma substância, modifica a natureza dela, se for alterada. (GAUKROGER, 1999, p.447).

Assim, como dito por Gaukroger, vale observar que devemos olhar com

parcimônia as definições e relações entre as substâncias, seus “modos” e seus

“acidentes”, pois, Descartes nos Princípios da Filosofia tratou de maneira “frouxa

e incoerente” estas definições e relações. Sobre os “modos” e “acidentes”, vistos

por Descartes, novamente Gaukroger nos alertou: Seja qual for nossa interpretação preferida, porém, não devemos perder de vista aquilo que a interpretação mecanicista da cognição perceptiva almeja alcançar. Acima de tudo, não devemos exagerar nossa interpretação de Descartes nesse ponto. Em particular, não devemos dizer que ele [Descartes] estivesse sugerindo (1) que só existem no mundo propriedades geométricas, e não propriedades físicas reais, ou (2) que certas qualidades dos objetos físicos, como as cores, por exemplo, não existem de fato. (GAUKROGER, 1999, p.212).

Se por um lado Descartes defendia a idéia de que a essência de um corpo

seria sua extensão, por outro, de acordo com Gaukroger, parece impossível que

ele realmente acreditasse que no mundo só haveriam propriedades geométricas e

desprezasse por completo as “sensações”. Neste sentido, a posição defendida por

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Gaukroger seria totalmente contrária àquela defendida por Garber e a maioria dos

comentadores de Descartes consultados. Além disso, Descartes parecia ter uma

certa dificuldade em compreender o ponto de vista escolástico de “essência”, o

que poderia ter causado a contradição apontada por Gaukroger na citação acima.

Para os escolásticos, “essência ou natureza de uma substância” seria a diferença

entre a substância em si, isto é, o mesmo das coisas e suas ocorrências. Por

exemplo, para Garber, a essência de uma substância na visão escolástica seria: O ser humano, por exemplo, é essencialmente um ser racional e um animal; tirando ambos de sua substância, não seria mais o ser humano. Porém, os acidentes [ou atributos] não essenciais [cor, tamanho, etc.] poderiam ser desprezados sem que a natureza da substância fosse afetada. (GARBER, 1995, p.293-294).

A citação de Garber nos leva concluir que o conceito de extensão serviu de

base para provar: a) a real existência de um mundo externo, em outras palavras,

uma realidade atrelada à natureza e b) que nossas idéias sensoriais sobre os corpos

derivam dos próprios corpos em questão e não de outra coisa. Sobre este ponto,

Descartes nos disse na Meditação Sexta que:

(...) embora as idéias que recebo pelos sentidos não dependam de minha vontade, eu não pensava que por isso se devesse concluir que elas procediam de coisas diferentes de mim, uma vez que talvez possa encontrar-se em mim alguma faculdade (se bem que até aqui ela me seja desconhecida) que seja a causa delas e as produza. (DESCARTES, 2000, p.117).

Descartes acreditava que o corpo cuja existência ele havia provado -- o

corpo cujo único atributo essencial era sua extensão -- não era o mesmo corpo de

nossa experiência diária. Assim, a prova da existência de um “mundo externo”

seria útil na derrubada da argumentação cética utilizada pelo filósofo na

Meditação Primeira:

[3] Tudo o que recebi até o presente como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos; ora, algumas vezes experimentei que tais sentidos eram enganadores, e é de prudência jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram. [4] Mas, ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes no tocante às coisas pouco sensíveis e muito distantes, talvez se encontrem muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, conquanto as conheçamos por meio deles [dos sentidos] (...) (DESCARTES, 2000, p.31).

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3.2.1 O Método e o Conhecimento

Descartes acreditava que o único método realmente relevante,

filosoficamente falando, seria o método matemático fornecido principalmente pela

geometria, pois seria somente este método que nos levaria a certeza das coisas. O

filósofo, no Discurso do Método, refletiu intensamente sobre as diversas

“operações do espírito” e através delas pode compreender a maneira pela qual os

matemáticos chegavam a certeza que ele tanto buscava. Assim, Descartes

estabeleceu os fundamentos do método racional cujo maior objetivo seria chegar

ao auge da impessoalidade do espírito, pois a única “operação do espírito” que nos

garantiria a verdade e a certeza seria a intuição evidente. A intuição cartesiana

seria a própria visão de uma evidência. Desta evidência nós não poderíamos

duvidar de forma alguma, visto que ela seria a base do método racional. Por sua

vez, a dúvida seria um modelo de pensamento fundamental para o método

racional e a única coisa da qual não poderíamos duvidar seria que, de fato,

duvidamos.

Deste modo Descartes provou que só seriam confiáveis as idéias “claras e

distintas” como a da extensão, intimamente ligada à matemática - a geometria. Os

sentidos ou “acidentes” seriam enganadores, mesmo que existissem em nossa

experiência diária. Em resumo, foi na subjetividade matemática e não na

experiência física que Descartes encontrou os fundamentos de seus conhecimentos

sobre a natureza. A crença absoluta na existência de um “mundo externo” -- o

mundo das evidências -- foi, para este filósofo, o principal responsável pela

substituição do mundo das sensações -- cor, sabor, frio, quente -- pelo mundo

geométrico, baluarte da Filosofia Natural cartesiana. Ainda na Meditação Sexta, o

filósofo nos diz que: “[5] Ora, acostumei-me a imaginar muitas outras coisas além

dessa natureza corporal que é o objeto da geometria, a saber, as cores, os sons, os

sabores, a dor, e outras coisas semelhantes, embora menos distintamente.”

(DESCARTES, 2000, p.112).

Alain Badiou (1997, p.47), analisou brevemente em seu livro Deleuze - O

Clamor do Ser as “idéias claras e distintas” de Descartes sob a luz do conceito de

intuição de Gilles Deleuze. Sobre a intuição cartesiana, Badiou nos disse que:

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Para Descartes, a intuição é apreensão imediata de uma idéia clara e distinta; ela procede instantaneamente, guiada por uma iluminação mental localizada, ao isolamento da idéia, sem aderência a algum fundo obscuro qualquer. Ela é um átomo de pensamento, quando se está certo ‘uno intuito’, graças a um único golpe de vista. Esse gênero de intuição repousa sobre uma teoria da luz natural, cujo princípio é que uma idéia é tanto mais distinta quanto for mais clara (...) (BADIOU, 1997, p.47).

E Deleuze completa: “(...) o claro-distinto [de Descartes] constitui essa luz

que torna o pensamento possível no exercício comum de todas as faculdades”

(DELEUZE apud BADIOU, 1997, p.47).

Para Descartes e seus seguidores, parecia de algum modo ser de suma

importância acreditar que um corpo fosse algo que possuísse somente

propriedades geométricas. Todavia, ressaltamos que para Gaukroger (1999,

p.212), não seria possível que Descartes negasse totalmente a existência da cor, do

sabor e de outros atributos do corpo, embora não tenha explicitado em momento

algum, ao longo das obras consultadas, tal opinião. Para o comentador, Descartes

só não acreditava que estes atributos eram essenciais para a identificação do

corpo. Contudo, para defender a idéia do corpo puramente geométrico, Descartes

nos Princípios da Filosofia, utilizou-se de três grandes argumentos,

separadamente: a) o argumento de eliminação; b) o argumento da realidade

objetiva e c) o argumento completo.

a) Sobre o argumento de eliminação, Descartes nos disse:

(...) que a natureza da matéria, ou de um corpo em geral não se consistirá no fato de que existe uma coisa que seja dura ou pesada ou colorida ou afetada por qualquer tipo de sentido, mas somente no fato de que existe uma coisa extensa em comprimento, largura e profundidade (...). (DESCARTES, 1971, p.65).

De acordo com Garber (1995, p.296), Descartes nesse argumento baseou-se

no seguinte “experimento imaginário” de sua própria autoria: se nós fossemos

tocar um objeto e este, por qualquer motivo, se afastasse de nós, não nos seria

possível constatar sua “dureza” ou o quão pesado ele era, mas ainda assim,

poderíamos constatar sua extensão - sua altura, largura e profundidade. Assim,

concordando com a análise de Garber (1995, p.295) sobre o argumento de

eliminação, pensamos, em acordo com o comentador, que este não seja realmente

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um argumento “forte” na defesa da idéia de que um corpo seria algo que possuísse

genuinamente somente extensão - propriedades geométricas.

Isto porque Descartes precisaria convencer seus leitores e interlocutores de

que as outras propriedades do corpo como a “dureza”, o peso, a cor, o calor, entre

outros, não se originavam dele -- o que nos parece ser uma empreitada bastante

difícil -- visto que, até podemos imaginar um corpo sem “dureza”, peso, cor ou

calor, porém nossos instintos mais básicos nos sugeririam outra coisa bem

diferente. Analogamente, para nós não seria complicado imaginar um corpo

perfeitamente esférico ou quadrado ou triangular, mesmo sabendo que na natureza

estas formas geométricas perfeitas também não existem. Aqui observamos um

paradoxo interessante: se por um lado não seria difícil aceitar a geometrização dos

objetos da natureza que, não é perfeitamente geométrica, por outro lado seria

quase impossível retirar o que Descartes chamou de “acidentes” dos objetos da

natureza, mesmo que estes “acidentes” não fossem essenciais para a identificação

dos objetos.

b) O próximo argumento, da realidade objetiva, seria a investigação da “essência

material das coisas” ou da “quantidade contínua”, dito pelo próprio Descartes:

(...) imagino distintamente esta quantidade que os filósofos chamam vulgarmente quantidade contínua, ou então a extensão em comprimento, largura e profundidade que está nessa quantidade, ou melhor, na coisa a que a atribuem. (DESCARTES, 2000, p.97).

Em outras palavras, Descartes acreditava que a realidade objetiva seria a

quantidade de matéria do corpo em termos de extensão, isto é, o comprimento, a

largura e a profundidade seriam os parâmetros delimitadores para a quantidade de

matéria do corpo. Para o filósofo, o que realmente importava eram nossas idéias

sobre o “relacionamento” entre os objetos e as formas geométricas e não se estes

objetos correspondiam exatamente às formas geométricas.

Lembramos que na natureza, maior fonte de inspiração para Descartes, não

existiriam formas geométricas perfeitas. Estas formas geométricas seriam

aproximações das formas matemáticas15. Mesmo assim, esse “relacionamento”

poderia ser demonstrado através de “fatos geométricos”. Por exemplo: o tronco de

15 Neste trecho percebemos claramente o caráter platonista das idéias de Descartes.

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uma árvore “relaciona-se” geometricamente com um cilindro, isto é, tem a forma

aproximada de um cilindro, mesmo que ele não seja exatamente cilíndrico. Isto

seria um exemplo de um “fato geométrico”. Por sua vez, essas formas geométricas

ou “traços geométricos” seriam um conhecimento a priori. Descartes assumiu

que, o que quer que fossem essas formas geométricas elas seriam verdadeiras,

pois seriam nossas próprias idéias de corpos e, portanto, elas existiriam.

Pensamos não ser possível afirmar se Descartes concluiu que tais formas

geométricas perfeitas existiriam fora de nossas mentes, porém elas eram sem

dúvida, objetos reais de nossas mentes, objetos das idéias, objetos da realidade.

Assim sendo, o filósofo conseguiu estabelecer seu ponto de vista, ou seja: nossa

idéia de corpo real possuiria de fato propriedades geométricas, pois conseguíamos

estabelecer um “relacionamento” entre eles. Novamente, o que Descartes queria

provar com o argumento da realidade objetiva seria: a) que os corpos teriam única

e genuinamente propriedades geométricas, “claras e distintas” e b) que as outras

propriedades anteriormente citadas não lhes fariam falta alguma, pois eram meros

“acidentes” atribuídos pela mente.

c) O último dos três argumentos, o argumento completo, estaria fortemente

baseado na diferença entre o corpo e a mente. Para Descartes, quando

examinássemos de perto nossas idéias pensaríamos que todos os conceitos que

temos poderiam ser classificados em duas vertentes distintas: a primeira

pressuporia a noção de extensão e a segunda, a noção de “pensamento”. Sendo

assim, o filósofo, em suas concepções, concluiu que: as idéias que teríamos sobre

mente e corpo seriam independentes. A relação distinta entre mente e corpo fora

fundamental na metafísica cartesiana. Sobre esta relação Descartes nos disse:

E, por certo, a idéia que tenho do espírito humano, na medida em que é uma coisa que pensa, e não extensa em comprimento, largura e profundidade, e que nada participa daquilo que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais distinta do que a idéia de alguma coisa corporal.” (DESCARTES, 2000, p.83).

Descartes acreditava que tudo aquilo que nossas mentes seriam capazes de

pensar, Deus seria capaz de criar. Objetos cujo atributo seria somente a extensão

poderiam perfeitamente existir sem os “acidentes” relacionados a “substância

pensante”. Lembramos que, esta “substância pensante” seria a mente ou a alma e a

“substância corpórea” seria o corpo ou a matéria. A mente ou a alma ou a

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“substância pensante” teria sensações, intelecto e desejos, porém a “substância

corpórea” ou “substância extensa” que possuiria as propriedades matemáticas,

geométricas, relacionadas ao tamanho, forma e movimento, isto é, propriedades

“claras e distintas”. As “qualidades sensoriais” como, por exemplo, cor, calor, frio

e sabor, estariam ligadas ao pensamento e não seriam peculiares ao corpo; só a

extensão o seria, de acordo com as obras de Descartes consultadas. Isto significa

dizer que as “qualidades sensoriais” exigiriam, ou melhor, seriam “fruto” somente

da “substância pensante”: elas seriam uma ocorrência única e exclusivamente da

mente. Resumindo: os corpos físicos seriam objetos geométricos reais e os

atributos como cor, calor, frio, sabor, entre outros, seriam produções da mente.

Apesar do discurso de Descartes e seus seguidores, encerramos a seção 3.2

sem a certeza de que para Descartes, a extensão era o único atributo da

“substância corpórea” ou “substância extensa”, pois, novamente, Gaukroger

(1999, p.212) não acredita que este filósofo pudesse simplesmente ter ignorado

por completo questões como “dureza” ou impenetrabilidade, cor e calor,

intimamente ligadas à matéria e à sua constituição. É bem verdade que os escritos

de Descartes nos leva em direção oposta a proposta por Gaukroger, porém,

corroborando a tese do comentador, também seria fato que Descartes mudara

diversas vezes de opinião sobre questões fundamentais ligadas a sua Filosofia

Natural, principalmente as questões ligadas ao movimento. A “substância

extensa”, o atomismo, o vácuo e o movimento não eram questões estanques na

Filosofia Natural de Descartes: uma levava a outra, uma afirmava ou negava a

existência da outra, constituindo assim, a Física Cartesiana como um dos sistemas

precursores da Física Moderna.

3.3 O Problema do Atomismo

Retornando as questões fundamentais da Filosofia Natural do século XVII,

o vácuo era um assunto que vinha sendo incessantemente discutido há vários

séculos, muito antes de Descartes. Na seção 3.1 mostramos que tanto Aristóteles

quanto os escolásticos negavam claramente a possibilidade de existência de um

espaço totalmente vazio. Embora Descartes pensasse diferente de ambos, no que

se referia à questão do corpo e extensão, ele compartilhava com as idéias

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aristotélicas e escolásticas sobre a não existência do vácuo. Descartes acreditava

que, como a “substância extensa” era o próprio corpo, conseqüentemente, o

mundo estaria repleto de corpos e, portanto, não poderiam existir espaços vazios.

Sobre a inexistência do vácuo, Descartes nos disse que:

A impossibilidade de um vácuo, no sentido filosófico de que nele não há substância alguma, fica claro, considerando o fato que não existe diferença entre a extensão do espaço, ou espaço interno e a extensão de um corpo. Um corpo extenso em comprimento, largura e profundidade, em si próprio, garante a conclusão que existe uma substância, então é uma completa contradição dizer que uma extensão qualquer poderia pertencer ao nada; e a mesma conclusão pode ser tirada com relação ao espaço supostamente vazio [vácuo], a saber, que desde que haja nele alguma extensão, deverá existir uma substância. (DESCARTES, 1971, p.71-72).

Nos Princípios da Filosofia, Parte II, Artigo 18, Descartes nos ofereceu um

exemplo prático a favor de sua argumentação contra o vácuo: como os dois lados

de um vaso -- “boca” e “fundo” -- seriam separados por uma distância -- altura --

então, nesta distância teria que haver alguma substância, pois esta altura seria uma

das “dimensões” da extensão. Por outro lado, se não houvesse corpos entre os dois

lados do vaso, não haveria uma distância entre eles e, assim sendo, a “boca” e o

“fundo” deveriam estar se tocando, se confundindo16.

Com este exemplo, Descartes negara a doutrina central do atomismo antigo

de Demócrito, Epicuro, Leucipo e Lucrécio. Para estes, a existência do vácuo

servia para justificar o importante conceito do corpo indivisível e indestrutível

chamado átomo. Os átomos seriam indivisíveis, corpos imutáveis, a última parte

do corpo que se chega através da divisão do mesmo e de onde tudo poderia ser

construído. Assim, tanto para os atomistas antigos quanto para os newtonianos,

entre os átomos haveria, necessariamente, o espaço vazio.

Porém Descartes, da mesma forma que rejeitara o vácuo, rejeitara também o

átomo -- “última parte da matéria” -- e enchera o universo com uma substância

sutil, infinitamente divisível, contrária ao átomo que, em termos de “substância

extensa”, seria sua última parte. Descartes não aceitava a “última parte” das

coisas, pois, se tudo provinha de Deus e este na sua infinita perfeição tudo

poderia, por que não dividir em partes cada vez menores aquilo que os atomistas

antigos chamaram de “última parte da matéria”? Portanto, a divisibilidade infinita

16 Este exemplo foi “re-editado” por John Locke nos Um Ensaio Acerca do Entendimento Humano e refutado por Leibniz nos Novos Ensaios.

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da extensão geométrica somada a sua crença inabalável na onipotência Divina,

tornara impossível para Descartes aceitar o atomismo antigo. Em suas próprias

palavras: E porque nenhum corpo pode ser dividido em um tão grande número de partes, sem que cada uma dessas partes seja ainda entendida [como] divisível, julgaremos que a quantidade [de “substância extensa”] é indefinidamente divisível. (DESCARTES, 2002, p.45).

Por outro lado, havia entre os próprios contemporâneos de Descartes,

aqueles que, apesar de também serem cristãos como ele, achavam que Deus até

poderia ter dividido infinitamente o átomo na sua onipotência, mas não o fizera

porque assim não o quisera. Garber (1995, p.301), observa que alguns desses

contemporâneos de Descartes rebateram vigorosamente seus argumentos a favor

da divisibilidade infinita dos corpos, visto que Descartes dava uma enorme

importância ao fato que os atomistas antigos por não acreditarem no Deus

onipotente dos cristãos, não poderiam sequer supor a divisibilidade infinita desses

corpos. Vale destacarmos que, Descartes utilizou-se do termo “infinito” em sua

Filosofia Natural e metafísica somente para as coisas ligadas ao Divino, pois,

segundo o filósofo, nós por sermos finitos não poderíamos ter a percepção do

“infinito”: teríamos apenas a percepção do “indeterminado”. Em suas próprias

palavras:

E a estas [a quantidade de pontos numa linha e o número de estrelas no céu] chamaremos indefinidas de preferência a infinitas, de um lado, para reservarmos o termo ‘infinito’ somente para Deus, pois é só nele que, sob todos os aspectos, não apenas não reconhecemos limite algum, mas também entendemos positivamente que não há nenhum; de outro lado também, porque não entendemos do mesmo modo positivamente, que outras coisas carecem de limites sob algum aspecto, mas apenas negativamente admitimos que os limites dessas coisas, se é que elas têm alguns, não podem ser descobertos por nós. (DESCARTES, 2002, p.47).

Apesar de toda essa controvérsia, pensamos ser importante destacar que

Descartes se mantivera coerente com sua mecânica -- Filosofia Natural moldada

em cima da extensão dos corpos -- ao criticar e não aceitar o vácuo e o átomo. Já

que tudo no corpo era extensão, o mundo deveria ser feito de algum tipo de

substância e tudo deveria ser explicado em termos de tamanho, forma e

movimento. Entretanto, como os atomistas antigos, o filósofo rejeitava a “forma

substancial” -- “substância primeira” e “substância segunda” -- dos escolásticos.

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Para argumentar contra essa “forma substancial”, Descartes se baseava somente

no seguinte argumento: tudo poderia ser explicado em termos de tamanho, forma

e movimento. Contra a “forma substancial” escolástica, Descartes argumentaria: Eu admito abertamente não conhecer nenhuma outra propriedade nas coisas [substâncias] corpóreas, exceto que elas sejam capazes de se dividir, ter uma forma e um movimento, em todos os sentidos (...). E, eu admito, que não levo em conta nada mais exceto essas divisões, formas e movimentos (...). (DESCARTES, 1971, p.101-102).

3.4 A Definição de Movimento

Para Descartes, o estudo do movimento revelou-se uma outra questão

primordial de sua Filosofia Natural e, como veremos no próximo capítulo, foi

justamente sobre esta questão que a divergência entre Newton e os cartesianos

mais se acirrou. Segundo Descartes, a única coisa que poderia distinguir um corpo

do espaço que ele ocupa seria seu movimento, já que o espaço só existiria na

presença de um corpo. Por esta razão, para Descartes e os cartesianos, dois dos

principais objetivos da sua Filosofia Natural seriam: a) o estudo e a exposição do

movimento dos corpos e b) as diversas variações deste movimento. Em suma: o

movimento, assim como a extensão, poderia ser considerado um princípio

fundamental para Descartes.

Embora reconhecendo ser essa uma questão central, Descartes não

conseguiu definir com facilidade e clareza as regras e leis que regiam o

movimento. De acordo com Gaukroger (1999, p.257), inicialmente Descartes

pensava que o movimento seria “indefinível”, visto que encontrava muitas

dificuldades ao tentar conceituá-lo de forma simples e clara. Logo após, passou a

considerá-lo como algo local, restrito a uma simples mudança de lugar, fortemente

ligado às regras geométricas. Recordamos que, para Descartes, a simplicidade

estava na matemática, mais especificamente, na geometria. Assim na Meditação

Primeira ele nos disse que: Eis porque talvez não concluamos mal se dissermos que a Física, a astronomia, a medicina e todas as outras ciências que dependem da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas, mas que a aritmética, a geometria e as outras ciências dessa natureza, que só tratam de coisas muito simples e muito

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gerais, sem se preocuparem muito se elas estão na natureza ou se não estão, contém algo de certo e indubitável. (DESCARTES, 2000, p.35).

Vale recordar que Descartes, não tinha uma boa definição de “lugar”, fato

que também contribuiu com a sua idéia da impossibilidade de alguém poder

descrever precisamente o que era o movimento. A definição de “lugar” para

Descartes limitava-se a “superfície que circunda o corpo”, visto que o espaço não

existia sem o corpo. É provável que Descartes, de certa forma, tenha sido

influenciado pela definição aristotélica de “lugar”, vista na seção 3.2 - mesmo que

Aristóteles tenha detalhado sua definição de “lugar”.

De fato, Descartes não se preocupou tanto com a questão do lugar: este

lugar, para os cartesianos, tinha importância somente se relacionado com o

movimento. Para eles, como todo corpo possuiria uma extensão, o movimento

poderia ser classificado, a princípio, como uma simples mudança de lugar.

Por conta desta definição inicial do movimento, Descartes voltou a atacar a

Física de Aristóteles. Para os aristotélicos, movimento era uma particularidade da

mudança: um processo que transformava potência em ato. Aristóteles acreditava

também que toda mudança seria um movimento, pois, o movimento teria que ser,

necessariamente: a) qualitativo; b) quantitativo e c) associado à locomoção.

Porque para Descartes todo corpo era extenso, o movimento, num primeiro

momento, pareceu-lhe limitado a uma simples mudança de lugar que só existiria

mediante a presença do corpo. Deste modo, Descartes queria apenas provar que a

definição de movimento defendida pelos aristotélicos e adotada pelos escolásticos

estava errada. Contudo, num segundo momento, Descartes pensou que o

movimento real teria que ser algo além de uma simples mudança de lugar. O

movimento teria que ser aquele defendido pelos geômetras, um movimento

intuitivo, que não necessitava de maiores explicações para que pudesse ser

compreendido: seria a transferência de uma parte da matéria ou do corpo de uma

vizinhança composta dos corpos que a tocava e que estivessem em repouso para

outra vizinhança de outros corpos. Assim, surgira a nova definição de movimento

para Descartes: diferente e mais complexa que a primeira. Sobre sua nova

definição de movimento, Descartes nos diz: “Eu acrescento que a transferência

toma lugar da vizinhança dos corpos que imediatamente são tocados pela

vizinhança de outros, e não de um lugar para outro (...).” (DESCARTES, 1971,

p.78).

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Nesta citação, percebemos claramente a diferença entre as duas idéias de

movimento: na primeira, Descartes trabalhou com um conceito pouco explorado

em sua Filosofia Natural, o conceito de lugar; já na segunda, ele troca o conceito

de lugar pela conceito de vizinhança - mais ligado à relatividade do espaço e do

próprio movimento.

Prontamente, a principal diferença entre as duas visões de movimento,

escolástica e cartesiana, seria que a primeira trataria de uma “ação”, um processo,

transformação de potência em ato e a segunda de uma simples “transferência” de

corpos de uma vizinhança para outra, desde que ambas estivessem em repouso.

Para explicar a diferença entre as duas definições de movimento, escolástica e

cartesiana, Descartes argumentou que:

a) Em um primeiro momento, teríamos a tendência de associar o movimento à

ação e, por conseguinte, os corpos que não estivessem em movimento estariam

com falta de ação. Descartes considerava esta associação um grande erro, pois

para ele não seria necessária “mais ação” para que um corpo em movimento

entrasse em repouso ou que um corpo em repouso entrasse em movimento.

Descartes considerava também ser importante separar o movimento como um

processo do corpo, de suas causas. Para o filósofo o movimento era a causa de

alguma coisa e não simplesmente um processo de mudança - como dito pelos

escolásticos. Sobre esta distinção entre processo e causa, ele nos diz que: Mas se em vez de ficarmos naquilo que não tem outro fundamento senão a utilização comum, nós desejamos saber o que é o movimento segundo a verdade, nós diremos, a fim de lhe atribuir uma natureza que seja determinada, que é O TRANSPORTE DE UMA PARTE DA MATÉRIA, OU DE UM CORPO, DA VIZINHANÇA DAQUELES QUE O TOCAM IMEDIATAMENTE, E QUE NÓS CONSIDERAMOS COMO EM REPOUSO NA VIZINHANÇA DE OUTROS. Por UM CORPO, ou melhor, por UMA PARTE DA MATÉRIA eu quero dizer tudo o que é transportado junto ao que quer que seja | talvez composto de várias partes que, no entanto empregam sua agitação para fazer outros movimentos. E eu digo que ele [o movimento] é o TRANSPORTE e não a força ou a ação que transporta a fim de mostrar que o movimento está sempre na coisa que se move, e não naquele que causa o movimento; pois me parece que não se tem o hábito de distinguir essas duas coisas com bastante cuidado. Além do mais, eu compreendo que ele [o movimento] é uma propriedade do corpo que se move e não uma substância: assim como a figura é uma propriedade da coisa que é figurada e o repouso [é uma propriedade] da coisa que está em repouso. (DESCARTES, 1971, p.76).

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b) A definição do vulgo -- escolástica -- tratava da mudança em geral enquanto a

definição de “transferência” tratava da mudança de vizinhanças. Esta diferença

estava ligada ao seguinte fato: a designação de um lugar seria relativa a uma

escolha arbitrária de um referencial e somente através deste referencial que

alguém poderia dizer que um corpo estaria mudando de lugar ou não. Desta

forma, caiu por terra a definição escolástica do movimento, visto que

simplesmente mudar de lugar não garantia que um corpo estivesse em movimento:

este dependeria da escolha arbitrária de um referencial em repouso. Com suas

próprias palavras, Descartes exemplifica este novo conceito: “(...) Por exemplo,

alguém estiver sentado num barco enquanto este se afasta do porto, pode pensar

que esta se movendo se olhar para trás e ver o porto (...), mas não se olhar para o

barco (...).” (DESCARTES, 1971, p.76).

Nos Princípios da Filosofia, ao contrário de suas observações anteriores,

Descartes parecia perceber, mesmo que instintivamente, a diferença entre

movimento e repouso: eram opostos. Bastaria então que, o filósofo fizesse uma

boa definição de movimento para deixar claro esse fato. Infelizmente, as tentativas

de Descartes em fazer uma boa definição objetivando resolver a dicotomia

movimento/repouso pareciam esbarrar sempre em arbitrariedades que não

poderiam ser aceitas por ele. Em suma: Quem deteria o movimento real o barco

ou o porto?

Todavia Gaukroger (1999, p.452), em um primeiro momento, baseando-se

no O Mundo, escrita doze anos antes dos Princípios da Filosofia, não concordaria

em parte com a observação feita no parágrafo anterior. Nas palavras do

comentador:

A rejeição do contraste entre o movimento, de um lado, e o repouso e a forma, de outro, indica que o movimento não está ligado à natureza do corpo, como estaria numa interpretação teleológica do movimento, como na dinâmica aristotélica, mas também não é algo interno ao corpo, como o movimento ‘imprimido’ da teoria do impetus. Além disso, uma vez equiparado o movimento ao repouso, deixa de haver qualquer diferença intrínseca entre os dois, na medida em que o repouso pode ser entendido como um movimento de valor zero. (GAUKROGER, 1999, p.452).

Porém, mais adiante, o próprio Gaukroger (1999, p.453) comenta a

mudança de opinião de Descartes nos Princípios da Filosofia. A “relativização”

do movimento introduzida por Descartes em detrimento da mudança de lugar foi

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tida por Gaukroger (1999, p.454) como uma das explicações para a diferença

observada entre o movimento e o repouso. Contudo, se a diferença entre

movimento e repouso fosse realmente arbitrária, isto é, em termos

contemporâneos, se esta diferença dependesse do referencial do observador,

ficaria um pouco mais fácil para Descartes explicar claramente esta dicotomia.

Vale ressaltar a diferença que existia entre o conceito de referencial de Galileu e o

de Descartes. Galileu, contrariamente a Descartes, fora capaz de encontrar um

modo de acomodar adequadamente a noção de referencial ao movimento. Para

este filósofo, deveria existir um “sistema de referência” -- ente fundamental para a

compreensão da relatividade do movimento -- que estaria sempre em repouso ou

em translação retilínea e uniforme em relação às estrelas fixas - que seriam

estrelas que aparentariam manter fixas suas posições no céu após muitos séculos

de observações astronômicas17. Descartes, por sua vez, não obteve tanto sucesso

com o conceito de referencial aplicado a sua definição de movimento. No entanto,

era evidente que para Descartes, se não houvesse uma diferença explícita entre

movimento e repouso, então o movimento não seria real e se assim o fosse, este

movimento não poderia ter ocupado um lugar em sua Física, visto que não seria

um conceito adequado às idéias “claras e distintas”. Para exemplificar seus

conceitos de “referencial” e de “relativo”, Descartes criou o seguinte

“experimento imaginário”:

Se alguém anda em um barco carregando um relógio (...), as rodas do relógio se movem somente em uma direção (...), mas elas também tomam parte em outro [movimento], na medida em que elas estão unidas ao movimento do homem e juntamente com ele compõe uma parte da matéria [do todo]. Elas [as rodas do relógio] também participam [do movimento] em outra direção, na medida que elas estão unidas ao barco balançando no mar, e em outro [movimento] na medida em que elas estão unidas a Terra, se de fato a Terra se move como um todo. E todos estes movimentos estão verdadeiros nas rodas [do relógio]. (DESCARTES, 1971, p.80).

Para Garber (1995, p.304), o conceito descrito na citação acima elimina

algumas arbitrariedades da noção conhecida de movimento naquela época, pois,

por exemplo, no caso dos relógios mecânicos, suas rodas estriam todas em

movimento em relação umas as outras -- vizinhas -- porém, se olharmos o relógio

como um todo, ele estaria parado no bolso de seu portador e assim

17 A noção de referencial galileano não será explorada, de forma pormenorizada, nessa dissertação.

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sucessivamente. Deste modo, acreditamos que o maior problema encontrado por

Descartes fora definir com precisão o que seria uma vizinhança contígua e como

esta se relacionava de fato com o movimento e a transferência.

Enquanto prevalecesse a idéia de que um dado corpo teria somente um

movimento, decidir se um determinado corpo estivesse em movimento e sua

vizinhança estivesse em repouso ou vice-versa ainda poderia parecer arbitrária.

Porém, pode ser que a doutrina da reciprocidade da transferência tivesse

convencido os cartesianos mais céticos - aqueles que ainda acreditavam não haver

diferença entre movimento e repouso. Decididamente, para Descartes o

movimento era relativo e o principal argumento do filósofo a favor dessa

relatividade era: Finalmente, eu acrescento que a transferência tem lugar [acontece] a partir da vizinhança não de qualquer corpo contíguo, mas somente da vizinhança daqueles [corpos] que estejam em repouso. Este tipo de transferência é recíproco, portanto, não podemos entender um corpo AB transferido para a vizinhança do corpo CD sem que este [corpo CD] se transfira ao mesmo tempo para a vizinhança do corpo AB (...). (DESCARTES, 1971, p.78).

Numa análise minuciosa de Garber (1995, p308) e de Amélie Oksenberg

Rorty intitulado Descartes Pensando a partir do Corpo, para Descartes e seus

seguidores, desde a redefinição do conceito movimento de “mudança de lugar”

para “transferência”, passou a existir de fato um consenso sobre um corpo estar

repouso ou em movimento. Este consenso levava a arbitrariedade do movimento

como um todo. Por outro lado, o movimento poderia também ser pensado como

uma separação mútua, uma fronteira entre o corpo e sua vizinhança e neste caso,

não poderia existir uma distinção arbitrária entre movimento e repouso: existiria

somente um corpo e sua vizinhança em transferência mútua a todo instante e,

nenhum ato puro de pensamento poderia mudar este fato, isto é, colocá-los em

repouso. Por causa da doutrina da reciprocidade da transferência entre vizinhanças

-- descrita na citação acima pelo próprio Descartes -- sempre que um corpo

estivesse em movimento, nós poderíamos dizer que sua vizinhança também o

estaria. Um corpo A não poderia ser separado de sua vizinhança B sem que ao

mesmo tempo B se separasse de A.

Embora possa parecer, prima facie, a principal característica da doutrina da

reciprocidade da transferência não seria a introdução do conceito de relatividade

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ou a indeterminação entre movimento e repouso, mas sim, enfatizar que o

movimento pertenceria a um corpo e à sua respectiva vizinhança. Se o movimento

era entendido como a separação mútua entre o corpo e sua vizinhança, então, seria

impossível para o corpo estar em movimento e em repouso ao mesmo tempo,

assim como seria impossível estar e não estar em transferência com sua

vizinhança contígua. Desta forma, Descartes acreditou que resolvera de vez a

questão da dicotomia movimento/repouso18.

De acordo com o que vimos até agora, Garber (1995, pp.310-311) concluiu

que, embora essa definição do movimento cartesiano nos permitisse ter uma idéia

não arbitrária para a diferença entre movimento e repouso não seria bem aquela

que Descartes provavelmente desejava. Na primeira definição de movimento de

Descartes -- mudança de lugar -- noções como “extensão do corpo”, “velocidade”,

“direção” e “força” estavam coerentemente definidas, já que se escolhia um

referencial em repouso para a observação desejada. Porém, a “substância

extensa”, questão fundamental para Descartes e os cartesianos, não estava muito

bem definida na versão da “transferência” – aparentemente favorita de Descartes.

Como um corpo se moveria em um meio plenum -- não vazio -- sua vizinhança

contígua iria mudar a cada momento, sem que houvesse um referencial “neutro”

entre elas. Lembramos que, nos séculos XVI e XVII, a relação entre velocidade V,

espaço S e tempo T já era conhecida: V=Sf-Si/Tf-Ti19. Portanto, não foi difícil

perceber que a definição de “transferência” do movimento de Descartes encontrou

problemas para satisfazer as relações da “Física do movimento” pré-existentes,

pois se o referencial mudava devido à troca de vizinhança contígua, o espaço

inicial Si se perderia, tornando impossível o estabelecimento de um valor preciso

para a velocidade. Finalizando, enquanto que a primeira definição de movimento

cartesiano possuía definições conseqüentes “velocidade”, “direção” e “força”, e

18 De acordo com o artigo de Rorty (1995, p.375) e a crítica de Leibniz a Descartes Sobre os Princípios de Filosofia, e apesar de Descartes ter, aparentemente, resolvido o problema da arbitrariedade do movimento/repouso, a solução do filósofo ainda deixaria a desejar. Segundo Descartes, assim como para Leibniz, o movimento era relativo, porém, Descartes, pela sua definição de “transferência”, não conseguia estabelecer precisamente qual corpo estaria de fato em movimento e qual estaria em repouso no sistema. Leibniz conseguiu separar o que ele chamou de “movimento real” de uma simples “mudança de situação relativa”. Para este, diferente de Descartes, A teria um “movimento real” em relação a B, se e somente se: 1) A mudasse de posição em relação a B e 2) a causa desta mudança estivesse em A e não em B. 19 O índice i indica inicial e o índice f indica final.

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uma boa relação com o conceito de “extensão do corpo”, a segunda, eleita por

Descartes deixava a desejar.

Mesmo assim, diante do que foi discutido nesta seção, acreditamos não

existir uma boa razão para pensar que Descartes tivesse de fato percebido os

problemas que a visão de “transferência” levantou. Como dito por Gaukroger

(1999, p.257-258), a Filosofia Natural era parte fundamental do todo da obra de

Descartes e, portanto, o filósofo procurava sempre adaptá-la a este todo, da

melhor maneira possível.

3.5 As Leis do Movimento

Como já vimos anteriormente, para Descartes existia uma única “substância

corpórea” cuja essência era sua extensão. Para os escolásticos, aos moldes de

Aristóteles, cada substância tinha sua característica comportamental própria,

determinada por sua forma substancial. Descartes acreditava que as características

comportamentais dos corpos, como “substância corpórea”, seria determinada por

uma série de leis naturais. Já dissemos também que para este autor, toda mudança

estaria baseada em um movimento local e essas leis seriam essencialmente

governadas pelo movimento dos corpos. Assim sendo, as leis do movimento

expressariam antigas idéias de Descartes. Na Meditação Terceira e na Meditação

Quinta, Descartes nos sugere que só Deus seria imutável e sempre agiria da

mesma forma e, provavelmente, teria sido desta crença que o filósofo derivou,

num primeiro momento, suas três leis do movimento, a saber: Primeira Lei: “(...) Cada parte da matéria, tomada separadamente, sempre continua no mesmo estado [de movimento] até que colida com outra força que a mude, e então, uma vez que ela tenha começado a se mover, irá sempre continuar com a mesma força, até que outra a pare ou diminua sua velocidade. (...)” (DESCARTES, 1986, p.38). Segunda Lei: “(...) Quando um corpo empurra outro, ele não pode dar a este corpo nenhum movimento sem que ao mesmo tempo perca parte do seu, nem pode tomar qualquer movimento do outro exceto se esse movimento for aumentado desse tanto. (...)” (DESCARTES, 1986, p.41). Terceira Lei: “(...) Quando um corpo está em movimento, [mesmo] até se esse movimento é mais freqüente em curva, todavia, cada parte dele, individualmente analisada, sempre tende a continuar seu movimento em linha reta (...)” (DESCARTES, 1986, p.43).

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Ao analisar de forma pormenorizada as descrições destas leis, Gaukroger

(1999, p.435), Garber (1995, p.311) e Cohen & Buchwald (2001, pp.xii-xiv)

concluíram que, para Descartes, as duas primeiras leis provinham de Deus, visto

que, Ele seria imutável e agiria sempre da mesma forma, produzindo sempre o

mesmo efeito na natureza. Em particular, para Gaukroger: (...) o projeto de Descartes almejava, em última instância, a legitimação metafísica de sua filosofia natural, que era decididamente copernicana. Para que esta legitimação metafísica tivesse êxito, era preciso mostrar que ela se coadunava com os ensinamentos da Igreja e não implicava nem conduzia a nenhuma heterodoxia teológica. (GOUKROGER, 1999, P.435).

Sob esta luz, o Deus de Descartes, no momento da criação, teria dado a

matéria uma certa “quantidade de movimento total” que deveria permanecer

imutável, caso contrário, não seria possível acreditar que Deus agiria sempre da

mesma forma. Para Gaukroger (1999, p.452), este seria o esboço do princípio da

“conservação da quantidade de movimento”, fundamental para as leis da natureza

que Descartes redigiu mais tarde. As leis conforme apresentadas acima, cujas

causas primeiras estavam em Deus, sofreram alterações a posteriori. Descartes

procurava outras causa para tais fenômenos, complementares a causa Divina.

Conforme vimos anteriormente, a primeira causa do movimento era Deus

que tudo havia criado. De forma mais sofisticada, Garber (1995, p.307) e Hall

(1981, p.222-225) afirmam que, para Descartes, Deus criara toda matéria e todo

movimento, mas separou a matéria do movimento, porém, conservou ambos --

matéria e movimento -- sob regras e leis idênticas. E esta conservação das

quantidades de matéria e movimento, sob as mesmas regras e leis, seria a segunda

causa do movimento. Assim, graças a esta constância Divina que algumas regras e

leis da natureza poderiam ser conhecidas pelos homens. As regras, em particular,

seriam as responsáveis por diferentes tipos de movimentos que percebemos em

cada corpo.

Diante dessa convicção, num segundo momento, Descartes introduziu a

nova forma das leis:

Lei I - Primeira Lei: “(...) Toda e cada coisa, simples e não dividida, sempre permanece, até quando puder, no mesmo estado [de movimento], a não ser que causas externas nela ajam ... e assim sendo concluímos que quase tudo que se move sempre o faz enquanto der. (...)” (DESCARTES, 1971, p.84-85).

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Lei II - Terceira Lei: “(...) Toda e cada parte da matéria, vista em si mesma, nunca tende a continuar se movimentando em curva, mas somente em linha reta. (...)” (DESCARTES, 1971, p.85-86). Lei III - Segunda Lei: “(...) Quando um corpo em movimento colide com outro, se possui menor força para prosseguir em linha reta, ele então se desvia em outra direção e conserva seu movimento mudando somente sua determinação [direção]. Mas se ele tem mais força, então ele move o outro corpo com ele e dá a este outro corpo tanto movimento quanto ele perdeu no choque. (...)” (DESCARTES, 1971, p.86-87).

Estas leis, por sua vez, geraram Sete Regras específicas para o movimento.

Para melhor exposição dessas regras consideraremos a seguinte nomenclatura20:

a) O corpo B teria uma massa MB, uma velocidade VB antes da colisão e VB’

depois da colisão;

b) O corpo C teria uma massa MC, uma velocidade VC antes da colisão e VC’

depois da colisão;

Assim sendo, segundo definido por Descartes nos Princípios da Filosofia, parte

II, artigos 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 54, seguem as regras de colisão:

1) C � e B �

a) Regra 1: Se MB=MC e VB=VC, então, depois da colisão,

VB’=VC’=VB=VC, B e C se moverão em direções opostas;

b) Regra 2: Se MB>MC e VB=VC, então, depois da colisão,

VB’=VC’=VB=VC, B e C se moverão na direção de B;

c) Regra 3: Se MB=MC e VB>VC, então, depois da colisão,

VB’=VC’=[(VB+VC)/2], B e C se moverão na direção de B;

2) C está parado e B � 20 Estas regras foram por nós reescritas baseadas na tradução literal do latim para o inglês feita por Garber (1999, pp.322-324). Pensamos que a tradução literal do inglês para o português, sem as adaptações feitas, comprometeriam o entendimento pleno daquilo que pretendemos mostrar.

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a) Regra 4: Se MB<MC, então, depois da colisão, C continuará parado e B

refletirá;

b) Regra 5: Se MB>MC, então, depois da colisão,

VB’=VC’=[MBVB/(MB+MC)], B e C se moverão na direção original de

B;

c) Regra 6: Se MB=MC, então, depois da colisão, VC’=(1/4VB), B refletirá

e C se moverá na direção original de B;

3) C � e B � e VB>VC

a) Regra 7i: Se MB>MC e (VB/VC)>(MC/MB), então, depois da colisão,

VB’=VC’=[(MBVB+MCVC)/(MB+MC)], B e C se moverão na mesma

direção;

b) Regra 7ii: Se MB<MC e (VB/VC)<(MC/MB), então, depois da colisão,

VB=VB’ e VC=VC’, B refletirá e C continuará na mesma direção;

c) Regra 7iii: Se MB<MC e (VB/VC)<(MC/MB), então, depois da colisão,

VB/2=VB’ e VC3/2=VC’, B transferirá uma parte do movimento para C e

refletirá o resto o mesmo ocorrerá com C em proporções distintas;

Com relação à regra sete, Garber (1995, p.323) observou, sem maiores

explicações, que: a) na regra 7i haveria um equilíbrio de movimentos; b) na regra

7ii o movimento seria igual ao anterior à colisão e c) na regra 7iii ocorreria uma

transferência de parte do movimento entre os corpos. Lembramos que,

contemporaneamente falando, somente a Regra 1 seria válida21.

Sobre as regras em geral, argumentamos que: a) em todas as Sete Regras,

para Descartes, a velocidade em sua totalidade era conservada e quando um corpo

refletia após o choque, mudando sua direção, não haveria mudança de velocidade;

21 Nesta dissertação, não faremos uma análise contemporânea das regras cartesianas.

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portanto, por inferência, não havia mudança na “quantidade de movimento”; b)

em momento algum Descartes fez uma distinção clara entre uma grandeza escalar

e uma grandeza vetorial, principalmente no que se referiu a velocidade dos corpos

após o choque22 e c) Descartes queria mostrar a diferença que havia entre

movimento e repouso, pois, se esta distinção fosse arbitrária, como o filósofo

pensara inicialmente, então não faria diferença física se, após o choque entre

corpos, estes fossem grandes ou pequenos, pois, todos poderiam permanecer em

repouso.

Sob a luz desta breve análise das Sete Regras, argumentamos que Descartes

não apresentou a lei da “conservação do momento” como um princípio, mas sim,

como complemento a primeira versão da segunda lei - lei da colisão. Somente

para fins elucidativos, não devemos confundir o “princípio da conservação”,

conforme estabelecido por Descartes, com o conceito moderno de momentum23. O

filósofo não tinha noção de “massa” independente do tamanho ou da forma do

objeto. Além disso, não havia indícios de medições para as ocorrências que

envolviam colisões, visto que Deus era o responsável por tudo o que acontecia,

acreditamos que Descartes não tenha percebido a real necessidade de atirar uma

bola contra a outra antes de divulgar o resultado – tratou-se de mais um

experimento imaginário do filósofo. Entretanto, na análise de Garber (1995,

pp.313-314), talvez Descartes -- mesmo sem explicitar -- não estivesse totalmente

convencido do que exatamente Deus estava “conservando”. Para o comentador,

Descartes não entendia bem a relação matéria/movimento.

Posteriormente, como vimos nas Sete Regras, Descartes introduziu algumas

poucas medições numéricas e afirmou que embora o movimento fosse

simplesmente um modo, ele possuiria uma certa “quantidade” -- uma magnitude --

que poderia facilmente ser compreendida como uma constante no universo das

coisas - apesar de variar individualmente. Em suma, não seria errado pensarmos

22 A grandeza escalar é aquela que, para seu pleno entendimento, basta conhecermos seu módulo e sua unidade de medida. Por exemplo, uma massa igual a 3 kg. Já para conhecermos uma grandeza vetorial é necessário sabermos também, além de seu módulo e sua unidade de medida, sua direção e seu sentido. Um bom exemplo de uma grandeza vetorial é a “quantidade de movimento”. (CHAVES, 2000, p.33). 23 Para a Física Clássica, uma força é alguma coisa que varia a velocidade de um objeto, para a Física Moderna uma força varia o momentum do objeto, isto é a massa multiplicada por sua velocidade. Portanto, contemporaneamente falando, a “quantidade de movimento” cartesiana não seria igual ao momentum, pois a força, seja lá o que ela fosse, não alteraria sua massa, ou melhor, sua quantidade de matéria. (CHAVES, 2000, p.103).

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que uma parte da matéria como um todo se moveria duas vezes mais rápido que

outra ou talvez que fosse duas vezes mais larga: existiria a mesma “quantidade de

movimento”, tanto na mais rápida quanto na mais larga. Para Descartes o que

Deus conservaria seria a “quantidade total do movimento” - valor da velocidade

total do sistema multiplicada pela sua massa total. Sobre esta conservação Divina,

Descartes nos disse que:

(...) movimento é nada em relação à matéria que se move, além de modo, ainda assim, ele possui uma certa e determinada quantidade [numérica], que podemos facilmente entender que permaneça a mesma em todo universo das coisas, embora mude nas partes individualmente. (...) (DESCARTES, 1971, pp.83-84).

Apesar de aparentemente bem definido, o princípio da “conservação” era

insuficiente para explicar certos aspectos da Filosofia Natural cartesiana. Por

exemplo, ele não explicava o comportamento individual dos corpos. Como já

vimos anteriormente, esse princípio era a causa universal e primária do

movimento e deveria ser complementada por várias leis particulares e secundárias

que, como o “princípio da conservação”, derivavam da constância de Deus.

Segundo interpretação de Garber (1995, p.314), duas dessas leis eram conhecidas

como “princípio da persistência”, pois, versavam sobre o conceito de persistência

de certas quantidades num corpo único, a saber: a) Lei I - movimento e b) Lei II -

tendência a se mover em linha reta.

A Lei I afirma que tudo permanece no estado em que se encontra até que

causas externas a mudem. Para Cohen & Buchwald (2001, p.xiii), o movimento

cartesiano, neste caso específico, apareceria como um caso especial: algo como

um “estado” do corpo e persistiria como os outros “estados” do corpo. Este

princípio apontaria na direção oposta a idéia aristotélica do movimento.

Lembramos que, na concepção de Aristóteles, um corpo em movimento tenderia

ao repouso - seu estado natural. Elaboradas explicações foram dadas pelos

aristotélicos a fim de explicar o porquê de um projétil continuar em movimento

após deixar para trás aquilo que lhe dera o empurrão inicial. Aristóteles acreditava

que o problema do “lançamento de projéteis” se explicaria de uma das duas

formas, a saber: a) ao lançar uma flecha no espaço, ela romperia o ar e deixaria

um rastro vazio para trás; como a natureza teria “horror” ao vazio, o ar rompido

iria para trás e empurraria a flecha para frente e b) ao lançar a flecha, o ar também

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seria lançado junto com ela e assim se tornaria um “motor” que continuaria a

movê-la, decaindo até cessar, quando a flecha cairia.

Em contrapartida, Descartes disse que não haveria outra explicação para o

problema da queda dos corpos senão que o corpo perderia gradativamente sua

velocidade devido à presença de outros corpos que com ele se chocavam durante

sua trajetória. Deste modo, a explicação aristotélica para o problema do

“lançamento de projéteis” soava como um grande absurdo para Descartes. De

acordo com Aristóteles, não era uma tendência do corpo e sim outros corpos a

causa do fenômeno da “persistência do movimento”. A visão aristotélica era

contrária a visão cartesiana. Enquanto que para Descartes o movimento era um

estado do corpo para Aristóteles era um processo rumo ao repouso. Aristóteles

acreditava que o movimento era um estado oposto ao estado de repouso. Para

Garber (1995, p.315), a observação da persistência do movimento pode ser

considerada uma das mais importantes idéias do século XVII, porém, não fora

original de Descartes. Galileu, entre outros, já havia feito esta observação.

Entretanto, teria sido Descartes que a formalizou e a publicou em forma de lei e,

posteriormente, Newton a aperfeiçoou. Ainda sobre a Lei I, foi só com a Física

Newtoniana, no final do século XVII que, o conceito de inércia -- “persistência do

movimento” -- obteve uma adesão geral da comunidade científica como um todo.

Continuando a análise das leis do movimento cartesiano observamos, ao

comparar a Lei I de Descartes com a Primeira Lei do Movimento de Newton, que

Descartes não deixou claro se o movimento que se mantém mudaria de direção ou

de velocidade. Porém, na Lei II não houve dúvidas sobre o tipo de movimento

citado: era o retilíneo uniforme - MRU. Na concepção de Garber (1995, pp.311-

312), a Lei II teria um propósito maior: complementar a Lei I. Vale ressaltarmos

que as Leis do Movimento de Descartes não mencionavam nem contemplavam o

movimento circular. Para Descartes o movimento circular ou “impedido”, dar-se-

ia da seguinte forma: Os planetas eram levados em torno de um Sol central,

através de um fluído denominado vórtice -- vortex -- que “impedia” que o planeta

continuasse se movimentando em linha reta.

Faremos agora uma pequena pausa na análise das Leis de Descartes a fim de

detalhar um pouco mais o conceito cartesiano de movimento circular e a teoria

dos vórtices, pontos chaves na controvérsia entre cartesianos e newtonianos. Em

termos contemporâneos, Descartes acreditava que o movimento natural dos

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corpos era o retilíneo uniforme. No caso do movimento circular -- movimento dos

planetas ou movimento “impedido” -- este só se daria devido a um “impedimento”

da “força do corpo em movimento” que empurrava o corpo em linha reta, fazendo

com que o movimento do corpo em questão naturalmente se “curvasse”, gerando

movimento circular. A origem desse “impedimento” seria o vórtice.

Sendo assim, a teoria dos vórtices tornou-se um dos pilares da Filosofia

Natural cartesiana. Por sua vez, a Física Newtoniana não necessitava do vórtice

para explicar o movimento planetário. Newton ao estabelecer o conceito de força,

particularmente ao estabelecer o conceito de “força centrípeta”, descartou de vez

teoria dos vórtices cartesiano. A “Proposição 53”, Teorema 41, do Livro II, dos

Princípios Matemáticos de Filosofia Natural de Newton foi dedicada totalmente a

refutar a existência do vórtice cartesiano: “Os corpos que, na mesma órbita, são

levados pelo vórtice e retornam, têm a mesma densidade que o vórtice e se

movem de acordo com a mesma lei como as partes do vórtice em relação à

velocidade e direção.” (NEWTON, 1999, p.788). Lembro que, para Descartes a

única força existente era a “força do corpo em movimento”, dada pela massa do

corpo multiplicada pela sua velocidade, isto é, mv. Descartes sustentava esta

posição mesmo que, conforme descrito por ele nos Princípios da Filosofia, ao

realizar o experimento da pedra girando em uma funda, o filósofo tivesse sentido

em suas mãos a sensação de “algo” puxando a pedra para fora da funda. Esta

sensação seria a “força centrífuga” descrita por Huygens em 1657 como a massa

do corpo multiplicada por sua velocidade ao quadrado, dividida pelo raio de

curvatura - mv2/r. Sobre a questão do vórtice nas Físicas cartesiana e newtoniana,

Gaukroger comentou: A resiliência da teoria dos vórtices e a relutância dos cartesianos em abandoná-la não devem ser subestimadas. Ao lado de suas leis do movimento, a teoria cartesiana dos vórtices foi o ponto de partida de todos os trabalhos sérios na teoria física em meados do século XVII, inclusive o de Newton. Não é de surpreender que, quando Newton finalmente a substituiu por uma teoria geral, a da gravitação universal, nem todos ficassem imediatamente convencidos de que os vórtices tinham que ser abandonados. Newton examinou o movimento dos corpos nos líquidos no Livro II de seu próprio Principia, argumentando com certa minúcia que era a densidade do meio, e não a sutileza de suas partes, que constituía o principal fator na determinação da resistência oferecida. Com base nisso, concluiu que a teoria dos vórtices era incompatível com a terceira lei de Kepler e que os vórtices não poderiam ser auto-sustentáveis: a menos que houvesse uma alimentação constante de energia no centro, o movimento se difundiria igualmente por todo o vórtice. Na verdade, no “Escólio Geral” do fim do Livro III, Newton assinalou que, num vórtice cartesiano, onde a densidade do meio é igual a densidade do corpo que

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se move nele, o corpo perderia metade de seu movimento antes de percorrer uma distancia igual ao dobro de seu diâmetro. No entanto os cartesianos do fim do século XVII, como Régis, não conseguiam entender porque os avanços de Newton não poderiam compatibilizar-se com a teoria dos vórtices, e trataram de mostrar que estes podiam ser adaptados a formas elípticas, se fossem espremidos por vórtices vizinhos, que as precessões de Mercúrio e Vênus podiam ser explicadas, que era possível elaborar uma explicação aperfeiçoada das marés, correlacionando-as com a posição da Lua através dos vórtices, e assim por diante. (GAUKROGER, 1999, p.467).

Voltando a análise das leis de Descartes, a Lei III tratava da questão

específica do choque entre dois corpos. Quando dois corpos possuíam “estados”

de movimento que tenderiam a persistir após o choque, verificava-se que não

persistiam simultaneamente. Descartes dizia que quando um corpo empurrava

outro, não cedia a este outro nenhum movimento cuja mesma quantidade não

perdesse e nem tomava dele uma “quantidade de movimento” sem que o outro

também a perdesse. Na tentativa de melhor explicar esta questão, Descartes

dividiu a “força do corpo em movimento” em duas partes. Para fins de

simplificação, consideremos dois corpos distintos X e Y; FA a “força avante” e

FR a “força de resistência”, respectivas aos corpos em movimento24.

1) Se FR>FA, então:

a) X Y após o choque, X Y;

2) Se FR<FA, então:

a) X Y após o choque, X Y, onde Y tende a parar;

A tese de Garber (1995, p.318) e Alan Gabbey nos diz que, do esquema

acima poderíamos concluir: a) que o impacto poderia ser visto como uma disputa

entre os corpos envolvidos, visto que ora um levaria vantagem, ora outro e b) que

não ficou muito claro como funcionariam as forças “avante” e “resistência”, pois,

não se sabe quanto delas seria transferida entre os corpos, isto é, como seriam

calculadas. Para Descartes: “(...) o corpo que possui a força de 'resistência',

24 Novamente, para melhor aproveitamento da leitura, redesenhamos a análise feita por Garber (1999, pp.316-318).

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resistiria a grandes velocidades mais do que a pequenas e isso em proporção da

grande sobre a pequena. (...)” (DESCARTES, 1971, p.90). Portanto, a força de

“resistência” seria proporcional ao tamanho do corpo e a velocidade de colisão.

Assim, um corpo grande em repouso não se moveria como o choque de um corpo

pequeno, independentemente da sua velocidade. Infelizmente, Descartes não fez

maiores comentários sobre a “força avante”, nas obras consultadas. Atribuímos

este fato a clareza que Descartes acreditava ter passado aos seus leitores através

das Sete Regras. Complementando, Gabbey resume o que seria uma “força do

movimento” na época de Descartes: Tomando a dinâmica do século XVII como um todo, na medida em que isso é permissível, pode-se dizer que a grande maioria de seus praticantes entendia a força, em seu sentido funcional, como o estado concomitante de um corpo – expresso em termos de toda a sua velocidade e massa corporal – passível de ser identificado com a capacidade relativa deste corpo de superar uma força de resistência entendida de maneira similar, fosse ela potencial ou real, independentemente da velocidade e da massa corporal em cujos termos se expressasse a força contrária. As interações dos corpos eram vistas como competições entre forças opostas, sendo as maiores as vencedoras e as menores as perdedoras: uma concepção de origem evidentemente antropomórfica. (GABBEY apud GAUKROGER, 199, pp.305-306).

Para Descartes, como vimos nas seções anteriores, os corpos seriam apenas

extensão -- altura, largura e profundidade -- porém, na Lei III e nas Sete Regras, o

filósofo fez uso de termos como “força avante” e “força de resistência” que os

corpos possuiriam devido às colisões. Ficaria então difícil explicar: a) como um

corpo extenso possuiria uma “força”, visto que ele só possuiria verdadeiramente a

extensão e b) como esta “força” interagiria com o fato de que o corpo tenderia a

permanecer no estado em que estava - conforme enunciado no conjunto das Leis I

e II.

Garber (1995, p.313) responde a essas dúvidas invocando o caráter

metafísico da Filosofia Natural de Descartes. Para o comentador seriam as

próprias leis do movimento e Deus os responsáveis pela relação corpo/força e

“permanência” natural do “estado” de movimento. Descartes foi muito explícito

ao afirmar que Deus “plantou” as leis do movimento sobre a terra, pois, segundo a

tradição cristã, Deus as teria criado e as sustentaria, em Sua onipotência, a cada

instante. Dessa forma, Descartes introduziu Deus na sua Filosofia Natural a fim de

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justificar a “conservação do princípio” que regeria as Leis I, II e III. E Gaukroger

completou:

O movimento [de Descartes] se conserva porque a força do movimento é conservada, e a força do movimento expressa ou manifesta de algum modo a atividade causal de Deus. Em última instância o movimento se conserva pelo fato de a causação ser conservada – uma conservação que Descartes coloca em termos da imutabilidade de Deus. (GAUKROGER, 1999, p.307).

Descartes também apelava a Deus para justificar as Sete Regras, isto é, as

causas secundárias e particulares do movimento. Segundo as palavras do próprio

filósofo: “(...) Da imutabilidade de Deus podemos conhecer certas regras ou leis

da natureza, que seriam causas secundárias e particulares de vários movimentos

observáveis nos corpos. (...)” (DESCARTES, 1971, p.84). Assim, a imutabilidade

de Deus explicava a “conservação da quantidade de movimento”, a persistência

do movimento e a troca de movimentos nas colisões.

Segundo Garber (1995, p.313), o apelo à conservação Divina jazia sobre as

leis do movimento. Seria Deus o causador do movimento em um mundo sem as

formas substanciais dos escolásticos. Deus agiria diretamente sobre os corpos e

suas existências. Descartes admitia que Deus fosse a causa primeira do

movimento, mas parecia às vezes não estar certo de que Ele fosse a única causa do

movimento. Segundo Descartes, em correspondência destinada a Henry More no

ano de 1649, haveria os “espíritos finitos” que também teriam o poder de mover

os corpos. Deus dera este poder a eles. Estes “espíritos finitos” poderiam ser

qualquer outra coisa, de caráter Divino ou não, porém, em contrapartida,

Descartes não descartava totalmente a possibilidade dos corpos terem uma relação

própria com a força. Provavelmente, por motivos religiosos -- a inquisição de

Galileu -- e baseado na crença de um ser imutável que criara o movimento e o

modificara, Descartes não desenvolveu publicamente essa idéia.

Todavia, o mais difícil seria determinar se os corpos poderiam ser as causas

das sensações ou se estas eram estados mentais. Embora Descartes insistisse na

tese que a mente -- ou o espírito -- pudesse causar o movimento nos corpos, pois,

o movimento não fazia parte de sua extensão, ele também dizia que os corpos

possuíam faculdades ativas, causadoras das idéias sensoriais que teríamos ao

observá-los. Concluindo, na Meditação Sexta, o filósofo escreveu sobre os corpos

e suas relações com a mente:

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(...) essa faculdade ativa não pode existir em mim na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe meu pensamento e também que tais idéias amiúde me são representadas sem que eu contribua para isso de algum modo, e amiúde mesmo contra minha vontade; é preciso então necessariamente que ela exista em alguma substância diferente de mim, na qual toda realidade, que está objetivamente nas idéias que dela são produzidas, esteja contida formal ou eminentemente (...). E essa substância é um corpo, ou seja, uma natureza corporal, na qual está contido formalmente e de fato tudo o que está objetivamente e por representação nas idéias; ou então é Deus mesmo, ou alguma outra criatura mais nobre do que o corpo, na qual isso mesmo está contido eminentemente. (DESCARTES, 2000, p.119-120).

Finalizando este capítulo, os cartesianos do final do século XVII não

compartilhavam da visão de mundo proposta pela Física de Newton

principalmente porque esta Física era totalmente incompatível com as idéias

metafísicas originais de Descartes. Por esta razão, como será mostrado no

próximo capítulo, acreditamos que, para Newton, a verdadeira Filosofia Natural

seria derivada da natureza das coisas, isto é, das causas verdadeiramente

existentes e somente a posteriori poder-se-ia perguntar sobre as leis que Deus

escolheu para fundar as bases do mundo. Para Descartes as coisas funcionam de

modo contrário: Deus teria estabelecido todas as regras a priori e caberia aos

filósofos dedicados à Filosofia Natural explorar as conseqüências deste ato Divino

e imutável. Roger Cotes (1999, p.393), no prefácio a segunda edição dos

Princípios Matemáticos de Filosofia Natural, datado de 1713, fez uma crítica

significativa a esta posição de Descartes e dos cartesianos: O mesmo movimento do ponteiro do relógio pode ser ocasionado ou por um peso suspenso ou por uma mola localizada em seu interior. Mas se um certo relógio fosse realmente movido por um peso, deveríamos rir do homem que acreditasse que fosse movido por uma mola e, a partir daquele princípio acolhido sem maior investigação, prosseguisse explicando o movimento do ponteiro; pois certamente o caminho a ser seguido seria olhar as partes internas da máquina para, então, encontrar o verdadeiro princípio do movimento proposto. (COTES apud NEWTON, 1999, p.393).

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