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J Bras Neurocirur 31 (1): 27 - 35, 2020 Ribeiro CRT. Minha Vida na Alemanha Special Paper Minha Vida na Alemanha Prof. Dr. Carlos R. Telles Ribeiro Professor Adjunto e Chefe da Disciplina de Neurocirurgia e Clínica da Dor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina (ANM). Desde muito cedo tinha vontade de ir para a Alemanha. Não sei explicar, mas a vontade era real. Meu pai colecionava selos, e ainda bem garoto, comecei a colecioná-los também: selos da Alemanha. Talvez daí tenha nascido a vontade de conhecer este grande país. Minha primeira professora de alemão foi contratada por minha mãe a meu pedido, eu tinha 12 anos. Minha bisavó por parte de pai era alemã de Colônia. Quando estava fazendo a residência médica em Brasília, conheci o Prof. Mario Brock. Nessa época, o Prof. Brock era o ídolo de 10 entre 10 jovens neurocirurgiões. Os mais velhos simplesmente o idolatravam. Afinal, para todos, o Prof. Mario Brock era o neurocirurgião brasileiro que havia vencido na Alemanha. Era chefe de clínica em Hannover e futuramente, quase com certeza, professor catedrático. Com aquela sua jovialidade contagiante, convenceu-me que era possível fazer estágio na Alemanha. Um ano após, quando eu ainda estava fazendo minha residência, surgiu como visita do Prof. Paulo Mello, o Prof. Dietz, chefe do Prof. Brock na época. Falei com ele de minha vontade e afiançou-me que iria colocar anúncio nas revistas médicas alemães durante seis meses (exigência do Conselho Federal de Medicina de lá). Se nesse meio tempo não aparecesse outro candidato, a vaga seria minha. Passei 6 meses torcendo as mãos e rezando como nunca em toda minha vida. Ao fim desse período, recebi telefonema do Prof. Dietz: a vaga era minha (Aleluia!!!). Nessa época, eu, recém-casado, organizava minha vida. Vendemos os poucos os móveis que havíamos comprado, entregamos o apartamento alugado e ... rumo à Alemanha. Meu pai era oficial de Marinha e nós éramos em seis filhos. Apesar de não passarmos dificuldade, não vivíamos com folga. Quando surgiu a viagem, não sabendo por quanto tempo ficaria fora do Brasil, apelei ao meu pai: “Pai, o que faço? Que tipo de passagem compro? O que levo para tempo indeterminado? Como arrumo dinheiro para a viagem e para manter-nos nos primeiros tempos?”. Meu pai arranjou a solução. Falou com o seu amigo, presidente da Companhia de Navegação Aliança que providenciou uma passagem barata, num navio mercante, vantagem de levar mais malas e camarote especial só para amigos do diretor. A VIAGEM PARA A ALEMANHA

3- Minha Vida na Alemanha

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Special Paper

Minha Vida na Alemanha

Prof. Dr. Carlos R. Telles Ribeiro Professor Adjunto e Chefe da Disciplina de Neurocirurgia e Clínica da Dor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina (ANM).

Desde muito cedo tinha vontade de ir para a Alemanha. Não sei explicar, mas a vontade era real. Meu pai colecionava selos, e ainda bem garoto, comecei a colecioná-los também: selos da Alemanha. Talvez daí tenha nascido a vontade de conhecer este grande país.

Minha primeira professora de alemão foi contratada por minha mãe a meu pedido, eu tinha 12 anos. Minha bisavó por parte de pai era alemã de Colônia.

Quando estava fazendo a residência médica em Brasília, conheci o Prof. Mario Brock. Nessa época, o Prof. Brock era o ídolo de 10 entre 10 jovens neurocirurgiões. Os mais velhos simplesmente o idolatravam. Afinal, para todos, o Prof. Mario Brock era o neurocirurgião brasileiro que havia vencido na Alemanha. Era chefe de clínica em Hannover e futuramente, quase com certeza, professor catedrático.

Com aquela sua jovialidade contagiante, convenceu-me que era possível fazer estágio na Alemanha. Um ano após, quando eu ainda estava fazendo minha residência, surgiu como visita do Prof. Paulo Mello, o Prof. Dietz, chefe do Prof. Brock na época. Falei com ele de minha vontade e afiançou-me que iria colocar anúncio nas revistas médicas alemães durante seis meses (exigência

do Conselho Federal de Medicina de lá). Se nesse meio tempo não aparecesse outro candidato, a vaga seria minha. Passei 6 meses torcendo as mãos e rezando como nunca em toda minha vida. Ao fim desse período, recebi telefonema do Prof. Dietz: a vaga era minha (Aleluia!!!).

Nessa época, eu, recém-casado, organizava minha vida. Vendemos os poucos os móveis que havíamos comprado, entregamos o apartamento alugado e ... rumo à Alemanha.

Meu pai era oficial de Marinha e nós éramos em seis filhos. Apesar de não passarmos dificuldade, não vivíamos com folga. Quando surgiu a viagem, não sabendo por quanto tempo ficaria fora do Brasil, apelei ao meu pai: “Pai, o que faço? Que tipo de passagem compro? O que levo para tempo indeterminado? Como arrumo dinheiro para a viagem e para manter-nos nos primeiros tempos?”.

Meu pai arranjou a solução. Falou com o seu amigo, presidente da Companhia de Navegação Aliança que providenciou uma passagem barata, num navio mercante, vantagem de levar mais malas e camarote especial só para amigos do diretor.

A ViAgem pArA A AlemAnhA

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O navio saía de Santos e para lá fomos de ônibus noturno. Ao chegar ao porto de Santos, apresentei-me ao comandante, que me recebeu com uma novidade: “Acho ótimo que o senhor seja médico, pois acabamos de receber o pedido do embaixador da Suécia para que levemos uma passageira, brasileira, residente na Suécia, que passou os últimos meses internada em Hospital Psiquiátrico”. Apresentou-me ao enfermeiro do navio, que foi mostrar-me a “especialmente bem servida farmácia da embarcação” que continha um armário cheio de esparadrapos, mercúrio cromo, gaze, algodão e algumas bisnagas de pomadas contra queimaduras. Expressei-lhe meu temor da possibilidade da paciente psiquiátrica poder ter uma crise de agitação psicomotora durante a viagem. Procurei então um colega que morava em Santos, que me arranjou algumas ampolas de psicotrópicos e sedativos via oral.

Zarpamos para o Velho Mundo. A passageira era uma jovem simpática, vivia sedada e contou-nos sua comovente história. Era uma baixinha, exercia sua profissão no cais da Bahia, e que se apaixonou pelo comandante Bo, sueco, alto, bonitão e louro, cuja foto nos mostrou, toda orgulhosa. Ao que tudo indica o comandante Bo também apaixonou-se por nossa passageira, casando-se com ela, levando-a para a Suécia. Em sua cidade natal no interior de matas geladas, largou-a com sua mãe e sua família, embarcando novamente, para muitos meses no mar.

Esta vida, aparentemente, não era prevista pela Rosilene, que mal falava o português e muito menos sueco. Alguns anos nesta vida foram suficientes para alterar o psiquismo

da passageira, vindo a um manicômio em São Paulo e agora voltando para os braços do marido Bo.

Apesar das piores previsões, a viagem transcorreu de maneira muito tranquila e agradável. As acomodações eram confortáveis, o convívio com a tripulação era animado e divertido. Paramos em vários portos na rota, as manobras de atracação eram muito interessantes. Ficava boquiaberto como esses profissionais estacionavam aquele navio imenso em suas vagas. Em cada porto descíamos e conhecíamos um pouco.

Tivemos um pequeno incidente já quase no final, quando nossa passageira nos causou preocupações.

Noite chuvosa, tempo fechado, fui repentinamente chamado à porta do camarote pelo imediato do navio, dizendo que há algumas horas, ninguém sabia onde estava a passageira. Já haviam procurado em sua cabine, pelo convés todo, salas de máquinas e ela não foi achada. Saímos, eu, ele e mais um marinheiro, munidos de lanternas, procurando-a em todos os locais. O receio é que tivesse caído ou se atirado ao mar, sem que ninguém percebesse. Neste ponto da viagem, a passageira já era figura muito popular entre a tripulação e deste sumiço, todos tomaram conhecimento.

Já procurando há algum tempo, alguém lembrou: “Alguém viu na cabine do Pinto?”. O Sr. Pinto era um maquinista de meia idade, baixinho e barrigudo, com um bigodinho que lhe dava ar de finório invejável. Sua fama de conquistador era conhecida por todos. Quando

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chegamos à cabine do Pinto, ele atendeu-nos muito simpaticamente como de hábito e revelou: “Realmente Sr. Imediato, a passageira procurou-me muito assustada com muito medo do temporal e eu a acolhi aqui em minha cabine, para dar-lhe segurança.”.

Nosso destino inicial era Freiburg, onde íamos frequentar por três meses um curso intensivo do Instituto Goethe, para estrangeiros. Este curso existia em várias cidades da Alemanha e Freiburg foi a escolhida por lá morar Selma e família, irmã de meu colega e amigo José Carlos Lynch.Ao chegar à estação ferroviária de Hannover, o Prof. Dietz nos esperava em pessoa, levando-nos para jantar em sua casa, hospedando-nos aquela noite. No dia seguinte, zarpamos de trem para Freiburg, na Floresta Negra, lindíssima cidade da qual tenho até hoje queridas recordações, por onde sempre passo quando visito o sul da Alemanha.

Para quem conhecia apenas Buenos Aires, na viagem de lua de mel, a estadia de três meses em Freiburg, foi enriquecedora.

O primeiro sentimento era o receio da língua, uma barreira dificílima e amedrontadora. No primeiro mês só andávamos a pé para não nos perdermos. Íamos para o curso de manhã, voltávamos a tarde e à noite alugamos uma TV, para ir acostumando o ouvido.

A família da Selma, Rudolph e dois filhinhos era

extremamente simpática e acolhedora e muito fizeram para que nossa estadia não se tornasse complicada. Temos que reconhecer que foram eles os responsáveis por nossa primeira impressão, da segunda homeland, ter sido tão favorável.

Após três meses, chegamos a Hannover, onde mais uma vez, esperava-nos na estação ferroviária o Prof. Dietz. Recebeu-nos efusivamente e afirmou: “Vejo que esse curso em Freiburg lhe fez muito bem, pois agora já o entendo”. Todo prosa respondi: “Então, amanhã já poderei frequentar o centro cirúrgico”?

Respondeu: “Não, o seu alemão ainda não dá para conversar com os pacientes. Assim, ficará algum tempo no CTI, onde os pacientes, geralmente entubados, não precisarão falar com você.”. Foi a minha primeira de muitas duchas frias que recebi em minha nova terra.

À medida que ia melhorando no conhecimento da língua, tudo melhorava. Dois brasileiros lá estavam em treinamento: o Tamburus (de Londrina) e o Zillig (de Blumenau), que nos ajudavam em tudo que precisávamos, desde conversar em português, conseguir melhores preços de mercado, quando haveria langer Samstag nos sábados quando o comércio fica aberto até mais tarde, onde comprar miudezas, etc... Karen Zillig também nos ajudou na resolução de coisas burocráticas, infindáveis e complicadíssimas no início, para quem não fala bem a língua. Eram nossos companheiros inseparáveis para os

em TerrAs Alemãs ChegAdA A hAnnoVer

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programas de fim de semana e bate-papos.

Para os primeiros meses de Hannover, aluguei um apartamento na Schwesternhaus (casa das enfermeiras), destinados ao pessoal de enfermagem ou médicos estrangeiros recém-chegados. Eram pequenos apartamentos compostos de um bom cômodo, um banheiro completo e uma cozinha, que fechada parecia um armário. Tinha sofá, cadeiras, mesa e cama com todos os utensílios necessários. Permanecemos confortavelmente instalados nos três a quatro primeiros meses, quando o Zillig me apresentou a um enfermeiro, que possuía uma casa num bairro próximo, Bucholtz, pronta para alugar.

Fui vê-la e apaixonei-me imediatamente. Era uma pequena casa em centro do terreno, todo ajardinado, de dois andares, onde no andar superior morava outro casal. O inferior, com direito a todo jardim, dois pés de ameixeira, dois de macieira e outras árvores floríferas. Além disso, coelhos silvestres corriam à tarde pelo gramado, nos enchendo de alegria.

A alegria durou até chegar o inverno. Quando a temperatura começou a esfriar, reparamos que as frestas das janelas deixavam passar o frio. Além disso, o aquecimento que nos prédios modernos era central, na nossa casinha era composto de uma trapizonga a gás, que demorava pelo menos meia hora para aquecer o ambiente (só a sala), ao som de um barulho fenomenal. Para os outros cômodos adquirimos aquecedores elétricos.

Pelo inverno descobrimos o porquê, dos alemães serem tão pontuais, tudo regido por um horário rígido.

O horário nos pontos de ônibus, absolutamente precisos: 07h26min, 07h58min – etc. o que para nós, brasileiros, era motivo de gozação. Era mais fácil e cômodo pensar que o ônibus passava por volta de 08h00min do que algo mais preciso. Até que perdi um ônibus na saída de casa e tive que esperar pelo próximo, quase quinze minutos em pé no ponto, a uma temperatura de dois graus, quando minhas orelhas quase caíram congeladas. Passei, então, a respeitar o horário dos ônibus, chegando dois a três minutos antes.

Chamou-nos a atenção no início, a disciplina dos pedestres aguardando a abertura do sinal eletrônico, mesmo quando as ruas livres de tráfego, em qualquer sentido. Um dia, estava atrasado, olhando para os lados sem trânsito, atravessei no sinal vermelho. Chegando ao outro lado, recebi uma vaia dos passantes que aguardavam disciplinarmente o sinal abrir. No hospital, comentei este ocorrido, para mim divertido. Surpreso e depois envergonhado, recebi o comentário em tom repreensivo, afirmando que isto também acontecia para dar exemplo às crianças, que ainda não tinham poder de discernimento, com risco de serem atropeladas.

A pontualidade e a observância às regras são uma característica alemã, mais rígida que em outros países da Europa. Estando na Inglaterra, pude observar que a pontualidade alemã é mais rígida do que a decantada pontualidade britânica, até mesmo nos trens. E brasileiro

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é, por princípio, impontual, mesmo os mais certinhos. O nosso amigo e chefe Prof. Brock, o mais germânico dos alemães, vivia às turras com os brasileiros por esse motivo. A um colega carioca ele tinha o costume de, em caso de divergência, mostrar a rádio relógio federal para dirimir questões. Mas o ambiente entre nós, assistentes e staffs era o melhor possível, apesar de, uma vez ou outra, geralmente por um desentendimento da língua, termos as nossas rusgas.

Um episódio desses ocorreu quando meu colega de CTI, o grego-cipriota Achileas Perdios, após alguns meses, avisou-me que ia sair de férias. Em pânico, fui conversar com o chefe Prof. Dietz, pois não me achava ainda em condições de comandar sozinho a enfermaria. Uma das tarefas do responsável pela enfermaria era redigir os relatórios de admissão e alta dos pacientes. Os casos em si eram resolvidos com a ajuda da Frau Kempe, enfermeira chefe do CTI, que sabia tudo de medicina, inclusive montar e desmontar qualquer respirador. Mas os relatórios, que eram ditados no ditafone e encaminhados à central de digitação, eram digitados por secretárias, que vez ou outra faziam erros de linguística e, eram depois assinados pelo chefe, que não admitia erros.

Ao expor minha preocupação ao Prof. Dietz, ele tranquilizou-me afirmando que isso era normal e que colocaria um substituto no lugar do Perdios. Na hora da reunião matinal, eu sabia que ninguém gostava de ficar no CTI, pois ficava automaticamente fora da escala de cirurgia. No final da reunião o chefe anunciou: “O substituto do Perdios será o Dr. Stolke, já que Dr. Telles

ainda não pode ficar sozinho.”. Levantei-me e me dirigi ao meu posto, sem olhar para trás, para não encarar o germanófilo Dr. Stolke.

Lá fiquei, até ouvir o ploc-ploc-ploc dos seus tamancos, e ouvi-lo dizer: “Herr Telles, por favor, acompanhe-me ao quarto, pois quero lhe falar”. Sentou-se e disparou: “Herr Telles, aqui nesse hospital o senhor ganha tanto quanto eu, portanto, trate de trabalhar tanto quanto eu, se não a situação não ficará bem”. Saí do quarto pensando e logo voltei com a resposta na ponta da língua, e explicando-lhe que minha vontade era fazer exatamente aquilo, disposto a trabalhar mais do que qualquer um examinando os pacientes, colhendo sangue, buscando resultados, mas meu conhecimento da língua ainda não era suficiente para redigir os relatórios, nem resolver problemas ao telefone. Além disso, poderia ajudá-lo com meus conhecimentos de Neurocirurgia, pois quando saí do Brasil já tinha o título de especialista. Era isso ou nada!!

Minha surpresa foi enorme quando me respondeu afetuoso: “Eu sei, eu sei, me desculpe que estava nervoso, pois o chefe me pegou de surpresa, já que agora vou ficar um mês sem operar!”.

Deu certa nossa parceria naquele mês foi bastante profícua. E o Dr. Stolke tornou-se um dos melhores amigos que ainda tenho na Alemanha.

Estes primeiros anos em Hannover foram gratificantes para mim e guardo muitas afetuosas recordações.

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Como era de rotina, a equipe possuía quatro períodos de férias por ano, que eram divididos igualmente por todos, cabendo dois períodos para cada grupo: Natal, Ano Novo, Advento e Páscoa. Com um período tirava ao todo perto de um mês de férias por ano.

Num domingo de Páscoa eu me encontrava de plantão, quando o Prof. Dietz apareceu de manhã para sua visita diária. Ele sabia de tudo que acontecia e ao ver-me, com cara de surpresa, perguntou-me: “Ué, você aqui hoje?”. Respondi-lhe o que ele já sabia: “Coisas das férias de Páscoa, quando só existe metade da turma trabalhando.”. Ainda fingindo, retrucou: “Mas Amélia não está grávida? Está sozinha em casa no dia de Páscoa?”.

Mais tarde liga-me Amélia radiante: “Você sabe quem esteve aqui em casa agora? O Prof. Dietz, Frau Dietz e a filhinha. Trouxeram uma garrafa de vinho, um panetone, e ficaram uma hora conversando todos felizes!”.

Assim era o Prof. Dietz, por fora azedo e por dentro açucarado! Não me esqueço de seu semblante de felicidade ao receber-me na rua, apontando para o relógio e dizendo: “Estás atrasado!”. Fui visitá-lo algumas vezes após sua aposentadoria, antes de sua morte precoce.

Outra experiência que guardo dele com carinho foi quando Victoria nasceu. Fui para o Hospital logo cedo, avisando-o e a alguns colegas que naquele dia não iria trabalhar, devido ao nascimento de minha filha. Após um parto trabalhoso, telefonei para o chefe dizendo com empolgação: “Herr Professor, Victoria nasceu!”.

Empolgado, como nunca tinha visto, respondeu: “Der Sieg, Herr Telles, der Sieg!”. (trad. Vitória Herr Telles, vitória!).

No serviço, eu contava mesmo era com o Prof. Mario Brock. Prof. Brock, o mais importante dos quatro staffs, era uma espécie de chefe de clínica, com quem o Prof. Dietz realmente contava em suas ausências, mas diplomaticamente, fingia serem todos iguais. Era a ele que eu corria sempre que me via em dificuldades e precisava de um acalanto em português. Todos os staffs tinham uma sala para trabalhar, mas a do Prof. Brock era bem maior.

Nunca conheci ninguém mais inteligente e engenhoso. Quando lá cheguei, o Prof. Mario Brock era a figura mais importante da Europa, em “Medida Contínua da Pressão Intracraniana”. Havia difundido o processo e organizado o Primeiro Simpósio Internacional de Pressão Intracraniana. Cirurgião dos mais habilidosos, era preciso e intransigente com os detalhes. Os campos cirúrgicos tinham que estar simetricamente colocados e a cirurgia tinha que ser eficaz, limpa e bonita. Segundo ele, cirurgia era arte e como tal tinha que ser bela, tal qual uma obra de arte. Seus movimentos eram tão precisos e perfeitos que suas cirurgias eram sempre rápidas. Uma vez cronometrei uma sua cirurgia de hérnia de disco lombar: “Dezesseis minutos de pele a pele.”.

Lembro-me bem de uma cirurgia vascular que estávamos efetuando: Schramm, eu e um segundo assistente. O Prof. Brock acompanhava de sua sala através da televisão,

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enquanto despachava processos, redigia relatórios e tentava co-operar pelo microfone. E assim, depois de muitas interferências para que Schramm cortasse mais para cima ou para baixo, usasse o bipolar mais forte ou menos forte, o amigo Schramm perdeu a paciência, afastou o microscópio do campo, falando baixo para nós: “Pronto, ele não pode mais ver nada, nem meu saco.”. Foram alguns segundos de silêncio, seguidos da indefectível voz do Prof. Brock, com toda paciência afirmando: “Herr Schramm, não posso mais vê-lo, mas ouço o barulho de seu aspirador, que afirmo continuar muito forte!”. Isto fazia do Prof. Brock, ser idolatrado por uns e odiado por outros.

Todas as tardes tínhamos reunião conjunta com a neuro-radiologia e a neurologia. Era a ocasião em que os exames realizados pela manhã eram revistos e as condutas traçadas. Certa feita, após analisarmos um caso bem estudado, o Prof. Brock tenta indicar a conduta cirúrgica de um paciente da neurologia. O chefe da neurologia, professor famoso internacionalmente, pondera:- Calma Herr Brock, este paciente ainda está sob estudos! Brock, contra-argumenta: “Não me conformo com esta conduta contemplativa, própria dos neurólogos.”.

Quando completei três anos em Hannover, o Prof. Brock fez concurso para professor catedrático na Freie Universität de Berlin. O sonho de todos os professores universitários era um dia, tornar-se professor catedrático. Além da importância do cargo, os catedráticos são os únicos nos hospitais universitários a ter acesso aos

pacientes privados. Os recebimentos então tornam-se cerca de 20 vezes superiores. Ele já havia me convidado para segui-lo. Iríamos eu, um assistente alemão, o Dr. Pöll, e a Frau Dauster. O Prof. Mario Brock queria que eu fosse para Berlin montar uma Clínica de Dor, ainda inexistente por lá.

Eu tinha ganho naqueles três anos, muita experiência nesta matéria, fazendo todos os procedimentos sozinho, com apoio de meu Oberarzt (chefe de clínica).

Um candidato escolhido era sabatinado sobre seus planos em relação à nova universidade. Era estabelecida uma negociação quanto ao número de assistentes, leitos particulares, laboratórios de pesquisa e outros desejos burocráticos. Um desses seria a minha vaga e a criação de uma Clínica de Dor. Tudo aprovado, o Prof. Brock pediu-me que conversasse com o Prof. Dietz. Foi o momento mais constrangedor que passei na Alemanha, pois ele não esperava, absolutamente nada, da notícia que lhe dei. Perguntou-me espantado: “Mas Herr Telles, logo agora que o tornamos responsável pela enfermaria, eu pretendia torná-lo um Oberartzt, você vai fazer uma coisa desta? Você já falou com o Winkelmüller? (meu chefe da enfermaria)”.

Com delicadeza expliquei-lhe que ir com o Prof. Brock para Berlin e montar uma clínica de dor seria importante para meu futuro no Brasil. Senti, contudo, que nada que eu falasse, iria amenizar a situação. Horas após, recebi um telefonema do Winkelmüller, mais surpreso que o chefe.

idA A Berlin

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A ida para Berlin naquele momento, acompanhando o Prof. Brock, era o que eu mais desejava e, que iria coroar todo sacrifício pessoal que havia suportado, todos aqueles anos. E assim nos mudamos para Berlin: eu, Amélia e Victorinha.

A secretária do Prof. Brock havia conseguido para nós um apartamento tipo casa, sala e dois quartos, com Balkon (varanda), entrada independente e direito a usar uma área verde gramada e, além disso, a 200 metros do hospital, para onde poderia dirigir-me a pé.

Berlin era diferente de Hannover, cidade bem maior, movimentada, separando pelo famoso muro, a parte oriental (comunista) da parte ocidental. Para chegar a Berlin saindo de Hannover, tínhamos que atravessar a fronteira da Alemanha ocidental, penetrar através de fronteira fortificada na Alemanha oriental, passar novamente na fronteira fortificada da Alemanha (Berlin) ocidental, para chegar finalmente em casa. Os trâmites para os moradores eram facilitados, mas sempre dava certo frisson passar por tantos guardas armados com metralhadoras, nas fronteiras. Os parentes e amigos que iam nos visitar queriam conhecer o Muro de Berlin, o checkpoint Charlie, o mirante próximo ao portão de Brandemburgo, onde, no chão, havia uma coleção macabra de cruzes nos locais onde fugitivos haviam sido mortos. Fora isso, não se sentia estranheza por se morar em uma cidade dividida.

Notei que eu era respeitado como um staff do serviço, pois o Prof. Brock havia apregoado minhas qualidades.

No Klinikum Steglitz, eu tinha um quarto como se fosse Oberartzt, dava plantão alcançável em casa, sem precisar dormir no hospital. Ganhava como um Funktsionsoberarzt, desempenhando a função, mesmo sem estar nomeado para tal.

Feliz fiquei quando o chefe me pediu para fazer uma lista do material necessário para montar a Clínica de Dor. Fiz uma lista completa de materiais específicos cirúrgicos e da enfermaria e quando somei o total era enorme, em torno de 200.000 marcos. Sem graça, apresentei a lista e qual não foi a surpresa, quando o chefe ao lê-la cuidadosamente disse: “Mas você quer montar a primeira clínica de dor de Berlin, com esta mixaria? Trate, pelo menos, de dobrá-la imediatamente.”

Nova surpresa quando me perguntou de quantas pessoas e que especialidades, precisaria para fundar a Clínica Multidisciplinar de Dor de Berlin.

Durante os tempos em Hannover e através de visitas a outros centros alemães e europeus, fui aos poucos, amadurecendo como deveria ser o modelo. Em Hannover possuíamos uma clínica de cirurgia de dor, não uma clínica multidisciplinar. E foi esse modelo multidisciplinar que transmiti ao chefe. Marcada a data da reunião preliminar, dirigi-me à sala do Prof. Brock, onde já me esperavam sentados e engravatados os professores catedráticos de Anestesia, Psiquiatria, Fisioterapia, Neurologia e o próprio Prof. Brock, que me apresentou como o Herr Dr. Telles, que iria dirigir a Clínica Multidisciplinar de Dor de Steglitz e ali

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estava para ensinar aos mestres como a mesma deveria funcionar.

Imaginem meu inesperado nervosismo, sentindo-me como um garoto de calças curtas, vindo de um país do sul do mundo, falando mal o alemão, tendo diante de si grandes e vetustos professores.

E foi assim que se iniciou uma das experiências mais gratificantes da minha vida. Nesse período pude alicerçar minha amizade com o Prof. Mario Brock. Falávamos pelo telefone quase diariamente. Era o meu grande amigo e sei que também, eu era o seu!

Em Berlin pude desenvolver minha capacidade de liderança profissional e criar laços de amizade, que cultivo até hoje. Não deixo passar um ano sem visitá-lo, trocarmos ideias e almoçarmos juntos no Pol-Pola. Um grande amigo! Como poucos!

Dizem que o “Alemão é frio”. “Não se apega a ninguém”. Afirmo, que não é bem assim! Tenho amizades profundas como muitos deles, que guardo até hoje, com imenso carinho!

Voltando para o Brasil, aceitei com muita satisfação, o convite do Prof. Pedro Sampaio para fazer parte do grupo da UERJ, onde fundei a primeira Clínica Universitária Multidisciplinar de Dor. Tive com ele uma amizade profunda e duradoura! Era quem eu, carinhosamente, chamava de “chefe” até os últimos dias de sua vida.

Viva a Alemanha! Viva o Brasil!

Prof. Dr. Carlos R. Telles Ribeiro