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COMPREENDENDO A FENOMENOLOGIA (UNDERSTANDING PHENOMENOLOGY) RESUMO o presente estudo coloca em discussão o mé- todo fenomenológico elaborado por Edmund Husserl e Martin Heidegger. Ambas as propostas são analisadas e suas principais características des- tacadas, como forma de aproximação da idéia cen- tral dos pensadores em questão. Tem-se assim delimitada a proposta de Husserl para a idéia da existência de sujeito e mundo puros e independen- tes um do outro. Esse pensamento é colocado sob a crítica de Heidegger que acentuava que o eu-puro não está disponível a não ser através da existência, local do exercício das vivências humanas. Para tan- to, Heidegger toma como companheiro o Dasein, cujo termo representa a constituição ontológica do homem, que detém a possibilidade de existência em seu sentido mais original. Palavras-chave: Fenomenologia, Método e Compre- ensão ABSTRACT This study presents the discussion about the fenomenologic method created by Edmund Husserl and Martin Heidegger. The ideas of both authors were discuted, oflering lhe comprehension about their ideas. Husserl 'spurpose is lhe idea of existence of suject and world pure, independen/ each other. Heidegger didn 'I agree with his master, because he has belived that the approach of lhe self-pure only VERA LUCIA ME DES DE OLIVEIRA 1 can be p ossible through the existence. Then, Heidegger take like fellow lhe Dasein, whose term represents the ontological constitution of the man, who detain the possibility of the existence under your original sense. Keywords: fenomenologic, Method and, Comprehension EM BUSCA DO FUNDAMENTO PRIMEIRO: A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL Não se faz intenção prioritária desse trabalho conhecer, com profundidade, a origem e os caminhos pelos quais se desenvolveu a fenomenologia. C~nt~- do, não é possível deixar de compreender as pnncl~ pais diferenças que caracterizam o modo como foi ela vista por Edmund Husserl e Martin Heidegger. Mas, por que me deter no enfoque dado pelos dois? Primeiramente, por ter sido Husserl o precur- sor da fenomenologia como uma possibilidade metodológica, e, quanto a Heidegger, por ter acres- cido ao pensamento de seu mestre elementos detenninantes para o enriquecimento do método, além de representar o autor no qual pretendo embasar meu estudo. A primeira referência ao termo fenomenologia é atribuída ao físico alemão 1. H. Lambert, que o mi- liza como título da 4 3 parte do seu Novo órganon, em 1764. Hegel volta a utilizar o termo em sua obra a Fenomenologia do Espírito, no ano de 1807, ainda I Enfermeira, Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará, Mestre em Enfermagem Clínico- Cirúrgica pela Universidade Federal do Ceará e aluna do Curso de Doutorado em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará. EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 20 • NQ 36 • p. 139-145 • 1998 • 139

COMPREENDENDO A FENOMENOLOGIA - … · RESUMO opresente estudo coloca em discussão omé-todo fenomenológico elaborado por Edmund Husserl e Martin Heidegger. ... Coreth (1973 …

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COMPREENDENDO A FENOMENOLOGIA(UNDERSTANDING PHENOMENOLOGY)

RESUMO

opresente estudo coloca em discussão o mé-todo fenomenológico elaborado por EdmundHusserl e Martin Heidegger. Ambas as propostassão analisadas e suas principais características des-tacadas, como forma de aproximação da idéia cen-tral dos pensadores em questão. Tem-se assimdelimitada a proposta de Husserl para a idéia daexistência de sujeito e mundo puros e independen-tes um do outro. Esse pensamento é colocado sob acrítica de Heidegger que acentuava que o eu-puronão está disponível a não ser através da existência,local do exercício das vivências humanas. Para tan-to, Heidegger toma como companheiro o Dasein,cujo termo representa a constituição ontológica dohomem, que detém a possibilidade de existência emseu sentido mais original.

Palavras-chave: Fenomenologia, Método e Compre-ensão

ABSTRACT

This study presents the discussion about thefenomenologic method created by Edmund Husserland Martin Heidegger. The ideas of both authorswere discuted, oflering lhe comprehension abouttheir ideas. Husserl 'spurpose is lhe idea of existenceof suject and world pure, independen/ each other.Heidegger didn 'I agree with his master, because hehas belived that the approach of lhe self-pure only

VERA LUCIA ME DES DE OLIVEIRA 1

can be p ossible through the existence. Then,Heidegger take like fellow lhe Dasein, whose termrepresents the ontological constitution of the man,who detain the possibility of the existence under youroriginal sense.

Keywords: fenomenologic, Method and,Comprehension

EM BUSCA DO FUNDAMENTOPRIMEIRO: A FENOMENOLOGIA DEHUSSERL

Não se faz intenção prioritária desse trabalhoconhecer, com profundidade, a origem e os caminhospelos quais se desenvolveu a fenomenologia. C~nt~-do, não é possível deixar de compreender as pnncl~pais diferenças que caracterizam o modo como foiela vista por Edmund Husserl e Martin Heidegger.

Mas, por que me deter no enfoque dado pelosdois? Primeiramente, por ter sido Husserl o precur-sor da fenomenologia como uma possibilidademetodológica, e, quanto a Heidegger, por ter acres-cido ao pensamento de seu mestre elementosdetenninantes para o enriquecimento do método, alémde representar o autor no qual pretendo embasar meuestudo.

A primeira referência ao termo fenomenologiaé atribuída ao físico alemão 1. H. Lambert, que o mi-liza como título da 43 parte do seu Novo órganon, em1764. Hegel volta a utilizar o termo em sua obra aFenomenologia do Espírito, no ano de 1807, ainda

I Enfermeira, Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará, Mestre em Enfermagem Clínico-Cirúrgica pela Universidade Federal do Ceará e aluna do Curso de Doutorado em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará.

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no século XIX. Mas, como corrente filosófica, foinas mãos de Edmund Husser! que a fenomenologiaviria a se perpetuar sob a forma do movimento depensamento.

Zitkoski (1994:introd.), expõe com clareza osobjetivos de Husser!, quando afirma que

O ideal de Husserl, à semelhança de outrosgrandes filósofos, erafazer da filosofia uma ciênciaprimeira que servisse de base para toda e qualquerciência.

E esclarece-nos ainda mais ao assinalar que ofilósofo estruturou o método fenomenológico nãoapenas como forma de contestação ao modo positi-vista de lidar na ciência, mas, também, como cami-nho para a construção da ciência filosófica absolutae primeira em si.

Toda a proposta de trabalho de Husserl ca-racterizou-se pela inovação. Jolivet (1953:409) de-clara que

Husserl pretendeu descobrir emprimeiro lu-gar umprocesso que tornassepossível a aqui-sição das verdades fundamentais e a suajustificativa apodítica: com este fim a suaregra essencial constituiu, desde oprincípio,em ir às coisas em si mesmas...

Mas, qual é o significado real dessa máximatão amplamente utilizada nos trabalhos que têm nafenomenologia sua linha de orientação? Na realida-de, banalizou-se o emprego da expressão, deixandotalvez escapar o seu sentido mais originário.

Husserl recusava a idéia da existência de su-jeito e mundo puros e independentes Um do outro.Detinha-se no fato de o homem ter uma consciênciaintencional, sempre dependente do objeto, sempreconsciência de alguma coisa. As próprias coisas es-tão presentes na consciência como fenômenos, tor-nando-se necessário adentrar o mundo interior daconsciência para alcançar a origem das coisas em si.

Sem dúvida foi tarefa árdua exigir um totaldespojamento de pressupostos, abrindo mão de ver-dades até então ditas por outras ciências, além dasconvicções pertinentes a cada um de nós. O que res-taria, então? Husser! traz até nós a evidência, com aproposta de entregar-lhe a tarefa de fundamentaçãodas ciências.

Stegmüller (1977:62) afirma que

... a evidência, portanto, nada mais é do queo conhecimento da concordância entre o sig-

nificado e aquilo que está presente por simesmo.

A evidência pode, portanto, ser vista comoum tipo de juízo, ou ainda como uma

...experiência originária do ser das coisasoufatos visados pela intenção e, nas expres-sões de Husserl, o contato direto com a coi-sa ela própria em carne e osso (Zitkoski,1994:23).

Nesse ponto, surgem outros conceitos extre-mamente importantes para a compreensão dafenomenologia husserliana: a intenção, a intuição eo preenchimento como meios para se alcançar aevidenciação.

Zitkoski (1994) esclarece-nos o papel dessesconceitos, quando destaca ser a intenção um momentoem que não se tem a presença de objeto algum, mes-mo que imaginário, para preencher a significaçãoresultante do intencionar da consciência. Quandoocorre a intuição, tomamos posse do objeto, preen-chendo a lacuna existente na intenção. Assim sendo,a intuição tem como resultado o preenchimento de-corrente do contato da consciência com o objeto, atra-vés da experiência.

Esse caminhar será determinante para que sejaalcançada uma análise fenomenológica dentro do rigorestabelecido por Edmund Husserl: olhar para as coisascomo estas são, em seu sentido mais originário, preen-chendo intenções com intuições correspondentes.

Jolivet (1953) afirma ser a intuição, paralela-mente à exclusão de tudo aquilo que não seja origi-nariamente justificado, as duas regras básicas dométodo fenomenológico.

A epoché, isto é, a colocação em suspensode todo e qualquer obstáculo de acesso à região dasessências puras, ou fenômenos, é para Dartigues(1992) uma mudança de atitude, abrir mão de umaatitude natural diante do mundo, em busca de umaatitude fenomenológica.

Mas o que o significa deixar de lado uma ati-tude natural? O que nos é solicitado a fazer é aban-donar a postura a-crítica que norte ia o nosso cotidianodiante das coisas que se colocam diante de nós. Évoltar o olhar para além daquilo que se mostra e évisto, deixando de lado tudo o mais que impossibili-te uma compreensão verdadeira. Surge, então, umaconsciência transcendental, melhor esclarecida porZitkoski (1994:39), quando ensina que

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Aqui surge uma contestação evidente aHusserl, pois, enquanto a este bastava alcançar a cons-ciência transcendental para então apropriar-se da es-sência de um fenômeno, para Heidegger fica claroque caminhar até esse ponto não significava alcan-çar a essência do ser. Ou, como (apud Dartigues1992:127) ele mesmo diria em sua obra Qu'est-ceque Ia métaphysique?, " ...por não olhar senão o queestá à vista, o pensamento esqueceu-se de interrogarsobre a luz que lhe permitia ver."

E será na pre-sença que o filósofo irá bus-car a luz, ou, mais precisamente, no seu modo deser-no-mundo.' Aqui devemos retomar a existênciacomo aspecto determinante para a escolha do Dasein,perguntando-nos: por que coube a ele essa escolha?A resposta está no sentido atribuído por Heideggerpara o termo existência.

Mora (1996:258) nos favorece a compreen-são de um significado comum na utilização do termoexistência ao afirmar que

... é o que se deriva de conceber a existênciacomo um modo de ser que nunca é dado, mastambém pouco é posto(..) um modo de serque constitui o seu próprio ser, que se faz asi mesmo.

Assim sendo, não poderia se buscar respos-tas em outro ente que não naquele que detivesse acapacidade de questionar o mundo, por apenas exis-tir sendo-no-mundo. Nesse aspecto, aquele que in-terroga é também o interrogado.

Aqui surge o incômodo de não se ter comocerto o modo de acesso a esse ente, ainda mais se re-conhecermos o fato de que, muitas vezes, ele mais seesconde do que se revela. Como, então, acessá-lo?

O método fenomenológico determina que nosatenhamos a uma de-monstração fenomenal guiadapelo modo de ser do próprio ente. Não podemos nosdeter nas distorções ou desviar o foco central de in-teresse para as respostas evidentes e banais.

A proposta do filósofo é acessar o ontológicoatravés do ôntico. Nessa empreita, Heidegger situacomo fundamental conhecer o modo como se estru-tura a questão do ser.

Estando bem claro que todo questionamentoenvolve uma busca, poderíamos considerar o fato de

que Heidegger estabelece três conceitos básicos paraempreendermos essa busca: I) Questionado: é o quese busca, ou seja, o ser; 2) Interrogado: é o caminhopara se chegar ao questionado, que se concretiza atra-vés do ente e 3) Perguntado: é o objetivo a ser alcan-çado, o sentido do ser.

Empreender uma busca dentro do modelo pro-posto pelo filósofo poderá parecer para alguns umatarefa por demais árdua. Talvez seja esse o motivoque leva Heidegger (1993 :31) a chamar nossa aten-ção para o fato de que

Pode-se empreender um questionamentocomo umsimples questionário ou como o de-senvolvimento explícito de uma questão. Acaracterística dessa última é tornar de ante-mão transparente o questionamento quantoa todos os momentos constitutivos mencio-nados de uma questão.

Fica demonstrada, de maneira clara, a críticaque o autor faz aos estudos que se propõe a tratarsuas questões de modo superficial, detendo-se noóbvio, podando e restringindo todas as possibilida-des de aprofundar em busca de um sentido real.

Sendo a pre-sença o ente que sempre nós mes-mos somos, devemos nos voltar para esse nós, abs-traindo-nos do mundo real e do ser dos outros. Mas,que destino dar ao que se encontra?

Uma coisa Heidegger deixa bem evidente,quando afirma que à fenomenologia não basta des-crever o que se vê. A ela compete atitude mais am-pla. "Da própria investigação resulta que o sentidoda descrição fenomenológica é a interpretação"(Heidegger, 1993:69).

Isto é, compreender, interpretar, buscar naqui-lo que se mostra o sentido daquilo que se esconde. Atarefa não pertence apenas a mim, se considerarmosas palavras de Coreth (1973 :52), quando diz que

Mesmo que eu conheça o outro com suasmane iras de pensar e de falar, só o compreendere i seolhar juntamente com ele o objeto, deixando que elemo mostre e abra, ajustando contas com sua visão einterpretação da coisa - olhada por si mesmo.

Porém, buscar a compreensibilidade de algotornou-se um ato banal em nosso cotidiano. Inúme-ras falas declaram com solenidade: Eu te compreen-

2 Inúmeras expressões utilizadas por Martin Heidegger são separadas através de hífen com o objetivo de demonstrar o seu sentidorelacional, ou o fundamento originário.

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do; contudo situa-se aqui uma pergunta: teríamosesquecido do real significado de compreender? Seráque algum dia tocamos no seu verdadeiro sentido?Responder a tais indagações exige-nos o esquecimen-to de tudo até aqui conhecido, com respeito à com-preensão.

Coreth (1973 :48) auxilia-nos nesse caminharquando escreve ser a compreensão " ... uma experi-ência fundamental do conhecimento humano,traduzida pela dualidade de razão e intelecto". Po-rém, a qual desses dois mundos ela pertenceria? Oautor resgata-a para o mundo intelectivo, com todo oimediatismo da inteligência que capta um sentido,determinando uma experiência que ultrapassa a ca-sualidade.

Desse modo, faz-se necessária a busca peloconhecimento do que se intenciona compreender. Nãoseria possível atrevermo-nos a tal empreita sem umconhecimento prévio do que ansiamos por alcançar,sem atinarmos para a necessidade do diálogo comoinstrumento de caminhada. Torna-se impossível dei-xar de ouvir e deixar de ver. O estabelecimento deum canal de comunicação possibilita a apreensão dosentido, e, então, o outro se mostra para mim.

O escutar e o ver que aqui propomos não sãoaqueles que pertencem apenas ao caráter dos senti-dos. Escutar é abrir-se para receber e dividir, é en-volver-se e ser envolvido, é dar a oportunidade darevelação. Quanto ao ver, Heidegger (1993 :203) si-tua muito bem a profundidade da ação, quandoafirma

"Ver" significa não só não perceber com osolhos do corpo como também não apreen-der, de modo puro com os olhos do espírito,algo simplesmente dado em seu ser simples-mente dado.

Na realidade, é nisto que costumamos nosdeter - no que se mostra de modo evidente. Não ques-tionamos, não refugamos, apenas aceitamos comoóbvio. Contudo, diante da necessidade de transfor-mar compreensão em aproximação, faz-se prioritárioir mais além e buscar ver o que pode vir a ser desco-berto.

Será através desse descobrir que a compreen-são deixará de ser apenas esclarecimento, pois nãoteremos apenas um olhar voltado parao objeto esteserá substituído por um olhar comum, no qual aqueleque nos dirige nos mostra o objeto com o próprioolhar. Aqui não seria a simples apreensão de um sen-

BCH-Uç:·~PERIODICOS

tido percebido por mim, o sentido emergiria daquelea quem verdadeiramente pertence, por evidenciar aexperiência em questão.

Coreth (1973) enfoca o sentido como o con-teúdo da compreensão, mas o que se almeja não é osimples conteúdo e sim a pessoa que se mostra paranós, mesmo que seja a partir dele que se alcance acompreensão. Poderíamos sugerir que o sentido re-presenta o meio, estando, contudo, longe do fim.

Cercando-nos (circunvisão), inúmeros aspec-tos favorecem essa compreensão. Pertencentes ao dia-dia, presentes e repetitivos transformam-se em peçasmudas que fizemos calar na rotina dos nossos afaze-res. Aqui colocamos a importância de romper com ainércia desses aspectos - eles falam, eles contam his-tórias, eles são o pano de fundo de tudo o queintencionamos captar. No que a pessoa a quem queroouvir se abre, ocorre a mobilização de tudo o quepaira ao seu redor e o diálogo entre nós não transcor-re apenas através da expressão lingüística. No entan-to, se nos detivermos apenas no conteúdo, no que semostra, esse mundo rico de experiência se esvairácomo fumaça e com ele a nossa possibilidade de com-preensão.

Trata-se de uma tarefa árdua, quase impossí-vel, já que é tão fácil nos determos no óbvio, semexplorar, refletir, sem cobrar ou ser cobrado. Contu-do, não será essa a nossa possibilidade de re-aproxi-mação com o que até aqui se encontra esquecido? Enós como iremos em busca da compreensão, se játrazemos arraigados tantos julgamentos, dúvidas epropostas de solução? Coreth (1973 :59) explica que

... é condição do ato de compreender umapré-compreensão, que dá umprimeiro acesso aosentido da coisa, essa compreensão prévia,entretanto, é essencialmente aberta ...

Não nos seria possível, de imediato, abrir mãode tudo o que nos faz ser como somos, mas o autorcitado afirma que pre-compreender não significa de-ter-se apenas nas nossas verdades, pois tal compor-tamento traria uma inautenticidade e faria dacompreensão apenas um reflexo de nós mesmos.

Somos seres-no-mundo, e não há como igno-rar esse fato, e talvez seja por isso que tenhamos tan-ta dificuldade em desprendermo-nos dos valores quenos vêm através do mundo. Ao mesmo tempo quenão podemos abarcar tudo o que nos cerca, colocamo-nos de modo aberto ao que o mundo pode trazer aténós, e cada vez que experienciamos algo de novo,

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esse é acrescentado ao nosso viver. Assim, não po-deríamos ser puros ou ingênuos no compartilhar dacompreensão. Temos muito de nós e o que nos restaé colocar o que somos sob a óptica daquele com quempretendemos dividir o momento.

Se pudéssemos visualizar de que modo seprocessa a compreensão, observaríamos a so-breposição de camadas que a constitui, de modo quecada nova experiência vivida está posta sobre a an-terior, não abafando ou anulando, mas sim tra-zendo mais luz, ao mesmo tempo que nos instiga anova busca. Desse modo, torna-se incessante o nos-so caminhar, composto por momentos que se conju-gam a outros, resultando na totalidade e, então,talvez estejamos prontos para nos lançar a interpre-tar o que se mostra.

O que distingue a compreensão da interpreta-ção? Heidegger (1993:204) responde que, na inter-pretação, " ... a compreensão se apropria do quecompreende. Na interpretação, a compreensão se tor-na ela mesma e não outra coisa."

Podemos afirmar que toda interpretação exi-ge uma compreensão prévia daquilo que se pretendeinterpretar. Os passos que damos no sentido de umainterpretação, seguem a direção estabelecida pelacompreensão já alcançada, e será nela que se busca-rá sempre algo mais que terá como fim o abrir denovas possibilidades de interpretação.

Para alguns, tal comportamento pode dar aimpressão de que não será possível chegar a lugaralgum. Não estaremos nos detendo sempre nas mes-mas coisas? Não será a proposta de encontrar na-quilo que se compreende a oportunidade dedescobrir e interpretar novos sentidos, um andarem círculo?

O círculo que aqui se delineia não é, na ver-dade, um círculo vicioso, no qual a origem se con-funde com o destino final. Nele, existe um ponto departida, e transitar através dele surge como possibi-lidade de busca de um conhecimento originário. Ou,como comentado por Heidegger (1993 :21 O)

Nele se esconde a possibilidade positiva doconhecimento mais originário que, de certo, só podeser apreendida de modo autêntico se a interpretaçãotiver compreendido que sua primeira, única e últimatarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia,visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingê-nuos e "chutes".

Será através da interpretação hermenêutica quealcançaremos o sentido do que objetivamos conhecermelhor, assegurando a cientificidade que pertence ao

próprio objeto de estudo, por determo-nos unicamen-te na coisa ela mesma, ou seja no sentido do ser.

Contudo, não partimos em busca do sentidodo ser absolutamente desprovidos de algo que nosauxilie em tal jornada. E aqui, como destacado, me-recem destaque três aspectos determinantes para sealcançar o êxito de uma interpretação fenomenológicada questão do ser: posição prévia, visão prévia e con-cepção prévia.

A posição prévia diz respeito à pré-compre-ensão que todos nós possuímos a respeito de algo.Essa compreensão anterior não nasce de um nada.Pelo contrário, fundamenta-se no próprio fato desermos seres-no-mundo e de encontrarmos no nos-so cotidiano um favorecimento para a compreen-são do todo.

Quanto à visão prévia, esta relaciona-se coma análise que se faz possível empreender, a partir doque foi compreendido. Merece uma atenção cuida-dosa o fato de que, muitas vezes, a possibilidade deinterpretação que se delineia pode nos levar a atri-buir conceitos inadequados, embasados que estão emuma posição prévia.

Adequado ou não, o resultado final é a con-cepção prévia, ou seja, o sentido que se buscava al-cançar. Toma-se imprescindível, portanto, ter sempreem mente a verdade segundo a qual nunca nos serápossível partir para uma interpretação, na qual nun-ca estaremos totalmente puros ou livres de todos osnossos juízos.

A nos guiar através do método, surgem no-vamente as palavras de Heidegger (1993:44): " ...as modalidades de acesso e interpretação devemser escolhidas de modo que esse ente possa mos-trar-se em si mesmo e por si mesmo", sempre emsua cotidianidade, como na maioria das vezes elesempre é.

Como podemos ver, trabalhar dentro dafenomenologia não se trata de desenvolver uma tare-fa solitária e despida de subjetividade. Exige muitomais do que o cumprimento de uma tarefa, por colo-car, antes de tudo, diante de nós a possibilidade úni-ca de não reproduzir apenas o que nos é dado na formade um discurso. Suas possibilidades vão mais além.

E são essas possibilidades que foram vislum-bradas por Martin Heidegger, quando ele encaminhoua proposta original de Husserl para a busca do senti-do do ser. E muito provavelmente, a maior dentretodas as possibilidades que o Filósofo nos ofereceuestá a de encontrarmos a resposta para quem somosrealmente.

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