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45 3 José Cardoso Pires e a ausência de desmentido “Se tivesse de resumir José Cardoso Pires numa só palavra, essa palavra seria verdade. Porque há em tudo aquilo que nos diz a força imediata e sem rodeios das palavras claras”. Paulo Castilho José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925, na aldeia de São João do Peso, Castelo Branco, filho de José António Neves, um oficial de Marinha, e de Maria Sofia Cardoso Pires Neves. Aos 11 anos de idade, o escritor foi estudar no Liceu de Camões, onde foi aluno de Câmara Reys, Rómulo de Carvalho (que escrevia usando o pseudônimo António Gedeão) e Luís de Matos. No sexto ano interessou-se pelo curso de Matemática, no entanto, a literatura já fazia parte de sua vida, pois o autor português publicou, no jornal infantil O Pinguin, sua primeira história, a qual também ilustrou, “As Aventuras do Mosquito Zigue-Zague 37 ”. Sobre sua experiência no Liceu, Cardoso Pires, em entrevista a Artur Portela, diz: Quando entrei pela primeira vez no Liceu de Camões, a minha sensação imediata foi a de que estava a ser fechado num reduto concentracionário ou coisa semelhante. Os alunos andavam fardados da Mocidade Portuguesa e cumprimentavam os professores em silêncio e de braço estendido, à maneira fascista, como se tivessem sido privados de voz...eu não tinha a menor idéia política daquele ritual, é evidente, mas pressentia uma certa humilhação, um certo enquadramento desumanizado naquilo tudo 38 . José António Neves, seu pai, possuía laços familiares com Joaquim Manso, fundador do jornal Diário de Lisboa, mas recusou-se a pedir-lhe que desse uma função a seu filho, cujo sonho era ser jornalista. Em 1942, o escritor abandona a casa dos pais e começa a trabalhar como correspondente comercial, um ano depois, entra para a Faculdade de Ciências de Lisboa, para cursar Matemáticas Superiores, mas não conclui o curso. Cardoso Pires, por seus 37 Cf. PORTELA, 1991. 38 PORTELA, 1991, p. 24.

3 José Cardoso Pires e a ausência de desmentido · jovem escritor se alista na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso e, sete meses depois, “suspeito de indisciplina

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José Cardoso Pires e a ausência de desmentido

“Se tivesse de resumir José Cardoso Pires numa só palavra,

essa palavra seria verdade. Porque há em tudo aquilo que nos diz a

força imediata e sem rodeios das palavras claras”. Paulo Castilho

José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925, na

aldeia de São João do Peso, Castelo Branco, filho de José António Neves, um

oficial de Marinha, e de Maria Sofia Cardoso Pires Neves. Aos 11 anos de idade,

o escritor foi estudar no Liceu de Camões, onde foi aluno de Câmara Reys,

Rómulo de Carvalho (que escrevia usando o pseudônimo António Gedeão) e Luís

de Matos. No sexto ano interessou-se pelo curso de Matemática, no entanto, a

literatura já fazia parte de sua vida, pois o autor português publicou, no jornal

infantil O Pinguin, sua primeira história, a qual também ilustrou, “As Aventuras

do Mosquito Zigue-Zague37”. Sobre sua experiência no Liceu, Cardoso Pires, em

entrevista a Artur Portela, diz:

Quando entrei pela primeira vez no Liceu de Camões, a minha sensação imediata foi a de que estava a ser fechado num reduto concentracionário ou coisa semelhante. Os alunos andavam fardados da Mocidade Portuguesa e cumprimentavam os professores em silêncio e de braço estendido, à maneira fascista, como se tivessem sido privados de voz...eu não tinha a menor idéia política daquele ritual, é evidente, mas pressentia uma certa humilhação, um certo enquadramento desumanizado naquilo tudo38.

José António Neves, seu pai, possuía laços familiares com Joaquim

Manso, fundador do jornal Diário de Lisboa, mas recusou-se a pedir-lhe que desse

uma função a seu filho, cujo sonho era ser jornalista. Em 1942, o escritor

abandona a casa dos pais e começa a trabalhar como correspondente comercial,

um ano depois, entra para a Faculdade de Ciências de Lisboa, para cursar

Matemáticas Superiores, mas não conclui o curso. Cardoso Pires, por seus

37 Cf. PORTELA, 1991. 38 PORTELA, 1991, p. 24.

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próprios critérios, segue outros caminhos que julgava mais interessantes, como

podemos perceber na seguinte afirmação:

Em vez da Associação e dos cafés de estudantes, freqüentava os bilhares da Almirante Reis, patrulhava os bailes dos Bombeiros, da rádio Graça ou das Manas Pretas e não me dava mal. Nessa mesma altura, ao mesmo tempo que cumpria a minha recruta literária à mesa do Café Herminius, fazia serões de jogo numa ou outra casa clandestina como a dum carvoeiro que havia na rua José Estevão, mais que feito com a polícia, e onde a freqüência às vezes era tanta que chegávamos a bater as cartas em cima da cama do próprio dono da casa. Foi nessa marginália de estudante que conheci os Pequenos Vampiros que descrevi nas Histórias de Amor. Uma parte dos meus primeiros contos vem daí, dos vampiros do Largo do Chile, os “imperadores do Chile”, como então eram chamados, que prostituíam as garotas do bairro (...) Tudo somado, era uma população medíocre que me servia de contraponto à Universidade e à literatura39.

Ainda em 1943 publica um ensaio chamado “Loti, o sonhador”, no

quinzenário Cidade dos Rapazes, de Lisboa. Cardoso Pires passa a se relacionar

com escritores como Júlio Pomar, Alexandre O'Neill, Carlos de Oliveira, Augusto

Abelaira, Mário Cesariny, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, João Cochofel,

Luís Pacheco, Dias Coelho em reuniões no Café Herminius, ponto de encontro de

intelectuais e marginais. Sobre essa época da vida do escritor, Manuel do

Nascimento, na apresentação de sua entrevista com o autor, comenta:

Começa-se bem quando se começa como Cardoso Pires, um homem que aos vinte e poucos anos já foi estudante universitário, angariador de publicidade, empregado de escritório, apontador de cais, piloto, intérprete, agente de vendas e redactor de uma revista40.

José Cardoso Pires junto com Jaime Salazar Sampaio e Luís Pacheco

passa, em 1945, a colaborar na página literária do jornal O Globo, começa a

publicar críticas sobre literatura na revista “As Afinidades” do Instituto Francês

de Lisboa, dirigida por Francisco Fernando Lopes. Logo em sua primeira

participação, no décimo segundo número da revista, escreve sobre Salomé e O

Leque de Lady Windermere, de Oscar Wilde, Vila Branca, de Garibaldino de

Andrade e Terra de Sonho, de Antunes de Paiva. Na mesma entrevista a Manuel

Nascimento, Cardoso Pires explica o motivo de ter começado a escrever:

Porque me meti a escrever não faço já ideia. Sei que quando comecei me fazia um grande jeito um esfumaço dinheiro que recebia pelas "notas de leitura”, de

39 PORTELA, 1991, p. 25. 40 NASCIMENTO, 1958, p. 58.

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"As Afinidades", mas nunca que a mira económica fosse tudo, se o fiz, tive muito tempo para tomar juízo e verificar que me tinha enganado, e aprender a jogar hóquei ou a ser locutor de rádio. Tenho uma filosofia caseira, sei um bocado de línguas, o trivial para anunciar num posto emissor, ter autonomia, celebridade e viver honestamente pela posteridade41.

Um ano depois, Cardoso Pires abandona a faculdade de Matemáticas

Superiores, segundo ele mesmo, não conseguia se relacionar com as pessoas que

não percebiam e cumpriam os procedimentos do referido “enquadramento

desumanizado” - em outras palavras sua alma não dançava com números. O

jovem escritor se alista na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso

e, sete meses depois, “suspeito de indisciplina é detido em viagem do navio

Niassa42” e deixa a carreira naval. Em julho do mesmo ano, publica seu último

texto na revista “As Afinidades” e lança o conto “Semana Inglesa43”, inspirado

em sua curta experiência na vida marítima, na antologia Bloco, editada por Luís

Pacheco que é rapidamente apreendida pela censura. Através das palavras do

próprio escritor, sobre esse período, podemos perceber a luta de produtores

culturais, de variados segmentos e funções, para fazer chegar ao público um

pouco de arte, de alento:

Senti a mão da censura logo ao primeiro texto que publiquei em livro, uma antologia universitária intitulada Bloco. Morte imediata, livro apreendido sem demora porque a polícia da escrita estava atenta aos candidatos a escritor. Os que havia já chegavam e sobravam, para essa praga de inquisidores, o escritor português vivo era a besta inconveniente, o alvo maldito. Mesmo assim, ele não se calava, não desistia de escrever. E os editores publicavam-no, os editores, que imprudência, assumiam esse risco. E os livreiros protegiam-no, faziam malabarismos para lhe venderem o livro clandestinamente44.

Em 1947, cumpre o serviço militar, primeiro em um quartel em Vendas

Novas, depois em Figueira da Foz. Terminada essa etapa, volta a trabalhar como

intérprete de inglês, para uma companhia de aviação. Cardoso Pires continua a

escrever e lança seu primeiro livro, que conta com a adesão entusiasmada de

grandes escritores do cenário português. Vejamos como é feita a descrição desse

momento em trecho da entrevista conduzida por Eduardo Portela com o autor:

41 NASCIMENTO, 1958, p. 58. 42 Cf. NASCIMENTO, 1958. 43 Republicará este conto, modificado, com o título «Salão de Vintém», no seu primeiro livro, Os Caminheiros e outros Contos (1949). 44 PORTELA, 1991, p. 35.

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"- Nessa altura, ainda não tinha aparecido o seu primeiro livro. Como o publicou? Colocou o original dos Caminheiros e Outros Contos em cima da mesa do editor e disse: aqui estou ... ? - Não. O livro saiu em edição do autor, com a ajuda de vários amigos. Foi impresso numa tipografia artesanal da Calçada de São Francisco e não queira saber o que me custava subir aquela rua quando me faltava o dinheiro para que a impressão pudesse prosseguir. Vivia-se uma época extremamente difícil, só quatro ou cinco autores é que tinham editor - os consagrados, naturalmente. Começavam então a aparecer os «Novos Prosadores», da Coimbra Editora, Namora, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira e foi lá que eu fui bater. Sem resultado, como era de esperar. - Esse primeiro livro, esse escritor principiante, quem acreditou neles? - Há sempre o nome de Mário Dionísio quando me revejo nos meus inícios de escritor. Procurei-o, sem o conhecer, com o manuscrito na mão, ele próprio descreveu esse encontro aqui há tempos no «JL». Para além dele, os escritores que acreditaram em mim ao primeiro embate, sei lá... Carlos de Oliveira, por exemplo. O Gaspar Simões. Eugénio de Andrade. Repare, no círculo das letras e da crítica a minha estreia foi muito bem acolhida, o que não quer dizer que isso tenha tido algum reflexo no plano editorial45.

O livro Caminheiros e Outros Contos foi publicado graças ao recebimento

de uma herança por parte de Cardoso Pires e sua impressão durou quase um ano,

porque a venda de cada exemplar é que financiava a confecção de outros

exemplares. Os amigos Eugénio de Andrade, Manuel da Fonseca, Alves Redol,

Alexandre O’Neill e Mário Dionísio ajudavam a distribuir o livro, cada qual

responsável pela venda de uma quota de exemplares. Cardoso Pires assume a

redação da revista feminina Eva e passa a publicar seus contos na revista Vértice

e, em 1950, publica na mesma revista um ensaio sobre Willian Faulkner, uma de

suas influências literárias.

Dois anos depois, junto com Victor Palla, Cardoso Pires funda uma

coleção literária, com o título “Livros das Três Abelhas”, a ser distribuída pela

Editora Gleba, pela qual lança seu livro Histórias de Amor, posteriormente

recolhido. O escritor é detido durante três dias pela PIDE para prestar

esclarecimentos, logo depois a Censura tenta (frustradamente) aliciá-lo. Sobre sua

prisão e apreensão do livro, o autor comenta em entrevista a Artur Portela:

– Um dos contos descrevia a prisão de uma estudante antifascista mas a censura fingiu ignorar o pormenor. A PIDE é que não: prendeu-me sem mais aquelas... – como foi tratado pela PIDE? – não me interrogaram, não me deixaram dormir durante três dias e depois puseram-me na rua sem interrogatório, sem nada. Apenas a privação do sono e algumas provocações. Era um aviso da polícia a um jovem que começava a

45 PORTELA, 1991, p. 30.

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escrever, nada mais (...) Veja, a PIDE teve-me detido e dessa reclusão não ficou um auto de captura, um interrogatório. Uma semana depois foi a vez de a Censura me chamar por uma contrafé. O director, um major sinuoso que dava pelo nome de David dos Santos, propôs-me que eu fizesse emendas ao texto das Histórias de

Amor46

.

As emendas nunca foram feitas e Cardoso Pires continuou sua vitoriosa

carreira literária contra a censura e os desmandos do poder ditatorial e fascista. O

escritor publicou, em quase cinqüenta anos de trajetória artística, dezoito livros,

obras que se completavam e lançavam muitas questões. Essa bibliografia

cardoseana além de despertar reflexões, principalmente sobre a política

portuguesa, não repete “fórmulas de escrita”. A multiplicidade é uma das marcas

dos livros de Cardoso Pires, estratégia de que fez uso para dar vazão as suas

inquietações e para colocar em questão os temas que julgava caros. O talento do

escritor permitia que a temática social, viesse “embalada” em contos, romances,

fábulas.

Contos como os de Jogos de Azar e fábulas como a de Dinossauro

Excelentíssimo, por exemplo.

46 PORTELA, 1991, p. 33.

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3.1

Amanhã se Deus Quiser.

Cardoso Pires desenvolve, em seus livros, situações da vida cotidiana

portuguesa, apontando suas particularidades, “defeitos” e mazelas, mas sem

determinar caminhos e soluções a serem tomados. Na verdade, o objetivo

principal do escritor parece ser o de estabelecer um diálogo com o leitor,

propondo uma reflexão profunda sobre determinado tema. Esta reflexão

geralmente permite que o poder castrador governamental, principal fonte da

opressão sobre os personagens, seja “explicitado”, pois usualmente as forças de

exploração e repressão são invisíveis, a muitas pessoas, paradoxalmente, por

estarem presentes em todos os lugares. O autor “escolheu enxergar” esse

desmando estatal pela ótica dos (mais) oprimidos, das pessoas que passavam

agruras, como fome e frio, causadas, ou não-evitadas, pelo regime de governo

implantado por António Salazar, como ele mesmo diz ao apresentar seu livro

Jogos de Azar:

São em grande parte histórias de desocupados – não no sentido naturalista do termo, espero –, de criaturas privadas de meios de realização, num plano objectivo em que crepuscularidades da angústia não desempenham, mea culpa, o papel tantas vezes conveniente ao gosto preocupado dos espectadores (...) Jogo de azar é, pois, o palpite, o pressentimento, a sorte de intuição com que todo o narrador, bom ou mau, estabelece certas relações para definir a natureza. Mas é mais do que isso, e mais importante. No fundo, talvez os desocupados deste livro devam a uma situação de acaso (exterior a eles, à sua vontade) as formas de existência que lhes são impostas...Se formos ver a bem, o facto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que o indivíduo destituído de autoridade está condenado a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo47.

O autor grifou os termos “desocupados” e “preocupado”, transformando a

ocupação – assim como a falta dela e o desejo de se ter uma (ocupação) – no cerne

fundamental do referido livro. Uma das principais “formas de existência

impostas” pelo Estado era o controle da demanda por mão-de-obra, especializada

ou não, que limitava a atuação do povo segundo os interesses do governo.

Segundo a professora Maria Lúcia Lepecki, em ensaio sobre a obra de Cardoso

Pires, o autor português tinha uma preocupação enorme com as questões

47 PIRES, 1999, p. 13.

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trabalhistas e a forma opressora como o governo salazarista dispunha de empregos

e das possibilidades de geração dos mesmos:

Constitui-se o trabalho no motivo central das narrativas. Motivo porque é o motor que impulsiona significações a absolutamente todos os níveis do texto. Dentro dos antagônicos espaços das classes sociais, desenham-se as personagens, em cuja atuação se refletem as leis dos movimentos opostos das classes enquanto tais e as leis dos contraditórios movimentos que, numa sociedade classista, existem sempre nos representantes da burguesia e, com, freqüência, nos do proletariado, por força da própria violência (latente ou explícita) que exerce, sobre o dominado, o conteúdo ideológico, erigido em valor natural da classe dominante. Movimento de classes e movimentação de pessoas dentro de cada classe fundem-se para que os textos espelhem distintos graus de consciência e de alienação48.

A opção salazarista pelo isolamento português definiu um modelo de

economia não-industrial e de dependência político-econômica ante a Inglaterra e

as colônias portuguesas, gerando desemprego e mantendo o governo como pólo

centralizador de oportunidades, pois tinha cargos a destinar na máquina estatal e

em outras áreas da sociedade.

Essa temática social, voltada a questões trabalhistas, fundamentalmente,

aparece como o fio condutor do conto “Amanhã se Deus Quiser”, presente no

livro Jogos de Azar, de Cardoso Pires. O narrador é Chico, filho de uma família

pobre e que está enfrentando dificuldades financeiras, durante a Segunda Guerra

Mundial. Com ele, moram pai, mãe e irmã, em uma casa humilde, “só tínhamos

lâmpadas de quinze velas”. Chico, desempregado, formou-se no liceu, mas não

consegue um cargo, pois a burocracia salazarista, principal geradora de empregos,

não é aberta a todos. Evidentemente, pelo atraso tecnológico, inerente à política de

isolamento, o Estado português não possuía recursos avançados, por isso, saber

datilografar bem, por exemplo, bastava para alcançar alguma ocupação:

“Tenho de ir ter com um amigo por causa do concurso.” “Outro concurso?”, perguntou a minha mãe. Sentou-se na cadeira. “Mais papel selado, louvado seja Deus. Só o dinheiro que o Estado come nos concursos dava para sustentar meia dúzia de famílias. Também são precisos livros para esse tal concurso?”. “Não, senhora. Para este, o mais importante é a prova de máquina. Tenho de ver se descubro...”. A mãe não me deixou acabar: “A máquina, a maldita máquina.” Calou-se, pôs-se a abanar a cabeça, desalentada. “Sempre a maldita máquina...E gastamos nós tanto dinheiro no liceu para nem sequer te ensinarem a escrever à máquina49.”

48 LEPECKI, 1977, p.23. 49 PIRES, 1999, p. 58.

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Uma ocupação digna economicamente só seria possível por intermédio de

alguém que tivesse um cargo ou influência no governo. Chico tem uma formação

burguesa, mas não pertence ao âmbito burguês, não consegue romper a barreira

entre as classes sociais. A formação dada ao jovem torna-o apto a cursar uma

faculdade e a trabalhar em repartições públicas, mas não preparou o rapaz para

qualquer serviço mais técnico, situação que incomoda sua mãe, que se arrepende

de ter dado ao filho condições de estudar em detrimento de um ofício mais

“prático”:

“Digam o que disserem”, continuou, passados momentos, “a culpa também pertence ao liceu, que só serve para quem é rico. Bem fiz ver isso ao teu pai, mas quê” (...) “Se teu pai me tivesse dado ouvidos, nada disto acontecia. Assim, nem curso nem ofício. Aí está no que deram as teimosias. E isto numa época em que os outros, com muito mais posses do que nós, já não queriam saber do liceu para nada. Esses é que tiveram juízo. Escolas industriais ou curso de comércio é o que hoje em dia dá para os empregos. O resto é vaidade. Bem fizeram esses, que não se arrependeram”50.

Chico tem uma formação acadêmica melhor do que a de seus familiares e,

provavelmente, vizinhos e amigos, pois o liceu era uma instituição de ensino

respeitada, voltada às classes economicamente superiores a sua. Ele se encontra

em um entre-lugar, pois não aprendeu uma das profissões usualmente destinadas a

alguém de sua classe social, não foi “educado” para ser alfaiate, militar, artesão,

camponês, datilógrafo, mas também não consegue ser absorvido pela máquina

estatal. Chico não percebe sua real (falta de) posição na engrenagem. Sobre este

entre-lugar temos a seguinte definição de Jean-Paul Sartre sobre o técnico do

saber prático:

Em particular, as classes desfavorecidas, enquanto tais, não produzem intelectuais, pois é justamente a acumulação do capital que permite às classes dominantes criar e fazer crescer um capital técnico. Certo, acontece (10% na França) de o “sistema” recrutar alguns técnicos do saber prático nas classes exploradas; mas, se a origem desses técnicos é popular, nem por isso deixam de logo ser integrados às classes médias, por seu trabalho, seu salário e seu nível de vida. Em outros termos, as classes desfavorecidas não produzem representantes orgânicos da inteligência objetiva que é a delas. Enquanto a revolução não for feita, um intelectual orgânico do proletariado é uma contradição in adjecto; ademais, nascendo nas classes que, por sua própria situação, reivindicam o universal, ele não seria, se pudesse existir, esse monstro que descrevemos e que se define por sua consciência infeliz51.

50 PIRES, 1999, p. 55. 51 SARTRE, 1994, p. 43.

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Para Sartre, o técnico do saber prático seria um profissional,

invariavelmente com formação universitária, que poria em questão os valores

éticos de suas atitudes profissionais, assim como a repercussão político-social

destas atitudes. Ao se por em questão, o técnico deveria refletir, por conseguinte,

sobre como outros indivíduos lidavam com os interesses universais e como

ajudavam no desenvolvimento e na melhoria das condições histórico-políticas de

determinada comunidade.

Essas considerações sartrianas tomam a França como exemplo, pois é no

modelo de vida francês que Sartre busca certa legitimação para desenvolver essa

teoria, mas as realidades francesa e portuguesa apresentam abismais diferenças. A

França seguia um modelo sócio-econômico calcado no livre-mercado, na

consolidação da indústria e na equiparação científica às grandes nações, na busca

de uma reestruturação no pós-guerra. Portugal, no mesmo ano que Sartre profere

essa conferência, 196552, continuava sob o domínio da ditadura salazarista que

pregava o isolamento da nação para que não houvesse a corrupção dos valores

considerados puros pelo ditador: como fé, família, tradição53.

Chico não é um intelectual, não consegue desenvolver um raciocínio

prático para promover alguma mudança, tem dificuldade em entender sua posição

na estrutura social. A definição sartriana de intelectual aparece resumida no

pensamento do professor Francisco Weffort: “Um físico que se dedica a construir

uma bomba atômica é um cientista. Um físico que contesta a construção da bomba

é um intelectual54.”. Chico não tem discernimento para construir um entendimento

sobre sua real situação e a do país:

Cerrei os queixos, pus-me a mastigar com ódio. Cada dentada, cada pedaço de pão que mordia era acompanhado de um desabafo mil vezes ouvido e repetido entre meus companheiros desse tempo: “antes estivéssemos também em guerra, antes a guerra, antes a guerra...” Era todos os dias o mesmo: víamos cruzes suásticas por todo o lado, cruzávamo-nos com cavalheiros de emblema nazi na lapela, sabíamos como os estudantes cumprimentavam agora os professores – de braço levantado, em continência – e remordíamo-nos por dentro. “Pior do que a guerra só isto, esta merda morna. 55”.

52 O livro Em Defesa Dos Intelectuais reúne três conferências de Sartre proferidas em 1965, no Japão. 53 Cf. ROSAS, 2003. 54 WEFFORT, 1994, p. 7. 55 PIRES, 1999, p. 54.

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A percepção da realidade portuguesa era nublada pelo manto salazarista e

a guerra, de certa forma, ajudou o regime, apesar da neutralidade portuguesa no

evento, porque a responsabilidade por todos os males vividos pela nação passou a

ser do embate entre os Aliados e o Eixo, assim como todos os infortúnios que dele

provém, como racionamento, contenção de despesas, desemprego. A “não-

formação” de intelectuais também era um dos alicerces do governo de Salazar,

pois contestação às ordens não seria útil para a política vigente. O Estado

mantinha rígido controle sobre as instituições de ensino e, segundo dados do

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS)56, o país de Salazar,

na década 1960, apresentava um índice de analfabetismo superior a 45% da

população.

As classes desfavorecidas portuguesas, além de não produzirem

intelectuais, de fato, raramente conseguiam produzir técnicos do saber prático. Na

verdade, a sociedade portuguesa da época estruturalmente não dava chances

significativas para que as barreiras sociais fossem transpostas. Alguns setores da

burguesia conseguiam colocar seus filhos na faculdade, outros um pouco menos

favorecidos sonhavam com o término dos estudos no liceu (ensino anterior ao

universitário), mas a maioria dos cidadãos, por total falta de recursos, almejava

somente a alfabetização dos filhos. Chico não percebe sua real situação, não vê

contradição em seus atos, luta para ser um técnico do saber prático, na concepção

sartriana:

(...) se ele [técnico] se origina das classes trabalhadoras, só pôde ter sucesso pela única razão de que um sistema de seleção complexo e jamais justo eliminou a maior parte de seus camaradas. De qualquer maneira, ele é possuidor de um privilégio injustificado (...) em outros termos, a ele deveria renunciar. Mas, como ele é esse privilégio, não pode renunciar a ele sem se abolir, o que contradiz o instinto de vida tão profundamente enraizado na maior parte dos homens57.

Chico instintivamente almeja uma função no governo, quer fazer valer,

através da obtenção de um (bom) cargo, todo o empenho empregado em sua

sacrificada educação. Se transfigurarmos, novamente, o técnico do saber prático

nesse jovem português recém-formado no liceu, teremos o seguinte pensamento

de Sartre a rascunhá-lo: “Ele não pode, sem dúvida, fazer parte de uma elite, pois

56 INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, 2008. 57 SARTRE, 1994, p. 25.

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não dispõe, no início, de nenhum saber e, em conseqüência, de nenhum poder58”.

Chico já não pertence a lugar algum, renegado pela família, não-incorporado à

folha de pagamento estatal, apega-se unicamente à esperança de que uma força

externa e sobre a qual não tem nenhum comando, impulsione, instintivamente, ou

seja, sem reflexão, sua vida:

De qualquer maneira, preciso duma camisa lavada, peúgas e uma gravata. Logo que as tenha, vou ao Ministério falar com o doutor Mateus por causa do concurso. Digo-lhe que venho da parte do senhor Júlio da Estação, do parente – cunhado, parece-me. Da outra vez em que estive com o senhor Júlio, ele pensou, repensou, e garantiu que havia de me arranjar qualquer coisa. “Vai se ver, vai-se ver”, dissera ele59.

3.1.1

A irmã de Chico

Em metade dos contos de Jogos de Azar a narração é em primeira pessoa,

na outra metade em uma terceira pessoa espectadora, preocupada com a ação que

se está desenrolando. Uma narração sem onisciência e sem juízo de valor sobre

esses seres envoltos em pobreza e marginalidade. Cardoso Pires traz à tona um

universo de oprimidos, desvalidos, figuras sem perspectiva, presas à própria casta,

confinadas a serem sempre as mesmas, confinadas a mesma miséria.

Enquanto Chico “precisa” desesperadamente de um emprego, sua irmã não

consegue estudar (“Sábado à noite a minha irmã não ia às aulas do Instituto”),

pelo excesso de trabalho que possui costurando para o governo. A família investiu

na educação do rapaz e, pela ótica machista da época, a irmã não precisava de

muita instrução, pois sabia costurar, tinha uma profissão sofrida, mas válida,

diferente de seu irmão diplomado e ignorante em datilografia. Odete, a irmã de

Chico:

Passava a semana a trabalhar com quilômetros de fazenda que lhe mandavam, cortada, do Casão Militar e nos serões de sábado e de domingo quase cegava de esforço. A pouco e pouco ia descaindo a cabeça, a princípio debruçada e por fim toda estendida sobre a máquina de costura, e pedalando sempre pela noite além. Naquela posição, tão atenta e silenciosa, a minha irmã parecia escutar uma longa e amarga conversa que a agulha lhe ia ditando ao ouvido enquanto o tecido –

58 SARTRE, 1994, p. 33. 59 PIRES, 1999, p. 66.

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áspero cotim de militares – passava por entre elas as duas, mulher e máquina, regado de lagrimas a todo o comprimento60.

Cardoso Pires constrói Odete a partir de sua função, da função que o

Estado espera que ela exerça. Toda a descrição da irmã de Chico é tecida em

conjunto com a da máquina de costura, uma simbiose que ao mesmo tempo,

vulgariza e reifica essa mulher doente, que trabalha ininterruptamente para vestir

o Estado português. O papel social destinado à mulher é uma das preocupações

marcantes da obra cardoseana, a coisificação de Odete funciona como uma

exacerbação do aprisionamento feminino a um estereótipo sexista. Uma mulher-

máquina a funcionar pelo bem da nação e, ao mesmo, tempo, ajudar no sustento

de sua família:

Embora o médico a tivesse avisado de que nunca, mais nunca, deveria trabalhar ao serão, ela lá estava toda dobrada sobre a máquina de costura, chorando cada vez mais dos olhos. E cada vez mais, também, a vista lhe ia enfraquecendo pela noite afora até que, às tantas, já não era apenas a agulha que devorava metros e metros de pano, mas toda ela, acompanhando os pontos com as lágrimas que lhe deslizavam do rosto61. A necessidade do sistema de produção do Estado de suprir a demanda de

material, em uma época de guerra, mesmo com Portugal mantendo-se neutro,

estabelece uma cota que excede a capacidade física de Odete. A saúde da

costureira piorava na mesma proporção que sua responsabilidade econômica sobre

sua família aumentava: [Odete] “dizia que ninguém podia suportar a vida naquela

casa e que não eram elas, mouras de trabalho, que tinham culpa dos azares que

aconteciam aos homens lá fora62”. A fragilidade física de Odete vai se agravando,

pela necessidade do Estado de ampliar/manter sua produção. Como podemos

perceber no seguinte pensamento de Max Horkheimer e Theodor Adorno:

Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com

60 PIRES, 1999, p. 50. 61 PIRES, 1999, p. 49. 62 PIRES, 1999, p. 57

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os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas63

A sociedade desenvolveu de tal forma as forças de produção,

modernizando os meios técnicos, que criou, segundo Theodor Adorno, uma

espécie de “véu tecnológico”, uma forma de ofuscamento, que envolveu toda a

sociedade, causando a ilusão de que esta sociedade se encontra emancipada, de

certa forma, realizada. Entretanto o que ocorre é essa supracitada irracionalidade,

que desemboca no propalado mundo anfíbio. O fundamental é saber lidar com o

desnível entre este desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento

das relações humanas de trabalho, que, historicamente, sofrem com a própria

estagnação, pois as relações sociais se transfiguraram, por interesses do mercado,

em relações desumanizantes, coisificantes, como podemos perceber, no texto

adorneano:

Os homens seguem sendo, o que, segundo a análise de Marx, eles eram por volta da metade do século do século XIX: apêndices da maquinaria, e não mais apenas literalmente trabalhadores, que têm de se conformar às características das máquinas a que servem, mas além deles, muitos mais, metaforicamente: obrigados até mesmo em suas mais íntimas emoções a se submeterem ao mecanismo social como portadores de papéis, tendo de se modelar sem reservas de acordo com ele64. Segundo a concepção marxista65, quase toda mudança estrutural em uma

sociedade depende do conflito entre a atuação estatal e suas relações com os

indivíduos desta sociedade. Quando o povo, a massa oprimida,

fundamentalmente, não se manifesta não desmente o poder do governo, acatando

suas exigências e funcionamento, não há ruptura. O modelo vigente está aprovado

e apto a se perpetuar. A acomodação das pessoas que são vítimas desse sistema, o

medo de como seriam essas eventuais mudanças e de retaliações governamentais

são sintomas da falta de reflexão das pessoas sobre a gestão do Estado, o que

permite a manutenção do status quo através da legitimação da atuação estatal.

Cardoso Pires, principalmente, com seus textos, busca causar inquietação nas

pessoas, mostrar que a acomodação transforma indivíduos em máquinas a serviço

de um Estado – que distribuía empregos e miséria conforme seus interesses, além

de cercear o uso de palavras que considerava ofensivas a seu poder.

63 ADORNO, 1985, p. 47. 64 ADORNO, 1986. p, 68. 65 Cf. MARX, 1974.

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3.2 Dinossauro Excelentíssimo

“Toda forma de morrer é uma forma de morrer por nada Toda forma de conduta se transforma numa luta armada

A história se repete, mas a força deixa a história mal-contada O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante e fascinada É tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda tá errada”.

Humberto Gessinger

O verso que completa o terceto da música, cujo trecho aparece acima, é o

seguinte: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”. Tudo

o que foi dito nos cinco versos anteriores aparece condensado no final. Uma

música que trata do fascismo, do ponto principal e mantenedor deste tipo de

organização governamental: a ignorância. O Estado como edificador de mentes

programadas, como diria, na letra da música “Brasil”, o poeta Cazuza, “para só

dizer sim”, para pensar de uma mesma maneira. O dizer “sim” como reflexo de

um governo que só exerce a política do não, pois prega a castração de direitos, e

só assim se mantém. Pensadores como Ricardo Piglia, Michel Foucault e Pierre

Bourdieu ajudaram a construir a idéia de que o Estado gerencia a linguagem do

povo de acordo com seus interesses, legitimando o advento da censura como

Instituição, pois se todos pudessem falar abertamente sobre tudo, o discurso

estatal correria um grande risco de deixar de funcionar. Piglia comprova o poder

do relato estatal, quando, em seu livro Crítica e Ficção, define a estrutura

construída pelo Estado para dar credibilidade a seu discurso e perpetuá-lo ante o

“público-leitor” como: “una estructura que dice todo y no dice nada, que hace

saber sin decir, que necessita a la vez ocultar y hacer ver. Y el tipo de lenguaje, el

uso estatal de la lengua66

67

”.

A liberdade de/na utilização da língua, quase sempre, vai agir contra os

interesses do poder, principalmente quando este é centralizador, por isso o Estado 66 Tradução: Uma estrutura que diz tudo e nada diz, que se faz reconhecer sem dizer, que oculta e se faz visível. E o tipo de linguagem, o uso estatal da língua. 67 PIGLIA, 2000, p. 116.

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embaralha os sentidos do receptor, através de uma fala burocrática, cuja principal

função é manter a ordem vigente. Há uma eterna necessidade de estar-se atento às

mensagens que vêm “de cima”, da mais alta instância de poder, pois sua função é

esmagar as outras falas e quem as profere. O Estado, para se perpetuar, cria e

vende ficções, sob o rótulo de versão oficial, como descreve, em seu texto Tres

propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades), o ensaísta e escritor

argentino Ricardo Piglia, ao relacionar a narração do Estado à literária:

A diferencia68

de lo que se suele pensar, la relación entre la literatura – entre

novela, escritura ficcional – y el Estado es una relación de tensión entre dos

tipos de narraciones. Podríamos decir que también el Estado narra, que también

el Estado construye ficciones, que también el Estado manipula ciertas historias.

Y, en un sentido, la literatura construye relatos alternativos, en tensión con ese

relato que construye el Estado, ese tipo de historias que el Estado cuenta y dice69

.

Essas ficções estatais são estratégias de criação de mitos sobre o poder, e

sobre quem o exerce, para, com isso, combater qualquer tentativa de revolução ou

apenas para assegurar a manutenção dessa situação. A forma como o governo de

António Salazar atuou em Portugal, durante quatro décadas, também pode ser

aproximada dos conceitos desenvolvidos pelo cientista social francês Pierre

Bourdieu que, em seu livro O Poder Simbólico, analisa como esse referido poder

atua:

num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que - sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de "círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma" - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (...) [nos] diferentes universos simbólicos, mito, língua, arte, ciência70.

O Estado, principalmente o salazarista, cria e vende ficções valendo-se do

domínio que exerce sobre esses campos simbólicos, como diz Bourdieu,

marcadamente estabelecendo sanções ao uso da língua e das artes, desfigurando a

ciência e construindo uma mitologia em torno do(s) detentor(es) do poder. No

68 Tradução: Diferente do que habitualmente se pensa, a relação entre a literatura – entre romance, obra ficcional – e o Estado é uma relação de tensão entre dois tipos de narração. Poderíamos dizer que o Estado também narra, que o Estado também constrói ficções, que o Estado também manipula certas histórias. E, em certo sentido, a literatura constrói relatos alternativos, em tensão com esse relato que constrói o Estado, esse tipo de histórias que o Estado conta e profere. 69 PIGLIA, 2008. 70 BOURDIEU, 2004, p. 7.

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caso português, António Salazar, o pai dos portugueses humildes era a imagem

desse poder. O poder exercido em Portugal, durante os anos de ditadura, foi

mantido pelo uso da força, da castração de direitos, mas persistiu,

fundamentalmente, através de uma estratégia de aliciamento. Salazar representava

a figura do soberano, segundo ele, consternado pela situação de abandono a que o

povo português havia sido lançado, antes de sua aparição – atuando como um

porto seguro, a manter a ordem, o prumo e os ideais católicos. Essa criação

fantasiosa e cruel, do mito do grande pai salazarista, foi combatida, durante anos,

pelo escritor José Cardoso Pires – com as armas que possuía: sua ação intelectual,

seus livros, comentários, sua máquina de escrever –, mas encontrava respaldo no

seio de grande parte da nação portuguesa.

Pierre Bourdieu apresenta exemplos, em seu referido livro, sobre a forma

como se estabelecem competições internas pelo poder entre partidos e homens

políticos, mas, em essência, seus conceitos a respeito do tema podem ser

vinculados às estratégias de António Salazar, em relação a seus partidários e

oposicionistas, para a manutenção do poder monárquico que exercia sobre o país

dos “mexilhões71”. Os conceitos de Bourdieu explicam com justeza os

estratagemas salazaristas para fundamentar uma política de aceitação silenciosa a

seu governo. Vejamos:

O campo político é pois o lugar de uma concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelos profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos. O porta-voz apropria-se não só da palavra do grupo dos profanos, quer dizer, na maioria dos casos, do seu silêncio, mas também da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui ao prestar-lhe uma palavra reconhecida como legítima no campo político. A força das idéias que ele propõe mede-se, não como no terreno da ciência, pelo seu valor de verdade (mesmo que elas devam uma parte da sua força à sua capacidade para convencer que ele detém a verdade), mas sim pela força de mobilização que elas encerram, quer dizer, pela força do grupo que as reconhece, nem que seja pelo silêncio ou pela ausência de desmentido, e que ele pode manifestar recolhendo as suas vozes ou reunindo-as no espaço72.

Portugal, país de forte literatura e, paradoxalmente, com muitos

analfabetos ao final da década de 1960, era dominado com mão de ferro por

António Salazar. Os intelectuais portugueses, entre eles, Cardoso Pires, lutavam

contra a censura e contra o discurso diário do grande chefe do Estado que

71 “(...)[O português] é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro”. In Pires, 1977, p. 20. 72 BOURDIEU, 2004, p. 180.

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moldava as mentes do povo de acordo com as necessidades do governo. Salazar

dominava não as palavras, mas o seu uso, sabedor da relação indissociável entre

poder e palavra criou mecanismos e artifícios para fundamentar seu discurso e

torná-lo “legalizado”, como podemos perceber através de um trecho de Aula, de

Roland Barthes:

Esse poder em que se inscreve o poder é a linguagem – ou mais precisamente, a língua: a linguagem é uma legislação, a língua é o seu código. A língua por sua estrutura implica uma relação fatal de alienação. Falar não é comunicar, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada. A língua não se esgota na mensagem que engendra . A língua é fascista, pois o fascismo obriga a dizer. Ela entra a serviço de um poder. Os signos de que a língua é feita, só existem na medida em que são reconhecidos. (...) A linguagem humana é um espaço fechado. Trapacear a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem é literatura. É portanto, a prática de escrever. Tem por objetivo: o texto – o tecido dos significantes constituindo a obra. A língua – o jogo de palavras de que ela é o teatro. A literatura supera a ciência e a vida. Assume muitos saberes. Encena a linguagem, em vez de apenas utilizá-la73.

Salazar emudecia uma nação e mesmo fabularmente surdo ainda fazia

questão de ouvir o silêncio que instituiu como hino nacional dos “mexilhões”. O

Dinossauro Excelentíssimo sujeitava portugueses a acompanhar seus espetáculos

de demonstração de poder, sua encenação messiânica de pai da nação. A censura

era a “máquina de desinventar palavras”, construída pelo “dono” de todas elas,

para ajudar a dar corpo a este espetáculo. As vozes portuguesas eram silenciadas e

apenas o discurso salazarista era ouvido. Salazar se valia de procedimentos –

como os analisados por Bourdieu e Barthes – como ausência de desmentido e uso

da força gerada por essa ausência/encenação – para se manter no poder. Além

disso, enfraquecia/desestimulava, via repressão e censura, qualquer tentativa de

mudança na ordem vigente. Os profanos, que seriam as pessoas com chance de

vocalizar alguma resistência, se calam. Desse silêncio surge grande parte do poder

salazarista.

Cardoso Pires era um dos portugueses que não desistiu do som da própria

voz, pois sempre lutou com as armas que possuía contra a ideologia fascista, que

assolou seu país por quatro décadas. A professora Izabel Margato, em texto sobre

o papel do intelectual, lança uma definição sobre a participação do escritor

português na conturbada vida social portuguesa, em tempos de repressão:

73 BARTHES, 1987, p. 7.

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É bem verdade que, na maioria das vezes, esses termos [escritor e intelectual] não se confundem, nem podem ser usados um pelo outro. São papéis que demandam desempenhos diferentes. De um lado, a produção do texto artístico, e de outro, a intervenção direta na sociedade. Em outras palavras, um escritor é quase sempre visto como um autor das belas letras e o intelectual como aquele que se pronuncia publicamente em nome da justiça, da paz e da verdade. Este divisor de águas perde, no entanto, parte de sua funcionalidade quando examinamos um pouco mais detalhadamente a questão. Perde em funcionalidade, quando percebemos que em muitos casos a obra de um escritor pode revelar-se também como um pronunciamento, um ato de intervenção e interpelação face à realidade social e política. Acreditamos ser este o caso da obra de Cardoso Pires74.

José Cardoso Pires foi um intelectual que sempre lutou contra o

salazarismo e contra todas as formas de censura e de cerceamento da liberdade.

Por intermédio de sua obra literária, assim como seus ensaios e depoimentos, o

escritor assumiu, durante décadas, uma postura de confronto e de rompimento

com os valores perpetrados pelo regime ditatorial português. Seus textos eram

retratos dessa luta, desse engajamento, e, ao mesmo tempo, apresentavam alto

valor literário, demonstrando toda a sensibilidade e todo o talento do escritor. A

clareza e agudeza de sua prosa remetem, em alguns momentos, a uma escrita

jornalística, mas sem perder o traço distintivo de um grande escritor de ficção.

Cardoso Pires durante boa parte de sua vida exerceu as funções de redator,

publicitário, editor, jornalista, trabalhando em revistas femininas, jornais, edições

literárias enquanto escrevia seus livros. Segundo o autor:

O contacto com o labor exigente e torrencial da escrita jornalística é nítido. Não pode haver separação entre “Escritores, Jornalistas e Homens de Letras”. Existe uma proximidade histórica entre livros e jornais e os castigos que os uniram desde a Inquisição (não só o fogo mas também a amputação da mão do jornalista irreverente, sob a letra da Bula Ea Est)75.

José Cardoso Pires, pode-se dizer, foi um escritor profundamente

influenciado pela “transparência” inerente à escrita jornalística. Seus textos

sempre jogaram com essa temática da transparência, pois, se aos olhos de um

leitor desavisado, sua obra poderia parecer intrincada – no sentido de que se custa

a perceber – e repleta de mensagens escondidas – ocultas sob o que está mais

visível – para os outros leitores, sua obra é intrincada, mas, ao mesmo tempo,

74 MARGATO, 2004, p. 154. 75 PORTELA, 1991, p. 50.

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absurdamente clara porque durante todo o tempo deixa transparecer os valores em

que nosso escritor, mesmo às voltas com a censura, acreditava.

O escritor também foi conhecido como o cronista de Lisboa, pela

constante atualidade de seu texto, por estar sempre atento às questões cotidianas.

Essas informações juntas podem minimizar/esconder as características

cardoseanas no texto de “Dinossauro Excelentíssimo”, por ser escrito em tom de

fábula, ou seja, uma escrita alegórica, mas a “escrita cardoseana” pode ser

perfeitamente visualizada nesta obra. Em outras palavras, a fábula de Cardoso

Pires apresenta características próprias em relação ao conceito estabelecido para

esse gênero literário. O referido livro apresentava o ditador português António

Salazar como pastiche de uma figura mítica e heróica, defensor da soberania

nacional, dos ideais católicos e pai devotado de todos os portugueses. Cardoso

Pires constrói uma narrativa que acompanha toda a trajetória salazarista, desde a

infância do dinossauro até sua queda. A professora Clara Rocha, em seu livro O

Cachimbo de António Nobre e Outros Ensaios, sobre o salazarismo, escreve sobre

essa fábula cardosiana:

Um caso paradigmático é a novela Dinossauro Excelentíssimo (1972), de José Cardoso Pires, uma charge ao velho tirano eternizando-se na sua torre de marfim. O recurso a um bestiário carregado de intencionalidade alusiva (o abutre, o dinossauro) é nestes textos uma forma de minar a imagem mítica do ditador, reencenando-a ironicamente e contrapondo ao arquétipo do “soberano terrível” a figura caricatural de um totem decrépito76.

O livro é apresentado como fábula, ou seja, uma narrativa alegórica em

prosa ou verso, cujos personagens são geralmente animais, apresentando uma

lição de moral como conclusão. Sua peculiaridade reside fundamentalmente na

apresentação direta das virtudes e defeitos do caráter humano, ilustrados pelo

comportamento antropomórfico dos animais. Apesar disso, o tom é sempre

realista, ainda que irônico, e, geralmente, parcial: os bons, os honestos, os justos

vencem todas as vezes. A fábula comporta duas partes: a narrativa e a

moralidade. A primeira trabalha as imagens, que constituem a estrutura, o corpo

dinâmico, a ação. A segunda opera com conceitos ou noções gerais de

(bom)comportamento, que pretendem ser lidas como “a verdade”, não uma

verdade. A estrutura acaba sendo mais estudada, por ser a parte menos clara, pois

76 ROCHA, 2002, p, 4.

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quando se entende a moral da fábula, que nem sempre salta aos olhos, ela, ao se

auto-explicar, se esvazia.

A presença da moral, no entanto, nunca desapareceu de todo da fábula.

Explicitada no começo ou no fim, ou implícita no corpo da narrativa, é a

moralidade que diferencia a fábula das formas narrativas próximas, como o mito e

a lenda. Essa preocupação do poeta com a questão da moralidade não pode

cercear sua criatividade ou transformá-lo em historiador. Segundo Aristóteles:

(...) não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. (...) Na tragédia, os poetas podem recorrer a nomes de personagens que existiram, e por trabalharem com o possível, inspiram confiança. O que não aconteceu, não acreditamos imediatamente que seja possível; quanto aos fatos representados, não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido impossíveis, não se teriam produzido. (...) Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis77.

O poeta se encontra em um entre-lugar, mas a própria fábula também, pois

estaria situada, de certa forma, entre o poema e o provérbio, a meio do caminho da

viagem do concreto para o abstrato. A afinidade da fábula com o provérbio

encontra-se no nível mediano, no nível do cidadão mediano e dos seus lugares-

comuns, (“quem espera sempre alcança”, “Deus dá a cruz conforme o ombro”,

adágios presentes em Dinossauro Excelentíssimo e que exemplificam a questão) e

acaba sendo a este(a) provérbio/moral que geralmente fica reduzida a lição

extraída da narrativa. Na evolução do gênero, o período que nos interessa é o da

fábula oriental, aquele em que a moralidade constitui a parte fundamental,

iniciado na Índia, de onde chegou à Grécia através de Esopo, fabulista a quem se

atribuem as mais conhecidas fábulas da antiguidade. Ele teria sido uma espécie de

orador popular que contava histórias para convencer os ouvintes a agir de acordo

com o bom-senso e na defesa de seus próprios interesses. De acordo com

Aristóteles, a fábula esópica é uma das formas da arte de persuadir e não poesia. O

narrador que conta a história do dinossauro para a filha Ritinha lança o seguinte

pensamento:

Está escrito pelos gregos antigos que quem muito se olha cega e quem muito se ouve perde a voz. A lição tem mais de mil anos e parece que é de agora. Mas, vê

77 ARISTÓTELES, 1999. p. 290.

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tu, os próprios gregos que escreveram em forma de fábulas e de lendas, não a souberam seguir. Eles, que eram sábios e avisados, morreram sob o peso dos mitos que inventaram. E por mitos quero eu dizer as imagens com que tentaram explicar-se para a Eternidade78.

Neste contexto, pode-se encarar moral como indução de pensamentos,

como molde social. Esse é o ponto crucial: fábula como instrumento de

(des)alienação, no sentido de uma percepção dos argumentos e das falhas do/no

discurso proferido pelas instâncias de poder. O cidadão apto a entender os

mecanismos de coação, utilizados pelo Estado, tem maiores possibilidades de

“intervir” ou de pelo menos racionalizar sobre os acontecimentos, que este

discurso estatal insere em sua vida, diretamente ou através de representações

teatrais e alegóricas. Sobre esse aspecto teatralizante do Estado, Nestor Garcia

Canclini argumenta:

A teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora, em relação à qual deveríamos atuar hoje. Essa é a base das políticas culturais autoritárias. O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito. As práticas e os objetos valiosos se encontram catalogados em um repertório fixo. Ser culto implica conhecer esse repertório de bens simbólicos e intervir corretamente nos rituais que o reproduzem. Por isso as noções de coleção e ritual são fundamentais para desmontar vínculos entre cultura e poder. (...) a política autoritária é um teatro monótono. Os políticos e os sacerdotes são os autores vicários desse drama79.

Cardoso Pires deixa claro, em Dinossauro Excelentíssimo, que fala de

Portugal, da infância do Dinossauro-Salazar (“esta criança vai para as leis”) e do

modelo ditatorial de governo que estruturou na fase adulta e infantilizou milhões

de portugueses. Cidadãos que perderam o comando de suas vidas para o pai-de-

todos, o detentor da moral, dos bons costumes e de todo o resto (“RESPEITO,

CIDADÃOS IGNORANTES!80”). Desde o prólogo até o epílogo, o escritor

português define todo um período de governo e suas conseqüências para seu povo.

Dinossauro Excelentíssimo conta a trajetória desse Imperador-Salazar

desde sua infância até o seu apogeu e queda, esmiuçando os torpes procedimentos

utilizados para ascender ao poder e para mantê-lo: censura, tortura, falácias, uso

da força. Na infância, o Imperador tem a sua volta, além de seus pais, figuras

fundamentais a sua criação: um regedor (“muito dado às fardas e às marchas), um

78 PIRES, 2000, p. 111. 79 CANCLINI, 1998, p. 162. 80 PIRES, 2000, p. 35.

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padre (“MAÇÓNICO! REFRACTÁRIO! HÓSTIA DE SAL!”) e a Dona

Madrinha da criança (“que era rica e muito solteira”), seus três magos

conselheiros. Messianicamente predestinado, o dinossauro criança tem seu destino

atrelado à salvação do povo português, consequentemente, sua trajetória, em

dados momentos parece análoga à de Jesus, com alusões a trechos bíblicos,

recurso utilizado por Cardoso Pires tanto na narração quanto nos diálogos.

Vejamos:

“Supõe-se, está vagamente escrito, que esse imperador veio realmente do nada. Que nasceu algures numa choupana, filho de gente-nada ou pouca-coisa, camponeses ao desabrigo. Que muito possivelmente estudou por cartilhas de aldeia; por catecismos, também. Mais: a acreditar nos compêndios das escolas, teria vindo ao mundo iluminado por Deus – e tanto assim que, muito mocinho, fez ciência entre os doutores.

RESPEITO, CIDADÃOS IGNORANTES!

Dinossauro, criatura marcada desde o berço, estava escrito que iria subir muiiiitíssimo na asa da compostura, por cima dos casebres da aldeia e do palácio dos ricos, e que teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local,

“ESTA CRIANÇA VAI PARA LEIS” (...) Recomeçava então a caminhada, um tanto hesitante, arrastada, mas vencida pelo fatalismo e pela resignação. “VOU DE BURRO, VOU DE BURRO”, Diria com ele o futuro imperador enquanto a mãe espreitava lá para trás, receosa da perseguição dos jumentos vingadores. (Seria realmente de burro que os historiadores descreveriam mais tarde a viagem para o templo dos doutores. O pequeno e a mãe em cima da albarda; o pai ao lado, abrindo caminho com um ramo de esteva em flor)”81.

O texto bíblico que serve como mote para Cardoso Pires é o que narra o

nascimento e juventude de Jesus, na versão de Lucas, que reproduzimos:

Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. 2.Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria. 3.Todos iam alistar-se, cada um na sua cidade. 4.Também José subiu da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à Cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, 5.para se alistar com a sua esposa Maria, que estava grávida. 6.Estando eles ali, completaram-se os dias dela. 7.E deu à luz seu filho primogênito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria. 8.Havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite (...)Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. 42.Tendo ele atingido doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o

81 PIRES, 2000, p. 29.

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costume da festa. 43.Acabados os dias da festa, quando voltavam, ficou o menino Jesus em Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem. 44.Pensando que ele estivesse com os seus companheiros de comitiva, andaram caminho de um dia e o buscaram entre os parentes e conhecidos. 45.Mas não o encontrando, voltaram a Jerusalém, à procura dele. 46.Três dias depois o acharam no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. 47. Todos os que o ouviam estavam maravilhados da sabedoria de suas respostas.82.

A jornada da família do Dinossauro, retratada no trecho acima, mãe e filho

(o salvador das almas portuguesas, segundo a ideologia salazarista) montados em

um burro e o pai a zelar por eles caminhando ao lado, lembra a cena da chegada

de Maria (grávida do menino Jesus, o salvador de todas as almas, segundo os

conceitos cristãos) e José a Belém. Assim como, montados mãe e o filho recém-

nascido, em um burro, com o pai seguindo a pé, ao lado, ocorreu a fuga da

sagrada família para o Egito, tempos depois, fugindo da ira de Herodes, que havia

ordenado o extermínio de todos os meninos menores de dois anos83.

Como ainda não dominava as palavras e o uso delas, o jovem dinossauro

viu sua família sofrer, pela abnegação de seus pais em transformá-lo em doutor,

com as injúrias e ofensas dos vizinhos da aldeia. Os pais do Imperador, por outro

lado, acreditavam na profecia, na consagração divina do filho:

Os habitantes da aldeia, levados pela inveja e pela intriga, tinham-se posto a insultar os pais sacrificados que, na opinião deles, não passavam de uns perdulários a correr atrás do sonho de um filho doutor. “LOUCOS! GANACIOSOS!” “RENEGADOS!” “MÃOS ROTAS!” Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a suportar a injustiça do semelhante para cumprir um destino sublime84.

Esses camponeses “invejosos” e “dados à intriga” não tinham nenhuma

perspectiva de mudança em suas vidas, fadados a viver e morrer pobres, naquele

pobre lugar, encarquilhados e envelhecidos, isolados de todas as possibilidades de

quebra dessa miséria cotidiana que é tão bem explicitada por Cardoso Pires:

Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o que quer que fosse. À falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhe trazia a brisa marítima (“Quando o mar bate na rocha,

82 BÍBLIA SAGRADA, 2000. p. 812. 83 Cf. Mateus 2,13-23. In BÍBLIA SAGRADA, 2000. 84 PIRES, 2000, p. 24.

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etc.”) e isso e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo. Nasciam já velhos, parece impossível. 85

Mesmo quando o campesinato alça outras camadas sociais, continua a

sofrer/aceitar a atonia cotidiana, a impossibilidade de uma viravolta, de um novo

caminhar. Cardoso Pires apresenta uma crítica a essa busca dos camponeses pela

vida burguesa, burocrática, sem abalos, calcada na serenidade e na certeza

causada por um cargo, uma mesa de escritório com uma foto de Salazar a

observar-lhes o doce marasmo tranqüilizador, dia após dia:

Filhos e netos de camponeses que enriqueceram, enriqueforam e que em ricos serão sempre camponeses por mais que disfarcem, estes exemplares caracterizavam-se por possuírem hábitos sedentários, preferindo as áreas das secretarias e outras de clima acentuadamente burocrático onde a vida decorre na ordem dos ciclos naturais das chuvas e dos impostos86. A aproximação do dinossauro à figura de Jesus foi amplamente utilizada

pelo regime salazarista, apesar de ter sido amenizada uma comparação definitiva,

pois o sacrilégio de elevar um homem ao patamar do filho de Deus poderia

repercutir negativamente para Salazar. O Dinossauro era um predestinado, o

escolhido para guiar o povo português, e outros povos decaídos, segundo ele,

pelos caminhos do catolicismo. A moral cristã funcionaria como suporte aos

discursos do Imperador, legitimaria o modelo de governo adotado e,

principalmente, não daria margem à contrariedades pecaminosas. Os discursos do

Dinossauro almejavam uma consagração internacional e irrestrita, através da

propagação dos ideais morais cristãos, dos quais era o grande divulgador, para

livrar as demais nações de “pragas” como o comunismo e o livre-pensar.

Entretanto, o problema para a obtenção de resultados práticos foi criado pelo

próprio Imperador, através de uma política de isolamento e não-industrialização.

Vejamos:

“ATENÇÃO, MUNDO!” BONS DIAS, PLANETAS!” O resto do Discurso foi um deslumbrar de sabedoria, oferecida desinteressadamente às nações do Universo. Aconselhou, repreendeu. Pediu bom-senso e cantou a paz geral. Quando se retirou, a Praça dos Acontecimentos veio abaixo com aplausos.

85 PIRES, 2000, p. 43. 86 PIRES, 2000, p. 63.

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O pior é que mundos e planetas andavam fora do comprimento de onda do Imperador porque nem um obrigado lhe mandaram. Pelos vistos, não tomaram conhecimento, ou não quiseram. Desconheciam, pensavam para lá87.

A fábula apresenta uma moral final que explica e fundamenta sua criação:

as crianças teriam mais facilidade para entender as situações ali representadas do

que se os exemplos fossem oferecidos através de histórias protagonizadas por

humanos, ou seja, a mensagem é passada de forma a ser melhor aproveitada, sem

que ninguém conteste o que está sendo dito, pela total transparência da situação, e

sem criar qualquer tipo de melindre, pois aquilo é uma fábula, uma brincadeira

com a realidade, coisa de criança. Cardoso Pires cria um narrador que conta a

fábula do dinossauro a uma criança, filha deste narrador, chamada Ritinha, a quem

é dirigida a história e algumas considerações também:

Deus criou o som, o homem fez a palavra. Depois, tal como a fez, aprendeu a destruí-la ou a corrompê-la e senão vejamos. Temos essa fita gravada, repara. Agora, cortando um pedaço escolhido – assim – e colando-o noutro ponto – acolá – podemos, é relativamente fácil, transformar a verdade da voz que aqui está. Apagar, desdizer a voz, até. Confundi-la. Montagem, chama-se esta operação que, como vês é facílima. Mas há processos menos simples e muito eficazes, Ritinha. Se há88.

No parágrafo seguinte, como a confirmar o que contou à Ritinha, o

narrador abandona esse adendo explicativo à menina, retorna ao desenvolvimento

da narrativa da trajetória do dinossauro e explica como o ditador desenvolveu essa

operação de montagem e de desmontagem dos discursos que não lhe eram

favoráveis:

Quanto tempo gastou o Imperador a estudar a maneira de se ver livre das palavras que o incomodavam? Meses? Anos? O melhor da vida, há quem diga. Bandos de espiões batiam as ruas com o encargo de denunciar a língua, confrarias de doutores mergulhavam nos compêndios, outros na letra de forma, no diz que diz. A fala dos mexilhões era passada a crivo, havia orelhas de morcego a caçá-las nas dobras da sombra, imagine-se89.

O narrador passa mensagens, nunca ordens ou um didatismo rasteiro que,

quase sempre, é o primeiro passo para a ditadura. Contudo, o Dinossauro

Excelentíssimo pode ser considerado como a união de uma escrita transparente ao

87 PIRES, 2000, p. 85. 88 PIRES, 2000, p. 54. 89 PIRES, 2000, p. 55.

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corte invisível, talhando a vida de quem participa desse ato de criação, desse grito

de rebeldia que é visível no texto. Como diz a escritora Lídia Jorge, o texto

cardoseano “se esforça para ser limpo, sóbrio, transparente como vidro, cortante

como o gume que nele se esconde90”. Os puros portugueses têm a alma límpida e

o cérebro nublado pela ideologia salazarista, como vemos em o Dinossauro

Excelentíssimo: “Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a

suportar a injustiça do semelhante para cumprir um destino sublime91”. Todas as

agruras que o povo português sofria na terra seriam recompensadas no dia do

grande julgamento, onde os desvalidos ganhariam o reino dos céus e o direito de

usar as palavras livremente, única maneira de ser verdadeiramente livre. A força

inerente ao livre-proferir é reconhecida pelo Dinossauro que fazia questão de

cerceá-lo:

E cá viemos dar às palavras. Como sempre. “Com palavras e moscas povoa-se o Reino”, rosnavam os mexilhões descontentes, os Pedintes Voadores. Mas o Imperador acabava com o pio dessa malta, destruindo diariamente uma boa porção delas. Queria desempestar o Império e as consciências queimando o termo grosseiro e a frase manhosa, e ia conseguindo. Em menos de um fósforo os dicionários estavam no nervo, rapados, e os mexilhões a falar praticamente por sinais92.

No livro devemos buscar o que nele está sublimado, fazer emergir o

máximo do texto, mas mantendo a certeza de que, mesmo lido apenas

superficialmente, há nele sinais de execração do regime ditatorial, de uma

maneira tão despudorada – em todos os sentidos que este termo possa ter – que,

talvez, por isso, acabem suscitando dúvidas sobre a mensagem nele contida. O

próprio Cardoso Pires esclarece esse ponto, os problemas para conseguir a

publicação dessa obra tão explicitamente desafiadora ao salazarismo e os motivos

de Dinossauro não ter sido recolhido pela censura:

João Abel Manta aceitou fazer as ilustrações sem hesitação, a Arcádia planeou com alguns livreiros certas precauções na distribuição do livro, mas a grande dificuldade foi descobrir uma tipografia que entrasse na aventura. Descobriu-se, vá lá. Quando o Dinossauro saiu; regressei de Londres para estar presente ao lado do editor e do ilustrador no que viesse a acontecer mas, para assombro de todos nós, em vez da excomunhão que era de esperar, o livro ultrapassou a Censura e teve um acolhimento indescritível. Digo «ultrapassou» porque aconteceu aquele escândalo monumental na Assembleia Nacional, quando o professor Miller

90 Lídia Jorge, Especial sobre Cardoso Pires, publicado no Jornal de Letras, em 04/11/1998. 91 PIRES, 2000, p. 24. 92 PIRES, 2000, p. 72.

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Guerra teve a coragem de afirmar que não havia liberdade em Portugal. Foi uma sessão histórica, um berro de heresia! O deputado ultrafascista Casal Ribeiro correu para Miller Guerra a espumar de raiva e para o desmentir citou como prova o infame Dinossauro Excelentíssimo que acabava de ser posto à venda em toda a parte. E, pronto, a partir daí a Censura ficou de mãos atadas. Já não podia apreender o livro que o deputado salazarista tinha citado estupidamente como demonstração da liberdade do regime, e, menos ainda, promover a prisão do autor93.

O não-recolhimento do livro causou espanto por relatar a realidade de um

povo pouco acostumado a ir contra as vontades de seu pai, o grande provedor, o

guardião da sabedoria, que é ironicamente “representado” como um dinossauro,

um imperador de bronze. A fábula permite que a verdade surja, mesmo

transfigurada em brincadeira e essa farsa, até certo ponto infantilizada, acaba por

dar conta da verdadeira sub-condição de vida de um povo forçado a acreditar em

um conto de fadas, mesmo percebendo certo cheiro de enxofre no sagrado ar

português. Cardoso Pires reconfigura a história de Salazar, abrindo uma

possibilidade de apreensão dessa biografia que “fundamentou” o Estado Novo e o

povo português para transformá-la em uma coisa outra, um novo paradigma. O

escritor não só lê esse discurso que mantém o Imperador no poder, como re-

escreve esse mesmo discurso fabularmente obtuso e, com isso, gera possibilidades

de mudanças em um tempo presente, cópia de um passado subserviente e passivo,

e também em um futuro que possa ser suscitado nas mentes dos mexilhões, não o

que eles apaticamente esperam.

A escrita jornalística, o tom de crônica, a fábula, a re-escritura dessa

trajetória salazarista em tom de pastiche, tudo isso funciona como munição para o

fuzilamento de um dinossauro que, em verdade, teima em não se extinguir, visto

que, de certa forma, não poderia ser extinto por mais ninguém.

93 PORTELA, 1991, p. 36.

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