9
Inte cionalidade e ferlOI Edmund Husserl empreendeu, com a fenomenologia, a ultima grande tentativa de funda~ao total do conhecimento eI10 ()gl~l EDMUND HUSSERL NASCEU em 8 de abril de 1859, em Prossnitz, pequena cidade da Moravia, regiao da atual Rep(lblica Checa. Este filho de abastados comercian- tes judeus, que todavia se converteria ao cristianismo, nao se dedicou desde cedo a filosofia. Sua forma<;ao academica foi feita na area de ciencias exatas, como estudante de~~~trC?nomiaJemLeipzig, e de~ate~ emBedim e em Viena.Foi nesta ultima cidade que, em 1884, ele come<;ou a freqlientar os cursos de Franz Brentano. Isso mudaria de maneira radical a dire<;aode sua vida, levando-o em dire<;ao a filosofia. E, com esta, a ideia de "intencionalidade da consciencia", queele herdou diretamente de Brentano, com quem polemi- zaria, contudo, ate 0 final de seus dias - uma cena de parriddio bastante comum na hist6ria da filosofia. '<' '" o >- ~ CARLOSALBERTORIBEIRO DE MOURA 3 e doutor e livre-docente em filosofia da Universidade de Sao Paulo, institui~ao em ~ que leciona. Publicou Crftica da razao « na fenomenologia (EdusplNova Stella), ~ Racionalidade e crise (Discurso Edito~alJ ~ Editora UFPr) e Nietzsche: civiliza(iio e © cultura (Martins Fontes).

3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

Inte cionalidade e ferlOIEdmund Husserl

empreendeu, com afenomenologia,a ultima grande

tentativa defunda~ao total

do conhecimento

eI10 ()gl~l

EDMUND HUSSERL NASCEU em 8 de abril de 1859, em

Prossnitz, pequena cidade da Moravia, regiao da atual

Rep(lblica Checa. Este filho de abastados comercian-

tes judeus, que todavia se converteria ao cristianismo,

nao se dedicou desde cedo a filosofia. Sua forma<;ao

academica foi feita na area de ciencias exatas, como

estudante de~~~trC?nomiaJemLeipzig, e de~ate~em Bedim e em Viena. Foi nesta ultima cidade que,

em 1884, ele come<;ou a freqlientar os cursos de Franz

Brentano. Isso mudaria de maneira radical a dire<;aode

sua vida, levando-o em dire<;aoa filosofia. E, com esta,

a ideia de "intencionalidade da consciencia", que ele

herdou diretamente de Brentano, com quem polemi-

zaria, contudo, ate 0 final de seus dias - uma cena de

parriddio bastante comum na hist6ria da filosofia.

'<'

'"o>-~ CARLOSALBERTORIBEIRO DE MOURA3 e doutor e livre-docente em filosofia da

Universidade de Sao Paulo, institui~ao em~ que leciona. Publicou Crftica da razao« na fenomenologia (EdusplNova Stella),~ Racionalidade e crise (Discurso Edito~alJ~ Editora UFPr) e Nietzsche: civiliza(iio e© cultura (Martins Fontes).

Page 2: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

t'0 A importancia que Husser! atribui a

no<;;ao de intencionalidade s6 emerge,~ de maneira cabal com a identifica<;;ao~ ~ sumiria, estabelecida por ele, entre filo-~ '(J sofia,.e fenomenologia

d· N

I0 felntanfto,esta

~ '2 nao loi 0 primeiro mo e 0 i os6 ico por.J\ ~ ele perseguido. Sob a inspira<;;ao direta-1 0 e dominadora de Brentano, Husser!

IV entendia por filosofia uma certa analise~v- t dos conceitos utilizados pelas ciencias,.~ •~ que seria essencial para fundamenta-Ias-+ ~ de maneira definitiva. Nessa fase, a filo-~-::. sofia coincidia com a "clarifica<;;ao"dos_0 I.:,.. conceitos cientfficos.

Foi a crise desse primeiro modelode analise filos6fica que levou Husser!a reformular a pergunta basica feitapel a filosofia, inventando entao a feno-menologia. E dando a intencionalidadeurn papel decisivo para solucionar 0

problema que, doravante, ele situarano centro da filosofia. Por isso, vale apena levar em conta 0 cenario em quese desdobrava aquela "clarifica<;;ao"dosconceitos cientfficos, para circunscrevero momenta preciso em que a inten-cionalidade foi promovida a conceitofundamental da filosofia.

Clarificar urn conceito e mvesti-gar a sua origem. E voltar ao objetoque ele designa para verificar quais desuas "marcas distintivas" esse conceitoexprime. Com isso, 0 conceito torna-se"claro". Mas, no mesmo gesto, indican-do-se que 0 conceito investigado ternefetivamente urn objeto, mostra-se queesse conceito e valida, fundamenta-se 0

conceito. Essa e uma das tarefas imagina-das por Brentano para a sua "psicologia

Thomas Edisoninventa 0fonografoe, tres anosdepois, alampadaelEHrica.

!i A Conferencia ' Os irmaos

de Berlim, regulamenta

a partilha daAfrica pelaspotenciaseuropeias.

Auguste eLouis Lumiere,inventores docinematografo,realizam aprimeira eXibi~ao

! publica decinema.

('Tada canscienciae consciencia de algurnacoisa": essa afirnla~aoaparentenlente banal

conduz ~lcrfticade Busserl a tradi~ao

filos6fica

descritiva". Husserl adota a ideia e, mate-matico por forma<;;ao,e para a aritrneticaque dirige sua aten<;;ao. 0 que supoe aexistencia de uma carencia nessa cien-cia, que seria em si mesma incompleta,exigindo 0 trabalho complementar destadisciplina chamada filosofia.

PSICOLOGISMOSOs primeiros trabalhos de Husser!, Sabrea canceita de niimera e a Filasafia daaritmetica, ja praticam essa "clarifica-<;;ao",pretendendo investigar, por exem-plo, 0 conceito de numero. Trata-se deassunto sobre a qual os matematicosnao se entendem, 0 que por si s6 atestaa necessidade de uma investiga<;;ao su-plementar, que nao pode se resumir auma mera defini<;;ao.

Porque se partimos, por exemplo,da defini<;;ao oferecida por Euclides,para quem 0 numero e uma "quanti-dade de unidades", caminhamos bempouco. Os pr6prios matematicos naose poem de acordo sobre 0 que sig-nificam "quantidade" ou "unidade", eessa desaven<;;a e a expressao doslimites da atividade de definir concei-tos. Como observou Arist6teles, s6 sedefine 0 que e logicamente composto

(como "homem", definido como "ani-mal racional" ou como "bfpede implu-me"). Isso significa que quando chega-mos aos conceitos elementares nao hamais defini<;;ao possfve!. Agora 0 unicorecurso e a "clarifica<;;ao"desses concei-tos, retornando ao objeto do qualeles foram abstrafdos.

Mas esses bons prop6sitos deHusser! conduziam a urn resultadoinquietante. Ele localizava os objetosdos quais os conceitos matematicosforam abstrafdos em certos "fen6menospsfquicos". Husser! incorria naqueledesvio de conduta para 0 qual, maistarde, ele mesmo forjaria 0 termo "psi-cologismo". As resenhas da Filasafia daaritmetica foram durfssimas. Husser!foi censurado por misturar 16gica compsicologia, 0 que 0 levaria a dissolveros objetos matematicos em "representa-<;;oes",0 que significava nada menos doque decretar 0 fim da objetividade damatematica. Husser! acusa 0 golpe. E elevado a reconhecer que a matematicanao trata de "fen6menos psfquicos",nem de "fen6menos ffsicos", mas simde objetos "ideais".

Mas esse reconhecimento, precisa-mente, vai alterar de maneira decisivao roteiro filos6fico que Husser! se pro-pusera, obrigando-o a formular outravez, por sua conta e risco, a perguntaque inaugurava a filosofia moderna, jaque Descartes foi 0 primeiro a imagina-la: como 0 conhecimento e possfvePPara "clarificar" os conceitos cientfficose preciso rt;tornar aquela base de on-de foram abstrafdos. Mas se essa basenao e mais formada por fen6menos

: Guerra hispano-americana. Os .espanh6is, derrotados,perdem suas coloniasde Cuba, Porto Ricoe das Filipinas. OsEstados Unidos

! despontam como! potencia.

I I

; G~erra dos I Max PlanckBoeres, entre I formula a leios britilnicos 'da radia~aoe os ?olonos 'termica, base dade ongem teoria quilnticaholandesa daAfrica do SuI.

IMo]rte:a Guerra ru~ol A1:ert ~inst~inI rainha ; japonesa, pUblica urnj Vitoria, , vencida pelo artigo sabre aI do Relno i Japao. eletrodlnilmica

Unido. dos corpos emmovimento, no qual'apresenta a leoria II

da relatividade Iespecial.

Page 3: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

P iquicos, e sim por objetos que naoao "partes" da pr6pria consciencia,

como esta pode ter acesso aqueles?Como a subjetividade pode ter aces so

~ a rranscendencia? Como 0 sujeito pode~ se reportar a urn mundo de objetos? E~ com a formulac;:ao dessa questao que~ nasce a fenomenologia. E era por meio~ do conceito de intencionalidade que~ Husserl pensava poder resolve-Ia.

Inicio daPrimeiraGuerraMundial.

Einstein Revolu~iio naapresenta Russia. Ossua teoria bolcheviquesgeral da tomam 0relatividade.~ poder.Franz Kafka

. publica A, metamorfose.

INTENCIONALlDADE DEXfOA apresentac;:ao can6nica da intencio-nalidade, tal como esta aparece emtextos de Brentano ou de Husserl,parece a exposic;:ao, muito solene, deuma irritante banalidade. 0 lema daintencionalidade pretende nos ensinarque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa". Assim, a percepc;:ao epercepc;:ao de urn percebido, 0 desejo e

Revolu~iio eproclama~iioda Republicana Alemanha.Fragmenta~iiodos imperiosrusso,

:austriacoe otomano.

Forma~iioda Ligadas Na~iies.

Estabelecimento Morte deda Uniiio das Lenin.Republicas StalinSocialistas concentraSovieticas(URSS). 0 poder

I Osfascistas na URSS.I tomam 0 poder na Ii ItiJia. James Joyce

publica Ulisses.

desejo de urn desejado, a imaginac;:ao eimaginac;:ao de urn objeto imaginado ...Mas, sinceramente, quem, algum dia,duvidou dessa trivialidade, para que elaseja reafirmada assim, com tanta pom-pa? Para perceber por que nao hi aquiuma banalidade, e preciso levar emconta que esse curto lema envolve urnaspecto negativo, de critica a tradic;:aofilos6fica, e tambem urn aspecto positi-

Lan~amentode Luzes deNova York, 0primeiro filmeinteiramentefalado .

A quebrada Boisa deValores deNova Yorkprecipitaa crise da

. economiamundial.

Osjaponesesocupam aManchuria.

Os nazistaschegam aopoder na

, Alemanha.

Page 4: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

YO, urn acrescimo de conhecimento aolegado desta mesma tradi<;:ao.

Quanto a seu lado negativo, afirmarque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa" significa reformular a no-r 'J.-\:\ COM A CHEGADADOSNAZISTASAO

PODER,E PERSEGUIDOPOR SUAORIGEM <;:ao de sujeito do conhecimento, tal comoJUDAIC.",E EXCLUiDODA UNNERSIDADE, esta era concebida pela filosofia moder-MASPROSSEGUEEMSUASPESQUISAS. 0 na, seja na sua metade racionalista, seja1 na sua vertente empirista. 0 sujeito, tal

'/) como Descartes 0 concebia, nao se rela-1& cionava diretamente a coisas, a objetos.~ Ele s6 se relacionava imediatamente a& suas "ideias", eventos de sua pr6pria inte-

rioridade. E essas id€ias eram vistas comosendo ou "imagens" dos objetos situadosno mundo (caso das ideias intelectuais),ou "signos" da existencia desses objetos(caso das ideias sensiveis).

De qualquer forma, esse sujeito car-tesiano permanece fechado no dominiode suas ideias, ilhado na sua pr6priainterioridade. Assim, afirmar que "todaconsciencia e' consciencia de alguma

] 1";') NASCIMENTODE EDMUNDHUSSERLEMPHOSSN1TZ,NAMOHAvIA.

IS.", ESllJDA "IATEMATICAA UNlVERSIDADEDE LEIPZIGE, 0015 ANOSDEPOIS,EMBEllLIM.

J "'-< ESTUDAFILOSOFIANA UNIVERSIDADEDE VIENA.

Hk;- INICIAAffirrDADESDOCENTESNAUNNERSID.WEDE HALLE.ESCREVESOBRE 0 CONCE/TO DE NUMHRO.

CONVEHTE-SEAO CRISTIANISMO.

Hs,"' PUBLIc>\0 PRIMEIROVOLUMEDE FILOSOFIA DA ARITMETICA.

I'll" INGRESSANAUNNERSlDADEDE GOTTIi\GEN.

It 1( INGRESSANAUNlVERSlDADEDE FREIBUHG.

!!) 2S APOSENTA-SEDA UNIVEHSIDADEDE FREIBURG.

I 'J29 PUBLICALOGICA FORMAl.

E TRANSCENDENTAL.

; q.'.\1 REALIZACONFERENCIASNASORBONNE,DEPOISPUBLICADASCOM0 TITULODE MEDITATIONS CAR7ESlEilWES.

19:'5 REALIZACONFERENCIASEMVIENAE PHAGA.

i,).\(,ESCREVEA CRISE DAS CIENCIAS

EUROPl:.'1AS E A FENOMENOLOGIA

TRANSCENDENTAL.

J :>'1\ MORTEDE EDMUNDHUSSERL,EMFREIBURG.

NAPOLEAO BONAPARTE, pinturainacabada de Jacques LouisDaYi, c. 1798. As expressoes"0 modelo do pintor" e "0yencedor de Austerlitz" 0apresentam segundo modosdistintos de doa!1ao de sentido

FRANZ BRENTANO,mestre de EdmundHusserl na UniYersidade de Vlena.Fotografia sem data

coisa" e dizer que ela se relaciona di-retamente ao mundo, nao esta fechadasobre si mesma mas abre-se imediata-mente ao "exterior" E esse resultado, </)

sobretudo, que Same aplaudira, ja que ~ele the permitira dizer, contra seus ve- ~!hos mesues da Sorbonne, que nossa ~gconsciencia nos lan<;:a diretamente no 0

omundo, no "meio da multidao". ~

Quanto a seu aspecto positivo, a in- ~tencionalidade representara, em primeiro «

lugar, a descoberta de uma certa "ativi- ~dade" de nossa consciencia, que penna- ~necia desconhecida pela uadi<;:ao. Quer ~se considere 0 sujeito cartesiano, com ~seu estoque de "ideias inatas", quer se ~considere 0 sujeito segundo Locke, mera 6~tabula rasa na qual 0 mundo inscrevera as z

"ideias", nos dais casas a consciencia au a ~u

subjetividade 56 entra'elTI cena coJjl1o uma ~insrancia essencialmente passiva, que nao ~contribui em nada para a constitui~ao do ~mundo de nossa experiencia. 2

5Husser! come<;:a a vislumbrar essa ativi- 0

>dade da consciencia bern cedo, nos sells ~Estudos psicol6gicos de 1894. All ele opoe a ~intui~ao 11 repres€mta~ao. Segundo 0 senti-

Page 5: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

do que as dais termos tern nesse momen-ro. "intuir" alguma coisa e simplesmenteyer essa coisa, como ao perceber da janelaa arvore all no jardim. Ao conu-ario, existe-representac;:ao" quando eu vejo uma coisamas, atraves desta, viso uma outra coisa.Assim, eu vejo a bandeira, que e apenaslUll pedac;:ode pano pintado e, au-aves de-la. eu visa outra coisa, visa urn determina-do pais. E nesse dominio do "representar"que Husserl descobrira a presenc;:ade umacerta "atividade" da consciencia.

Uma atividade que se exibe de ma-neira mais dara quando consideramosalguns casas-limite. Como ao vermosurn mero arabesco e, a seguir, perceber-mas esse arabesco como urn simbolo.E a que ocone quando vejo urn trac;:ono papel como sendo urn mero trac;:oe. logo depois, 0 vejo como 0 simboloda operac;:ao ariUnetica de subtrac;:ao.De urn caso ao outro, onde esta a dife-renc;:a?Ela nao esta na materialidade dorrac;:ono papel, que e a mesma nos dois050 . Husser! conduira que a diferenc;:a56 pode se estabelecer par uma certa-panicipac;:ao psiquica". Aquilo mesmoque. pouco tempo depois, ele chamarade am de "doac;:ao de sentido". E essearo que transforma a mero arabesco emimbolo, em "representante" de outra

coisa que e ele mesmo..-\"inrencionalidade" sera, para Husser!,

urn fenomeno da ordem da "representa-pia -. intencionar e tender, par meiode nao impolta quais conteudos dadosa consciencia, a ouU'os conteudos naodadas. e reenviar esses outros comeudosde maneira compreensiva. ASSinldescrita,a inrencionalidade sera equivalente ao"enomeno da "expressao". Existe "inten-cionalidade" sempre que, atraves de urndado. n6 ''visamos'' alga nao dado, ~~

~ pre que uma certa presenc;:a "exprinlli"50 uma dererrninada ausencia. Por isso, sera~ preferfYel falar no plural: serao varias as;- -intencionalldades" em Husser!, situadas~ en1 distimos pianos da expel:;encia e des-= coberras em diferentes nlveis da analise.~ 0 primeiro modelo de intencionalida-~ de que Husser! concebera para elucidar a~ no vida perceptiva sera a "intencionali-== dade de ato". Se ele apresenta a fenome-:2~ nologia como uma "descric;:ao"reflexiva e~ neutra da paisagem de nossa consciencia,

Existe intencionalidadesempre que, atraves

de Uln dado, visamosoutra coisa, sernpre

que Uilla ceriapresen~a "exprill1e'~

A •u111aausenCla

]\il0DO~ n": Do!\(AoE sera justa mente esse conceito de fe-nomeno que exigira 0 reconhecimentode OUU"asfiguras da imencionalidade. Seas sensac;:oes e os atos intencionais saohabitantes da interioridade da conscien-cia, 0 fenomeno, ao contl"ario, nao esta"em mim", mas "diante de mim". E esseconceim de fenomeno que leva Husser!a falar em uma fenomenologia, em umacelta l6gica dos fenomenos. 0 que eesse fenomeno? Ele e a apresentac;:ao deurn objeto para a consciencia. E ele quedetermina essa consciencia como sendopercepc;:ao deste objeto, a arvore, e nao

essa prinleira noc;:ao de intencionalidadeja atesta, por si s6, que na verdade eleinlplanta, nessa paisagem, urn evidenteconstruto te6rico.

Husserl simplesmente transpoe pa-ra 0 dominio da percepc;:aoos conceitos ames forjadosna analise da "representa-c;:ao". Agora, para explicitarcomo se da uma percepc;:aosimples, como aquela da ar-yore no jardim, ele dira queexiste, no interior de nossaconsciencia, urn conjunto de"sensac;:oes" ainda opacas,que par si s6s nao apontam,ainda, para nenhum objeto.Essas sensac;:oes delimitam aregiao da "sensibilidade" nosentido estrim da palavra.

A essas sensac;:oes seacrescenta 0 am propria men-te intencional. Esse ato serachama do de "apreensao" oude "noese" - termo deriva-do do nous grego, que de-signa 0 momenta especificodo "pensamento". Esse ato eo responsavel pela "doac;:aode senti do" que vai "animar"aquele conjunto de sensac;:oesopacas, fazendo com que aconsciencia se tome "direc;:ao"a um objeto transcendente, aarvore ali no jardim. Apenasgrac;:as a esse jogo entre sen-sac;:oes e ato doador de sen-tido a arvore "aparece" paraa consciencia, ja que agora aessa consciencia e oferecidourn "fenomeno" da arvore.

ARVDRE DA VIDA, detalhe do FrisoStoclet, pintado por Gustav

Klimt entre 1905 e 1909

Page 6: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

DOA{:lO DE SENTI DO: jovem com

~

Sinal matematico de igual nasla, simbolo de sua participac;ao

. na luta pela Igualdade racial,"i '. na marcha pelos direitos civis

~ em Washington, em 1963

,,}gundO uma outra perspecti-. va. E essa variabilidade in-

" definida das "perspectivas""j sobre urn objeto que levariHusserl a apresentar 0 "fe-nomeno" como sendo urnmodo subjetivo de doa~ao,

~ ja que sempre reportado{~ a urn "ponto de vista" par-., cial e mutavel.

C2 Mas e importante levar emconta uma tese que vai influirdecisivamente na compreen-saG que Husser! tera daquiloque e 0 "objeto intencional"ao qual uma consciencia sereporta. Nenhum objeto nose dado independentementede algum modo de doa~ao.Ele nao e nada situado ao!ado do modo de doa~o eque se poderia apreenderem uma especie de intui~aosimples, quer dizer, indepen-

dente de uma perspectiva. ao existe a"coisa mesma", a coisa independente deurn ponto de vista unilateral e variavelatraves do qual ela se apresenta a alguem.Quando eu vario a minha perspectivasubjetiva sobre a arvore, 0 que obtenhoe outra perspectiva igualmente subjetivasobre e!a: nunea a arvore me sera dadasem a prisao a urn ponto de vista.

Mas se e assim, 0 que pode ser 0 obje-to intencional de uma consciencia? Se esseobjeto nao pode ser nada situado aquemou alem de seus modos subjetivos dedoa~ao, ele s6 poderi se confundir coma totalidade dos fenomenos que 0 trazema nossa presen~a. 0 objeto intencionalsera a unidade sintetica de seus multiplosmodos de doa~ao ou fenomenos. E e issoque permite a Husserl afirmar a existenciado "a priori da correla~ao" entre cons-ciencia e objeto, a certeza de que todaconsciencia e consciencia de urn objetoe, reciprocamente, de que todo objeto eobjeto para uma consciencia.

de qualquer outro. Mas nao e s6 isso. 0fenomeno determina tambem 0 modocomo 0 objeto e apresentado a conscien-cia, sob que "aspecto" ele nos e dado.

Afinal, qualquer objeto sempre nose dado em urn "modo de doa~ao" queo apresenta segundo urn aspecto parti-cular e pOI' principio varia vel. 0 que jase atesta no plano da linguagem. Assim,as expressoes "0 vencedor de Austerlitz"e "0 vencido de Waterloo" referem-se ao mesmo personagem, NapoleaoBonaparte. Mas cada uma delas 0 apre-senta segundo urn aspecto determinado,segundo urn distinto modo de doa~ao.

o mesmo acontece em nossa per-cep~ao de urn objeto qualquer. A cad amomento, e apenas urn aspecto de-terminado do objeto que vem a nossapresen~a, urn aspecto que e variave!e dependente de urn ponto de vista. Edistinto 0 modo de doa~ao que me exi-be a arvore se eu a percebo da janela oudo jardim, segundo este angulo ou se-

Investigar como 0 conhecimento epossivel, como a subjetividade, porteracesso a urn mundo de objetos, se con-fundira agora com a questao de sabercomo uma multiplicidade de fenomenospode ser a apresenta~ao, para a cons-ciencia, de urn objeto uno e identico a simesmo. Isso significa reconhecer que, seexiste intencionalidade, e porque existeo trabalho secreta de uma "sintese" queunifica os multiplos fenomenos comoapresenta~oes de urn e 0 mesmo objeto.Se a intencionalidade de Brentano parecea Husserl esteril para a filosofia, e porquee!e se limitava a repetir indefinidamenteque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa", sem nunca investigar assinteses que, secretamente, estao toman-do possive! esse resultado final.

HORIZONTESMas tudo isso supora a delimita~ao deduas outras figuras da intencionalidade.Nos sellS Estudos psicol6gicos de 1894,Husser! opunha a "intui~ao" a "representa-~ao", opunha 0 dominio da percep~ao aodominio da expressao. E simples notar co-mo essa oposi~o e artificial e arbitciria, eem que sentido a intui~o e integralmenteurn evento da ordem da "representa~ao".

Quando percebo urn cuba, e urnde seus "aspectos" que me e dado: vejodiretamente tais ou tais lados do cubo,segundo tal angulo e ilumina~ao. Mas naotenho consciencia de perceber apenas doisrerangulos, mas sim este solido de seisfaces que e 0 cubo. Tenho consciencia doaspecto que me e efetivamente dado, mastenho consciencia tambem dos aspectosque nao me SaG dados. E apenas umaparte do objeto que me e apresentada,mas atraves desta parte eu viso 0 tado. Issosignifiea que 0 aspecto dado reenvia aosaspectos nao dados. E se e assim, existeaqui uma outra figura da intencionalidade.

Husser! a chamara de "intencionalidadedo horizonte interno". E faci questao de gsublinhar que todo objeto tern seu hori- ~zonte interno de determina~oes, que nao SsaG atualmente dadas, mas que saG visadas ~pela consciencia. 0 objeto percebido e ~habitado pOI'uma expressividade que liga ~cada urn de seus aspectos aos demais. ~Husser! dara enorrne imporrancia a essa ~intencionalidade que se situa no plano dos 2

Page 7: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

~enomenos" e costura entre si todos osaspectos de eada objeto, fazendo com quecada urn deles reenvie aos demais. Semessa intencionalidade, nem mesmo teria-:nos consciencia de algo assim como urn~o. Se 0 aspeeto dado nao reenviasseaos aspectos nao dados, se cada aspectonao exprimisse os demais, nem teriamosurn "mundo da experiencia".

E ao lado dessa nova intencionalidadehayera ainda uma outra, a "intencionali-dade do horizonte externo" dos objetos.Quando percebo 0 cuba, eu 0 percebocomo figura sobre urn fundo. Mais ainda,eu 0 percebo sobre a mesa, mesa que estaem minha sala, sala deste predio, situadonesta cidade. 0 objeto percebido reenviaao seu entorno, ele 0 exprime e, no limi-te, e 0 "mundo" que se expoe na menor

Aleln da intencionalidadede ato, Husser! considera

a intencionalidadede horizonte intel1l0

e de hOl1zonte externodos objetos

de nossas percep;:oes. Se esse "mundo"nunca pode se transformar, efetivamente,em objeto de nossa experiencia, resta quede alguma maneira ele se exibe ou se ex-prime neste seu pequeno fragmento quee 0 objeto de nossa percep~ao atua!.

A intencionalidade do horizonte ex-terno sera vista como arqueologicamenteanterior a intencionalidade do horizonteinterno. E no solo de uma consciencia glo-bal do "mundo" que se recorta, para nos,

a consciencia de eada objeto singular. Enesse plano dos "horizontes" que Husser!situara a originalidade da analise intencio-nal. Se na analise "real" nos decompomosurn todo em suas partes constituintes, naanalise "intencional" explicitarnos os "ho-rizontes" do percebido, tudo aquilo queexiste de "potencial" no atualmente dado.

Existe uma diferen~a notavel entreessas intencionalidades de horizonte ea primeira figura de intencionalidadetratada por Husser!. Nao se trata apenasdo fato de essas intencionalidades sedesdobrarem seja no plano dos "feno-menos", seja no plano dos "objetos",enquanto a primeira era urn evento dainterioridade da consciencia. Se a pri-meira figura era chamada de "intencio-nalidade de ato", e porque ela envolvia

Page 8: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

um trabalho da consClencia, uma ativadoar;:ao de sentido. As intencionalidadesde horizonte, ao contrario, nao parecemenvolver qualquer atividade expressada consciencia. Tudo se passa como seelas operassem espontaneamente dian-te de um eu passivo, assim como umcorar;:ao que bate.

Sendo assim, as intencionalidades dehorizonte apontam para a existencia deuma expressividade inscrita na nossa ex-periencia perceptiva, que trabalha semnenhuma doar;:ao de sentido operadapor um sujeito ativo. Em nossa expe-riencia detiva, 0 lado dado do cubo re-envia aos lados nao dados, cada objetoreenvia a sua circunvizinhanr;:a e enfime 0 "mundo" que se exprime em cadapercepr;:ao. Como compreender essa ex-pressividade desde sempre ja dada?

CONSC !\ie.. )0 TEMPeHusser! pensara encontrar sua chave nanossa "consciencia do tempo". Comosera tambem no plano da temporalidadeque ele situara a raiz daquela "sintese"

encarregada de unificar uma multiplici-dade de fen6menos como sendo a apre-sentar;:ao, para a consciencia, de um e 0

mesmo objeto. E esse passo nos levaraa novas figuras da intencionalidade, doreenvio do dado ao nao dado, da ex-pressao do ausente no presente.

A fenomenologia nao trata do tem-po "objetivo", aquele sobre 0 qual 0

fisico se debrur;:a. Ela investiga a tem-poralidade interna a nossa conscien-cia, aquela em que transcorre a nossaexperiencia de um objeto temporal,como na experiencia de um som quedura. E bastante comum, na hist6riada filosofia, encontrarmos 0 temporepresentado como sendo uma suces-saG de instantes descontinuos, umasucessao de "presentes". Era assim queDescartes, por exemplo, compreendia 0

tempo. Husserl considera essa imagemuma abstrar;:ao sem qualquer relar;:aocom nossa experiencia efetiva.

Se 0 tempo fosse essa sucessao deinstantes descontinuos, seria impossive!ouvir uma melodia. Quando temos a

experiencia de um som que dura, temosconsciencia do momento "presente",mas tambem do passado imediato e dofuturo pr6xinlO, sem 0 que a me!odianem seria experimentada por n6s comoum objeto que dura. 0 essencial emnossa experiencia do tempo nao e a abs-trar;:ao do "instante", mas sim aquilo queHusser! chamara de "presente vivo". Eleja envolve uma celta extensao temporal,indui, alem do "agora", um "passadoimediato" e um "futuro pr6ximo".

No interior desse presente vivo, 0

momenta temporal do "agora" reenviaa urn passado imediato que nao estamais "presente", assim como a um futuropr6ximo que ainda nao chegou. Aqui, no-vamente, atraves do dado visamos 0 naodado. 1550 significa que nossa conscienciado tempo e costurada pelo trabalho deduas intencionalidades originais. Husser!chamara de "retenr;:ao"a intencionalidadepela qual 0 passado imediato esta "quase ,~presente" a minha consciencia. E de "pro- g

. '"tensao" a intencionalidade grar;:as a qual iEeu me di.rijo ao futuro pr6ximo. ~

Page 9: 3 Husserl-Intencionalidade e Fenomenologia

Reten<,;ao e protensao nao SaG atosda consciencia. E passivamente, semqualquer atividade de um eu, que 0

presente se liga ao passado imediato eao futuro proximo. Assim, a reten<,;aonao se confunde com a memoria. Esta eo ato deliberado em que um sujeito ati-'"0 evoca um passado revolto. Quandoou<';oa melodia, nao e preciso qualquerato meu para que minha consciencia dopresente retenha 0 momento temporalpassado e aponte para 0 futuro.

Quando um "agora" decai no pas-ado, gra<,;asa reten<,;ao ele permanece

,"isado por mim, atraves de novo agoraque tomou 0 seu lugar. Ele esta "quasepresente" ali, mas atraves de um outromodo de doa<,;ao.E um "fenomeno" doantigo "agora" que permanece "retido"no novo presente. E como 0 momentatemporal clo "agora" e entendiclo porHusser! como um limite ideal, como 0

ponto de interse<,;ao entre a serie dasreten<,;oes e a serie das protensoes, elenao sera na verda de um "dado fenome-nologico". Nossa experiencia do presen-te e sempre a experiencia cle um celtopassado, 0 som que dura e a unidadeintetica dos multiplos moclos de doa-

<,;aoque 0 apresentam a nos.E na consciencia do tempo que

Husser! termina a sua "arqueologia".Entender a intencionalidade e verificar

Segundo afenOillenologia,a consciencia dotenlpo conduz anovas figuras daintencionalidade,

a expressao doausente no presente

como pode existir, para nos, a estrutu-ra "sentido", 0 reenvio compreensivodo dado ao nao dado. Se nossa ex-periencia e tecida por uma expressivi-clade, se existem as intencionalidadesde horizonte, se 0 aspecto dado docubo exprime os aspectos nao dados, secada objeto que percebo expoe 0 "mun-do" do qual ele faz parte, no limite,e gra<,;as a estlUtura de nossa consci-encia do tempo. Se para nos 0 ciadoremete ao nao dado e 0 exprime, e por-que nossa consciencia do tempo e talque, nela, 0 presente sempre exprime 0

passado e 0 futuroE ate este plano que se precisa re-

gredir para compreender como nossaconsciencia e sempre consciencia cle umobjeto, como nossa subjetividade po deter acesso a um munclo transcendente.E se compreender isso envolve desco-

Edmund Husserl tornou-seprofessor da Universidadede Freiburg em 1916. Ao seaposentar, em 1928,foi sucedido por seu ex-aluno Martin Heidegger,a quem considerava seuherdeiro. Husserl continuoua desenvolver pesquisasna Universidade, ate quea ascensao de Hitler ao poder,em 1933, calou a sua voz.Devido a ascendencia judaica,o filosofo foi afastado e teveproibido 0 aCSiSsoa bibliotecada Universidadej coube

a Heidegger, membro dopartido nazista, comunicarao antigo mestre a decisao.

Ainda assim, respeitadointernacionalmente comourn dos mais importantesintelectuais de seu tempo,Husserl teve oportunidade derealizar, em 1935, conferenciasem Viena e depois emPraga, rompendo 0 cordaode isolamento imposto pelonazismo. Uma dessas palestrasdeu origem a seu ultimo texto,de 1936, intitulado A crisedas ciencias europeias e a

brir qual e a "sintese" que unifica osmultiplos fen6menos como apre-senta-<,;oes de um objeto identico, Husser!a localizara na propria sintese dotempo, naquela sintese "passiva" queunifica os diferentes momentos tempo-rais em um so tempo.

No decorrer de sua vida, progres-sivamente Husser! silencia sobre a pri-meira Figura de intencionalidade por eledescoberta, a "intencionalidade de ato".Nao que ele a renegue. Simplesmente,nao se volta mais a esse assunto. Ele sepreocupara sobretudo em explicitar 0

fundamento temporal das intenciona-lidades de horizonte. E este e um dosangulos para entender 0 prestigio quea "temporalidade" adquire na filosofiacontemporanea. Nao e pouca gl6ria serpromo vida a lUtima instancia gra<,;as aqual existe, para nos, a estrutura "sen-tido", a "expressao", 0 reenvio de umacoisa a outra coisa .•

mLMjaljli:i$ijdii~!!1ml@ Le developpement de I'intentionnalite dans la

phenomenologie husserlienne. Denise Souche-Dagues. M. Nijhoff, 1972.

•• Husserlian meditations. Robert Sokolowski.Northwestern University Press, 1974.

'" Husserl et la naissance de la phenomenologie.Jean-Frangois Lavigne. PUF, 2005.

fenomenologia transcendental.Em 1937, a doenc;:atornou

impossivel a continuidadede seu trabalho intelectual.Husserl passou a expressaruma preocupac;:aoconstante:"Vivi como filosofo", repetia,"quero morrer como filosofo."Ele morreu em 1938. No anaseguinte, seus manuscritosforam transferidosclandestinamente para aBelgica. Dois anos depois,Heidegger retirou, da segundaedic;:aode sua obra 5er etempo, a dedicatoria a Husser!.

sn.....MARTIN HEIDEGGER, discipulo e

sucessor de Husserl em Freiburg