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3. OS TEMAS do Tecelão Após investigar e organizar os sonetos de Pessoa, chegamos ao momento oportuno para o seu estudo: os signos do detetive e do filólogo dão vez ao do tece- lão, pois é hora de costurar os sonetos pessoanos segundo seus temas, numa série de microleituras. Como o termo microleituras já sugere, nosso intento neste capítulo não é exaurir, mas instigar o estudo dos temas recorrentes nos sonetos de Pessoa. Assim, “micro” tem duplo sentido: 1) não analisaremos todos os poemas em que cada tema pessoano se apresenta, mas apenas versos especialmente representativos (aqui, “micro” implica seleção no macro-corpus que editamos); 2) feita a seleção de textos representativos, visitá-los-emos com o microscópio do exame literário, em busca de evidências para os termos reconhecido como representantes de temas pessoanos (aqui, “micro” é, pois, minuciosa atenção). Como ocorre o reconhecimento de um tema recorrente em Pessoa? Por exemplo, por que temporalidade e não “dobrada à moda do porto” é considerada como um tema nesta tese? Empregamos 3 meios para distinguir temas: intuição, estatística e bibliografia. Intuição é quase indefinível e indefensável, mas não é outra a verdadeira responsável pelo reconhecimento inicial de um tema entre os sonetos de Fernando Pessoa. Em- brenhando-se o pesquisador pela obra pessoana, é o farol da intuição que ilumina as marcas do caminho, percebendo padrões; através da intuição, vislumbramos um ma- pa, que, embora sempre falho e provisório, é a única promessa de ordem em meio ao desassossego de 30 mil páginas rabiscadas por Pessoa. Esta intuição elabora raciocínios tão criativos quanto frágeis, em termos de ló- gica. Por exemplo, após lermos apenas os sonetos de Campos, pensamos que a ima- gem do coração merecesse o estatuto de tema, embora não tivéssemos contado as ocorrências cardíacas de modo sistemático, e os 17 sonetos camposianos não forne- cessem corpus suficiente entre centenas de sonetos.

 · 3. OS TEMAS do Tecelão Após investigar e organizar os sonetos de Pessoa, chegamos ao momento oportuno para o seu estudo: os signos do detetive e do filólogo dão vez ao do

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3. OS TEMAS do Tecelão

Após investigar e organizar os sonetos de Pessoa, chegamos ao momento

oportuno para o seu estudo: os signos do detetive e do filólogo dão vez ao do tece-

lão, pois é hora de costurar os sonetos pessoanos segundo seus temas, numa série de

microleituras.

Como o termo microleituras já sugere, nosso intento neste capítulo não é exaurir,

mas instigar o estudo dos temas recorrentes nos sonetos de Pessoa. Assim, “micro”

tem duplo sentido: 1) não analisaremos todos os poemas em que cada tema pessoano

se apresenta, mas apenas versos especialmente representativos (aqui, “micro” implica

seleção no macro-corpus que editamos); 2) feita a seleção de textos representativos,

visitá-los-emos com o microscópio do exame literário, em busca de evidências para

os termos reconhecido como representantes de temas pessoanos (aqui, “micro” é,

pois, minuciosa atenção).

Como ocorre o reconhecimento de um tema recorrente em Pessoa? Por

exemplo, por que temporalidade e não “dobrada à moda do porto” é considerada como

um tema nesta tese?

Empregamos 3 meios para distinguir temas: intuição, estatística e bibliografia.

Intuição é quase indefinível e indefensável, mas não é outra a verdadeira responsável

pelo reconhecimento inicial de um tema entre os sonetos de Fernando Pessoa. Em-

brenhando-se o pesquisador pela obra pessoana, é o farol da intuição que ilumina as

marcas do caminho, percebendo padrões; através da intuição, vislumbramos um ma-

pa, que, embora sempre falho e provisório, é a única promessa de ordem em meio ao

desassossego de 30 mil páginas rabiscadas por Pessoa.

Esta intuição elabora raciocínios tão criativos quanto frágeis, em termos de ló-

gica. Por exemplo, após lermos apenas os sonetos de Campos, pensamos que a ima-

gem do coração merecesse o estatuto de tema, embora não tivéssemos contado as

ocorrências cardíacas de modo sistemático, e os 17 sonetos camposianos não forne-

cessem corpus suficiente entre centenas de sonetos.

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Num segundo estágio, tendo sido guiados pela intuição, elaboramos nuvens es-

tatísticas, em que as palavras mais recorrentes surgem ampliadas – a magnificação

sendo diretamente proporcional à sua presença estatística num determinado universo

textual. Por exemplo, fizemos um tal mapa para o texto de todos os sonetos de Ál-

varo de Campos, encontrando lastro estatístico para nossa intuição do coração como

um dos temas centrais neste heterônimo. [Figura 18: Nuvem de Palavras]

Por fim, após a pista da intuição e a evidência estatística, visitamos a bibliogra-

fia – a fim de confirmar se o tema identificado conta com o lastro bibliográfico de

outros estudiosos da obra pessoana. Abrimos o índice de Pessoana (BLANCO, 2008)

e encontramos 7 textos sobre o tema “coração” em Pessoa, entre eles os excelentes

estudos de GARCIA (1985) & COELHO (1987). Tais estudos não necessariamente

enfocam sonetos, mas fornecem a segurança de outros pesquisadores terem avaliza-

do o mesmo tema algures em Pessoa; ora, como esperamos ver nos sonetos um mi-

crocosmo (fotografia instantânea) da obra pessoana, o encontro dos mesmos temas

noutra parte desta obra serve de argumento indutivo para nossos achados.

Empregando as ferramentas da intuição, da estatística e da bibliografia, passa-

mos a tecer entre os sonetos de Pessoa fios temáticos de três qualidades distintas:

temas-em-si, temas de linguagem e temas de filosofia.

Os temas-em-si são constantes que caberiam na acepção geral de tema como

“assunto, matéria, motivo”: amor, sonho, loucura, noite, morte, temporalidade, mar,

coração e paisagem são nossos temas-em-si. Por vezes, combinamos alguns desses

temas-em-si numa mesma microleitura ou, ainda, os agregamos a certos temas de

linguagem ou de filosofia: por exemplo: o tema da Loucura é absorvido pelo do Ser.

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Temas de linguagem são fenômenos lingüísticos através dos quais entrevemos

rupturas que a obra pessoana representa na literatura: perguntas, indexicalidade e

metalinguagem constituem esta segunda ordem temática. Junto ao tema da indexica-

lidade tratamos da paisagem (tema-em-si) e, junto à metalinguagem, estudamos o tema

filosófico da incomunicabilidade (movido pela pergunta “que posso dizer?”).

Por fim, há os temas filosóficos. Segundo Immanuel Kant, a filosofia é feita

pela combinação de 4 poderosas perguntas. A primeira delas move a Ciência em

geral: “Que podemos pensar?”. A segunda movimenta a Ética: “Que podemos fa-

zer?”. A terceira impulsiona a Religião: “Que podemos esperar?” (esperar no sentido

de “ter esperança”). A quarta sintetiza as três primeiras, embasando a Filosofia:

“Que é o homem?”.

Pessoa e Kant formulam essencialmente as mesmas perguntas. Foi reconhe-

cendo essa relação que decidimos estudar a natureza filosófica dos sonetos pessoa-

nos. Em se tratando de Pessoa, poeta singular, sua abordagem das perguntas kantia-

nas por vezes melhor se apresenta na primeira pessoa do singular:

• “O que penso? & O que sinto?” (indagações que apresentamos fundidas, visto que, tal como Caeiro pregava no poema IX de O Guardador de Reba-nhos, em Pessoa os “pensamentos são todos sensações”);

• “O que fazer?” (ganhando “fazer” um sentido tanto ético quanto poético);

• “Em que creio?” (pois Pessoa ora crê na mesma idéia de que um heterô-nimo descrê).

• “O que sou?” (em que visitamos muitas das definições que Pessoa dá de seu ego & de seu ser, entidades conflitantes num sujeito fragmentado); é ao tratar desta pergunta que abordamos o tema-em-si da loucura.

Sem a pretensão de esgotar, mas sim de inspirar estudos pessoanos, apresenta-

mos a seguir nossas microleituras temáticas, que são também as nossas conclusões –

com as quais esperamos fechar as portas desta tese, tanto quanto abrir caminhos a

outros investigadores que se deixem perder pelos sonetos de Pessoa, “com consciên-

cia de perder-se” – honrando o poeta que tantas vezes se perdeu:

Paira no ambíguo destinar-se Entre longínquos precipícios A ânsia de dar-se preste’ a dar-se (...)

(In: Poema dos Dois Exílios I, 1923)

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3.1. Temas em si

3.1.1. Amor

“Que soubeste de ti senão o amor?...”

(In: “Ai de quem não só sente, mas conhece”, 1919)

“Pessoa não tem muitos poemas de Amor” – era o que pensávamos (minha

orientadora incluída) antes de principiar esta tese. Conhecíamos, por exemplo, os

poemas do ciclo O Pastor Amoroso, assinados por Alberto Caeiro, julgando que, embo-

ra de maravilhosa beleza, ao ciclo se limitava a verve amorosa de Pessoa.

No entanto, “todos os poemas são de Amor”, pregava o poeta brasileiro Mário

Quintana no fecho de “Se o poeta falar num gato”... e principalmente os sonetos,

como sabiam o chileno Pablo Neruda e o inglês William Shakespeare, autores, cada

um deles, de mais de uma centena de sonetos de amor. Ora, haveríamos de encon-

trar sonetos de amor de Fernando Pessoa.

Dentre os temas pessoanos, Amor foi o primeiro a mostrar-se recorrente nos

sonetos – donde primeiro trataremos dele. Se isto não bastasse como justificativa

para a ordem das coisas, lembremos que “Ordem & Progresso” vêm tão só depois de

“Amor” no lema positivista – lamentavelmente relegado a sujeito oculto no lábaro

brasileiro.

Aparte essas elucubrações, o que é o Amor? É preciso defini-lo para o reco-

nhecermos em sonetos. Trata-se da única matéria que Sócrates, filósofo grego, con-

fessou conhecer. Ora, como poderia Sócrates – que só sabia nada saber – saber logo

o significado de “Amor”, conceito tão complicado que levou o filósofo Pascal (1670:

frag. 277) a admitir que há razões que a própria razão desconhece? No Banquete, diálogo

escrito por Platão, Sócrates justifica saber o Amor apenas porque isto lhe foi revelado

por Diotima:

– “Amor é aquilo que une os homens e os deuses”. (PLATO, 380 aC: 163)

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Eis algo que a um tempo permeia & transcende o humano – algo que nos atre-

vemos a aproximar da “febre de além” que a professora Cleonice Berardinelli (1959)

reconheceu como o grande eixo da obra pessoana. Nesse sentido, confirmando Má-

rio Quintana, todos os sonetos de Pessoa seriam de amor. Contudo, por ora enfoca-

remos poemas em que esse Amor se expressa de maneira mais terrena em Pessoa,

ilustrando cada uma das modalidades amorosas que os Gregos reconheciam: Eros,

Filia, Ágape.

Segundo a professora Rosângela Ainbinder (1997), que fez sua tese de douto-

rado investigando o Amor, Eros está mais relacionado ao amor sensual entre aman-

tes; Filia, ao amor da amizade; Ágape, ao amor filial, entre pais e filhos.

Vejamos alguns sonetos de Pessoa em que tais modos de amar aparecem, den-

tre os mais de trinta que de uma maneira ou outra abordam o fenômeno amoroso.

Em Agosto de 1902, em Lisboa, Pessoa escreve Adeus, soneto de despedida:

“O navio vai partir, sufoco o pranto / (…) Eu meu adeus lhe envio n’um suspiro, /

Ela um adeus me envia n’um soluço”. Mais de 30 anos depois, Vinícius de Moraes

escreveria seu Soneto de Separação (1938), reverberando algumas imagens e até mesmo

rimas de Adeus: “De repente do riso fez-se o pranto”; no entanto, o amor do poema

de Vinícius está sob o signo de Eros, ao passo que o de Pessoa jamais se revela clara-

mente erótico. Em que contexto Pessoa escreveu seu soneto?

Em termos biográficos, trata-se da primeira ocasião em que o poeta está real-

mente sozinho, longe de sua família. Após a viagem de férias de Durban a Lisboa, a

mãe, o padrasto, os irmãos e a criada regressam a Durban, ficando apenas o poeta em

Portugal, de Julho a Setembro de 1902 – justamente quando escreve Adeus. Não se

reduz um poema a uma circunstância biográfica; no entanto, ignorar algumas circuns-

tâncias biográficas pode reduzir o entendimento de um poema.

Em conhecimento do contexto da realização deste soneto, pode-se ler em

Adeus uma dramatização da despedida do poeta dirigida à sua família, despedida com

lastro de realidade, visto Pessoa provavelmente ter dado adeus ao navio em que sua

família partia de Lisboa. Uma personagem, porém, destaca-se nesta despedida:

Não mais ao pé de ti, fruindo santo Amor em sonho azul; nem a amizade De amigos me dará felicidade Igual à que gozei contigo tanto.

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Ora, está o poeta a despedir-se de sua mãe: Ágape domina o soneto. Num

momento em que sua mãe consolidava uma nova família com o padrasto de Pessoa,

dando à luz crianças que competem com o poeta por atenção – concluímos – Pessoa

está literalmente só, em plena adolescência, num país distante – despedindo-se da

mãe, que se vai em navio de volta a Durban e... metaforicamente, dizendo adeus à

própria infância.

De Ágape passemos a Filia, estudando dois sonetos em que o amor da amizade

se apresenta.

Antes de ser chamado Antígona, o primeiro soneto que Pessoa assinou como

ortônimo tinha sido atribuído a Eduardo Lança, não apresentando título individuali-

zado – mas apenas a indicação geral “Sonetos d’Amor”. Lança, poeta brasileiro, tem

uma nota biográfica feita por Luís António Congo, outro heterônimo pessoano:

EDUARDO LANÇA: Nasceu em 15 de Setembro de 1875 na Baía, onde seguiu os di-versos estudos necessários para a carreira comercial. Acabava o curso quando ficou ór-fão, empregando-se logo aí numa importante casa comercial. Em negócio da mesma casa veio a Lisboa onde permaneceu desde a sua chegada. Tem, contudo, viajado por Portugal e o seu livro (publicado em 1894) foi as Impressões de um viajante em Portugal, livro maravilhosamente escrito e n’um estilo belo e verdadeiramente português. Mas a poesia é o seu forte e d’isso publicou em Lisboa em 1895 um livro de lindíssimos versos – Folhas Outonais – na mesma cidade em 1897 um outro livro de versos – Coração Enamorado – e em 1900 o seu melhor livro de poesias – Os meus mitos. Consta-nos que brevemente publicará um outro livro. Tem colaborado em diversos jornais do Brasil e de cá, mas é nos perfeitamente impos-sível dar os nomes exactos, tantos são eles e de tal forma estão espalhados. (...)

(In: LOPES, 1990)

Eis o poeta que primeiro assinou o soneto de amor em questão, escrevendo-lhe

apenas os quartetos. Num segundo momento, Pessoa completa o poema, assina o

próprio nome e altera o título para Antígona. Em verdade, cremos que altera não só o

título, mas também – e principalmente – a forma de amor que o poema celebra: do

amor Eros cultivado por Lança, passa-se ao Filia, sentido pelo ortônimo.

(...) É puro o meu amor, como os puros sacrários, É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos, (...) Amor que rompe enfim os laços crus do Ser; Um tão singelo amor, que aumenta na ventura; Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

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Amor de tal feição que se na vida escura É tão grande e nas mais vis ânsias de viver, Muito maior será na paz da sepultura!

É preciso notar que este poema enfoca, não a figura feminina, mas o tipo de

sentimento com que o poeta ama. Por que, então, dedicar tal soneto de amor a An-

tígona? O título talvez seja uma pista, pois na tragédia de Sófocles, a heroína Antígo-

na, filha de Édipo, enfrenta o Estado (representado por Creonte), a fim de enterrar

ilegalmente o seu irmão Polinice; Antígona, com isso, encarna o símbolo-mor do

amor fraternal.

Mais uma vez não desejando reduzir a interpretação a uma circunstância bio-

gráfica, não podemos ignorar um fato trágico temporalmente ligado à gênese deste

poema: ao partir de férias rumo a Lisboa, em 1901, a família de Pessoa leva consigo o

corpo da irmã do poeta, Madalena Henriqueta, que acabara de morrer com apenas

dois anos de idade. Ora, o componente Filia (amor fraternal) do soneto pode estar

ligado ao fato de a irmã do poeta ter falecido havia tão pouco, tendo Pessoa viajado

de navio com o propósito de enterrá-la. Chegando à capital portuguesa, nasceria o

irmão de Pessoa, João Maria, quarto filho do segundo casamento de sua mãe e, pou-

co depois, a família partiria de viagem à Ilha Terceira, nos Açores – ocasião em que

Pessoa escreveria Antígona.

É interessante notar que, aqui, Pessoa é quem enterra a irmã; logo, ele próprio

é “Antígona”.

Símbolo do amor fraternal, Filia também denota o sentimento da amizade.

Pessoa teve raríssimos amigos íntimos, entre eles Mário de Sá-Carneiro, autor do

Último Soneto, que Pessoa glosa num seu poema chamado justamente Glosa; no entan-

to, embora se trate de um belo gesto de amizade, o soneto pessoano em si não trata do

amor Filia, desenvolvendo, em vez disso, um complexo diálogo filosófico com ver-

sos de Sá-Carneiro (a que voltaremos mais tarde no ensaio “Perguntas”): a amizade

de Glosa é, pois, exterior aos versos. Há, porém, um outro poema de Pessoa que, ao

nosso ver, representa o amor da amizade.

Trata-se do soneto Men of Science, assinado por Alexander Search em Julho de

1907. O poeta retrata o labor de homens dedicados à Ciência, buscando eternamente

a Verdade, jamais preocupados com dogmas ou pobreza. Pessoa pergunta: “Is there

a nobler task, while life doth fleet, / Than this, to strive to make light amid gloom”?

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Nos tercetos, o poeta declara seu amor aos Homens da Ciência, sua amizade sempi-

terna a esses laboradores irreconhecidos, amigos da sabedoria (“filó-sofos”) como o

próprio Pessoa, solitários buscadores, como sugere o sobrenome do heterônimo Ale-

xander “Search”.

The void o’th’ world must with an arch be spanned, The ways of Nature must be read aright That there may be a wise and friendly hand To make this dark world better and more bright. Oh, with what joy and love I understand These master-souls that ache for truth and light.

Declarando nesses tercetos entender (understand) os verdadeiros filósofos, Pes-

soa de certo modo inclui-se entre eles, realizando este poema de amor Filia.

Passemos, pois, a exemplos da presença de Eros em Pessoa, que percebemos

manifestar-se de pelo menos três maneiras bem distintas nos sonetos do poeta:

• Amor platônico pela figura feminina;

• Amor denigrativo pela figura feminina;

• Amor homoerótico.

No verso de uma cópia do seu folheto Sobre Um Manifesto de Estudantes, portan-

to provavelmente em 1923, Pessoa escreve “Digo-lhe adeus sem tê-la conhecido”,

em que o poeta confessa o amor fugaz por uma mulher que amou “um pouco” e

achou “bela” e que “não saberá nunca quem a amou”. Amor platônico? Amor ultra-

romântico inconfessado? Uma manifestação pública (imaginemos a polêmica acerca

do manifesto de estudantes em 1923) é mesmo um bom cenário baudelariano digno de

uma ligeira paixão à primeira vista... A incomunicabilidade do amor neste soneto é pes-

soaníssima – e remonta ao flaneur de Baudelaire, em busca do fugaz objeto da paixão

em meio à multidão. Amor erótico, pois, à moda pessoana, isto é, inconsumável.

Também de amor erótico impossível é o grupo de três sonetos que evocam a

imagem de Sóror Mariana Alcoforado: o poema cujo título é mesmo Sóror Mariana

(1918) e dois sonetos de 1919, “Do abismo onde o Passado dorme e espera” e “Ai de

quem não só sente, mas conhece” (este, inédito).

“Ah, se ela só amasse não amar! (…)

E amando só o seu desdém do amor Vê, enquanto /*lhe sonha e/ lhe sorri, Em suas mãos fanar a inútil flor.”

(In: Sóror Mariana)

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“Em cela ou claustro ergue — as mãos rezando, Para que dolorosa imprecação, A quem? — o gesto de quem ‘stá chorando? Nada... Só o silêncio e a solidão E o claustro abandonado, e o brando Frio ao luar, e o meu incerto coração...”

(In: “Do abismo onde o Passado dorme e espera”) “Tu, freira, que /*supus/ e indefinida Do abismo, onde o Passado dorme e espera (...) Que soubeste de ti senão o amor?... O /*resto/... O claustro abandonado e a hera”

(In: “Ai de quem não só sente, mas conhece”)

Tal como se identificou com Antígona num soneto de amor fraterno, o poeta

agora iguala-se a Sóror Mariana Alcoforado, em poemas de amor espiritualizado, mas

ainda erótico – amor impossível, pois se trata do amor de não-amar... Um “não-

amar” frustrado, dramaticamente frustrado pela vida célebre de Sóror Mariana, que

acabou enamorada de um marquês, a quem escreveu suas legendárias cartas de amor.

“Ah se ela só amasse não amar!” clama o poeta, encarnando a dor de Soror

Mariana. Esse amor erótico impossível, incomunicável, ganha justificativa conceptis-

ta em alguns dos 35 Sonnets, com o poeta distinguindo, sofisticamente, seu objeto de

amor do amor-em-si: freudianamente, Pessoa ama não o objeto do amor, mas sua idéia

desse objeto; isto é, o poeta alça a realização do amor à qualidade imaterial da pura

idéia.

Yet wonder not: this is the poet’s soul. I could not tell thee well of how I love, (...)

Poet’s love’s this (as in these words I prove thee): I love my love for thee more than I love thee.

(In: Sonnet XIII)

My love, and not I, is the egoist. My love for thee loves itself more than thee;

In the country of bridges the bridge is More real than the shores it doth unsever; So in our world, all of Relation, this Is true – that truer is Love than either lover

(In: Sonnet XVII) I could but love thee out of mockery Of love and thee and mine own ugliness;

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Therefore thy beauty I sing and wish not thee, Thanking the Gods I long not out of place,

(In: Sonnet XIX)

No soneto IV dos Passos da Cruz, Pessoa resume essa distinção entre objeto &

idéia do seu amor erótico:

Ó tocadora de harpa! se eu beijasse Teu gesto, sem beijar as tuas mãos, E, beijando-o, descesse p’los desvãos Do sonho, até que enfim eu o encontrasse Tornado puro gesto, (…)

O erotismo em Pessoa, portanto, parece indistingüível da espiritualidade – não

é à toa que Sóror Mariana é símbolo da confusão das dimensões do amor – espírito e

matéria. Isto é verdade pelo menos quando esse erotismo, em Pessoa, se manifesta

de maneira positiva ante a figura feminina.

Em algumas ocasiões, porém, o Eros pessoano volta-se contra a forma feminina:

Com teu gesto pintado e exagerado E o teu prolixo modo de sorrir E o teu olhar, sob o torpor copado Da expressão, veludíneo em dirigir, (...)

(In: “Com teu gesto pintado e exagerado”) Amo-te por amar-te desprezando-me, E o meu desprezo fere o meu amor

(In: Soneto que Não se Devia Escrever) Leitor, aos seus encantos seja cego, Ante seus olhos seja forte – adeus! – Se cede à fala que ela tem di lá. Que é bonita, leitor, eu não te nego, Mas quando ri (louvado seja Deus) Parece estar tocando um fungágá !!…

(In: Galeria Africana – 1. Mulher Universal) Parte logo o comboio e fica a bela Sozinha, e com o seu olhar maldito... “Pra onde vai”, digo eu, “linda donzela?” Responde ela num tom muito esquisito: “Eu vou todos os dias pra Palmela!”

(In: Galeria Portuguesa – 1. No Comboio) Ó Safo negra, sub-rameira, ronha Do vício em q’rer achar-se subtileza, Não é das portuguesas a vergonha, Você, por não ser uma portuguesa. Vá, não tenha medo que eu lhe fuja (…) E se, por não poder ficar mais suja,

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Por perversão mais limpa se fugir, Tenha a certeza, que se não morri, Vossemecê ainda me agarra aqui.

(In: Soneto Positivo)

Especialmente no último soneto supracitado, a imagem da musa é denegrida,

em qualificações rudíssimas tais como “ronha” (maliciosa, enferma, sarnenta), “sub-

rameira” (quase meretriz), de que só Álvaro de Campos talvez fosse capaz – embora

o soneto seja atribuído ao ortônimo. De fato, Campos, em prosa sem data, escreve

uma breve reflexão preconceituosa sobre Safo, poetisa grega homossexual, nativa da

ilha de Lesbos – donde o nome Lésbica. Seguem os comentários vis de Campos, que

iluminam o discutível tom do soneto:

Safo, por exemplo, caindo no erro terrível e imoralíssimo, de, sendo mulher, escre-ver versos, ficou ipso facto invertida; uma vez invertida, tornou-se psiquicamente homem. (Sim, está bem. Já vejo o resto. Daí a sentir uma atração física pela mu-lher, o passo é um e curto. Resta saber se essa explicação corresponde à realidade. É tão simples que deve ser falsa, e tão natural que o é com certeza.)

(Álvaro de Campos; In: LOPES, 1990)

Por que o título Soneto Positivo? Seria ele um soneto construtivo ou resoluto? De-

pendendo da leitura de “positivo”, esperar-se-ia aprovação ou desaprovação de Safo

pelo poeta. Ante o vocabulário claramente pejorativo, ler “positivo” como “constru-

tivo” ou “benfazejo” seria irônico. A conclusão do soneto, porém, não é clara... Por

que Safo agarraria o poeta, “se por perversão mais limpa se fugir”? Está Pessoa ad-

mitindo uma perversão própria, complacente com a que vê na antiga poetisa? Nesse

caso, “positivo” seria “favorável”, “colaborativo”. Oscilando entre extremos de in-

tepretação, entre querer e repudiar, pareceu-me interessante incluir esta obra entre os

“Sonetos de Amor” do poeta. Deixo ao leitor avaliar a justeza do rótulo.

Não é claro o julgamento que o poeta faz de Safo, nem se ele é favorável ou

não ao que nela chama de inversão. Contudo, é claríssima em ao menos dois sonetos

uma inversão que Pessoa reconhece em si mesmo, cantando o amor homoerótico.

Com que fúria ergo a ideia dos meus braços Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo, Os olhos pondo em teus sonhados traços, Todo fêmea em teu corpo de mancebo! Teu hálito sonhado até cansaços Como em meu vívido hálito recebo! Ó carne que já sonho és tantos laços Para mim! Deus-deus, Vénus-Efebo!

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Ó dolorosamente só-sonhado! Soubesse eu o feitio exterior e o jeito Em gestos e palavras e perfeito As palavras a dar a este pecado De só pensar em ti, de ter o peito Opresso em pensar-te entrelaçado!

(O Outro Amor, 1913) Amem outros a graça feminina Gozem sonhar seus lábios entre seios Outros e muitos... Eu – meus cantos, dei-os À tua formosura peregrina... Meu doce Apolo jovem... Ó divina Flor adónica de ópios e de enleios Ver-te é esquecer que há neste mundo anseios Carnais, ó ☐ Vênus masculina. Ninguém saberá nunca quem tu és... Meu coração, óleo que unja teus pés – Quem sabe se tu mesmo o sentirás?... Que importa... E a vergonha e o mal que importa? Quem me dera viver à tua porta Inda que vendo o amor que a outrem dás!...

(In: “Amem outros a graça feminina”, 1914)

O soneto O Outro Amor conta com a indicação “Morte de Antínoo e Sonetos”, que

imediatamente insere o poema num contexto maior, como parte de um livro que

também englobaria o poema em Inglês Antinous de Pessoa, de natureza conhecida-

mente homoerótica. Vide também os ms. 40-33 & 40-34, em que Pessoa planeja o

“Livro do Outro Amor”, previsto como a parte III de um volume de versos intitula-

do Água Estagnada (SFD1, 2005).

Note-se que, no segundo soneto acima, o objeto amado por Pessoa inspira an-

tes sublimação que consumação do anseio erótico: “Ver-te é esquecer que há neste

mundo anseios / Carnais (...)”. Logo, seja ante uma musa feminina ou uma “Vênus

masculina”, o amor erótico em Pessoa é sempre inatingível, platônico, indizível fora

do soneto.

Em Fernando Pessoa, o objeto amoroso muda, o modo de amar muda, mas o

amor em si permanece, como anseio transcendente, “febre de além”.

É sempre além de mim o indescoberto Porto ao luar com que se o sonho engana.

(...)

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E como um filtro de horas encantadas Tremem os rios, gelam as estradas No absurdo vácuo de eu não ter que amar.

(In: “Sosségo enfim. Meu coração deserto”, 1917)

Não ter que amar algo ou alguém em especial, mas amar deveras o amor... o so-

nho, o indescoberto... amar o próprio verbo amar... Infinitivo, amor que não se satis-

faz, não porque se consome e quer mais, mas porque nunca se consome, porque não

se pode mesmo consumir, visto que é “febre de além”.

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3.1.2. Noite, Morte, Temporalidade

“Sou um universo morto que medita.”

(In: O Halo Negro II – Abyssum Invocat, 1925)

A ambiência da Noite, as muitas faces da Morte e a passagem do Tempo são

constantes nos sonetos de Fernando Pessoa – presenças que surgem tanto isolada-

mente, quanto em todos os agrupamentos possíveis desses 3 elementos:

1. Noite sozinha

2. Morte sozinha

3. Temporalidade sozinha

4. Noite & Morte

5. Noite & Temporalidade

6. Morte & Temporalidade

7. Noite, Morte & Temporalidade

[Figura 19: Diagrama Temático]

Nesta microleitura, visitaremos pelo menos um soneto pessoano para cada um

dos grupos acima – visando a instigar, e não esgotar, o estudo dessas constantes em

Pessoa, visto que há dúzias de sonetos capazes de ilustrá-las.

Comecemos pelos grupos unitários, buscando sonetos para representar, isola-

damente, cada uma das constantes acima: Noite, Morte, Temporalidade.

A noite e o anoitecer são recorrentes, não apenas nos sonetos de Pessoa, mas

em sua obra como um todo, como observou a Prof a. Cleonice Berardinelli (1959).

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Se, além de voltado para si, ele é um poeta, e um poeta angustiado pela busca do Mistério e pelos problemas do ser, é natural que lhe aprazam mais as sombras ou a claridade pálida e fria do luar, o silêncio e o sossego, propícios às fundas cogitações. Explicar-se-á, assim, a preferência acentuada de Fernando Pessoa pela noite ou pela tarde-quase-noite. Numa poesia em que a natureza não figura como elemento in-dependente e sim como motivo criador de ambiente poético, às vezes com valor metafórico, é apreciável a insistência com que a noite aparece, tão presente, tão real, tão participante dos sentimentos do Poeta que ele lhe dá figura entre humana e di-vina e a ela se dirige com calor e ternura raros nele. [Nota de rodapé na mesma pág.] Do levantamento estatístico que fizemos dos oito volumes da poesia de F. Pessoa [ed. Ática], chegamos ao seguinte resultado: em 79% dos poemas, não há referências a hora, o que é perfeitamente natural, numa poesia essencialmente subjetiva; em 2%, há mutação de dia para noite ou vice-versa; em 13% aparecem elementos noturnos (que estudaremos miùdamente) e, em 6%, elementos diurnos: sol, céu azul, etc. Como se vê, a proporção dia/noite ½ é comprovadora do que dissemos. Além disso, a claridade do dia, a sua limpidez, o seu conteúdo de alegria e de vida vêm freqüentes vezes modificados por adjetivos ou frases que lhes atenuam o sentido. São bem raras as demonstrações de júbilo e confiança no dia que nasce (...)

(BERARDINELLI, 1959)

Muitos dos sonetos pessoanos que hoje conhecemos ainda não tinham sido

publicados quando a Prof a. Berardinelli escreveu seus comentários acima, estando,

então, apenas disponível a edição da Ática. Por exemplo, os 3 sonetos que escolhe-

mos por sintetizar a pura Noite em Pessoa foram todos publicados após 1959 – um

deles recentemente, em 2005. Apesar disso, cremos que o que Berardinelli constatou

para outra parte da obra pessoana também valha para os poemas que estudamos.

Antes de nos achegarmos aos sonetos, exclamemos: que grande a diferença en-

tre os modos como Fernando Pessoa e Antero de Quental enxergam a noite! Tantas

vezes louvado por Pessoa, Antero, ante quem é costume justapor poemas pessoanos

a fim de estudá-los melhor (BERARDINELLI, 1965 & GARCEZ, 1981), não poderia ver

a noite de modo mais distinto que Pessoa. Para fins de ilustração, visitemos um cé-

lebre soneto anteriano, em que a Noite é desprezada:

Mais Luz!

(A Guilherme de Azevedo) Amem a noite os magros crapulosos, E os que sonham com virgens impossíveis, E os que se inclinam, mudos e impassíveis, À borda dos abismos silenciosos... Tu, lua, com teus raios vaporosos, Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis, Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis, Como aos longos cuidados dolorosos!

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Eu amarei a santa madrugada, E o meio-dia, em vida refervendo, E a tarde rumorosa e repousada. Viva e trabalhe em plena luz: depois, Seja-me dado ainda ver, morrendo, O claro sol, amigo dos heróes!

(Antero de Quental, In: Sonetos)

No universo pessoano, o único herói amigo do sol, ou ao menos o único que o

pudesse ser incondicionalmente, talvez seja Alberto Caeiro, que mesmo na hora da

morte se lembra de saudá-lo, ao sol, sem saudade:

É talvez o último dia da minha vida. Saudei o sol, levantando a mão direita, Mas não o saudei, para lhe dizer adeus. Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

(Alberto Caeiro. Último Poema)

No célebre poema V de O Guardador de Rebanhos, Caeiro chega a diagnosticar

como “falta de ver o sol” a “doença” do pensamento:

(...) Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. (...)

Alberto Caeiro é o oposto – mais oposto possível – de Fernando Pessoa ortônimo,

sua lírica em versos livres sendo a forma mais radicalmente oposta aos sonetos que agora

investigamos. Logo, não é de admirar a admiração pela noite nos sonetos de Pessoa,

oposta à amizade que Caeiro nutre pelo sol.

Mesmo em busca de uma imagem “pura” da Noite pessoana, isolada dos ele-

mentos Morte & Temporalidade, o que encontramos não é uma noite exterior, escure-

cendo a paisagem, mas sim uma “noite da alma”, sempre interior ao poeta. O anoite-

cer, mesmo que exista fora de Pessoa e inicie um soneto, logo se interioriza:

Sonnet of a Sceptic Long ere now Phoebus sunk in western skies Behind his dreamy hills of tinted rose; When I in pain my troubled eyelids close And look upon the world that in me lies. For in the night the silent river flows, In darkness hid the bat unheeded flies: In my soul’s night, alas! no calmness lies, With Nature’s night too well my horror grows.

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Darkness I hate, for I am like the night, And yet in me no star, serenely bright, The clouds of mind and soul so purely clears. But as night with its pall of shades of old, Unheard, unseen, I sit in heatless cold, Enwrappèd in my doubts and in my fears.

Alexander Search, 1904

Na primeira estrofe, contextualizando o poema, Alexander Search indica que

Febo (o Sol) há muito já se havia afundado nos céus ocidentais; estamos, pois, em

plena Noite. Ainda no primeiro quarteto, o poeta, em dor, cerra os olhos, passando

a olhar para a noite que há dentro de si (“look upon the world that in me lies”). Este

cerrar de olhos é antônimo do “abrir de olhos” caeiriano, gerando na escuridão idéias

temerosas – como diria Caeiro, “cheias de calor”.

No segundo quarteto, surge plena a sua Noite da Alma (“my soul’s night”), cujo

horror cresce simultaneamente à Noite da Natureza (“With Nature’s night too well my

horror grows”). Este horror noturno foi estudado por CAVALCANTI FILHO (2001:

99) ao biografar a “insônia permanente” do poeta: “São noites de horror, desde os

tempos da África, pairando ‘como morcegos desde a passividade da alma (...)’. Deita-

se, por horas, e não dorme. (...) Sua noite, por tudo, é de um ‘sono que não consigo

ter’.” O morcego negligenciado, símbolo da noite, surge no 2º quarteto, aterrorizador.

Nos tercetos, o poeta investiga sua identidade com a noite, pesando um con-

traste e uma comparação. Analisemos este raciocínio:

Identidade: “Darkness I hate, for I am like the night”; mesmo que odeie a es-

curidão, o poeta é como a noite; em verdade, ele diz ser como a noite justamente por-

que a odeia, como se esse ódio só lhe fosse possível por conhecer muito bem o obje-

to de seu ódio; conhece-o bem, porque é como ele.

Contraste: “And yet in me no star, serenely bright, / The clouds of mind and

soul so purely clears.” No entanto, diferentemente da noite, o poeta não goza de

estrelas a clarear as nuvens da mente e da alma; logo, trata-se de uma noite interior

ainda mais escura que a da natureza, donde o horror e o ceticismo do poeta.

Comparação: “But as night with its pall of shades of old, / Unheard, unseen, I

sit in heatless cold, / Enwrappèd in my doubts and in my fears.” No entanto (em

oposição ao contraste anterior), mesmo que seja distinto da noite (por não ter estre-

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las apaziguadoras dentro de seu nublado céu interior), o poeta é ainda como ela: com

seu cobertor de antigas sombras, como a noite ele fica esquecido em frio, embrulha-

do em suas dúvidas e medos. Compare-se este terrível cobertor de sombras com o mag-

nífico manto noturno do poema “Infante Dom Henrique”, em Mensagem:

EM SEU THRONO entre o brilho das espheras, Com seu manto de noite e solidão, Tem aos pés o mar novo e as mortas eras – O unico imperador que tem, deveras, O globo mundo em sua mão.

O herói do poema acima também se identifica com a noite; ao contrário de Se-

arch, porém, ele conta com a iluminação do “brilho das esferas”, não havendo ceti-

cismo nem medo, mas apenas glória inigualável, em seu “manto de noite e solidão”.

Visitemos, brevemente, outros dois sonetos insones, dada a ênfase que dão à

noite. O primeiro deles, assinado pelo heterônimo Vicente Guedes, intitula-se mes-

mo Noite, e o segundo, ortônimo, afirma que “a noite é tudo”.

Noite s . t . Ó Noite maternal e relembrada Dos princípios obscuros do viver; Ó Noite fiel à escuridão sagrada Donde o mundo é o crime de nascer; Ó Noite suave à alma fatigada De querer na descrença poder crer; Cerca-me e envolve-me... Eu não sou nada Senão alguém que quer a ti volver... Ó Noite antiga e misericordiosa, Que seja toda em ti a indefinida Existência que a alma me não goza! Sê meu último ser! Dá-me por sorte Qualquer cousa mais minha do que a vida, Qualquer cousa mais tua do que a morte!

Nas grandes horas em que a insônia avulta Como um novo universo doloroso, E a mente é clara com um ser que insulta O uso confuso com que o dia é ocioso, Cismo, embebido em sombras de repouso Onde habitam fantasmas e a alma é oculta, Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo Me foram nada, como frase estulta. Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. Meu coração, que fala estando mudo, Repete seu monótono torpor Na sombra, no delírio da clareza, E não há Deus, nem ser, nem Natureza, E a própria mágoa melhor fôra dor.

Vicente Guedes, 1910 Fernando Pessoa, 1929

O soneto de Guedes, embora intitulado Noite, não a define diretamente, mas a

invoca, enumerando de passagem suas propriedades... ao fim, é o poeta quem quer

pela noite definir-se, a tal ponto, que anseia, ele mesmo, tornar-se mais uma de suas

propriedades, individualidade engolfada na noite: “sê meu último ser”. Este abraço

final é dramatizado no belíssimo soneto Abdicação (“Toma-me, ó Noite eterna...”)

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sobre o qual nos demoraremos ao tratar do Fazer nos sonetos de Pessoa. A enume-

ração das propriedades noturnas, aqui limitada aos 14 versos de um soneto, conta

com versões alongadas assinadas por Álvaro de Campos: Dois excertos de odes e Passa-

gem das horas, que, segundo a Prof a. Berardinelli, são “verdadeiras orações, a que não

faltam invocações de ladainha”, dirigidas à Noite.

Se a Noite é invocada a englobar o poeta no soneto de Guedes, no poema or-

tônimo ela de fato engole tudo – e a ausência que ela alastra contagia desde o coração

do poeta até sua sensação de religiosidade: eis a Noite da Alma em sua manifestação

total: este “novo universo doloroso” da Noite é “cheio de nada”.

Ao tentarmos isolar o elemento noturno nos dois sonetos insones acima, encon-

tramos, inevitavelmente, a presença da Morte: no poema de Guedes, a desejada união

à Noite, mesmo que sem nome pronunciado, é a Morte – e no soneto ortônimo, ela

paira como o grande vazio que se realiza “Nas grandes horas em que a insónia avul-

ta”, em que inclusive Deus inexiste – ou “morreu”, diria Nietzsche.

Busquemos agora isolar, com um soneto pessoano, o tema da Morte – isolá-lo,

o mais que consigamos, dos temas afins da Noite e da Temporalidade.

Abundam os sonetos pessoanos sobre a Morte, de modo que é difícil escolher

apenas um que a encarne; há, por exemplo, o grande poema-testamento de Álvaro de

Campos (“Olha, Daisy, quando eu morrer...”) estudado por GARCEZ (1981); em

busca do poema perfeito para esse fim, deparamo-nos com a Elegia da Morte Perfeita.

Ser teu cavaleiro, ó casta e doce... Numa glória de lanças e torneios... O meu corcel a mastigar os freios, E o teu galgo seguindo-me onde eu fosse

Cair aos golpes de um rival. E nada Ficar de mim, nem a memória. Apenas A oração das tuas mãos morenas Num mosteiro de porta brasonada...

E o teu ajoelhar, e o misticismo Daquelas monjas pálidas que eu cismo Velhinhas, na penumbra das capelas,

Noivas sem noivos a quem tu contasses De como El-Rei beijou as minhas faces E eu tombei ao clangor das charamelas.

Fernando Pessoa, /*circa 1914-1916/

Esta bela elegia heróica narra, em primeira pessoa, a história de uma morte ide-

al – o ideal de um cavaleiro para quem o a glória maior seria tombar no campo de

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batalha. Esta narração, como a Morte, é também um ideal, visto que o Fernando

Pessoa correspondente comercial em escritórios de Lisboa, sujeito tímido e freqüen-

temente abúlico, não poderia estar mais distante do cavaleiro tombando “ao clangor

das charamelas”.

Os tempos verbais desta Elegia ocorrem numa seqüência que expande o signi-

ficado da “Morte Perfeita”. Tal como nos sonetos VII e VIII do ciclo Passos da Cruz,

neste poema o poeta desenvolve uma narração feita de meras hipóteses, cuja série

finda no tombar do herói (fim das hipóteses, do soneto e da encarnação de possibli-

dades desenvolvidas no poema). Nos Passos da Cruz, Pessoa emprega o subjuntivo

para enumerar as hipóteses em orações optativas, ao passo que aqui principia a narra-

tiva ideal com o infinitivo (“Ser”)... O infinitivo é o tempo verbal mais indefinido de

que dispomos em Português, linha reta, estendendo reticências semânticas tanto an-

tes quanto após o verbo, infinito: ...Ser...

Nada é mais distinto do Ser inicial do que o tempo verbal com que o poeta en-

cerra o soneto, pretérito perfeito do indicativo, rasgando a indefinição do infinitivo com o

ponto final de um aspecto verbal perfeito, inexorável (“tombei”). Em vista dessa

reflexão sobre modos e aspectos verbais, vide também que o título do poema ganha

uma nova dimensão semântica: a “Morte Perfeita” é narrada no último verso em preté-

rito perfeito, ao passo que o soneto principia infinitivo... Ao longo do poema trafega-

mos, pois, do tempo-modo verbal mais aberto ao mais fechado.

Note-se, ainda, que Antero de Quental tem um soneto intitulado Elegia da Mor-

te, que Pessoa refere num outro poema (“Súbita mão de algum fantasma oculto”;

vide BERARDINELLI, 1965) e com cujas imagens frequentemente dialoga, por exem-

plo no já citado “Nas Grandes horas em que a insónia avulta”.

Que aprendemos sobre esta Morte em Pessoa? Na Elegia da Morte Perfeita, não

se trata de algo temido – como era o vazio em alguns sonetos sobre a Noite; muito

pelo contrário, o poeta quer a Morte, plácida, perfeita, completa... sem restar nem mes-

mo uma memória perturbadora além da oração da amada: “A oração das tuas mãos

morenas”. Esta completude (“feitura total”, i.e., per-feição) da morte é “sem carma”,

para usar um termo da filosofia hindu, que sintetiza o ideal mais elevado do guerreiro

(kshátrya), o qual deveria partir do mundo sem deixar pendências (ou carma).

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O querer à Morte Perfeita é tão grande, que, por vezes, ele se confunde com o

querer à Amada, como se a própria Morte fosse a musa invocada. Num outro sone-

to-invocação, o poeta chama a Morte de maneira similar à com que Vicente Guedes

se dirige à Noite... e, se Guedes intitulou “Noite” sua mini-ode à Noite, Pessoa cha-

mará Mors ao seu soneto à Morte, Morte que vem com lábios de noite.

Com teus lábios irreais de Noite e Calma Beija o meu ser confuso de amargura, Com teu óleo de Paz e de Doçura Unge-me esta ânsia vã que não se acalma. Quantas vezes o Tédio pôs a palma Sobre a minha cerviz dobrada e obscura; Quantas vezes as ondas da loucura Roçaram suas franjas por minha alma! Corpo da parte espiritual de mim, Do que não é sentido e mutação E se concebe como sem ter fim, Por degraus negros sobe da ilusão Até tua alta Torre de marfim De onde o olhar abarca a imensidão.

(Fernando Pessoa, 1912)

Outra vez a Morte é plácida: se no soneto de Guedes o poeta anseia participar

de uma Noite que lembra a Morte, neste soneto é a Morte que participa do poeta,

como “corpo da [sua] parte espiritual”. Esta Morte não tem fim (“abarca a imensi-

dão”), nem tempo (“não é sentido e mutação”).

Por falar em tempo, busquemos agora um soneto que defina o sentido da Tem-

poralidade em Pessoa. Nada melhor do que uma ocasião de Ano Novo para tratar da

passagem do tempo, oportunidade que o poeta aproveita no seguinte poema:

Começa Hoje o Ano

Nada começa: tudo continua. Onde estamos, que vemos a passar? O dia muda, lento, no amplo ar; Múrmura, em sombras, flui a água nua.

Vêem de longe, ☐ Só nosso vê-las teve começar. Em cadeias do tempo e do lugar, É abismo o começo e /*ausência/. Nenhum ano começa. É Eternidade! Agora, sempre, a mesma eterna Idade, Precipício de Deus sobre o momento; Na curva do amplo céu o dia esfria, A água corre mais múrmura e sombria E é tudo o mesmo e verbo o pensamento.

(Fernando Pessoa, 1-1-1923)

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Investigando o princípio de um momento, Pessoa constata que a totalidade das

coisas é tão imutável quanto era a Morte no soneto Mors, isto é: o tempo não passa, e

as coisas só começam em nossa falha percepção delas: “Só nosso vê-las teve come-

çar”. No fragmento de poema no verso de Começa Hoje o Ano (uma versão incomple-

ta dele), o poeta sintetiza essa percepção na linha final: “Começar só começa em pen-

samento” [Ms. 64-41v].

Ano Novo

Ficção de que começa alguma cousa! Nada começa: tudo continua. Na fluida e incerta essência misteriosa De passar, flui em sombra a água nua. Curvas do rio escondem só movimento. O mesmo rio flui onde se vê. Começar só começa em pensamento.

(Versão frag. de Começa Hoje o Ano, 1-1-1923

A imutabilidade do agora – ou eternidade –, argumentada por Parmênides no

diálogo de Platão, está no âmago do soneto pessoano, que o define belamente como

“Precipício de Deus sobre o momento”. A visão do tempo como um momento infi-

nito, que passa apenas na aparência, em essência sendo sempre o mesmo, é resumida

pela palavra atha ( ) na filosofia hindu: estar “no agora” é o propósito de toda

busca espiritual que, quando logrado, leva à realização paradoxal de que tudo é novo,

ainda que nada jamais mude; as flutuações do pensamento (vrittis) na mesma filosofia

hindu é que acarretariam a percepção de que o tempo passa, dado o nosso ego identi-

ficar-se com essas flutuações, resultando isso na errância do pensamento. Portanto,

o tempo teria duas faces: uma esconde a eternidade, a outra é pura irreversibilidade,

encarnada pela feroz imagem de Crónos comedor dos filhos, i.e., nós humanos.

É sobre essa 2a imagem do Tempo devorador que Pessoa escreve o Sonnet XXVI,

diametralmente oposta à do tempo como véu de “atha”.

How yesterday is long ago! The past Is a fixed infinite distance from to-day, And bygone things, the first-lived as the last, In irreparable sameness far away. How the to-be is infinitely ever Out of the place wherein it will be Now, Like the seen wave yet far up in the river, Which reaches not us, but the new-waved flow!

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This thing Time is, whose being is having none, The equable tyrant of our different fates, Who could not be bought off by a shattered sun Or tricked by new use of our careful dates. This thing Time is, that to the grave-will bear My heart, sure but of it and of my fear.

(Fernando Pessoa, 1918)

A Volta do poema, sempre a guardar o coração do argumento num soneto,

neste define o que é o Tempo: coisa cujo ser é nada, mas que, sendo nada, como tirano

equaliza os destinos diferentes, jamais enganável por uma troca de datas maliciosa.

Esta mesma impotência, acima perante o Tempo, surge ante a Noite no soneto

que escolhemos para ilustrar a identidade entre Noite & Morte.

À Noite O silêncio é teu gémeo no Infinito. Quem te conhece, sabe não buscar. Morte visível, vens dessedentar O vago mundo, o mundo estreito e aflito. Se os teus abismos constelados fito, Não sei quem sou ou qual o fim a dar A tanta dor, a tanta ânsia par Do sonho, e a tanto incerto em que medito. Que vislumbre escondido de melhores Dias ou horas no teu campo cabe? Véu nupcial do fim de fins e dores. Nem sei a angústia que vens consolar-me. Deixa que eu durma, deixa que eu acabe E que a luz nunca venha despertar-me!

(Fernando Pessoa, 1919)

Mais uma vez o poeta dramatiza o desejo de se fundir à Noite (com seus

“abismos constelados”), aqui explicitamente igualada à Morte – “Morte visível”, ante

a qual é inútil vislumbrar “melhores dias ou horas”, visto que é sono eterno, “fim dos

fins e dores”.

Num outro soneto em que a Noite se mescla à Morte, a escuridão vem cobrir

uma paisagem em que tudo é morto; o véu noturno busca engolfar a morte, passando

a representá-la; esta Noite, contudo, não apaga a Morte, visto que há luar – um luar

que na verdade acentua a paisagem moribunda.

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Abdicação III

Entre o abater rasgado dos pendões E o cessar dos clarins na tarde alheia, A derrota ficou: como uma cheia Do mal cobriu os vagos batalhões. Foi em vão que o Rei louco os seus varões Trouxe ao prolixo prélio, sem a ideia. Água que mão infiel verteu na areia. Tudo morreu, sem rasto e sem razões. A noite cobre o campo, que o Destino Com a morte tornou abandonado. Cessou, com cessar tudo, o desatino. Só no luar que nasce os pendões rotos Mostram no absurdo campo desolado Uma derrota heráldica de ignotos.

(Fernando Pessoa, 18-9-1917)

Nesta fatal Paisagem a anoitecer, Pessoa descreve o que resta do “Rei louco”,

i.e., Dom Sebastião, de modo muito distinto do que o faz em Mensagem, em primeira

pessoa: “Louco, sim louco (...) onde o areal está ficou meu ser que houve, não o que

há”. Aqui, sob o luar, nada há além de pura derrota, sem luz de glória no apagar no-

turno.

Não é só à Morte que a Noite se iguala, também se confundindo com a Tem-

poralidade em Sub Umbrâ (do Latim: “Sob a Sombra”), poema de Alexander Search.

Sub Umbrâ

As when the moon which on a wide deep stream Makes every wavelet glint with silver light, By some black cloud, a shadow of the night Is but awhile obscurèd, yet still gleam The waves in darkness, to no falling beam, And please in shade with the obscure delight Of a profounder motion, stilly dight With softened silver, like a thing of dream; So may for e’er my song its force retain, And though a cloud o’ercast my weary mind Let that but fill the glitter of my strain With staider sweetness, showing to mankind That though beneath a cloud I can sustain My wonted song, to hope and bliss not blind.

(Alexander Search, 1904)

Este soneto, metalinguístico como a tradição shakespeariana, elabora, em seus

8 primeiros versos, uma comparação com a noite, simbolizada pela lua que, mesmo

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momentaneamente atrás de nuvens, ainda brilha... A Noite, portanto, apresenta duas faces

de Temporalidade: a passageira nuvem eclipsante & a duradoura lua reluzente.

Nos tercetos, a metalinguagem subitamente se mostra, aproveitando a dupla

temporalidade da metáfora noturna: possa a força da canção perdurar (como a lua),

mesmo que algo momentaneamente nuble a mente fatigada do poeta. A Volta do poema

é significativa, a um tempo sintetizando a metáfora e a metalinguagem (“So may for

e’er my song its force retain”) e ecoando os versos também metalingüísticos do sone-

to XVII de Shakespeare – em que o poeta inglês também se preocupa com o futuro

de suas rimas, imaginando-as avelhantadas e escarnecidas: “So should my papers,

yellowed with their age...”

Se, nos sonetos pessoanos, a Noite se irmana à Morte e à passagem do Tempo,

numa terceira combinação possível dessas personagens, também a Morte e a Tempo-

ralidade se identificam numa série de ocasiões, por exemplo no soneto a seguir:

Morreu. Coitado ou coitada! Vê-lo, ou vê-la, no caixão! Isto é "sentido", ou é nada? O choro é tépido e vão. Tem a face transtornada De tantas calmas que estão Naquela expressão fixada Pela falta de expressão. Morreu. Uns meses depois Morreu. Amada ou amado, Seja lá o que for dos dois — Passou a ser o passado... Ó grandes mágoas, vós sois Um esquecimento adiado.

(Fernando Pessoa, 1927)

Trata-se de um soneto em redondilha maior, raro em Pessoa. Note-se que, pa-

ra o v.14 ser heptassílabo, é preciso ler a palavra “adiado” como trissílaba (a-dyá-do)

– ou, como sugere a Prof ª. Berardinelli, ler: “U’es-que-ci-men-toa-di-a-do”.

Ao misturar-se com a Temporalidade, a Morte se torna esquecimento. O verso

final deste soneto traz uma imagem que lembra o famoso poema D. Sebastião, Rei de

Portugal de Mensagem, que finda assim:

(...) Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?

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Tanto esta imagem de um “cadáver adiado” quanto a de “um esquecimento

adiado” sugerem uma certa morte cuja presença já se sente, mas cuja realização total

se adia; na verdade, podemos ver uma gradação entre as expressões, sendo o “esque-

cimento adiado” (morte que ainda vive na memória) mais mortal que o “cadáver adia-

do” (vida que já morre).

A Morte como Esquecimento está no coração do poema Aniversário de Álvaro

de Campos que, embora não esteja no corpus dos sonetos pessoanos, em seu clímax

encarna a terrível equação Morte + Tempo = Esquecimento Adiado...

Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias.

Numa vertigem temporal, em Tabacaria, o mesmo Campos leva o esquecimento

do mundo a outras dimensões de desaparecimentos:

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Mesmo após tanto esquecimento, Campos reconhece que algo permanece, pois

os dois versos seguintes de Tabacaria dizem:

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, (...)

Voltando aos sonetos, mesmo quando a Morte é Esquecimento, os “mortos-

esquecidos” retornam, invadindo a escrita do poeta, que lhes dedica um ciclo de qua-

tro sonetos, que principiam por indagações pasmadas ante o poder mortal do tempo:

Em torno a mim os mortos esquecidos Volveram todos. Eu em sonho os vi. Se os amei, como foi que os esqueci? Se os esqueci, como foram queridos?

Noite, Morte, Temporalidade, de tantos modos combinadas, também surgem

como tríade completa nos sonetos de Pessoa, por exemplo no 2º poema do ciclo O

Halo Negro. Para compreender o 2o poema, é preciso ler o 1o, ao que citamos ambos:

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O Halo Negro I – De Mortu i s O Halo Negro II – Abyssum Invoca t Que triste, à noite, no passar do vento, O transvasar da imensa solidão Para dentro do nosso coração, Por sobre todo o nosso pensamento.

No sossego sem paz se ergue o lamento Como da universal desilusão, E o mistério, e o abismo e a morte são Sentinelas do nosso isolamento.

‘Stamos sós com a treva e a voz do nada. Tudo quanto perdemos mais perdemos. De nós aos que se foram não há ‘strada.

O vácuo encarna em nós, na vida; e os céus São uma dúvida certa que vivemos. Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

‘Stou só. A atra distância, que infinita A alma separa de outra, se alargou. Em mim, porém, meu ser se unificou. Sou um universo morto que medita.

Se estendo a mão na solidão aflita, Nada há entre ela e aquilo que tocou. Satélite de um astro que findou, Rodeio o abismo, ‘strela erma e maldita.

Não há porta no cárcere sem fim Em que me vivo preso. Nunca houve Porta neste meu ser que finda em mim.

Vivo até na consciência a solidão. Na erma noite agora o vento chove E um novo nada enche-me o coração...

Fernando Pessoa, 1925 Fernando Pessoa, 1925

É surpreendente que CASTRO (2001), na edição crítica da INCM, tenha publi-

cado o poema sem seu título – e nem mesmo faça menção à nota manuscrita de Pes-

soa abaixo do poema datiloscrito. Lê-se no testemunho do primeiro soneto:

O Halo Negro

1. De Mortuis

2. Abyssum Invocat

3. Hymno a Amun-Rá

[Figura 20: Ms. do plano do tríptico O Halo Negro]

Com tal nota, Pessoa parece não apenas intitular o soneto em questão, mas

também o inteiro tríptico que este soneto inicia.

Que quer dizer “O Halo Negro”, título do ciclo inaugurado pelo poema acima?

Ou melhor, que argumentos o primeiro soneto apresenta para iniciar uma série de

poemas de título tão sombrio?

O primeiro poema, individualmente, recebe o título De Mortuis, uma abreviatu-

ra da expressão latina “De mortuis nihil nisi bonum”. Literalmente traduzível por

“Dos mortos, nada a não ser bom”, essa expressão indica ser socialmente inapropriado

dizer algo negativo sobre uma pessoa recentemente falecida: a expressão vem de uma frase lati-

na mais longa: “de mortuis nil nisi bonum dicendum est”. Por que, enfim, dar este

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título ao poema? Alguém parece ter falecido no contexto do poema? A resposta

irrompe nas últimas duas palavras do soneto, em que Pessoa, ecoando Nietzsche,

declara “Morreu Deus”, sintetizando e personificando a sensação de imensa solidão

que permeia os versos. O título “De Mortuis” não poderia ser mais apropriado.

Noite é a própria paisagem em que o poema se tece, na ausência de luz ou de

vida, ou, como o poeta revela ao fim do texto, de um conceito de Deus. Curiosa-

mente, porém, há um conceito oriental de “Deus” que parece caber perfeitamente

nesta ausência.

Há um conceito no Hinduísmo chamado “A Noite de Brahma”, com o qual

proponho interpretar não apenas este soneto, mas também o que se segue na guir-

landa, fundindo não só os signos da Noite & da Morte (explícitos nos poemas), mas

também o da Temporalidade.

Brahma é o Criador na trindade Hindu. Um “dia de Brahma” equivale à exis-

tência do universo como o conhecemos (digamos o espaço de tempo entre o “Big

Bang” e um Apocalipse que findasse tudo). Segue-se a este período “A Noite de

Brahma”, de tempo igual ao do Dia, só que na ausência de tudo...

Se pensamos o soneto I como dramatizando a sensação de crepúsculo de um

Dia de Brahma, o soneto II descreveria a Pura Noite.

Tal como no soneto I do mesmo ciclo, o título do segundo poema vem do

Salmo 41 da Vulgata: “Abyssus abyssum invocat”, i.e., “O abismo o abismo chama”.

Na versão simplificada do título de Pessoa, que não contém a primeira palavra, uma

tradução possível é “Chama o Abismo”. Quem chama o abismo? O outro abismo

que é o poeta só? O abismo de não haver Deus após o 1o soneto de O Halo Negro?

“A Noite de Brahma” (introduzida no soneto anterior), ou “O Abismo Invo-

cado” (no título de Pessoa), é um cenário simbólico donde este poema parece brotar.

O v.4 sintetiza este cenário e define o sujeito com uma beleza impressionante

“Sou um universo morto que medita”.

Brahma, o Deus da criação, está dormindo, numa grande Noite. Ora, se nada

existe além de Brahma, essa Noite é igual à Morte. Se tudo é nada, a Temporalidade está

congelada – tudo ocorre para além do tempo, na meditação bramânica do poeta.

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3.1.3. Coração & Mar

“Meu coração é um pórtico partido Dando excessivamente sobre o mar.”

(In: Passos da Cruz IX, entre 1913 e 1916)

“Vou colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto a maltratar

meu coração”. Eis versos em que Tom Jobim e Chico Buarque (1968) associam o

ícone do coração aos efeitos emotivos do soneto em geral. Também os corações dos

heterônimos pessoanos surgem maltratados – e indecisos e atrevidos e angustiados –

em mais de 30 sonetos, alguns dos quais também pulsam os ritmos do mar. Como,

nesses sonetos, a presença do coração é pelo menos duas vezes mais recorrente que

a do mar, é através das veias cavas de Pessoa que nos guiaremos nesta microleitura,

agregando o signo do mar sempre que ele transbordar pelas vias cardíacas.

Como agrupar os sonetos cardíacos do poeta? Testamos 2 critérios de agru-

pamento antes de encontrar, num poema do próprio Pessoa, os fundamentos para

um 3o e derradeiro critério. Experimentamos, pois, classificar os sonetos “cardíacos”:

1. segundo a posição do coração no soneto (começo, fim, ou meio);

2. segundo a voz do coração ante a ação verbal (ativa, passiva, neutra);

3. segundo a classificação de um soneto de Pessoa de 1917.

Empregando o primeiro critério, logo se destaca uma série de sonetos em que

o coração de Pessoa já surge como protagonista desde o incipit:

1913 a 1916 “Meu coração é um pórtico partido”

1917 “Coração fraco a quem o mínimo olhar” “Sosségo enfim. Meu coração deserto” 1918 “As to a child, I talked my heart asleep” 1931 “Meu coração é um almirante louco” “Meu coração, o almirante errado”

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Três desses sonetos principiam por “Meu coração” e apresentam um predicati-

vo do sujeito ainda no primeiro verso: “pórtico partido”, “almirante louco” e “almi-

rante errado”. Nos dois sonetos de 1917 o coração é ora “fraco”, ora “deserto”. No

soneto em Inglês, o poema X dos 35 Sonnets, o órgão pulsante é mero objeto pade-

cendo a lábia do poeta, que o faz dormir. Exceto por anunciar desde o princípio a

importância do coração no poema, o agrupamento destes sonetos segundo a posição

do elemento cardíaco não nos gerou grandes achados interpretativos.

O mesmo deu-se com os sonetos encerrados pelo coração.

1909 “Encontrar mais vazio o coração.” 1910 “Ao coração pagão de quem a adora.” 1919 “Frio ao luar, e o meu incerto coração...” 1932 “E no meu coração há um gelar De quanto dei de sonho à hora ida.” s.d. “— Acaba lá com isso, ó coração!” 1935 “Quebra-te, coração...”

Ao concluir sonetos, o coração revela-se: 1) objeto (primeiro vazio, depois pagão),

2) elemento incerto em final de enumeração, 3) espaço em que se sente um gelar e, 4)

em última instância (ou em último recurso), vocativo – tanto na exclamação de Álva-

ro de Campos (sem data), quanto na do ortônimo (em 1935). Apesar da colocação

comum desses corações, seus papéis sintáticos e semânticos são tão distintos, que

pusemos de lado nosso 1o critério de análise cardíaca.

Nossa segunda via de classificação cardial dos sonetos partiu da voz verbal do

coração, ampliando os conceitos de voz passiva e voz ativa para distinguir corações mais

passivos (sofredores, doloridos) dos mais ativos (intrometidos, desmedidos) – e dos

corações que pareciam “neutros”, i.e., em cima do muro no que tange à ação verbal.

Nesse sentido, os corações almirantes (o “louco” e o “errado”) de Álvaro de

Campos seriam claramente “ativos”, em contraste com o coração do ortônimo no

verso “E um novo nada enche-me o coração...” – este, além de passivo, cheio de nada.

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No entanto, este critério logo se fez confuso, visto que às vezes a voz ativa dos cora-

ções pessoanos implica passividade semântica, como nos exemplos a seguir, em que as

ações de esperar e não esperar se igualam em ambientes de passividade extrema:

Tudo quanto mal fiz ou não queria Numa fogueira que não vejo arde, Meu coração, que espera e não confia, É como um poço aonde a água tarde.

(In: “Sonhei – quem não sonhara? – porque a tarde”, 1934)

Sosségo enfim. Meu coração deserto Nada espera da inútil caravana.

(In: “Sosségo enfim. Meu coração deserto”, 1917)

Após descartar dois critérios, revendo a lista dos sonetos que elencam o cora-

ção do poeta, deparamo-nos com um poema a defini-lo de 3 maneiras bem distintas:

Coração fraco a quem o mínimo olhar Angustia, e dói o menor sorriso, Para quem é o sentido de todo o riso De quem é dito o segredo dito a brincar.

Coração desmantelado, incerto a boiar Um sentimento de conviver, indeciso, Avulso, absurdo, selvagem, ☐, friso Da loucura no equilíbrio a ironizar.

Coração doente, coração doente, coração doente... Pobre silencioso coração esquecido Invisível a quem olha a face, /*vendido/

Ao excesso falido das suas emoções que são A ponte partida, a ponte sem remédio, entre A sensação de si /*&/ a ideia do mundo _________ .

(“Coração fraco a quem o mínimo olhar”, 1917)

O coração “fraco” do primeiro quarteto é bem distinto do “desmantelado” no

segundo – a angústia e dor daquele (sua passividade) contrastam com a selvageria e

loucura deste (sua atividade). Nos tercetos, surge um terceiro coração, doente, tri-

plamente doente – esquecido além ou aquém de sua atividade ou passividade.

A partir deste soneto, foi-nos possível realizar uma classificação cardiofílica

muito mais gratificante em termos interpretativos, agrupando sonetos segundo signos

do próprio poeta:

1. coração fraco (medroso, sofredor, passivo);

2. coração desmantelado (atrevido, intrometido, ativo);

3. coração doente (vazio, nulo).

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Comecemos pela fraqueza cardíaca, exclusiva aos sonetos do ortônimo. Em

seus primeiros sintomas, tal fraqueza manifesta-se como medo, terror.

E meu coração a fôlego (...) Alto, um frio sopro, trêmulo de vê-lo.

(In: “Ao luar dos mortos, na paisagem-gelo”, 1912) Mas um terror antigo, que insepulto Trago no coração, como de um trono Desce e se afirma meu senhor e dono Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

(In: “Súbita mão de algum fantasma oculto”, 1917)

Nos 35 Sonnets, a fraqueza torna-se oportunidade de ludíbrio, com o poeta ti-

rando cruel vantagem de seu coração ingênuo, órgão desapercebido ante a manipula-

ção poética – crédulo fácil nas promessas de um dia vindouro feitas pelo ortônimo.

As to a child, I talked my heart asleep With empty promise of the coming day, And it slept rather for my words made sleep Than from a thought of what their sense did say. (...)

Thus with deceit do I detain the heart Of which deceit’s self knows itself a part.

(In: Sonnet X, 1918)

A última ocorrência de debilidade cardial nos sonetos não fere diretamente o

coração ortônimo, mas sua projeção no peito do poeta Gomes Leal, cuja sina é can-

tada por Pessoa: Saturno, recebendo das mãos de Apolo o maldito vate, faz-lhe o co-

ração sangrar, terrivelmente.

(...) Este, poeta, Apolo em seu regaço A Saturno entregou. A plúmbea mão Lhe ergueu ao alto o aflito coração, E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

(In: Soneto Gomes Leal, 1924)

Se o coração fraco do ortônimo teme, sofre enganos e sangra ferimentos, o co-

ração desmantelado é o seu oposto, alter-ego (ou alter-cor) – e não por acaso pulsa, pri-

mordialmente, no imo do heterônimo Álvaro de Campos.

Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo, Saiu-me certo, fui elogiado... Meu coração é um enorme estrado Onde se expõe um pequeno animálculo...

(In: Barrow-on-Furness IV, s.d.)

O coração de Campos protesta, a um tempo jaula & bicho de zoológico ofendido

pela jaula – não menos jaula por ser “enorme estrado”, visto que o haver limites é o

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que importa ao protestante peito do heterônimo. O descompasso entre “animálcu-

lo” e “estrado” lembra as prisões com que o pintor Francis Bacon (1909-1992) cos-

tumava enquadrar seus modelos, enfatizando a tensão entre o livre-arbítrio do sujeito

(“um pequeno animálculo”) e os limites de sua ação, meras linhas finas, quase invisí-

veis, talvez criadas pelo próprio sujeito... mas ainda assim limitantes (“um enorme

estrado”). Reproduzimos dois quadros de Bacon que pintam esta tensão, análoga ao

desmantelamento cardíaco de Campos:

[ FIGURA 21: Dois quadros de Francis Bacon: Sphynx – Portrait of Muriel Belcher (1979) &

um dos Three Studies of Lucian Freud (1969) ]

A tensão cardial em Campos não é comedida: o órgão latejante no peito do he-

terônimo volta e meia transborda o pano de fundo do soneto e interrompe o verso:

Todas as coisas são impressionantes. Enquanto houver no mundo sangue e rosas Há-de haver sempre certos bons instantes Em que se parem cousas sem ser cousas.

Meu coração, um solavanco, ou antes Um intervalo consciente. Lousas Cobrem os que como eu tinham rompantes Em que iam à conquista das teimosas.

(In: Costa do Sol I, 1932)

(...) É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo. Mas às vezes rimar é preciso. Meu coração faz pá como um saco de papel dado Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado. E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente E eu acabo este poema indeterminadamente.

(In: P-há, 1929)

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No primeiro caso acima (Costa do Sol I), o coração intercepta o poema, inter-

rompendo seu fluxo com uma frase nominal, em dois versos aparentemente sem

muito sentido senão o de interromper mesmo o poema – primeiro como “um sola-

vanco”, depois como “um intervalo consciente”, respectivamente sístole (solavanco) e

diástole (intervalo) do coração afetando o pensamento.

Como anotou a Prof a. Cleonice Berardinelli (1999), o título do poema P-há in-

dica uma tensão latente (e crescente), antecedendo a explosão do coração, que subi-

tamente faz “pá como um saco de papel dado” – este segundo “pá” já sem o hífen de

segurança do título, o qual até ali travara a explosão. Note-se que a explosão cardíaca

transborda o próprio poema, afetando um transeunte desprevenido tal como, duas

décadas depois, faria a Nova Poética de Manoel Bandeira (1948), em que os versos do

poeta sórdido maculam um passante desapercebido:

O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Não é só a Campos que o coração desmantelado interrompe. Também o ortô-

nimo padece o descompasso entre a razão e o coração, com a prevalência deste:

Argumentamos em vão. Distraído, certo, bate Por trás do nosso debate O coração.

(In: “Argumentamos em vão”, 1935)

Dois anos antes deste poema, pela pena de Álvaro de Campos, o poeta escre-

vera outro aparente diálogo Psiquetipia (aparente, pois talvez não passe de um monó-

logo a fingir-se diálogo); neste “diálogo” em versos livres, tal como no de “Argumen-

tamos em vão”, há dois níveis de conversação: o da reflexão do poeta e o das mãos

do interlocutor (interlocutora?), frequentemente interrompendo a reflexão do poeta.

Psiquetipia

Símbolos. Tudo símbolos... (...)

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa, Pessoas independentes de ti... Olho-as: também serão símbolos? (...)

Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa... “It was very strange, wasn’t it?” “Awfully strange. And how did it end?” (...) Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos? Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas? Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...

(Álvaro de Campos, ???)

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No soneto “Argumentamos em vão”, que agora analisamos, também encon-

tramos dois níveis: o da argumentação vã (incerta?), sob a qual há o certo nível de um

órgão pulsante. Em ambos os poemas, eis o intelecto errante ante a concretude da na-

tureza humana, ora “mãos”, ora “coração”.

Álvaro de Campos sintetizou a dualidade pensamento-natureza no poema Bi-

nômio de Newton, que, embora não seja soneto, invocamos aqui para esclarecer a duali-

dade que nos sonetos vemos: no poema camposiano, o sempiterno vento natural faz

calar os modernismos cantados pelo heterônimo; após Campos assinar a primeira

estrofe, é o próprio vento quem assina o poema por último (rindo por último e, por

isso mesmo, naturalmente rindo melhor):

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso." (Álvaro de Campos)

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó (O vento lá fora).

Se o coração ortônimo interrompera um diálogo quando batia “certo”, ele cala

o poema da mesma forma quando “incerto”, concluindo um soneto em que o ortô-

nimo se confunde com a imagem de Sóror Mariana Alcoforado, símbolo do coração

em descompasso com a razão.

(...) Em cela ou claustro ergue — as mãos rezando, Para que dolorosa imprecação, A quem? — o gesto de quem ‘stá chorando? Nada... Só o silêncio e a solidão E o claustro abandonado, e o brando Frio ao luar, e o meu incerto coração...

(In: “Do abismo onde o Passado dorme e espera”, 1919)

Quando a razão falha, o coração desmantelado permanece; “desmantelado” é

mesmo uma palavra apropriada aqui: se “desmantelado” é o cerne que fica quando as

muralhas desmoronam, o coração desmantelado é o ente sensível que grita quando as

vestes da razão são despidas. No poema acima, o órgão é o último elemento da

enumeração daquilo que resta, após o desmantelamento das ilusões de Sóror Mariana

– e do poeta. No poema que se segue, desarmada a razão com uma série de interro-

gações demolidoras, é novamente o coração desmantelado quem bate no último ver-

so, apontando uma culpa profunda, irracional, inconsciente; se Pessoa fosse Édipo,

ao fim deste soneto o poeta cegaria os próprios olhos.

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(...) É em mim que se o Calvário ergueu. É em meu coração abandonado Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu. Quem na Cruz onde está ermo e pregado O pregou? Foi Romano ou foi Judeu? Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!

(In: “Cabeça augusta, que uma luz contorna”, 1933)

Exibindo, ainda, um coração desmantelado pelo qual atravessa o signo do mar,

há um grupo de quatro sonetos pessoanos, dois de Campos e dois do ortônimo.

Ah, um soneto... (Campos, 1931) s.t. (Campos, 1931)

Meu coração é um almirante louco Que abandonou a profissão do mar E que a vai relembrando pouco a pouco Em casa a passear, a passear... No movimento (eu mesmo me desloco Nesta cadeira, só de o imaginar) O mar abandonado fica em foco Nos músculos cansados de parar. Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há grandes raivas feitas de cansaços. Mas – esta é boa! – era do coração Que eu falava... e onde diabo estou agora Com almirante em vez de sensação?...

Meu coração, o almirante errado Que comandou a armada por haver, Tentou caminho onde o negou o Fado, Quis ser feliz quando o não pôde ser. E assim, /*pechado/, absurdo, postergado, Dado ao que nos resulta de se abster, Não foi dado, não foi dado, não foi dado E o verso errado deixa-o entender. Mas há compensações absolutórias Em sonho e no silêncio da derrota Que tem mais rosas de alma que as vitórias. E assim surgiu, Imperial, a frota Carregada de anseios e de glórias Com que o almirante prosseguiu na rota.

Sonnet XI (Pessoa, 1918) Passos da Cruz IX (Pessoa, 1913-1916)

Like to a ship that storms urge on its course, By its own trials our soul is surer made. The very things that make the voyage worse Do make it better; its peril is its aid. And, as the storm drives from the storm, our heart Within the peril disimperilled grows; A port is near the more from port we part – The port whereto our driven direction goes. If we reap knowledge to cross-profit, this From storms we learn, when the storm’s height doth drive – That the black presence of its violence is The pushing promise of near far blue skies. Learn we but how to have the pilot-skill, And the storm’s very might shall mate our will.

Meu coração é um pórtico partido Dando excessivamente sobre o mar. Vejo em minha alma as velas vãs passar E cada vela passa num sentido. Um soslaio de sombras e ruído Na transparente solidão do ar Evoca estrelas sobre a noite estar Em afastados céus o pórtico ido... E em palmares de Antilhas entrevistas Através de, com mãos eis apartados Os sonhos, cortinados de ametistas, Imperfeito o sabor de compensando O grande espaço entre os troféus alçados Ao centro do triunfo em ruído e bando...

Tratemos, primeiramente, do díptico de Campos, cada um dos poemas princi-

piando quase pelo mesmo incipit, em que o coração do poeta é um almirante.

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Logo depois de sua composição, o poema Ah, um soneto... foi publicado no nº

34 da revista Presença (Nov. 1931-Fev. 1932); no entanto, o ms. original chamava o

poema de Soneto para parecer normal, que, embora não interjetivo, é um título ao menos

tão expressivo quanto o escolhido para sair na revista; mais que expressivo, é irônico:

de que modo um coração que “é um almirante louco” poderia parecer normal ?

COELHO (1987) chama este soneto de uma minimeditação, “em que o signo re-

nitente [do coração], radicando no léxico marítimo, se torna um almirante louco (e

desembarcado, como o Campos engenheiro naval inactivo em Lisboa, onde se ente-

dia ad nauseam)”. É contra o pano de fundo desta náusea que o coração do engenhei-

ro seqüestra o soneto, fazendo o próprio heterônimo se surpreender com o ritmo

dos versos, terminados “com almirante em vez de sensação”. COELHO (idem) desta-

ca a simbiose entre “coração” e “sensação” (que rimam), “forçando-nos a pensar na

irmandade sónico-mental entre razão e coração, estabelecida na Autopsicografia famosa”.

(...) E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

Por ser “louco”, o almirante camposiano jamais poderia representar a razão.

Quando o coração-almirante surge “errado” em vez de “louco”, no segundo

soneto cardíaco de Campos, o marinheiro não fica apenas a sentir saudades, mas

encontra um modo de prosseguir sua rota – e essa persecução de uma rota resume o

itinerário da obra do engenheiro Álvaro de Campos: 1) há o período antes de conhe-

cer o mestre Alberto Caeiro, em que o coração do heterônimo é obscuro, cheio de

ópio; 2) há o período grandioso em que o engenheiro escreve suas odes, compondo e

atravessando seu Arco de Triunfo; 3) há, enfim, a derrota, ante a qual o peito do almi-

rante não cessa de bater, mas prossegue “Em sonho e no silêncio da derrota”, dois

espaços que, segundo Campos, têm “mais rosas de alma que as vitórias”.

Duas palavras ganham duplo sentido no soneto do “almirante errado”, pois as

podemos ler como termos cotidianos ou náuticos. Assim, a palavra “derrota” no v.10,

aparentemente negativa em sentido cotidiano, significa apenas “rota” (nada negativa)

no jargão marítimo; também o verbo “surgir”, lido como “aparecer” em sentido co-

tidiano, é um termo náutico para “ancorar, submergir as âncoras” (“surgir” como

termo diretamente derivado de “submergir”). Este duplo sentido é significativo,

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pois, a derrota que poderia ser pejorativa a uma razão cotidiana, para a desrazão cardí-

aca de Campos é uma nova rota a navegar, mesmo que a frota Imperial esteja “surta”

(“surgida”) no sentido de ancorada, imóvel.

A aventura marítima, real ou imaginária, não é privilégio de Campos, e o cora-

ção do ortônimo também navega, pelo menos metaforicamente, no soneto IX dos

Passos da Cruz. GARCIA (1985) ressalta que: “o coração do enunciante, utilizando a me-

táfora definidora, se reconhece na forma do 'pórtico partido' ” – e pergunta:

Como é que esse “coração-pórtico-partido” pode “dar sobre o mar”? E porque o faz “excessivamente”?

O mesmo GARCIA (idem) lembra que pórtico é um “lugar solene”, o qual no

soneto está partido, i.e., danificado. O pesquisador, então, lê o soneto como tentati-

va de “restauração da integridade do pórtico”, reconhecendo na presença do mar

uma evocação da memória, pois o mar está cheio de velas, as naus de antanho. O

pórtico – prossegue Garcia – é recipiente de memórias e “recipiente de ideal, se atentarmos

no ‘excessivamente’, medida imensurável da vivência íntima do passado”.

Todo este soneto, aliás, aponta para a combinatória seguinte: coração recipiente de me-mórias e ideal. Tudo quanto a “solidão do ar” insinua, entrelaçada a estrelas, projecta o “pórtico ido” numa zona de mistério, os “afastados céus” do 8° verso. O “cora-ção”, agora “pórtico ido”, ou seja, desprendido da Terra, desprendido da materiali-dade (que afinal nunca fora), colocou o seu complexo ideal no inatingível. E o des-vendar dos “palmares de Antilhas entrevistas” só fornece a desilusão do imperfeito, a amargura de se saber quão incompletos são os “troféus alçados”, quão grande (in-transponível) é a distância entre os triunfos humanos e a verdadeira e impossível vi-tória dum coração excessivo!

(GARCIA, 1985: 121)

No soneto de 1918, parte integrante dos 35 Sonnets, o coração marítimo cresce

em coragem de modo diretamente proporcional ao perigo da procela – um coração

romântico, como os dos heróis navegadores de Mensagem, distintos dos corações sau-

dosos tanto do almirante louco camposiano, quanto do pórtico partido ortônimo. Este

coração do soneto Inglês invoca a procela, desafia-a mesmo, e em nenhum momento

a imagem da tempestade é revogada por ironias ou saudosismos; se, em algum mo-

mento, a tempestade se apequena, é apenas em relação à vontade do coração pessoa-

no, que espera que a tormenta esteja à sua altura (“the storm’s very might shall mate

our will”). Os dois últimos versos do soneto lembram a profissão de fé do heterô-

nimo Ricardo Reis, que profere – em tom professoral –:

Ponho na altiva mente o fixo esforço Da altura, e à sorte deixo, E às suas leis, o verso;

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Que, quando é alto e régio o pensamento, Súbdita a frase o busca E o ‘scravo ritmo o serve.

(Ricardo Reis. In: Revista Atena, nº 1; 1924.)

A altura nada humilde do pensamento de Reis é sua única preocupação (condi-

ção), que, lograda, acarreta a perfeição automática do verso (conseqüência). Há um

paralelismo entre a lição ricardiana e a condição/consequência que surgem no soneto

ortônimo, em que bastaria aprender a habilidade do timoneiro (condição), para que o

poder da tempestade se irmanasse à vontade do poeta (conseqüência); em ambos os

poemas, é o interior do poeta que afeta – e molda – algo exterior... Espírito alterando

a matéria, desde que o coração seja destemido, desmedido, desmantelado.

Chegamos ao coração final dos sonetos de Pessoa: o “coração enfermo”, a um

tempo distinto do “fraco”, que sofria ações do mundo exterior, e do “desmantela-

do”, que, em sua loucura, fazia o mundo exterior acomodar-se à sua vontade. O

coração doente nem chega a ser fraco, pois ele é deserto, vazio, e nada espera:

(...) Aí... mas de que serve imaginar Regiões onde o sonho é verdadeiro, Ou terras para o ser adormentar?

É elevar demais a aspiração, E, falhando esse sonho derradeiro, Encontrar mais vazio o coração.

(In: Em Busca da Beleza – IV, 1909) Sosségo enfim. Meu coração deserto Nada espera da inútil caravana. (...)

(In: “Sosségo enfim. Meu coração deserto”, 1917) (...) A noite é clara, o coração é mudo E a palavra que eu vou dizer, e fôra, A ser dita, a noção na alma da hora, Passa, como um murmúrio vão de vento... (...)

(In: “O rio, sem que eu queira, continua”, 1920) (...) Quem vai tem em quem fica a pior sorte. Nós é que aos mortos enterramos mais! É em nosso coração que vive a Morte!

(In: “Múrmura voz das árvores mexidas”, 1925) (...) Vivo até na consciência a solidão. Na erma noite agora o vento chove E um novo nada enche-me o coração...

(In: O Halo Negro II – Abyssum Invocat, 1925)

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(...) Na noite informe ao luar brilha o jardim. O mar ao longe dorme o seu marulho. Que quieto é tudo! Como até o orgulho De poder ser alguém aqui tem fim!

Como nesta nocturna quietação Tudo se acalma e até se desconhece No fundo ignoto do ermo coração.

(In: “Por mais que tente, não me desembrulho”, 1932)

(...) Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. Meu coração, que fala estando mudo, Repete seu monótono torpor

Na sombra, no delírio da clareza, E não há Deus, nem ser, nem Natureza, E a própria mágoa melhor fôra dor.

(In: “Nas grandes horas em que a insônia avulta”, 1929)

Vazio, deserto, mudo, viveiro da Morte, cheio de nada, ermo – coração “que

fala estando mudo” e só “repete seu monótono torpor”. Por que está mudo este

órgão que tanto fala em Pessoa? Que doença é essa que o aflige e cala? Voltemos ao

soneto do qual extraímos a tríade de critérios cardíacos:

(...) Coração doente, coração doente, coração doente... Pobre silencioso coração esquecido Invisível a quem olha a face, /*vendido/

Ao excesso falido das suas emoções que são A ponte partida, a ponte sem remédio, entre A sensação de si /*&/ a ideia do mundo [_______].

(In: “Coração fraco, a quem o mínimo olhar”, 1917)

Embora o fecho pareça incompleto, perguntemos: o que se entende do que há

dos tercetos? O que o poeta diz sentir? Após quebrar completamente o verso anun-

ciando sua doença, o coração triplamente doente é qualificado como se fora socialmente

segregado (silencioso, esquecido, invisível): um ser pulsante posto em quarentena

sempiterna, devido a uma doença terrível, absurda lepra cardiovascular...

É só no segundo terceto que o poeta explica a enfermidade e a segregação que

ela implica. Faliu o excesso das emoções cardíacas – coagulou-se o coração desman-

telado; daí veio a doença – infarto fulminante – que por sua vez fez partir, irremedia-

velmente, a ponte “entre a sensação de si” & “a idéia do mundo”. O sujeito da sen-

sação de “si” é ambíguo, com o pronome reflexivo parecendo indicar não só o próprio

coração, mas também o ego por quem o coração costumava bater.

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Com a ponte partida, o coração doente também se partiu “como um vaso va-

zio”, para usar a expressão de um Apontamento de Campos; tendo-se partido, suas

sensações já não se limitavam a apenas um sujeito, o coração passando a ter “mais

sensações do que tinha quando me [i.e., se ] sentia eu”. A ponte entre sujeito e idéia

do mundo, quando sólida, transportava a individualidade do poeta; uma vez partida,

passou a gerar heteronímia, corações multiplicados, mares infinitos... numa explosão

sensacionista que a incompletude do soneto acima reforça, sugerindo a própria ponte

partida no manuscrito, que termina sem terminar numa longa linha, eletrocardiograma final

do coração que, doente, pára e parte para sensações além... [FIGURA 22].

[ FIGURA 22: Terceto final do soneto “Coração fraco, a quem o mínimo olhar”, ms. 144Y-48]

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3.2. Temas Lingüísticos 3.2.1. Perguntas

“Ou esta débil consciência fria Que em nós pergunta qual o nosso norte ”

(In: A Egas Moniz, 1914)

Os sonetos de Pessoa formulam uma afluência de perguntas. Contando apenas

as diretas (com sinais de interrogação), há mais de 60 delas. Como estudá-las?

Em 3 critérios distintos, experimentamos classificar as perguntas dos sonetos

pessoanos:

1. segundo suas extensões;

2. segundo suas exigências de resposta;

3. segundo seus pronomes interrogativos.

De acordo com o primeiro critério, encontramos indagações que ocupam mais

ou menos espaço dentro de um soneto. Há, no corpus deste trabalho, poemas que são

inteiramente feitos de perguntas:

Onde ides vós, deixando por colher As flores do caminho que trilhais, Sem que o frescor da relva vos encante Ou vos chamem o /*sussurro/ e havidos ais Da fonte capciosa? Onde ides vós, ninfas, sem ver No prado ou bosque escuro ou vala hiante A açucena real ou certa rosa? Onde ides vós que sem saber seguis O destino sem norte Dos vossos passos, que de vós não são? Onde ides que na fresca aurora is Ao ocaso da incerta e inútil sorte Da vossa confiada indecisão?

(In: “Onde ides vós, deixando por colher”, 1916)

O poema acima é uma longa pergunta em 14 versos, embora o poeta a quebre

com a repetição da oração principal (“Onde ides vós”), numa espécie de refrão. A

primeira iteração da pergunta quase faz o leitor perder o fôlego, demorando-se por 5

versos antes de encontrar um ponto de interrogação.

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Há outros sonetos pessoanos feitos apenas de perguntas – e há perguntas de

todas as medidas: desde breves indagações intrusas ocupando meras partes de versos,

a espaçosíssimas perguntas que se estendem por 8 versos ininterruptos!

Parte de verso:

Quem quero que seja eu?

(In: PESSOA. “Abismo de ser muitos! Noite minha!”, /*1929/)

1 verso: Quem desta Alma fechada nos liberta?

(In: PESSOA. No Túmulo de Christian Rosencreutz III, 1935)

2 versos: Why do I waste in dreams fruitless and vain The substance of my youth in idle tears?

(In: SEARCH. Resolution, 1905)

3 versos (e uma palavra): (...) Quem Logrará esse vácuo ao qual aspira A alma que, de aspirar em vão, delira, E já nem força para querer tem?

(In: PESSOA. Em Busca da Beleza VI, 1909)

4 versos: Shall I again regret strange faces lost Of which the present memory is forgot And but in unseen bulks of vagueness tossed Out of the closed sea and black night of Thought?

(In: PESSOA. Sonnet XX, 1918)

5 versos (4 longos e 1 curto – do mesmo soneto supracitado na íntegra): Onde ides vós, deixando por colher As flores do caminho que trilhais, Sem que o frescor da relva vos encante Ou vos chamem o /*sussurro/ e havidos ais Da fonte capciosa?

(In: PESSOA. “Onde ides vós, deixando por colher”, 1916)

6 versos: Quando, despertos deste sono, a vida, Soubermos o que somos, e o que foi Essa queda até Corpo, essa descida Até à Noite que nos a Alma obstrui, Conheceremos pois toda a escondida Verdade do que é tudo que há ou flui?

(In: PESSOA. No Túmulo de Christian Rosencreutz I, 1935)

7 versos (ainda que os 6 primeiros sejam mero contexto e a pergunta surja mesmo só no 7º:

Depois que o som da treva, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale,

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A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo, e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole?

(In: PESSOA. “Depois que o som da treva, que é não tê-lo”, 1932)

8 versos: When in the widening circle of rebirth To a new flesh my travelled soul shall come, And try again the unremembered earth With the old sadness for the immortal home, Shall I revisit these same differing fields And cull the old new flowers with the same sense, That some small breath of foiled remembrance yields, Of more age than my days in this pretence?

(In: PESSOA. Sonnet XX, 1918)

Embora a distinção das perguntas segundo sua extensão nos ajude a estudar a

versatilidade do poeta (e sua habilidade em preservar o ritmo por longos períodos),

tal critério nada diz sobre a amplitude filosófica de tais perguntas – e poderíamos con-

siderar a breve questão “Quem quero que seja eu” como muito mais profunda, em

Pessoa, do que o a pergunta de 8 versos que citamos.

Busquemos, pois, um novo caminho, analisando a exigência de resposta dos sone-

tos indagatórios. Aplicando este segundo critério de classificação, encontramos: 1)

perguntas a que o poeta parece responder, implícita ou diretamente e 2) perguntas a

que Pessoa não responde, ou a que talvez não possa mesmo responder.

As perguntas respondidas são em número muito menor que as sem resposta;

nos sonetos, o autor reflete e questiona a tudo e a si mesmo, poucas vezes apresen-

tando respostas ou conselhos. Se, em seus versos livres, Alberto Caeiro apresenta

princípios para uma vida alegre e, em suas odes, Ricardo Reis profere axiomas neo-

epicuristas, nos sonetos, o poeta, mesmo quando afirma algo, faz afirmações que

logo se tornam perguntas indiretas, problemas abissais, pretextos para labirintos. No

soneto VI do ciclo Em Busca da Beleza, por exemplo, à pergunta “Que sono apetece-

mos?”, o poeta responde com uma outra pergunta que, a princípio, parece retórica:

(...) O d’alguém Adormecido na feliz mentira Da sonolência vaga, que nos tira Todo o sentir no qual a dor nos vem?

O leitor nem tem tempo de ajuizar se a indagação é uma espécie de resposta à

pergunta inicial, pois o poeta subitamente abre os tercetos a berrar: “Ilusão tudo!”

Uma resposta? Que espécie de resposta seria este grito, que invalida a pergunta ante-

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cedente, sem de fato responder-lhe? Que leitor ficaria satisfeito? O poeta prossegue

o texto a explicar por que tudo (inclusive o “sono apetecido”) não passaria de ilusão:

Qu‘rer um sono eterno, Um descanso, uma paz, não é senão O último anseio desesp’rado e vão.

Ora, se o leitor já não estava satisfeito, agora se desassosegará de vez. Recapitu-

lemos: 1o) Pessoa pergunta, 2o) faz uma pergunta dentro da pergunta, 3o) então subi-

tamente berra na Volta algo que invalida tais perguntas e... 4o) termina em ceticismo

total que nunca responde à pergunta originária.

Vejamos outro exemplo de pergunta com possível promessa de resposta. O

soneto ‘“Onde ides vós, deixando por colher” (1916), que citamos na íntegra mais

acima, conclui com uma pergunta que talvez seja uma resposta disfarçada. Após 3

ciclos de interrogação encabeçados pelo refrão “Onde ides”... o poeta finaliza:

Onde ides que na fresca aurora is Ao ocaso da incerta e inútil sorte Da vossa confiada indecisão?

Se nos quartetos o poeta deixava as perguntas em aberto, nos tercetos ele as

restringe com uma oração adjetiva que indica um rumo ao caminhar das ninfas. Ora,

o pronome interrogativo “Onde” exige uma resposta em que se defina um local; o

poeta realmente não esclarece qualquer local, mas – sejamos justos – ele parece apon-

tar uma direção. Teremos, enfim, uma resposta?

Frustramo-nos, porque, no 1o terceto, a direção indicada é “o destino sem nor-

te” e, na estrofe derradeira, é o “ocaso da (...) sorte da (...) indecisão”. Portanto, o

poeta não só responde com uma direção em vez de um local, como também apresenta

a direção mais incerta que a linguagem jamais indicou. Agradeça o leitor essa resposta,

pois agora passaremos às perguntas que nem mesmo contam com vagas direções.

Exemplos de indagações a que o poeta não responde são as que povoam o so-

neto final do ciclo No Túmulo de Christian Rosencreutz. Nos tercetos do soneto III des-

se ciclo, o poeta encerra a série de interrogações (principiadas no soneto I), e apre-

senta uma frustrante afirmativa fatídica, que a nada responde:

Quem desta Alma fechada nos liberta? Sem ver, ouvimos para além da sala De ser; mas como, aqui, a porta aberta? ................................................................

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Calmo na falsa morte a nós exposto, O Livro ocluso contra o peito posto, Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.

O poeta cala, e nós perguntamos: terão as perguntas de Pessoa sido feitas para

serem respondidas? Nossa pergunta é retórica, pois percebemos que a maioria des-

sas perguntas não exige uma resposta concreta ou única, ou respostas quaisquer...

Eis que nosso segundo critério de classificação se torna inútil, pondo todas as inda-

gações pessoanas num mesmo saco – ficando as perguntas, portanto, indistinguíveis

segundo o critério da exigência de resposta.

O 3o– e quiçá mais interessante – critério com que estudamos as perguntas dos

sonetos está no tipo de pronome interrogativo empregado; observamos que esses tipos

apontam para as qualidades das coisas intangíveis que o poeta questiona.

Pessoa não é o primeiro a elevar pronomes interrogativos a uma categoria mai-

or que a de meros “substitutos de nomes”. A Filosofia empregou esta classe da pala-

vras para ordenar a totalidade das coisas. Por exemplo, em sua fenomenologia, Aris-

tóteles classifica alguns fenômenos empregando termos traduzíveis por pronomes

interrogativos: “quantos/as” (posòn), “como” (poióv), “quando” (póte), “onde” (poû)...

Contemporâneo de Aristóteles, o general hindu Kautilya (autor do Arthashastra)

organizava todo e qualquer projeto segundo 5 ordens de perguntas:

• Por quê? (a definir o propósito)

• Como? (a esclarecer os meios de se realizar o propósito)

• Com Quanto & Com Quem? (a enumerar os recursos materiais e hu-manos a fim de lograr a empreitada)

• Quando & Onde? (a definir o tempo e o espaço do empreendimento)

• E se... (a conjecturar eventuais problemas e preparar planos de contin-gência apropriados)

Entre as inúmeras aplicações das perguntas kautilianas está o princípio jornalís-

tico do “lide” (do Inglês “lead”), segundo o qual o 1o parágrafo de uma notícia deve

intentar responder a 5 perguntas: “o quê”, “quem”, “quando”, “onde” e “por quê”.

Os pronomes interrogativos, portanto, não devem ser subestimados num estu-

do dos questionamentos embutidos nos sonetos de Pessoa. Eles podem ajudar-nos a

distinguir nuances de sentido entre os grupos de indagações pessoanas. Qual é, pois,

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o pronome interrogativo mais usado nos sonetos de Pessoa – e como entender tal

preferência?

Com pelo menos 20 ocorrências, o pronome mais empregado nas perguntas

dos sonetos é o “Quem”. Ora, num poeta que fragmentou sua individualidade entre

mais de uma centena de personae, o absolutismo desse pronome é no mínimo sugesti-

vo. Se, já em seu primeiro soneto, Álvaro de Campos admite “Nem sei bem se sou

eu quem em mim sente”, Pessoa passa a perguntar, de novo e de novo, “Quem” é que

está a sentir?... Há 2 sonetos que não só principiam por esse pronome (na verdade

pelas mesmas 3 palavras), mas persistem na indagação ao longo das 14 linhas...

Glosa (Pessoa, 1929) s.t. (Pessoa, 1930)

Quem me roubou a minha dor antiga, E só a vida me deixou por dor? Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, Me deixou só no fogo e no torpor? Quem fez a fantasia minha amiga, Negando o fruto e emurchecendo a flor? Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga A seu infiel e irreal sabor... Quem me dispôs para o que não pudesse? Quem me fadou para o que não conheço Na teia do real que ninguém tece? Quem me arrancou ao sonho que me odiava E me deu só a vida em que me esqueço, “Onde a minha saudade a cor se trava”/*?/

Quem me roubou quem nunca fui e a vida? Quem, de dentro de mim, é que a roubou? Quem ao ser que conheço por quem sou Me trouxe, em ‘stratagemas de descida? Onde me encontro nada me convida. Onde me eu trouxe nada me chamou. Desperto: este lugar em que me estou, Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida? Quem, guiando por mim meus passos dados, Entre sombras e errores que me deu À súbita visão dos mudos fados? Quem sou, que assim me caminhei sem eu, Quem são, que assim me deram aos bocados À reunião em que acordo e não sou meu?

Em Glosa, 12 dos 14 versos são perguntas ou partes de perguntas – somando 6

indagações completas. Destas, só uma se responde, se é que se responde, tão pesso-

ana é a resposta à questão “Quem fez a fantasia minha amiga (...)?” A resposta

“Ninguém ou o Fado” em verdade mais parece outra pergunta (terá sido ninguém,

ou o Fado?).

O próprio título envolve um enigma: se é Glosa, o que é que se glosa? Trata-se

de um diálogo com o Último Soneto de Mário de Sá-Carneiro, do qual Pessoa re-

emprega o verso final “Onde a minha saudade a cor se trava”. Eis um diálogo inte-

ressantíssimo: se o fecho dos poemas é o mesmo, sua evolução não poderia ser mais

distinta: Pessoa “responde ” com perguntas ao poema de Sá-Carneiro, o qual também faz

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indagações (estas, retóricas). Logo, poderíamos dizer, paradoxalmente, que Sá-

Carneiro pergunta-respondendo e Pessoa responde-perguntando.

Último Soneto Que rosas fugitivas foste ali: Requeriam-te os tapetes – e vieste... –– Se me dói hoje o bem que me fizeste, É justo, porque muito te devi. Em que seda de afagos me envolvi Quando entraste, nas tardes que apareceste –– Como fui de percal quando me deste Tua boca a beijar, que remordi... Pensei que fosse o meu o teu cansaço –– Que seria entre nós um longo abraço O tédio que, tão esbelta, te curvava... E fugiste... Que importa? Se deixaste A lembrança violeta que animaste Onde a minha saudade a Cor se trava?...

(Mário de Sá-Carneiro; Paris, Dezembro de 1915)

Note-se que a Glosa de Pessoa está datada de 1o de Abril, dia da mentira – e nem

sempre se pode confiar nas datações que Pessoa atribui a seus versos. Se confiamos

nessa, trata-se de um poema escrito 13 anos após o suicídio de Sá-Carneiro, que fale-

ceu no mesmo mês de abril. Nem a data está, pois, livre de questionamentos.

Certo é apenas que a “saudade” em Glosa é pelo menos tripla: tema do poema

de Pessoa, núcleo do verso que Pessoa retira do soneto de Sá-Carneiro e saudade real

de Pessoa por seu amigo.

O poema de 1930, que retoma a indagação inicial de Glosa, tem 6 pontos de in-

terrogação, novamente com 12 dos 14 versos compondo indagações. Tais indaga-

ções apontam para a grande pergunta pessoana, a questão filosófica primordial se-

gundo Kant e que, em Pessoa, move o tema da heteronímia:

– Que é o homem? (Kant) – Quem sou? (Pessoa)

Ao longo desta indagação filosófica em dois sonetos, o poeta apresenta o esfa-

celamento de seu eu, donde jorra o manancial de sua poli-heteronímia. Esta – a hete-

ronímia mesma –, uma resposta à sua grande pergunta “Quem” – talvez a única resposta

possível em Pessoa...

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O poeta dos sonetos se define (ou se indefine) tal como num Apontamento de

Álvaro de Campos: “Sou um espalhamento de cacos num capacho por sacudir”.

Nos sonetos, os cacos muitas vezes têm nome – as vezes em que personae assinam os

poemas pessoanos, clamando para si a posse de quaisquer sensações, fingidas ou não.

Outras vezes, talvez nem mesmo Pessoa saiba de quem se trata, de quem está a sen-

tir, ao que lhe resta perguntar, de novo e de novo nos sonetos:

Quem sou, que desconheço

O que sinto que sou? (“Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço”, 1933)

Quem quero que seja eu? Quem, no entrever

Do que fui, treva anônima e mesquinha? (“Abismo de ser muitos! Noite minha!”, 1929)

Quem desta Alma fechada nos liberta? (No Túmulo de Christian Rosencreutz III, 1935)

Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade?

(“Depois que o som da treva, que é não tê-lo”, 1932)

Para longe de Deus quem me transporta? ( “Em torno a mim os mortos esquecidos”, 1925)

Mas quem nos disse que Platão

Existiu realmente e de alma acesa? (“Pode ser que em Castelos encantados”, 1914)

Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente? (Soneto I de Álvaro de Campos,

Agosto de 1913 nas ficções do interlúdio)

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3.2.2. Indexicalidade & Paisagem

“A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida Pra o mistério (...) ”

(In: Passos da Cruz XIV, entre 1913 & 1916)

O que é uma paisagem?

Em geral, distinguimos as paisagens naturais das paisagens compostas com a

ajuda de mãos humanas. O poeta transcendentalista Ralph Waldo Emerson não faz

essa distinção em seu livro Nature (1836).

The charming landscape which I saw this morning is indubitably made up of some twen-

ty or thirty farms. Miller owns this field, Locke that, and Manning the woodland beyond.

But none of them owns the landscape. There is a property in the horizon which no man

has but he whose eye can integrate all the parts, that is, the poet. This is the best part of

these men’s farms, yet to this their warranty-deeds give no title.

(EMERSON, 1836)

Segundo Emerson, uma pessoa poderia dizer-se “dono da terra”, em posse de

uma escritura lavrada em cartório – mas só um poeta se poderia dizer “dono da pai-

sagem”, na medida em que seu olhar realizasse uma integração significativa das partes

presentes, compondo a paisagem num todo que transcende a mera soma das partes.

Portanto, mesmo os elementos mais naturais (intocados pelo homem) só ga-

nhariam o significado de “paisagem” quando sob um olhar poético – ante o que o

conceito de “paisagem” seria, a um tempo, algo natural (objeto além da vontade hu-

mana) e artificial (composição através da percepção e sensibilidade humanas).

Emerson (ibidem) desenvolve ainda mais essa relação entre ser humano e natu-

reza, através da ponte ou espelho da paisagem:

In the tranquil landscape, and especially in the distant line of the horizon, man beholds

somewhat as beautiful as his own nature.

Essa identidade entre mundo exterior e interior, estabelecida pelo olhar do poe-

ta, dificilmente encontrará, na língua Portuguesa, maior exemplo de realização do que

na obra de Fernando Pessoa – um verdadeiro paisagista de almas, absurdo, minimalista

e obsessivo em suas demarcações espaciais.

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Em Pessoa, há um paradoxo paisagístico: de um lado, não há quaisquer limites

entre o interior e o exterior do poeta, com fenômenos de toda sorte rompendo fron-

teiras e alfândegas da sensibilidade pessoana; de outro, justamente para indicar essa

ausência de limites, o poeta cultiva demarcações espaciais quase obsessivas, com uma

abundância de dêiticos e índices que se enovelam numa complexidade abissal. Logo,

a ausência de limites é indicada por uma superabundância de delimitações. Chama-

mos “Indexicalidade” a esse fenômeno lingüístico de demarcação paisagística.

Indexicalidade é um termo derivado de “índice, indicação, indicar”: índices são

signos empregados para apontar direções; por exemplo, as placas de trânsito são ín-

dices a direcionar nossas vias; menos concretos, mas ainda índices, são os diagramas

usados por arquitetos a planejar o curso de nosso olhar numa paisagem qualquer. O

arquiteto Johan van Lengen considera tanto mais interessante uma paisagem, quanto

mais índices ela compuser, para fazer fluir o caminho do nosso olhar.

[Figura 23: Paisagem desinteressante & interessante; In: LEGEN, 2004]

As paisagens pessoanas estão muito mais para o segundo tipo de paisagem

acima do que para o primeiro: se um desenho pleno em diversidade formal estimula

nosso olhar, gerando prazer estético, as paisagens dos poemas pessoanos, com sua

imensa complexidade indexical, frequentemente geram pasmo, descoberta, reflexão.

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Para além dos sonetos pessoanos, a indexicalidade fornece um pincel essencial

para a pintura surrealista das inúmeras paisagens do Livro do Desassossego (LD), assina-

do pelo semi-heterônimo Bernardo Soares:

O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto

barato, com o reles que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho.

(In: LD, frag. 54)

“Desde a cozinha ao sonho” sintetiza o atravessamento das sensações do poeta

despreocupadas com barreiras: com a fragmentação do ego pessoano, o que se en-

contrava dentro do indivíduo – agora transbordante – passa a integrar a paisagem.

Dentro & fora também formam um contínuo na célebre Chuva Oblíqua do ortônimo.

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

(In: Orpheu 2, 1915)

A paisagem exterior é atravessada pelo sonho interior, que, aliás, não tem limi-

tes, visto se tratar “dum porto infinito”: um elemento infinito passa a compor (ou

decompor) a paisagem original, rompendo-lhe os limites... E esta des-limitação atraves-

sante se reflete na sintaxe do segundo verso, que uma banca tradicional de Vestibular

consideraria no mínimo heterodoxa, com sua expressão “transparente de as velas”.

Sobre este verso, a professora Cleonice Berardinelli percebeu que o atravessar

semântico da paisagem também ocorre na própria sintaxe: se o mundo exterior e

interior do poeta se interpenetram, também o exterior (semântica) e interior (sintaxe)

do poema se imiscuem: no v.2, as possíveis expressões “é transparente como” & “tem

a transparência de” entrecortam-se, resultando numa formação sintática inusitada, em

que o verdadeiro regente não é um verbo, mas a metáfora da interseção:

E a cor das flores é transparente como + tem a transparência de as velas (...)

Habitando tanto a prosa quanto a poesia pessoana, a indexicalidade não é, por-

tanto, exclusiva dos sonetos de Pessoa; no entanto, neles ela é constantemente empre-

gada numa delimitação do sem-limite que, além de obsessiva, é também minimalista, dada

a camisa-de-força dos 14 versos. Na pequenez do soneto, o poeta aponta paisagens

infinitas, donde o título desta tese: Pequenos Infinitos em Pessoa.

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Como classificar as paisagens demarcadas nos sonetos pessoanos?

Inicialmente, tentamos distinguir as paisagens exteriores (com horizontes e ma-

res e luas...) das interiores (que ocorrem dentro do poeta, com indicações espaciais

tais como “em mim”, “no meu coração”, “na minha alma”). Não tardou, porém,

encontrarmos poemas em que as paisagens estão a um tempo dentro e fora do poeta.

Sonhei – quem não sonhara? – porque a tarde

Baixava o azul do céu e já se via

Uma estrela pequena, sem alarde,

Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria

Numa fogueira que não vejo arde,

Meu coração, que espera e não confia,

É como um poço aonde a água tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar Vendo ante mim este céu brando e o mar,

Ao longe um lago, parecer parado...

Sonho... Não sei de quê, mas foi de um bem

Que não sei se era algum ou se era alguém

E que só conheci como ignorado.

(Fernando Pessoa, 29-11-1934)

Se, no soneto acima, o primeiro quarteto descreve uma paisagem vespertina

com céu e estrela, no segundo quarteto a “tarde” se transforma no verbo tardar, apli-

cado ao sujeito água parada no poço do coração do poeta; logo, poderíamos dizer que a

paisagem inicialmente exterior se volta para o interior, exibindo frustrações (“Tudo

quanto mal fiz”) e fragmentos volitivos (“ou não queria”) de Pessoa. No 1º terceto,

o poço de água (que estava no coração no 2º quarteto) surge exterior: “Ao longe um

lago, parecer parado”. Na última estrofe, não são mais elementos naturais que o poe-

ta delimita, mas a vaga caracterização de seu sonho (algo interior), definido de manei-

ra paradoxal, i.e.: quanto mais qualificações restritivas Pessoa faz do sonho, mais

vago ele se torna. Analisemos em minúcias a indexicalidade deste segundo terceto:

Sonho... => vago sujeito de paisagem interior;

Sonho... não sei de quê => sujeito vago + qualificação que o torna mais vago;

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Sonho... não sei de quê, mas foi de um bem => sujeito vago + qualificação

que o torna mais vago + qualificação que o torna menos vago, visto que o “mas”

sugere uma oposição à vagueza e introduz uma especificação do sonho (de um bem);

Sonho... não sei de quê, mas foi de um bem que não sei se era algum ou se

era alguém => sujeito vago + qualificação que o torna mais vago + qualificação que

o torna menos vago + oração adjetiva que restringe o “bem”, mas que paradoxal-

mente o “restringe” tornando-o mais vago, pois o poeta não define tal bem positiva-

mente; ele indefine-o com uma dúvida: não sabe se o “bem” era coisa (algum) ou pes-

soa (ou alguém);

Sonho... não sei de quê, mas foi de um bem que não sei se era algum ou se era

alguém e que só conheci como ignorado => sujeito vago + qualificação que o

torna mais vago + qualificação que o torna menos vago + oração adjetiva que res-

tringe o “bem”, mas que paradoxalmente o restringe tornando-o mais vago + qualifi-

cação adicional do bem, que principia positivamente (eis um bem conhecido), mas ter-

mina outra vez em indefinição... pois tal bem só foi conhecido como algo desconheci-

do, ignorado: o poeta, enfim, socraticamente só sabe que nada sabe.

Neste soneto pessoano, portanto, a paisagem, que principia com elementos na-

turais exteriores, termina em demarcações de dúvidas interiores, com o poema osci-

lando, estrofe a estrofe, entre os mundos exterior, interior, exterior e outra vez inte-

rior. Como esse atravessamento de esferas parece ser mais regra que exceção nos sone-

tos pessoanos, terminamos por não classificar as paisagens entrevistas entre “exterio-

res” ou “interiores” – e apenas notamos os ciclos e tipos de sonetos que apresentam

mais ou menos o fenômeno da indexicalidade:

1. Os sonetos dos Passos da Cruz

2. Os 35 Sonnets

3. Alguns sonetos esparsos de Pessoa

4. Sonetos interseccionistas

5. Sonetos que definem o ser do poeta

Sobre o último grupo de sonetos – os que apresentam complexas delimitações

do ego e explosões do ser pessoano – criamos uma microleitura à parte, com a qual

encerramos a tese: o capítulo “o que sou?”, em que veremos como o poeta aborda a

grande indagação da Filosofia (que é o homem?), pintando paisagens da alma e do ego.

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A indexicalidade dos 35 Sonnets (grupo #2) está ligada à metalinguagem que es-

se mesmo grupo de sonetos apresenta em abundância – fenômeno que também tra-

taremos à parte, no capítulo a seguir (Metalinguagem). Em termos de indexicalidade,

os sonetos esparsos de Pessoa (grupo #3) não apresentam nada que já não se veja em

maior grau nos Passos da Cruz, os quais também abundam em interseccionismo (que de-

finiremos em breve) – donde, nesta seção, decidimos enfocar apenas o grupo #1 de

sonetos, a fim de aprofundar nossa leitura.

Consideramos o ciclo dos Passos da Cruz o exemplo máximo de indexicalidade

nos sonetos de Pessoa, pintando complexas paisagens exteriores-interiores, desde o

poema de abertura – e confessando-o em metalinguagem: “Aconteceu-me esta paisa-

gem...”. Visitemos em detalhe o paisagismo do primeiro Passo.

Esqueço-me das horas transviadas...

O outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros...

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

(...)

A última palavra do incipit pode ser lida como prenúncio de atravessamento de

paisagens, pois as horas trans-viadas são como as memórias (interiores) que, desviadas,

atravessam a paisagem (exterior) no primeiro poema de Chuva Oblíqua (que já visita-

mos). Portanto, se aqui o poeta se esquece dessas horas transviadas, seria de se espe-

rar o resultado de uma paisagem meramente exterior, não perturbada por memórias

errantes, intrometidas (pelas “horas transviadas”). De fato, os 3 versos que se se-

guem na primeira estrofe parecem pintar um retrato predominantemente exterior.

No entanto, por que haveria mágoas nos outeiros? Por que haveria assombro na

paisagem? Ora, ter-se-ia já o poeta esquecido de esquecer, traindo-se, e não tardando a

projetar horas transviadas na paisagem?

É na segunda estrofe que Pessoa se confessa paisagista:

Aconteceu-me esta paisagem, fadas

De sepulcros a orgíaco... Trigueiros

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

Os elementos desta paisagem não só misturam aspectos interiores aos exterio-

res, mesclando também toda sorte de fenômenos e sensações: personagens míticas

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(“fadas”), um adjetivo sensual (“orgíaco”), um alocutorário recipiente de metáfora

(“céus da tua face”) – todos esses elementos compõem a 2a estrofe, numa complexa

e inovadora sintaxe que por vezes beira o nonsense, como vem confessar a Volta:

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

Tendo sido sequestrada a lucidez, o poeta tange os limites do sentido e da loucura;

sensações ora impactam o mundo exterior (“um espasmo” gera “ilhas vistas”), ora se

tornam elas mesmas espaços, novas paisagens de alma: “no meu cansaço perdido entre

os gelos”. O poema termina anunciando a via sacra interior do poeta, cujos passos não

seguirão qualquer ordem clara, nem gerarão paisagens unívocas, sendo dissonantes.

Vejamos alguns desses passos, refletindo sobre as paisagens por ondem passam.

No Passo III, o poeta pinta todo um ambiente imperial, com armas e jóias e ti-

rano e povo e ovações, que se estendem por 12 dos 14 versos do soneto – interrom-

pendo sua pintura subitamente no v.13, com o atravessamento de uma outra paisa-

gem; nesta nova paisagem, um movimento se interrompe, e essa interrupção parece

desmanchar o mundo imperial:

Mas no teclado as tuas mão pararam

E indefinidamente repousaram.

Este atravessar de uma paisagem interrompendo outra é ilustração do interseccio-

nismo pessoano, “uma como que adaptação da poesia à visão cubista, antecipando o

grande movimento surrealista que logo despontaria” (CAVALCANTI FILHO, 2011: 324).

O próprio poeta define o interseccionismo com um diagrama, em que o introduz

entre duas outras possibilidades de experimentação literária.

[FIGURA 24: Diagramas interseccionistas; In: GALHOZ, 1960; ao lado, facsímile & na pág. seguinte, transcrição do facsímile]

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No desenho de Pessoa, há uma lista de 3 procedimentos poéticos (com exem-

plos de poemas), seguida de 3 diagramas a ilustrar, respectivamente, cada um dos

procedimentos poéticos enumerados. Nesse sentido, o sucedentismo (exemplificado

pelo poema Hora Absurda) é explicado pelo desenho de uma reta cortada por uma

série de segmentos diagonais, em sucessão.

O interseccionismo (ilustrado pelo poema Chuva Oblíqua) é o segundo fenômeno

diagramado: o mesmo referencial da reta é agora atravessado por dois segmentos

diagonais em sentidos opostos (formando um X), que encontram a reta inicial num

mesmo ponto, o qual constitui a intersecção de planos distintos.

O poeta ainda prevê um terceiro fenômeno literário, que ilustra com o poema

O Marinheiro, mas ao qual não confere um nome definitivo (chegando a cogitar a al-

cunha “integral”): o terceiro diagrama apresenta o atravessamento, não de segmentos,

mas de curvas ou hipérboles, que geram interseções mais complexas e fluidas que as

do interseccionismo. Talvez, entre os sonetos que estudamos, Os Passos da Cruz pos-

sam ilustrar esse fenômeno de super-interseccionismo. Como sapato a Cinderela, pensa-

mos que este diagrama possa caber ao sensacionismo, que o heterônimo Álvaro de

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Campos viria a encarnar: sensações fluidas a compor paisagens, sem dentro nem fora,

visto que tudo (incluindo Deus e o ser do poeta) seria feito de sensações...

O soneto V dos Passos da Cruz é bom exemplo dessa fluidez paisagística:

Tênue, roçando sedas pelas horas,

Teu vulto ciciante passa e esquece,

E dia a dia adias para prece

O rito cujo ritmo só decoras...

Um mar longínquo e próximo umedece

Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...

E, alada, leve, sobre a dor que choras,

Sem querer saber de ti a tarde desce...

Erra no anteluar a voz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

Meu império é das horas desiguais E dei meu gesto lasso às algas mágoas

Que há para além de sermos outonais...

O primeiro quarteto apresenta uma personagem e seu movimento, que ora pas-

sa tênue, ora adia sua ação...

O segundo quarteto atravessa a personagem do primeiro, transformando segmen-

tos dela em espaços, pelos quais o poema prossegue seu caminhar: dois elementos

exteriores, mar & tarde, interseccionam a personagem, atravessando, respectivamente

os seus lábios (que o mar umedece) e a sua dor (sobre a qual a tarde desce). Eis que os

espaços se complicam, com paisagens florescendo tanto à flor da pele da personagem

inicial, quanto em relação a uma sua sensação (de dor).

A Volta do v.9 introduz imagens que, embora nada-usuais, parecem apenas de-

limitar uma paisagem simplesmente exterior:

Erra no anteluar a voz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Tais versos lembram o refrão da Senhora de Brabante (do poeta Gomes Leal), cu-

jo estado de alma, a chorar e chorar, se refletia na paisagem:

– Ao luar, sobre os tanques chora a agua...

– Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

(LEAL, 1875)

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Voltando aos vs. 9 e 10 de Pessoa – e reparando bem para eles –, notamos que

a paisagem aparentemente exterior apresenta já indícios de indefinição: a “voz dos

tanques” erra, isto é, perambula num ambiente quase de luar... a errância e a antecipa-

ção do luar sendo signos de vagueza... Além disso, a “quinta imensa” do v.10 não

tem tamanho – a sua imensurabilidade também emprestando imprecisão ao poema.

Eis que a latente vagueza desses dois versos se aprofunda, gerando estranha-

mento sintático, no v. 11: “Na treva vaga ao meu ter dor estanques...” Como analisar

os índices dessa frase? Que sensações ou coisas são “estanques”? As águas? Que

“treva vaga” é esta? Ou, mais especificamente, que vagueza é a sua, que se define de

forma absolutamente vaga, com sintaxe contorcida no espaço de o poeta ter dor?

Ora, aqui, Pessoa parece seguir à risca um lema do sensacionismo, segundo o

qual “a arte (...) consiste na adequação, tão exacta quanto caiba na competência artís-

tica do autor, da expressão à coisa que quer exprimir” (In: LIND & COELHO, 1966).

Isso quer dizer que uma sensação vaga deve ser expressa vagamente, como o poeta es-

clarece ao tratar da “ideação vaga” em seu ensaio sobre A Nova Poesia Portuguesa em

seu Aspecto Psicológico (1912), antecipando o sensacionismo:

Ideação vaga é coisa que é escusado definir de exaustivamente explicante que é de per

si o mero adjectivo; urge, ainda assim, que se observe que ideação vaga não implica

necessariamente ideação confusa, ou confusamente expressa (o que aliás redunda, feita

uma funda análise psicológica, precisamente no mesmo). Implica simplesmente

uma ideação que tem o que é vago ou indefinido por constante objecto e assunto,

ainda que nitidamente o exprima ou definidamente o trate; sendo contudo evidente

que quanto menos nitidamente o trate ou exprima mais classificável de vaga se tor-

nará. Uma ideação obscura é, pelo contrário, apenas uma ideação fraca ou doentia.

Vaga sem ser obscura é a ideação da nossa actual poesia; vaga e frequentemente —

quase caracteristicamente obscura é [a] do simbolismo francês (...).

No terceto final, a pincelada derradeira da paisagem é outra des-limitação de

Pessoa, visto que o gesto dado pelo poeta é “lasso”, lassíssimo, pincelando algo “para

além de sermos outonais...” Ora, a única coisa demarcada com um gesto “para além

de sermos outonais” é o infinito – tudo o que há para além da vaga referência repre-

sentada por “sermos outonais”.

Prossigamos em nossa via. Os Passos VII e VIII adotam, desde o incipit, um

tom de possibilidades vagas, propensas a interseções de paisagens sensacionistas – o

que se manifesta no uso do modo subjuntivo para abrir ambos os sonetos:

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Passo VII: “Fosse eu apenas, não sei onde ou como”

Passo VIII: “Ignorado ficasse o meu destino”

Essas duas orações optativas (com verbo no subjuntivo) indicam desejos inde-

finidos, projetam espaços desconhecidos, demarcam locais ilimitados: a primeira de-

las diz não saber como localizar sua aspiração, e a segunda principia desejando um desti-

no ignorado (isto é, sem lugar conhecido ou localizável).

Sigamos os Passos finais: XII, XIII e XIV.

Passos da Cruz – XII

Ela ia, tranqüila pastorinha,

Pela estrada da minha imperfeição.

Seguia-a, como um gesto de perdão, O seu rebanho, a saüdade minha...

“Em longes terras hás-de ser rainha”

Um dia lhe disseram, mas em vão...

Seu vulto perde-se na escuridão...

Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,

E em terras longe do que eu hoje sinto

Serás, rainha não, mas só pastora –

Só sempre a mesma pastorinha a ir,

E eu serei teu regresso, esse indistinto

Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

No Passo XII, exterior e interior estão totalmente mesclados; já no primeiro

quarteto, a pastorinha, habitante do mundo exterior (pelo qual ia tranqüila), súbito ca-

minha numa estrada dentro do poeta (v.2). A equivalência entre exterior e interior é

sintetizada pela metáfora do v.4, em que os ambientes se atravessam:

O seu rebanho, a saüdade minha...

[objeto exterior, símbolo da pastora] = [sensação interior, símbolo do poeta]

No 2o quarteto, os vs. 5, 6 e 7 tratam apenas do mundo da pastora; o v.8, po-

rém, mais uma vez confronta duas dimensões, achegando a pastora ao poeta:

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Só sua sombra ante meus pés caminha...

[a sombra, símbolo da ausência da pastora] = [é o que caminha ante os pés do

poeta, i.e., o poeta persegue uma sombra, mas o persegui-la faz com que ele mesmo

pareça uma sombra, sombra da sombra, num emaranhar de pertencimentos de som-

bras de um mundo a indivíduos de outro, numa palavra: interseccionismo – ou, ao me-

nos, um sucedentismo (dadas as sombras em sucessão), fenômeno poético também

previsto na já citada Figura 24.]

Antes de passar aos tercetos, voltemos ao v.2: “Pela estrada da minha imperfei-

ção”. Que estrada é essa, que se define por uma indefinição, visto que especificar

uma estrada como sendo “da minha imperfeição” é torná-la imensamente vaga...?

Também nos tercetos, a indexicalidade define espaços indefinidos:

“E em terras longe do que eu hoje sinto” (v.10): quão longe é isto?

“Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...” (v.14): que geografia é esta?

Se, nos quartetos, havia uma aproximação das esferas pastoril e poética, nos

tercetos esses mundos parecem afastar-se: no v.10, as terras da pastorinha estão já

longe do que o poeta sente e, no v.14, há mesmo um abismo entre o sonho (a pastori-

nha) e o porvir (o futuro) de Pessoa.

O Passo XIII é uma profissão de fé poético-sensacionista de Pessoa, que fende

espaços dentro do próprio poeta, criando uma geografia de ego, alma e divindade...

geografia a que voltaremos ao tratar da pergunta “O que sou”, ao fim desta tese.

No Passo final (XIV), o poeta associa o plano do fazer poético a uma paisagem de

sonho, amalgamando dois temas constantes em Pessoa: sonho & paisagem... e, enri-

quecendo o espaço entre esses espaços, surge o mistério, palavra que se repete, com

essa repetição ganhando importância.

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), pra além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

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A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Pra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

Fernando Pessoa, entre 1913 e 1916.

Visitemos as ocorrências da palavra “mistério” para delinear a misteriosa geo-

grafia do poema. Em sua primeira aparição, “mistério” é o sujeito do segundo quar-

teto, ao redor do qual gira uma série de contextualizações:

Modo: o mistério “Apareceu já sem disfarce de música longínqua”, ou seja, ele

agora é algo para além da poesia (a “música”), estando “para além dos palmares de

sonho” do poeta, algo que só surge quando a voz cala (“a voz que do meu tédio

nasce parou”);

Metáfora: esse mistério é “asa nos ares”; não o canto (pois o poeta cala), mas a

asa do pássaro é o mistério, imagem que seria trabalhada por dois poetas latino-

americanos: Pablo Neruda definiria a própria palavra como “ala del silencio”, eviden-

ciando, a um tempo, a importância do espaço em branco dentro do qual surge o po-

ema, e os limites do que se pode cantar (e é mesmo para além desses limites que ago-

ra aponta o soneto pessoano); também o poeta Ferreira Gullar preferiu a asa à voz

passarinheira, a fim de definir uma querida voz:

Sua voz quando ela canta

me lembra um pássaro mas

não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando.

(GULLAR. “Uma Voz”,; In: Dentro da Noite Veloz, 1975)

Qualificação & Comparação: surge no v.7, finalmente explícito, o sujeito mis-

tério, silente (qualificação) como os mares (comparação); não são mares quaisquer, mas

mares calmíssimos, “quando morreu o vento e a calma pasce”, momento imóvel em

que tudo se pode refletir no mar, luas e mistérios.

Esta é a primeira ocorrência do mistério no poema, sinal de algo indizível para

além da poesia, algo surgido justamente no calar do fazer poético... num espaço inde-

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finido, talvez indefinível, dada a incrível dificuldade de se apontar para ele. Pessoa

tenta-o na Volta, numa abundância indexical a delimitar esta complexa geografia:

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Pra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

A paisagem longínqua gerada pelos poemas de Pessoa ganha uma função: ger-

minar o silêncio que vai dar no mistério, o segundo mistério, que só se revelará no

fim do soneto, após uma série de indicações dentro de indicações da estrofe final...

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

Perto ou longe deste mundo, em parte indefinida pois, está, segundo Pessoa,

outro mundo – “o informe mundo onde há a vida”. Este mundo vital não é o fim da

enumeração ou do mistério, pois ainda há “Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...”

Que lugar é este em que surge Deus ao fim de tudo?

Como dizê-lo, se, apenas para indicá-lo, Pessoa necessitou da complexa in-

dexicalidade de um ciclo inteiro de 14 poemas? Apostos sobre apostos (apostos a

apostos)... o poeta acumula cuidadosos traços, a fim de pintar sua geografia de indi-

cações além do modo indicativo, paisagens de sonho subjuntivas, além da própria fala e do

poema, encerrando o ciclo de pinturas da alma que são os Passos da Cruz: na paisa-

gem, protagoniza o silêncio de um horizonte pleno de sentido, plácido mar imóvel

“como uma voz de fonte que cessasse”.

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3.2.3. Metalinguagem & Incomunicabilidade

“É tão forte o que sinto, o que quero dizer, Que o não posso exprimir neste pobre soneto...”

(In: Soneto Aos Anos do Miguel, 1902)

“Metalinguagem” é uma palavra criada entre 1950 e 1960 pela afixação do ra-

dical grego “meta” à palavra “linguagem”. “Meta” significa “além” e é a mesma par-

tícula presente nos vocábulos “metafísica”, “metamorfose”, “metáfora” – respecti-

vamente “além da física”, “além da forma”, “levar além ou trans-portar”. Quando a

afixamos à palavra “linguagem”, a partícula meta implica algo “além da linguagem”;

metalinguagem, portanto, é uma linguagem além da linguagem, sistema de signos que se

usa para falar de uma outra linguagem, ou da própria linguagem.

Por exemplo, em Lógica se emprega uma “metalinguagem” extremamente rigo-

rosa para tratar das linguagens naturais e, assim, identificar e evitar ambigüidades.

Em Poesia, porém, metalinguagem é freqüentemente usada no sentido oposto ao da

Lógica – para gerar, em vez de evitar, essas mesmas ambigüidades, criando composi-

ções em abismo em que a linguagem se refere a si mesma, num labirinto de espelhos.

Objeto cotidiano de metalinguagem é o dicionário, em que todas as palavras

usadas para definir palavras são também palavras definidas pelo dicionário... M. C.

Escher ilustrou nossa condição de seres metalinguísticos num famoso desenho

(Drawing Hands, 1948): uma detalhada mão direita empunha um lápis a desenhar uma

outra mão com lápis, que, por sua vez, está a desenhar a primeira mão que a desenha,

infinitamente, isto é... metalingüisticamente. [FIGURA 25, abaixo]

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O soneto, em sua natureza reflexiva, não poderia ter ficado à margem de aven-

turas metalinguísticas, gerando toda uma tradição de sonetos sobre sonetos (FINCH,

2009). Em verdade, séculos antes da invenção da palavra “metalinguagem”, sonetis-

tas como Gregório de Matos (1623-1696) já usavam a linguagem para referir-se à

linguagem, por exemplo neste poema do “Boca do Inferno”, apelido de Gregório:

Um soneto começo em vosso gabo; Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo: A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei.

Trata-se de uma receita de como fazer um soneto (em forma de soneto), um

dos modos de metalinguagem também cultivados por Fernando Pessoa, que com 14

anos recém-completados já se aventurava pelos abismos da linguagem, escrevendo

um peculiar soneto aos anos do seu primo Miguel.

Eu quisera mandar brilhante saudação Ao meu primo Miguel, ao primo pequenino, Em rima suave e pura, em verso alexandrino Que formasse talvez angelical canção.

Eis o primeiro quarteto, em que Pessoa, com a mesma facilidade de Gregório

de Matos, declara em soneto sua intenção de fazer um soneto. No entanto, logo na

segunda estrofe, o poema de Pessoa se distingue do de Gregório (alguns dirão que se

torna realmente pessoano), pois o poeta passa a dizer, em soneto, como não lhe é

possível dizer em soneto o que gostaria de dizer...

Mas é de mais p’ra mim, não ‘stá na minha mão À lira divinal tirar um som divino; A rima está quebrada, o verso não é fino, Mas, aceita-o, Miguel, pois é do coração. Terminemos enfim; diz o antigo ditado Que quem dá o que tem não é a mais obrigado E eu nada mais te dou que um pálido esboceto Do que em verso melhor quisera descrever. É tão forte o que sinto, o que quero dizer, Que o não posso exprimir neste pobre soneto...

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Como pode o poeta exprimir que não se pode exprimir? Contradição? Ora, se há

um soneto, sabemos que Pessoa logra exprimir algo, isto é: consegue dizer – em bri-

lhante saudação em forma de soneto – a mensagem de que não consegue dizer uma

brilhante saudação em forma de soneto. Não se trata de simples contradição, mas de

uma complexa realização de metalinguagem, com a complicação de Pessoa acrescen-

tar um novo nível de significado à sua receita de soneto: se Gregório de Matos faz

um soneto bem-sucedido sobre como fazer um soneto, Pessoa faz um soneto frus-

trante, sobre como não consegue fazer um soneto suficientemente bom para dizer o

que queria dizer em soneto – só que, paradoxalmente, Pessoa acaba fazendo o exce-

lente soneto em que diz tudo isso.

Eis que o tema da metalinguagem, em Pessoa, é indissociável da pergunta filo-

sófica “O que se pode dizer ?”, movendo o tema da Incomunicabilidade. Para o poeta, a

idéia de “meta-linguagem” acarreta a exploração dos limites da linguagem: como po-

deríamos estar “além da linguagem”, se este além ainda precisa ser dito em linguagem?

Ou seja, Pessoa usa metalinguagem para explorar os limites do que se pode dizer.

Ao investigar a metalinguagem em Pessoa, de fato logo notamos que os sone-

tos que a apresentam são os mesmos em que surge o tema da Incomunicabilidade; antes

de ilustrarmos isso, porém, comecemos do começo, isto é, mapeando nossa aborda-

gem. Reconhecemos 4 grandes loci de cultivo da metalinguagem nos sonetos:

• sonetos esparsos do ortônimo, em Português (como o “a Miguel”); • os 35 Sonnets do ortônimo; • o ciclo Passos da Cruz do ortônimo; • os sonetos de Álvaro de Campos, como um todo.

Nesses âmbitos, identificamos quatro tipos de manifestação da metalinguagem

(doravante “meta-tipos”), por vezes superpostos:

• META-TIPO 1: quando o poeta irrompe dentro do soneto;

• META-TIPO 2: quando o fazer poético surge dentro do poema (por exemplo, quando há um soneto dentro do soneto);

• META-TIPO 3: quando ocorre uma composição em abismo de outro fe-nômeno (algo diferente do poeta ou do fazer poético surgindo den-tro do poema; por exemplo: um sonho dentro de um sonho);

• META-TIPO 4: quando um poema diz que não consegue dizer (Inco-municabilidade).

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Visitemos, pois, os diversos modos em que a metalinguagem se apresenta em

cada um dos 4 loci que observamos em Pessoa.

Desde o incipit do primeiro soneto, os 35 Sonnets confessam sua metalinguagem,

com Pessoa logo anunciando seu fazer poético (meta-tipo 1): “Whether we write or

speak (...)” (Sonnet I). Este mesmo soneto introduz uma idéia que parece ser a grande

tese de todo o livro de 35 sonetos: a incomunicabilidade como condição (ou maldição)

humana, seja qual for o meio intentado de comunicação; Pessoa anuncia esta idéia

paradoxalmente, é claro, visto que a comunica muito bem (meta-tipo 4). Para ilustrar

semelhante idéia, o poeta emprega, em abundância, composições em abismo (meta-

tipo 3), como o estonteante estrambote do primeiro soneto:

We are our dreams of ourselves, souls by gleams, And each to each other dreams of others’ dreams.

Quantos níveis de metalinguagem haverá em sermos seres que sonham sermos

os sonhos de outros seres sonhantes – e sermos capazes de enunciar isto em soneto?

Coisas dentro de outras coisas, fenômenos embutidos em fenômenos, os ele-

mentos que habitam os 35 Sonnets são bonecas russas:

Appearance even as appearance lies (In: Sonnet II)

Shall that of me that now contains the stars Be by the very contained stars survived?

(In: Sonnet VII)

How many masks wear we, and undermasks, Upon our countenance of soul, and when, If for self-sport the soul itself unmasks, Knows it the last mask off and the face plain? (…) The true mask feels no inside to the mask But looks out of the mask by co-masked eyes. (…) And, when a thought would unmask our soul’s masking, Itself goes not unmasked to the unmasking.

(In: Sonnet VIII) Oh to be idle loving idleness! (…) Repurposed for next day’s repurposing.

(In: Sonnet IX) And, as the storm drives from the storm, our heart Within the peril disimperilled grows; A port is near the more from port we part –

(In: Sonnet XI)

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And draw my sense of mystery’s horror from Seeing no mystery’s mystery alone.

(In: Sonnet XII) My self my love and no thought love to prove. What consciousness makes more by consciousness,

(In: Sonnet XIII) etc…

Só cobrimos um terço dos 35 Sonnets, mas os excertos já são mais que suficien-

tes para apontar um claro padrão de meta-tipo 3. Os sonetos pessoanos são só peque-

nos na forma de 14 versos, porque em profundidade são abissais, sempre abrindo

algo dentro de si mesmos...

Note-se a riqueza do Sonnet VIII acima, que abunda em meta-tipo 3, evocando o

tema de heteronímia, com sua vertiginosa espiral de máscaras dentro de máscaras...

Detenhamo-nos, agora, sobre o Sonnet III, que parece resumir os três outros ti-

pos de metalinguagem em Pessoa (meta-tipos 1, 2 e 4).

When I do think my meanest line shall be More in Time’s use than my creating whole, That future eyes more clearly shall feel me In this inked page than in my direct soul; When I conjecture put to make me seeing Good readers of me in some aftertime, Thankful to some idea of my being That doth not even my with gone true soul rime; An anger at the essence of the world, That makes this thus, or thinkable this-wise, Takes my soul by the throat and makes it hurled In nightly horrors of despaired surmise, And I become the mere sense of a rage That lacks the very words whose waste might ‘suage.

Há meta-tipo 1 desde o incipit, em que o eu-lírico se denuncia como poeta e autor

dos versos; logo se segue meta-tipo 2, pois o eu-lírico passa a imaginar o impacto futu-

ro do seu fazer poético... A incomunicabilidade (meta-tipo 4) surge no 2o quarteto: o poeta

afirma que a idéia do seu ser que acaso gratifique um leitor futuro (“readers...thankful

to some idea of my being”) nem mesmo rima com a sua vera alma então distante

(“doth not even my with gone true soul rime” – “even” lido como monossílabo

“ev’n’).

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Há algo mais no soneto... algo também metalinguístico. Trata-se de uma com-

plexa intertextualidade com o soneto XVII de William Shakespeare, por sua vez um

exemplo magistral de metalinguagem. Pessoa faz com Shakespeare o que o Soneto

Aos Anos do Miguel faz ante o soneto de Gregório de Matos, a saber: tornar uma me-

talinguagem de sucesso numa metalinguagem de frustração.

Ponhamos um soneto ao lado do outro:

Sonnet III (Pessoa, 1918) Sonnet XVII (Shakespeare, circa 1598)

When I do think my meanest line shall be More in Time’s use than my creating whole, That future eyes more clearly shall feel me In this inked page than in my direct soul; When I conjecture put to make me seeing Good readers of me in some aftertime, Thankful to some idea of my being That doth not even my with gone true soul rime; An anger at the essence of the world, That makes this thus, or thinkable this-wise, Takes my soul by the throat and makes it hurled In nightly horrors of despaired surmise, And I become the mere sense of a rage That lacks the very words whose waste might ‘suage.

Who will believe my verse in time to come, If it were fill’d with your most high deserts? Though yet heaven knows it is but as a tomb Which hides your life, and shows not half your parts. If I could write the beauty of your eyes, And in fresh numbers number all your graces, The age to come would say “ This poet lies; Such heavenly touches ne’er touch’d earthly faces.” So should my papers, yellow’d with their age, Be scorn’d, like old men of less truth than tongue, And your true rights be term’d a poet's rage And stretched metre of an antique song: But were some child of yours alive that time, You should live twice, – in it, and in my rhyme.

Tal como Shakespeare, Pessoa volta-se para o futuro, conjecturando como se-

ria a recepção da sua poesia. Entretanto, enquanto Shakespeare imagina que os vin-

douros escarneceriam de seus versos, neles vendo meras hipérboles, é Pessoa quem

escarnece da recepção de sua própria obra, pois julga não ter conseguido transmitir o

que ansiava, ante o que qualquer consagração futura seria surpreendente, por louvar

um esforço frustrado; Pessoa em verdade se enraivece, empregando justamente o

mesmo termo que, em Shakespeare, os leitores hipoteticamente futuros atribuiriam

ao poeta (“rage”). A intertextualidade com o célebre poema de Shakespeare já havia

sido tecida antes dos 35 Sonnets, por Alexander Search, em dois de seus sonetos.

Nos poemas Sub Umbra & Perfection, a linguagem de Search é shakespeariana – e

aponta para imagens e sons do mesmo Soneto XVII do mestre inglês; Sub Umbra can-

ta “such as I ne’er can grasp”, ecoando o famoso verso “such heavenly tones ne’er

touched earthly faces” de Shakespeare, incluindo a mesma forma sincopada de “ne-

ver”.

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Tanto o soneto XVII de Shakespeare quanto o Perfection de Search tratam da

captura da Perfeição pelos versos, apresentando perspectivas opostas: se Shakespeare

acredita em conseguir capturar a perfeição do receptor de seus versos, ainda que as

gerações futuras os julguem exagerados, Search desacredita seus poderes de apreen-

der em verbo a perfeição sonhada e sentida... a perfeição, em Pessoa, embora real-

mente sentida, é Incomunicável, não obstante a luta dos versos em busca de refleti-la.

Não só em Inglês o ortônimo explora vias de metalinguagem e realiza intertex-

tualidades com Shakespeare. O poema VII dos Passos da Cruz de Pessoa evoca a

imagem de um poeta subitamente obsoleto pela passagem do tempo (presente no

mesmo soneto XVII shakespeariano):

Fosse eu uma metáfora somente Escrita nalgum livro insubsistente Dum poeta antigo, de alma em outras gamas (...)

(In: Passos da Cruz VII)

O soneto seguinte dos Passos da Cruz (nº VIII) introduz a mesma incomunicabili-

dade cara aos 35 Sonnets (vide o v.4 abaixo):

Ignorado ficasse o meu destino Entre pálios (e a ponte sempre à vista), E anel concluso a chispas de ametista A frase falha do meu póstumo hino...

(In: Passos da Cruz VIII)

Os belíssimos dois últimos Passos... (XIII & XIX) apresentam linhas de meta-

linguagem especial, versos que são exatamente o que dizem. O v.3 do Passo XIII diz

“E as bruscas frases que aos meus lábios vêm” – e se trata de uma brusca frase vinda

ao poema. O incipit do Passo XIV anuncia “Como uma voz de fonte que cessasse” e

a voz do manancial poético de Pessoa realmente se prepara para cessar momentane-

amente, encerrando a obra prima do ciclo de 14 sonetos, 14 vezes 14 versos... numa

multiplicação numerológica que pode ser vista como outro grau de metalinguagem.

Abunda a metalinguagem nos sonetos de Álvaro de Campos, ao ponto de cogi-

tarmos: Campos parece só empregar a fórma do soneto para espicaçar-lhe a fôrma.

Mesmo quando os versos parecem inocentes, por vezes o título confessa as intenções

metalinguísticas do heterônimo, como no poema “Ah, um soneto...” (de 1931).

Na segunda parte do ciclo Costa do Sol, Campos adiciona breves comentários

gramaticais aos versos, abrindo uma dimensão de análise metalinguística ao poema.

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Deixo, deuses, atrás a dama antiga (Com uma letra diferente fixo O absurdo, e rio, porque sofro). Digo: Deixo atrás quem amei, como um prefixo... Outrora eu, que era anónimo e prolixo (Dois adjectivos que de há muito sigo)

(In: Costa do Sol II)

Quem o poeta amou torna-se um prefixo – e o heterônimo define-se como um

par de adjetivos. Em verdade, como personagem em Pessoa, Campos é mesmo feito

de pura linguagem, e o soneto confessa tal existência em meta-linguagem.

Como aponta BERARDINELLI (1999) sobre o mesmo soneto, os versos come-

çam com um jogo intertextual com Camões, remetendo a Os Lusíadas (I: 26): “Deixo,

Deuses, atrás a fama antiga”. Apenas um fonema é mudado (“fama” vira “dama”),

imprimindo o tom a um tempo humoroso e grave de Campos, parodiando Camões

em um motivo nada leve: uma despedida. Despedindo-se do passado, o poeta con-

vida Camões no incipit e invoca Horácio num terceto, concluindo com um mar que

permanece... ainda que o homem queira seguir adiante.

Os textos de Camões e Horácio convocados ao poema são linguagens alheias

embutidas no soneto, com o texto de Campos parodiando-os em meta-linguagem, en-

cimando-os como camada final de uma sedimentação poética... a resumir a comple-

xidade temporal do Modernismo.

Acresce a gravidade da paródia de Campos o fato de as palavras originais escri-

tas por Camões serem pronunciadas por Júpiter no Canto I de Os Lusíadas. Decerto,

a audácia de Campos não escolheria parodiar menos que o deus dos deuses!

Se no soneto II da Costa do Sol a metalinguagem tomava emprestados termos

do vocabulário gramatical, no poema III é a criação poética que se entrelaça ao as-

sunto do poema... tal qual no já visitado Soneto Aos Anos do Miguel, mas sempre com o

tom brutal de Campos, que não escreve, mas cospe seus sonetos.

No teu ar de dormir nessa cadeira (Reparo agora, feito o exorcismo, Que o terceiro soneto ergui do abismo) És sempre a mesma, anónima – terceira –. Ó grande mar atlântico, desculpa! Cuspi à tua beira três sonetos. (...)

(In: Costa do Sol III, 1932)

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Provocando ainda mais os limites de seus sonetos, Campos comete erros poé-

ticos propositais em pelo menos três deles, confessando-os em rica metalinguagem.

Meu coração, o almirante errado Que comandou a armada por haver Tentou caminho onde o negou o Fado, Quis ser feliz quando o não pôde ser. E assim, /*pechado/, absurdo, postergado, Dado ao que nos resulta de se abster, Não foi dado, não foi dado, não foi dado E o verso errado deixa-o entender.

(In: “Meu coração, o almirante errado”, s.d.)

Note-se o jogo metalingüístico e bem-humorado do v.7, em que o poeta pro-

positalmente quebra o pé do verso, fazendo-o hendecassílabo, enquanto o restante do

soneto é todo decassílabo; logo em seguida, no v.8, o poeta volta sua reflexão sobre o

crime poético, absolvendo-o (“E o verso errado deixa-o entender”).

Noutra brincadeira metalingüística, Campos surpreende-se a escrever “como

um poeta”!

Estou ‘screvendo sonetos regulares (Ou quase regulares) como um poeta... Mas se eu dissesse a alguém a dor completa Que me faz ter tais gestos e tais ares,

(In: “Estou ‘screvendo sonetos regulares”, s.d.)

Jogo similar faz o semi-heterônimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego

(In: QUADROS, 1986), em que o escritor também se surpreende a fazer agora prosa:

“Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que esquecido es-tendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui eu assim!…”

Voltando ao poema de Campos, se ele fosse um soneto decassilábico tradicio-

nal, os dois versos iniciais seriam lidos da seguinte forma: a) as vogais iniciais de “es-

tou” e “escrevendo” seriam suprimidas (no ms., vê-se que “ ‘screvendo” não parece

mesmo ter a vogal inicial) e; b) “poeta” no v.2 seria palavra dissílaba: “poé-ta” (o “o”

tornando-se mera semivogal de um ditongo crescente).

No entanto, trata-se de um soneto metalingüístico de Campos, heterônimo

subversor de sonetos, que logo no v.2 diz que seus versos são “quase regulares”,

dando-nos a opção de lermos as duas primeiras linhas como hendecassílabos em vez

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de decassílabos... uma quebra de métrica que, por ser “errada”, estaria certíssima se-

gundo a metalinguagem – afinal os sonetos de Campos são “quase regulares”.

Nada regular é o poema P-há do heterônimo. Como observou o perspicaz ou-

vido da Prof a. Cleonice Berardinelli, o hífen de “P-há” indica a tensão de um saco de

papel prestes a explodir – e que de fato explode no v.11 do poema, quando “Pá” já

aparece sem a trava da hifenização.

Hoje, que sinto nada a vontade, e não sei que dizer, Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que qu'rer, Quero escrever o meu epitáfio: Álvaro de Campos jaz Aqui, o resto a Antologia Grega traz... E a que propósito vem este bocado de rimas? Nada... Um amigo meu, chamado (suponho) Simas, Perguntou-me na rua o que é que estava a fazer, E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber dizer. É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo. Mas às vezes rimar é preciso. Meu coração faz pá como um saco de papel dado Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado. E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente E eu acabo este poema indeterminadamente.

(In: P-há, 1929)

Embora não dividido em estrofes, este poema contém exatamente 14 versos

com rimas emparelhadas – podendo ser considerado um soneto a Álvaro de Campos,

atentando-se para o fato de que, em Campos, a existência de rimas quase que exclusi-

vamente indica um soneto. No entanto, a métrica é nada-convencional (o que talvez

só reforçe o estilo de Campos). Escandindo o poema, encontramos a média de 15

sílabas por linha, com uma forte quebra no verso 10 (uma tardia “Volta”?):

1º par de versos: 15-15 2º par de versos: 17-12 3º par de versos: 14-14 4º par de versos: 13-17 5º par de versos: 14-9 6º par de versos: 14-15 7º par de versos: 16-15

A média de 15 sílabas/verso classificaria o soneto como “mais-que-bárbaro”,

para usar uma terminologia de metrificação que, sem dúvida, agradaria a Campos. A

quebra da média-métrica no verso 10 leva ao ritmo do poema o significado do verso:

o leitor chega à rima mais depressa do que o fluir do texto até ali o levaria a esperar:

“Mas às vezes rimar é preciso”, subitamente preciso.

Vejamos um último soneto em que Pessoa navega em metalinguagem – o últi-

mo soneto (e poema) de Campos, simbolicamente intitulado Regresso ao Lar.

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Há quanto tempo não escrevo um soneto Mas não importa: escrevo este agora. Sonetos são infância, e, nesta hora, A minha infância é só um ponto preto, Que num imóbil e fatal trajecto Do comboio que sou me deita fora. E o soneto é como alguém que mora Há dois dias em tudo que projecto. Graças a Deus, ainda sei que há Quatorze linhas a cumprir iguais Para a gente saber onde é que está... Mas onde a gente está, ou eu, não sei... Não quero saber mais de nada mais E berdamerda para o que saberei.

Há intertextualidade deste soneto com o famoso poema homônimo de Guerra

Junqueiro: além do mesmo título, Campos toma a abertura emprestada do autor de

Os Simples (1892): “Ai, há quantos anos que eu parti chorando”, fórmula nostálgica

que Campos a um tempo recupera e ironiza. Guerra Junqueiro é influência confessa

em Pessoa que, a certa altura, chegou a qualificá-lo como o maior poeta Português,

maior até mesmo que Camões. Ainda que Pessoa viesse a relativizar esta afirmação

num momento futuro, a influência de Junqueiro fica.

Há, porém, uma intertextualidade mais profunda, com um soneto de Camilo

Pesanha que Pessoa considerava “o maior de todos os seus [os dele, Pessanha], e é

sem dúvida um dos maiores que tenho lido – Regresso ao Lar”. Isso escreveu Pes-

soa em carta a Pessanha, convidando-o a publicar alguns de seus sonetos na revista

Orpheu. No entanto, Pessanha não intitulava seus sonetos senão pelo incipit e “Re-

gresso ao Lar” teria sido apenas um modo breve de Pessoa referir-se ao poema que

só pudemos identificar após um detetivesco cruzamento de referências. Trata-se do

soneto “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, em que Pessanha

(1920) retrata a terrível loucura de sua mãe regressando ao lar.

Tendo em mente essas interferências textuais, com seus dois lares tão distintos,

perguntemos: a que lar estaria Campos regressando?

Note-se a data do soneto: 1935. Trata-se do mesmo ano em que Pessoa, por

uma crise hepática, seria “deitado fora do comboio da vida” (para usar uma imagem

camposiana) – nove meses após a composição de Regresso ao Lar. O conhecimento

deste fato (da morte iminente de Pessoa) parece convidar-nos a ler o “Lar” como

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algo além-vida (tal como no soneto ortônimo Abdicação, em que há um regresso a um

Lar além...

Se não podemos afirmar profeticamente os significados que o “Lar” ganharia

meses após a escrita do soneto, decerto podemos ler o “Lar”, bem menos metafisi-

camente – e mais metalingüisticamente, como a própria forma do soneto, a que o heterô-

nimo regressa, após tanto tempo sem a cultivar... a forma aparentemente segura do

soneto, a casa dos 14 versos em que Campos e Pessoa tão à vontade sabiam estar.

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3.3. Temas Filosóficos

3.3.1. O que penso & sinto & sonho “Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?”

(In: No Túmulo de Christian Rosencreutz III, 1935)

A primeira pergunta da Filosofia, segundo Immanuel Kant, é “O que podemos

pensar”? Os limites do pensamento foram investigados pelo filósofo alemão em sua

Crítica da Razão Pura. Também Fernando Pessoa espicaça as fronteiras do pensamen-

to; poderíamos mesmo dizer que Pessoa e seus heterônimos pensam o tempo todo;

até mesmo Alberto Caeiro, afirmando que “pensar é essencialmente errar”, pensa o

tempo todo em não pensar. Talvez não nos seja possível escapar à prisão do pensa-

mento errante, pelo menos não através do pensamento puro – o que, aliás, foi a con-

clusão de Kant ao criticar a razão pura.

Em Pessoa, essa investigação do pensamento mescla-se a duas outras esferas da

experiência humana: o sentir & o sonhar – que, confrontados com o pensamento,

dão à luz as duas questões que abordaremos nesta microleitura:

1. Pensar vs. Sentir: qual a melhor via de busca da Verdade?

2. Sonhar entre Pensar & Sentir: o mundo é sonho ou realidade?

Tratemos primeiro do pensamento e suas relações com a sensação. Ao ten-

tarmos isolar a inquisição do pensamento nos sonetos de Pessoa, logo percebemos

que ela, de um modo ou de outro, é indissociável da inquisição da sensação. Ao escrever

“de um modo ou de outro”, queremos dizer que, em Pessoa:

a) ou o pensar se define como sentir (pensar = sentir)

b) ou o sentir se define como não-pensar (pensar ≠ sentir, ou sentir = – pensar)

Na obra pessoana como um todo, a primeira das equações acima é encarnada

pelo ortônimo, que, na profissão poética de Isto, confessa só sentir com o pensamen-

to (e não com o coração).

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. (...)

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A segunda equação é a marca registrada de Alberto Caeiro, arqui-inimigo do

pensar não-natural – antônimo do ortônimo – pastor para quem os únicos verdadeiros

pensamentos são as sensações, especialmente a da visão:

Sempre que penso uma coisa, traio-a. Só tendo-a diante de mim devo pensar nela. Não pensando, mas vendo, Não com o pensamento, mas com os olhos. Uma coisa que é visível existe para se ver, E o que existe para os olhos não tem que existir para o pensamento; Só existe verdadeiramente para o pensamento e não para os olhos. (...)

(Alberto Caeiro; In: ZENITH & MARTINS, 2005: 122)

Nos sonetos pessoanos, encontramos poemas que ora tomam o partido do

pensar, ora do sentir, nesta questão da via preferencial de percepção do mundo –

nem sempre em posições tão radicais quanto as duas explicitadas acima, mas oscilan-

do entre um extremo e outro.

Alexander Search faz, em soneto de 1904 justamente chamado Thought, um elo-

gio do pensamento, aproximando suas qualidades das de um relâmpago:

How great a thing is thought! as through the gloom Of stormy skies the sudden lightning curls, As slow the storm in patience grim unfurls Its mighty volume of resounding boom; Thought comes, more bright than Reason’s sun which hurls Its constant beams around till verge of doom – Or as the silver-chequered shades which loom ‘Neath Fancy’s moon in windy queerest whirls.

Até o aqui o pensamento é totalmente positivo, num panegírico unilateral que

poderia servir de lema racionalista, não fossem os estraga-prazeres dos tercetos:

Thought comes, but blinds the glaring mental sight, But shakes our mind with echoes of its roar And bears its force beyond our visual scope; Horrible beauty and unpitying might That often kills and tears, to rise no more, The frailest fabric of a dreary hope.

Eis que o elogio termina numa espécie de temor: tamanho é o poder do pensa-

mento, que sob o seu trovejar não restam quaisquer ilusões... Por outro lado, este

fecho também pode ser lido como um elogio reverso da sensação: o sentir da espe-

rança (hope), ao ser revelado no último verso, retrospectivamente confere ao poema

inteiro uma sensação latente de violenta concretude: a esperança, que, rasgada pelo toni-

troante pensamento, é a única antagonista possível ao frio ato de pensar.

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Se o pensamento parece ganhar, contra o sentir, a batalha deste soneto, qual se-

rá o resultado no conflito do poema a seguir? Nos primeiros 6 versos, o poeta tece

uma paisagem plácida, aparentemente ocorrendo ao fim de uma tempestade:

Depois que o som da treva, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale, A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo, e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade?

Que perguntas são essas a intrometer-se na paisagem calma recém-tecida?

“Tudo era verdade” – e a proliferação de sensações parece vir estragar tudo. Será o

sentir um inimigo do pensar?... mas o poeta nem parecia estar forcejando o pensa-

mento, tão-só gozando a paisagem exterior, tal como o faria Alberto Caeiro, sem

pensar... Por que é o sentir – e não o pensar – quem surge como culpado da inter-

rupção da calmaria? Busquemos nos tercetos alguma pista para isso:

Nada. Uma nova obliquação da luz, Interregno factício onde a erva esfeia. E o pensamento inútil se conduz Até saber que nada vale ou pesa. E não sei se isto me ensimesma ou alheia, Nem sei se é alegria ou se é tristeza.

(Fernando Pessoa, 1932)

Se a sensação parecia culpada de macular súbito a paisagem, também o pensa-

mento vira réu no v.11, perambulando inutilmente, em vez de se deixar estar na frui-

ção singela do mundo exterior. No fim das contas, é uma incerta sensação que resta

ao fim do poema, vencedora desta outra batalha entre pensar vs. sentir, uma estranha

vencedora, visto que ela nem se sabe alegria ou tristeza... o que talvez seja bom, pois

é sinal de que não está presente o pensamento a nomear as coisas, deixando-as ser

livremente, fora das caixas e rótulos dos nomes.

Essa dúvida sobre o sujeito estar alegre ou triste é levada à máxima potência

pelo heterônimo Álvaro de Campos, que, em seu primeiro soneto, teria levado René

Descartes (1637) à loucura com sua desconstrução total da identidade do ser pensan-

te, ou “sensacionante”, já que Campos sente tanto quanto pensa, sensacionista que é.

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Quando olho para mim não me percebo. Tenho tanto a mania de sentir Que me extravio às vezes ao sair Das próprias sensações que eu recebo. O ar que respiro, este licor que bebo Pertencem ao meu modo de existir, E eu nunca sei como hei-de concluir As sensações que a meu pesar concebo. Nem nunca, propriamente, reparei Se na verdade sinto o que sinto. Eu Serei tal qual pareço em mim? serei Tal qual me julgo verdadeiramente? Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu, Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos, 1913 (na ficção pessoana;

provavelmente circa 1922 fora da ficção)

Com o auxílio de seu pensamento atrevido, Campos opera uma psicanálise da

sensação, duvidando, como um aparente discípulo de Descartes, de tudo o que pudes-

se duvidar na busca da raiz do sentir... Diferentemente de Descartes, porém, em vez

de concluir que existe, por estar pensando (“cogito, ergo sum”) ou sentindo, Campos du-

vida até mesmo da atribuição das sensações ao seu sujeito; ao fim do poema, o haver

sensações resta como única realidade inquestionada. Por que Campos não conclui

“sinto, logo existo”, numa paráfrase cartesiana trocando o pensamento pela sensa-

ção? Ora, o problema é não se saber a quem tais sensações pertencem – ante o quê

Campos faz a única conclusão possível: algo sente... nem sei bem se sou eu! Esta

conclusão é cheia de graça em Pessoa, visto que freqüentemente o autor hesitava na

atribuição de um poema a um ou outro heterônimo: de fato, ele nem sempre sabia

quem, nele mesmo, sentia determinados versos. Campos, com seu típico humor,

parece apontar para essa verdade, pois é Fernando Pessoa quem, em Campos, sente.

Essa conclusão faz-nos voltar à estranha pergunta do soneto anterior, ortôni-

mo: “Mas quem me deu sentir e a sua prole?”. Podemos pensar nos heterônimos de

Pessoa como essa “prole do sentir”. Assim, estaria o ortônimo a fazer uma indaga-

ção similar à de Campos: se o heterônimo não sabe quem, nele, sente, o ortônimo

desconhece de onde vêm as suas sensações.

Teremos chegado a alguma conclusão entre pensar ou sentir, como via predileta

de Pessoa para a investigação do mundo?

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Não é só Campos quem, a investigar as vias de investigação do mundo, acaba com

mais sensação e dúvidas do que certezas e pensamento; nos 35 Sonnets, o próprio

ortônimo realiza uma minuciosa dissecação do sentir e do pensar, confessando-se

claramente partidário da sensação no Sonnet XVI:

We never joy enjoy to that full point Regret doth wish joy had enjoyèd been, Nor have the strength regret to disappoint Recalling not past joy's thought, but its mien. Yet joy was joy when it enjoyèd was And after-enjoyed when as joy recalled, It must have been joy ere its joy did pass And, recalled, joy still, since its being-past galled. Alas! All this is useless, for joy’s in Enjoying, not in thinking of enjoying. Its mere thought-mirroring ‘gainst itself doth sin, By mere reflecting solid life destroying, Yet the more thought we take to thought to prove It must not think, doth further from joy move.

(Fernando Pessoa, 1918)

Tentemos traduzir o argumento do soneto.

O 1o quarteto investiga a intensidade & a permanência da sensação de alegria:

Nós nunca sentimos alegria a ponto de nos arrependermos de tê-la sentido, nem nos

desapontamos recordando apenas o pensamento de uma alegria passada, logrando

sempre recordar de fato a sua sensação.

O 2o quarteto é corolário do 1o: A alegria foi sentida, tanto quando sentida pela

primeira vez, como quando lembrada, visto que na lembrança era alegria ainda.

O 3o quarteto delibera sobre a questão pensar vs. sentir: Pessoa exclama a inutili-

dade do pensamento, concluindo estar a alegria no senti-la e não no pensá-la. Lem-

brando aqui Caeiro, o ortônimo brada que o mero espelhar do pensamento sobre a

alegria peca contra ela, o pensar arruinando o sentir.

O estrambote sintetiza o paradoxo do Homo sapiens, ser pensante: quanto mais

pensamento pomos em não pensar, mais nos distanciamos do puro sentir. Como

escapar do véu do pensamento, a fim de sentir a realidade pura das coisas?

Se a sensação surge como via preferencial de investigação da realidade, eis que

passamos da primeira para a segunda questão desta microleitura: o mundo é sonho

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ou realidade? Haverá mesmo uma realidade além ou aquém do pensamento, acessí-

vel ao esforço de sentir?

A sensação, no ortônimo, por vezes surge como intuição. São as sensações – e

não o pensamento do poeta – que por vezes logram acessar uma outra realidade,

simplesmente proibida ao pensamento.

Passos da Cruz XIII

Emissário de um rei desconhecido Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anómalo sentido... Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me o desdém Por este humano povo entre quem lido... Não sei se existe o Rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou... Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações...

(Fernando Pessoa, 1914)

Após as dúvidas pensadas das 3 primeiras estrofes, o poeta sente-se (não pensa)

“altas tradições” atemporais... No fim das contas, são elas, as suas sensações, que já

viram Deus; viram e não pensaram Deus, sensação de uma Realidade Maiúscula.

Se, em alguns momentos, certas sensações escapam da aparência para tanger

uma realidade além do pensamento, o mais comum é o poeta perambular entre as

inúmeras faces do mundo das aparências, perscrutando quaisquer aparentes fendas

deste mundo feito muito mais de sonho do que de realidade.

Pring-Mill (1971) investigou a fundo a questão da aparência vs. realidade nos

35 Sonnets, considerando-a o tema dominante neles.

The dominant theme is undoubtedly that of appearance and reality, treated in a way which makes me think of Calderón’s La vida es sueño, but with a very different sys-tem of belief and values lying behind it, although the basic premise is the same: namely, that the world which our senses perceive must not be identified with the ul-timate reality, although it may provide some (highly enigmatic) clues to the nature of that reality.

(PRING-MILL, 1971)

“A vida é sonho”, referida por Pring-Mill, é a célebre peça de Calderón de la

Barca, em que um rei-prisioneiro (que não se sabe rei), vítima de uma conspiração,

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acorda na cama real e, pensando tratar-se de um sonho, age como um ditador terrí-

vel; assustados com as ações tiranas do prisioneiro-rei, os conspiradores devolvem-

no à prisão enquanto uma vez mais ele dormia; ao acordar, novamente aprisionado, o

protagonista confirma sua tese de que “a vida é sonho”. Este enredo é alegoria para

a tese de que realidade e aparência são mundos distintos; a aparência apresenta-se

como farsa, e o buscador da Verdade não sabe em que se fiar para descobrir o real.

O sonho surge, então, como o símbolo de um mundo enigmático a ser desvendado.

Pring-Mill exemplifica em abundância as tais pistas (highly eigmatic clues) que Pes-

soa fornece para a realidade que a aparência mente:

... Truth’s body is no eyeable being. Appearance even as appearance lies. (...) ... our close, dark, vague, warm sense of seeing Is the choked vision of blindfolded eyes.

(In: Sonnet II, 1918)

Se, nos Passos da Cruz, sentir era intuir o real, no poema XXVIII dos 35 Sonnets

as próprias sensações são coisas que se interpõem, como obstáculos, entre nós e a

realidade.

The edge of the green wave whitely doth hiss Upon the wetted sand. I look, yet dream. Surely reality cannot be this! Somehow, somewhere this surely doth but seem! The sky, the sea, this great extent disclosed Of outward joy, this bulk of life we feel, Is not something, but something interposed. Only what in this is not this is real.

Os quartetos argumentam que a única certeza trazida pelas sensações é que o

que sentem não é real. Ora pontes, ora abismos, o poeta sintetiza a dualidade das

sensações, seus periscópios na busca da Verdade: “I look, yet dream” (Olho, mas ainda

sonho). Pring-Mill desenvolve a ambigüidade deste sonhar : de um lado, o poeta, mes-

mo olhando, não poder transcender o sentido da visão (visão que, nesse sentido, seria

apenas um sonho e não realidade); de outro lado – prossegue Pring-Mill – o sonho po-

deria ser referência ao conteúdo na mente do poeta enquanto ele se encontrava no

ato de olhar (o sonho dentro de sua mente, desconcertado do sentido da visão).

Vislumbramos, ainda, uma terceira leitura para este sonhar: o sonho (como an-

seio) de transcender este mesmo sonho que o poeta, ao fim do soneto, define como o

universo – a grande resultante dos sonos simultâneos de toda a humanidade.

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If this be to have sense, if to be awake Be but to see this bright, great sleep of things, For the rarer potion mine own dreams I’ll take And for truth commune with imaginings, Holding a dream too bitter, a too fair curse, This common sleep of men, the universe.

A idéia de que a consciência coletiva da humanidade limita a percepção comum

das coisas não é inovação pessoana – mas um conceito que surge desde o hinduísmo

antigo (em que a humanidade passa por ciclos de maior ou menor sensibilidade cole-

tiva) ao escritos xamânicos de Carlos Castañeda (em que a humanidade teria operado

o milagre de fixar o eixo da consciência numa posição de sensibilidade diminuta).

O universo como sonho coletivo é uma grande constante na filosofia pessoana,

pois surge tanto no primeiro como nos últimos sonetos de Pessoa, os quais formu-

lam esta grande pergunta na abertura do tríptico a Christian Rosencreutz:

Quando, despertos deste sono, a vida, Soubermos o que somos, e o que foi Essa queda até Corpo, essa descida Até à Noite que nos a Alma obstrui, Conheceremos pois toda a escondida Verdade do que é tudo que há ou flui? (...)

Se o universo era “this common sleep of men” nos 35 Sonnets, neste soneto fi-

nal a vida é um “sono” – o que é dizer a mesma coisa, de dois belos modos distintos.

À pergunta que o poeta formula, ele mesmo busca responder, tanto em seu primeiro

soneto, assinado pelo Dr. Pancrácio em 1902, quanto no último poema a Christian

Rosencreutz, um dos 3 últimos sonetos do poeta (senão o último), datado de No-

vembro de 1935 – mês em que Pessoa oxalá tenha encontrado sua resposta final.

Justapomos os dois poemas, perguntando:

– Haverá neles alguma diferença filosófica significativa, estando os sonetos

radicalmente separados por mais de 3 décadas de poesia?

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Sonho No Túmulo de Christian Rosencreutz III Sonhei esta existência de venturas, Sonhei que o mundo era só d’amor, Não pensei que havia amarguras E que no coração habita a dor. Sonhei que m’afagavam as ternuras De leda vida e que jamais palor Marcou na face humana as desventuras Que a lei de Deus impôs com /*☐/ rigor. Sonhei tudo azul e cor-de-rosa E a sorte ostentando-se furiosa Rasgou o sonho formoso que tive; Sonhando sempre eu não tinha sonhado Que nesta vida sonha-se acordado, Que neste mundo a sonhar se vive!

Dr. Pancrácio, 24-5-1902

Ah, mas aqui, onde irreais erramos, Dormimos o que somos, e a verdade, Inda que enfim em sonhos a vejamos, Vemo-la, porque em sonho, em falsidade. Sombras buscando corpos, se os achamos Como sentir a sua realidade? Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos? Nosso toque é ausência e vacuidade. Quem desta Alma fechada nos liberta? Sem ver, ouvimos para além da sala De ser; mas como, aqui, a porta aberta? ................................................................ Calmo na falsa morte a nós exposto, O Livro ocluso contra o peito posto, Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.

Fernando Pessoa, Nov. 1935

Em Sonho, Pancrácio conclui que a vida é sonho; em 1935, ainda que em vestes

muito mais elaboradas, Pessoa diz essencialmente a mesma coisa: “dormimos o que

somos”; ou seja: este mundo é aparência e não realidade.

Também na resignação de não encontrar respostas, os poemas se assemelham:

curiosamente, o soneto de Pancrácio, mesmo sendo de 1902 (tendo Fernando ainda

13 anos), surge com um tom retrospectivo de quem muito já viveu: o heterônimo

sonhou tudo de todas as maneiras (para parafrasear Campos, trocando sentir por so-

nhar), e sua única descoberta é o pasmo de só agora sonhar a possibilidade de a pró-

pria vida ser sonho; se esta é a conclusão, ela nada nos diz sobre como escapar do

sonho rumo à Realidade transcendente. A mesma frustração emana dos lábios de

Christian Rosencreutz – isto é, emanação nenhuma, pois o mestre “cala”.

Neste sonetos, o único lampejo de esperança transcendente vem da constata-

ção de que, embora cale, o pai Roseacruz conhece a verdade. Comparada ao conheci-

mento de Roseacruz, a afirmação de que “Já viram Deus as minhas sensações”, na

boca do ortônimo, soa quase humilde – tão menor o ver se apresenta ao lado do conhe-

cer. O ver depende do objeto da visão para presenciar o Real, ao passo que o conhecer

carrega algo do Real aonde quer que vá.

Se Pessoa não admitiu conhecer a transcendência, ele decerto viu muitas possibili-

dades de alcançá-la. O estertor do poeta – “I know not what tomorrow may bring”

–, por vezes visto como humilde confissão de ignorância, também pode ser mera

hesitação... de quem sabe que uma das tantas portas entrevistas finalmente se abrirá.

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3.3.2. Que posso fazer?

“Que voluntariamente abandonei”

(In: Abdicação V, 1917)

Fernando Pessoa não é conhecido como um homem de ação. Ante a estatura re-

volucionária de um Antero de Quental ou um Pablo Neruda, o nome de Pessoa não

evoca, à primeira vista, equiparáveis conotações políticas. Muito pelo contrário,

“Pessoa” frequentemente conota adiamento, tédio, inação...

No entanto, Fernando Pessoa não se isolou completamente, como alguns de

seus versos poderiam dar a entender; o poeta conviveu com grandes nomes literários

portugueses de sua época, sendo exemplo disso suas cartas a Teixeira de Pascoaes,

Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro – alcançando até mesmo Miguel de Unamu-

no na Espanha. Pessoa fundou importantes revistas, das quais Orpheu é o exemplo

mais incendiário, irradiando o Modernismo em Portugal – sem falar na série de “is-

mos” (Paulismo, Interseccionismo, Sensacionismo) que o poeta introduziu. Ademais, parti-

cipou de eventos com o irreverente Almada Negreiros, em cujos programas constava

um rebeldíssimo Ultimatum e, pela pena dos heterônimos Charles Robert Anon e

Álvaro de Campos, escreveu a muitos jornais, sem quaisquer papas na língua.

Em verdade, o próprio ortônimo atuou em público, fundando a editora Olisipo

pela qual publicou 2 livros controvertidíssimos (de António Botto e Raul Leal) – e,

após a proibição e apreensão dessas obras pelo Governo Civil de Lisboa, saiu o poeta

em defesa da loucura, atacando a moral da época com o opúsculo Sobre um manifesto de

estudantes de Lisboa (1923), em que dizia: “Loucos são os heróis, loucos os santos, lou-

cos os génios, sem os quais a humanidade é uma mera espécie de animal, cadáveres

adiados que procriam”. A expressão “cadáver adiado que procria”, que viria parar na

boca de D. Sebastião em Mensagem, nasceu, pois, em meio a uma questão ética.

Em carta a Cortes-Rodrigues, de 1915, Pessoa chegou a definir sua vida como

“indisciplinadora de almas” (SERRÃO, 1944). Tudo isso representa um poeta que

agiu, deveras, no mundo exterior, questionando e rebentando costumes, formulando

problemas éticos – e por vezes assumindo posturas realmente políticas. Ora, isso

havia de se refletir em seus sonetos, que apresentam, pois, tanto ação quanto inação.

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A pergunta que move esta microleitura pessoana é “O que podemos fazer”, in-

dagação que, segundo Kant, impulsiona a Ética.

A raiz da palavra “ética” está ligada aos costumes ou fazeres (ethos) de uma co-

munidade; como tais costumes se encontram em perene movimento, Ética seria a

“ciência viva da ação”, sempre indagando “O que podemos fazer?”.

Curiosamente, as palavras “drama” & “poesia” também se relacionam a “fa-

zer”: dran (origem dórica de “drama”), significa o gerúndio “agindo”; poiesis (raiz gre-

ga de “poesia”) foi batizada por Aristóteles para significar a ação (sis) de fazer (poiein).

Extremamente prolífica, é indiscutível a ação poética e dramática da obra pessoa-

na; entretanto, aqui tomaremos a pergunta “O que fazer” no sentido ético de “um

movimento (ou ausência de movimento) gerador de impacto no mundo exterior”.

Nesse sentido, identificamos três ambientes éticos nos sonetos de Pessoa:

1. Sonetos políticos; 2. Sonetos de indagação ético-filosófica; 3. Sonetos de inação.

Ainda que acostumados à amplitude temática de Pessoa, foi-nos uma surpresa

encontrar sonetos claramente políticos em sua obra. O mais antigo – e mais veemente

– desses sonetos foi escrito em Fevereiro de 1905, consistindo numa maldição dirigida

a Joseph Chamberlain, então influente político Inglês.

Their blood on thy head, whom the Afric waste Saw struggling, puppets with unwilful hand, Brother and brother: their bought souls shall brand Thine own with horrors. Be thy name erased From the full mouth of men; nor be there traced To thee one glory to thy parent land; But ‘fore us, as ‘fore God e’er do thou stand In that thy deed forevermore disgraced. Where lie the sons and husbands, where those dear That thy curst craft hath lost? Their drops of blood, One by one fallen, and many a cadenced tear, With triple justice weighted trebly dread, Shall each, rolled onward in a burning flood, Crush thy dark soul. Their blood be on thy head!

(Alexander Search. Joseph Chamberlain, 1905)

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Com este poema, Pessoa revela uma preocupação, um conhecimento e um juí-

zo políticos surpreendentes num poeta de 16 anos, presenciando como estrangeiro

os acontecimentos na África do Sul, em meio à Guerra dos Bôeres. “Bôeres” eram os

descendentes dos colonos calvinistas que se estabeleceram na África do Sul nos sécs.

XVII e XVIII. O conflito na região do Transvaal, estendendo-se de 1899 a 1902,

ocorreu oficialmente entre bôeres e ingleses, mas extra-oficialmente envolveu toda a

África do Sul – e matou 75 mil pessoas, incluindo 26 mil mulheres e crianças mortas

em campos de concentração idênticos aos que Hitler usaria algumas décadas depois.

Curiosamente, o conflito uniu, contra os ingleses, bôeres e sul-africanos nativos, mas

foi tão destrutivo para a economia local, que o seu resultado acentuou a segregação

do apartheid na região. A descrição do sofrimento e das vidas perdidas, no 1º terceto

do poema, lembra as lágrimas do Mar Português em Mensagem: “Por te cruzarmos,

quantas mães choraram / Quantos filhos em vão rezaram (...)”.

Em 1905, data do soneto a Chamberlain, os campos de concentração criados

pelos ingleses já tinham vindo a público por diversas denúncias; ante isso, Search

assina este poema “cármico”, arremessando o peso da morte de 75 mil pessoas sobre

a política colonial de Joseph Chamberlain, figura em geral respeitada pela história

inglesa. Chamo de “cármico” o soneto, por ele evocar a lei do carma, princípio metafí-

sico que, segundo os hindus, rege as ações e suas reações profundas.

O poeta faz, pois, do soneto, uma maldição contra Chamberlain, empregando a

magia do número três e uma reiteração encantatória, respectivamente proclamando

no v.12 o retorno triplicado dos maus-efeitos das ações do político (seu “carma”) e

utilizando um refrão hipnótico, a fim de encerrar o poema da mesma maneira com

que o começara, completando um ciclo: “Their blood be on thy head”.

Logo após seu ataque a Chamberlain, Alexander Search escreve um díptico de

sonetos, voltando sua mira política para jornalistas ingleses que, segundo o heterôni-

mo, teriam caçoado dos desastres russos em princípios do século XX. Desde de-

zembro de 1904, a Rússia vivia um período de agitação social, sofrendo uma sangren-

ta guerra com o Japão (1904-1905) e abrigando uma série de protestos esmagados

pelas forças do czar Nicolau II – período que culminaria, em 1917, com a revolução

socialista.

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O poeta escreve o díptico To England pouco antes de partir da África do Sul,

definitivamente rumo a Lisboa.

A índole dos dois poemas é claramente política, e a descrição da covardia ingle-

sa é feroz: “The fallen lion every ass can kick” (evocando a fábula de Esopo sobre

“O Leão Doente”). O poeta encerra o primeiro soneto com nova maldição; diferen-

temente da maldição cármica dirigida a Chamberlain, esta é comprovadamente proféti-

ca, ainda que levasse dez anos a realizar-se (“Yet not for the short space of ten long

years”). Ora, dez anos após este verso de 1905, a Europa enfrentaria a série de duas

Guerras Mundiais, e engoliria a necessidade da aliança com a Rússia a fim de derrotar

o nazismo – a mesma Rússia recém-zombada pelos britânicos.

Não foram apenas ingleses os atores políticos alvejados por sonetos pessoanos:

Napoleão e Teófilo Braga são igualmente vítimas de poemas de escárnio e maldizer,

respectivamente assinados por Alexander Search e Joaquim Moura Costa.

Em 1907, Search volta-se a outro sinônimo de megalomania global, criticando

Napoleão de modo menos massivo que a Chamberlain, porém mais filosófico:

Great? To be great is not to conquer man Or strive for metals, stones, shores. Great’s a flower Because the thoughts it raises lead away From vileness. Smallness did thy greatness, /*pen/ Being the symbol of the power of powers(,) Thou art the lesson of a great decay.

(Alexander Search; In: Napoleon, 1907)

Atribuindo grandeza não a Napoleão, mas à flor e à pena, Search antecipa valo-

res da filosofia natural e poética logo encarnada pelo mestre Caeiro, que provavel-

mente concordaria com Search sobre a pequenez da grandeza política de Napoleão.

É interessante notar que, noutros escritos, o ortônimo louva o mesmo imperador

francês – e em Mensagem enaltece, acima de tudo, a conquista de costas (shores) pelos

navegadores portugueses, conquistas idênticas, pois, às que Search apequenara.

Na introdução desta tese, apresentamos as invectivas inéditas que, em 1910, o

heterônimo Joaquim Moura Costa (JMC) profere contra “o grande Teófilo”. Teófilo

é Teófilo Braga, recém-nomeado presidente do Governo Provisório da República

Portuguesa, quando da composição do Soneto de mal-dizer. Depois de repetir como

refrão o burburinho de que “o grande Teófilo chegou”, JMC conclui que, vendo

chegar o comboio, não reconheceu “grande Teófilo nenhum”. Tal como o heterô-

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nimo Ricardo Reis, JMC deve ter sido anti-republicano – só não sabemos se, também

como Reis, se teria ele exilado no Brasil, sob protesto.

Vistos esses poemas, visitemos agora sonetos em que as questões éticas pesso-

anas ultrapassam a política, formulando indagações mais abstratas.

Também vêm da obra de Alexander Search os dois belos sonetos, que, radi-

calmente opostos, sintetizam o problema ético em Pessoa: Liberty & Convention, ou

poderíamos dizer melhor: Liberty versus Convention.

Em Liberty (Junho de 1905), o poeta novamente se lança contra políticas segre-

gacionistas: lembremos que a África do Sul está em pleno apartheid – e em plena luta

contra o apartheid, fomentada por Mohandas “Mahatma” Gandhi, então na África do

Sul – e grandemente admirado pelo jovem Pessoa, que escreve:

O Mahatma Ghandi é a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo.

(In: CAVALCANTI FILHO, 2011: 55)

Gandhi é político no sentido de servidor e reformador da Pólis – e, mais que isso,

é vero advogado da Liberdade. Também Pessoa vai além da política quando, em Li-

berty, faz mais que combater a idéia do apartheid – o que se esclarece quando, meses

mais tarde, o poeta escreve Convention, em direta oposição a Liberty.

Liberty Convention Oh, sacred Liberty, dear mother of Fame! What are men here that they should expel thee? What right of theirs, save power, makes others be The pawns, as if unfeeling, in their game? Ireland and the Transvaal, ye are a shame On England and a blot! Oh, shall we see For ever crushed and held who should be free By human creatures without human name? Wonder not then, dear friend, that here where men Are far away I can well rest, and far From where in lawful bodies, Christian‑wise, Beings of earth their fellows fold and pen; Glad that the winds not yet enchainèd are And billows yet are free to fall and rise.

Alexander Search, 20-6-1905

Mother of slaves and fools, Thou who dost hold Within Thine iron chains enslaved mankind, Old in Thy yoke and in their slavery blind, Harden’d to grief and woe, corrupt and cold, But in the craven following , as of old, Of those old ways, unwise, unfirm, unkind, Bound ever in the animal bonds that bind Fish, bird and beast in flock and herd and fold. The light hath fallen of many a cherished name, And many a land of love hath been the nurse, But man’s worn heart is evermore the same ­– Unwilling ever to shake off the curse, Once self‑inflicted, and the time‑grown shame That loads the weary, lightless universe.

Alexander Search, Nov. 1905

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Se, em Liberty, o poeta invocava a “sagrada Liberdade, querida Mãe da Fama”,

em Convention ele se dirige à “Mãe dos tolos e escravos”, i.e., à Convenção. Liberdade

& Convenção são conceitos antitéticos, e é interessante que o poeta invoque ambas

num contexto de crítica à política internacional inglesa.

Invocando-se o símbolo da península, a Liberdade constitui as franjas do mar,

ante o qual tudo é possibilidade, abertura, infinitude. Do outro lado, temos a parte

da península sempre ligada à terra, aqui representando costumes sociais enraizados –

Convenção. Entre uma e outra, o poeta é a própria península, equilibrando tradição

& ruptura, em seu fazer poético e sua atuação modernista. O próprio soneto pessoano

exemplifica essa dialética peninsular: ainda que sobejando liberdades temáticas e for-

mais tomadas por Pessoa, que forma seria mais tradicional do que o soneto?

Passemos, pois, ao tema da inação, o problema ético mais comumente atribuído

a Fernando Pessoa. A Prof a. Cleonice Berardinelli (1958) distinguiu no poeta uma

série de temas relacionados à inação, os quais, aqui, consideramos gradações de um

mesmo fenômeno: numa extremidade de seu termômetro ético, o poeta alcança a

ação política e, na ponta oposta, afunda-se em inação.

Adiamento, tédio, abulia, irrealização – eis os temas de inação que Berardinelli

reconheceu na obra pessoana como um todo. Aqui os procuraremos nos sonetos,

sem buscar uma cronologia de suas manifestações, almejando apenas retratar o agra-

vamento da vontade de inação em Pessoa, desde as sutilezas do adiamento até a ab-

dicação total – duas sensações que não respeitaram linearidade temporal na obra do

poeta, apresentando-se com os altos e baixos de um eletrocardiograma, por vezes

sendo até mesmo simultâneas, dado que dois heterônimos pudessem sentir coisas

radicalmente distintas num dado momento.

A mais inocente forma pessoana de inação é o adiamento. “Adia tudo” sugeria

o semi-heterônimo Bernardo Soares na passagem em prosa Maneira de Bem Sonhar,

logo complementando a sugestão em forma de axioma: “Nunca se deve fazer hoje o

que se pode deixar de fazer também amanhã” (ZENITH, 1999: 440). Eis o mesmo

adiamento aparentemente alegre com que Álvaro de Campos clama “Depois de ama-

nhã, sim só depois de amanhã... / Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã”

(BERARDINELLI, 1999: 159), em poema justamente intitulado Adiamento (1928).

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Nos sonetos pessoanos, porém, é menos bem-humorada a sensação de que as

coisas ficam por fazer... Alexander Search chama-a “Morte em Vida”.

Another day is past, and while it past, What have I pondered or conceived or read? Nothing! Another day has gone to waste. Nothing! Each hour as it is born is dead. I have done nothing. Time from me has fled, And unto Beauty not a statue raised! (…)

(In: Death in Life, 1907)

O heterônimo dramatiza sua frustração com a passagem do tempo, declarando

que nada grande foi criado – um paradoxo, visto ter sido criado um belo soneto. O

fazer material é adiado, ao passo que o fazer poético exulta. Serão tais fazeres fenô-

menos excludentes, inversamente proporcionais em Pessoa?

Do adiamento recorrente, nasce em Pessoa o tédio e, com ele, mais indícios de

que a página escrita vai substituindo a realidade vivida.

Inúteis correm os meus dias lentos. Pecam cansaço minhas horas mortas. Fechadas, por abrir, todas as portas; Corredores desertos os momentos... Fictícia dor dos tédios sonolentos, Tor nada real desde que a ela exortas, (…) A página difusa em dialéctica Tor nou vazia a convicção da vida. (In: “Inúteis correm os meus dias lentos”, 1924)

A “fictícia dor dos tédios sonolentos” transforma-se em dor real – de tanto

fingir e adiar, o poeta fingidor “deveras sente” tédio!

Desde os tempos de juventude, pela pena do heterônimo Search, mostrava-se

latente o conflito entre as vontades de ação & de inação.

A thousand hearts are labouring for the good Of poor mankind ill-civilized and chill; A thousand minds are making war on ill With thought or feeling ponderate or rude. And I alone, as if not understood By me the suffering that the sense doth fill, Am sunk in an abeyance deep of will In a wild, crazy somnolence of mood.

(In: Inaction, 1907)

Há um mundo laborando para o bem – enquanto o poeta, dramaticamente só,

afunda-se no ciclo vicioso da inação. Corajoso, porém, este mesmo poeta admite

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seus fracassos; fê-lo pela voz de Álvaro de Campos no célebre Poema em Linha Reta;

nos sonetos, a primeira voz a admitir irrealização é a do heterônimo-pássaro Íbis:

Vinte e três anos, vãos inutilmente, Sou vinte e três remorsos e fastios. Vinte e três portos de lembrar, sombrios, Cada um dos passados descontente, Cada um triste de se ver presente Na mesma vida vã que os outros, rios De dor atravessaram fugidios Só mortas algas indo na corrente (...)

(In: Junho de 1911)

O poeta faz confissão similar pela boca do ortônimo, em ao menos 2 sonetos:

Como os melhores, nada fiz da vida. Como os que sonham não a quis achar. Trago-a nos braços, vindo na descida, Como quem quer e teme abandonar.

(In: “Como os melhores, nada fiz da vida”, 1932)

Deixei de ser aquele que esperava... Isto é, deixei de ser quem nunca fui. Entre onda e onda a onda não se cava, E tudo, em ser conjunto, baixa e flui. A seta dorme, inerme, na ampla aljava, (…) E sobre tudo a lua alheia verte A luz que tudo usurpa e nada vence.

(In: “Deixei de ser aquele que esperava...”, 1933)

Pessoa diz “Deixei de ser aquele que esperava”, não porque subitamente se ti-

vesse impacientado e passado a agir, fazendo acontecer – mas porque desistiu até mesmo

de querer resultados quaisquer, admitindo fracasso por antecipação (“e nada vence”).

Eis que sua vontade de inação se agrava, já com sintomas de abulia. Reparemos no

versos que sintetizam as sensações de inalterabilidade (“entre onda e onda a onda não

se cava”) e inutilidade das coisas (“a seta dorme, inerme, na ampla aljava”).

Num soneto abúlico de 1921, o poeta chega a justificar sua própria abulia,

usando de um argumento de matizes fisiológicos, segundo o qual um membro inuti-

lizado acaba por definhar: esse membro atrofiado seria sua própria vontade de ação.

A parte do indolente é a abstracta vida. Quem não emprega o esforço em conseguir, Mas o deixa ficar, deixa dormir, O deixa sem futuro e sem guarida. Que mais haurir pode da morta lida,

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Da sentida vaidade de seguir Um caminho, da inércia de sentir, Do extinto fogo e da visão perdida, Senão a calma aquiescência em ter No sangue entregue, e pelo corpo todo A consciência de nada qu’rer nem ser, A intervisão das cousas atingíveis, E o renunciá-las, como um lindo modo Das mãos que a palidez torna impassíveis.

(In: “A parte do indolente é a abstracta vida”, 1921)

O incipit é sobremaneira interessante: ser-nos-ia simples entendê-lo se dissesse

“Aparte do indolente é a abstracta vida” (“Aparte” como uma palavra só); nesse ca-

so, a vida abstrata seria algo aparte da inação de Pessoa, i.e., a vida das idéias fervi-

lhantes não teria nada que ver com a apatia do poeta no mundo exterior. No entan-

to, “A parte” são duas palavras claramente distintas no ms. Como entendê-las? No-

te-se que “indolente”, que em geral significa “apático”, pode também significar “in-

sensível à dor”. Nesse caso, o verso poderia ser lido como “A parte que não dói é a

abstracta vida”, pois na vida material o poeta sente dor, seja ela fingida ou não.

No fim dessa gradação da não-vontade (ou degradação da vontade), chegamos

à última ação possível em Pessoa: abdicar. É mesmo Abdicação o título de um sublime

soneto, o mesmo que Pessoa refere numa carta de 1913 a Mário Beirão, a qual em-

pregamos como epígrafe desta tese.

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho... Eu sou um rei Que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços. Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu ceptro e coroa — eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços. Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria. Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.

(Abdicação V, 1913-1917)

Esta obra-prima não é o único poema sobre o abdicar; em verdade, trata-se de

apenas um dos 7 sonetos agrupados sob o título geral Abdicação. O poema V, porém,

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resume como nenhum outro a resposta final de Pessoa à pergunta que principiou

esta microleitura: “O que fazer?”

Neste poema absolutamente plácido, Noite e Morte se dissolvem numa só

substância – e, na dissolução, envolvem o poeta abdicante. A Noite-Morte é mãe, e

o poeta-filho volta ao ventre em entrega total de sua individualidade. Há algo pro-

fundamente meditativo e transcendente no poema: uma alegoria da abdicação do ego

em prol de algo maior, algo que envolve o ser com um Ser maior... tornando total-

mente irrelevantes a ação ou inação do poeta – seus fracassos ou vitórias.

Na filosofia hindu, agir ou não agir não é a questão – pois é impossível não agir.

Na mesma filosofia, o ato de abdicar é considerado o mais elevado princípio ético, o

guia-mor da conduta de um buscador da Verdade: “Īśvara praņidhānāni”, a total

rendição do ego perante o Ser, integração da vontade individual à Universal.

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3.3.3. Em que creio?

“(...) alma fatigada

De querer na descrença poder crer”

(Fernando Pessoa; In: Noite, 1910)

“Como todos não creio no que creio.”

(Álvaro de Campos; In: Barrow-on-Furness I, entre 1915 & 1923)

Crença e descrença são irmãs gêmeas em Pessoa. Jacinto do Prado Coelho no-

tou esta polaridade, ao buscar os princípios que fazem do universo pessoano um todo

coeso e, ao mesmo tempo, uma imensa fragmentação – “espalhamento de cacos num

capacho por sacudir” (para citar um Apontamento de Álvaro de Campos).

Pessoa deixou em toda a sua obra reiterados indícios dum drama que resulta da convergência no mesmo homem dum irreprimível, torturante anseio de absoluto e dum inexorável cepticismo.

(PRADO COELHO, 1947)

A Prof a. Cleonice Berardinelli (1959) resumiu esta polaridade tomando empres-

tada do próprio Pessoa a expressão “febre de além”, que, embora viesse parar na

boca de D. Fernando, Infante de Portugal (no livro Mensagem), tinha sido primeiramente

escrita e assinada por outro Fernando – o ortônimo Pessoa –, numa primeira versão

do poema intitulada Gládio. No poema, há o verso:

E esta febre de Além, que me consome (...)

Eis uma febre incomum, visto que é “de Além” – o “anseio de absoluto” reco-

nhecido por Prado Coelho. Como toda grave febre, porém, esta consome o poeta,

com seus altos e baixos – oscilações que, neste caso metafísico, equivalem a certezas

e ceticismos, crenças e descrenças.

Investigando esta condição febril nos sonetos do poeta, encontramos todo um

leque de manifestações religiosas, que vão do misticismo (seu mais alto grau de crença)

ao niilismo total (ainda mais profundo que o ceticismo diagnosticado por Prado Coe-

lho). Empregamos o adjetivo “religiosas” no sentido etimológico de “religião”, do

Latim “religare” (re-ligar) – a reconexão do indivíduo a um todo que lhe transcende.

Nesse sentido, a religião do misticismo representa a reconexão da alma a Deus, e a

“religião” (ou ausência de religião) do niilismo seria a não-reconexão, elo quebrado.

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Entre o niilismo e o misticismo de Pessoa, há, como complexo ponto central, o

Paganismo – fenômeno encarnado, fora dos sonetos, pelo Mestre Caeiro. Veremos

sonetos que refletem esse Paganismo como espécie de “crença descrente” ou “des-

crença crente” – moeda de duas faces entre os extremos pessoanos.

Trafeguemos, pois, de um lado a outro no leque do crer pessoano, mantendo

em vista o triângulo que niilismo, paganismo e misticismo compõem entre si, como

grandes marcos no caminho desta microleitura.

[Figura 26: Diagrama do crer nos sonetos pessoanos]

Comecemos pelo elo quebrado, na descrença total que às vezes mergulha o ser

pessoano em vazio absoluto... quando a “febre de além” é apenas febre aqui, não che-

gando a lugar algum além do nada em que Pessoa se afunda:

Ó sonho a quem primeiro eu chamei Deus E depois Cristo, o homem impotente Contra o mal, ☐ e clemente Sonho suäve, para sempre adeus! Não só o amor que nos fazia teus Mas te crermos Divino, já nos mente; Também perdeste a compaixão ardente, Esse amor que admirávamos, ateus. /*Forma/ de sonho, um sonho – tu morreste. O sonho fez-te, grande /*e/ pobre louco! Irradiando p’ra ti a nossa crença.

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Dia, passaste! Com o sol morreste Ó pobre /*megalómano/! Tão pouco Eras e a tanta luz do sonho ardeste.

(Fernando Pessoa, 1909)

Este soneto incompleto, datado dos vinte anos do poeta, narra a precoce morte

de todas as suas ilusões. Dramática despedida dada aos sonhos, resta ao fim do po-

ema o poeta só, em plena noite da alma, sem nem mesmo uma esperança de sol (pois o

sonho de religação, “com o sol”, morreu).

Embora, após 1909, o poeta viesse a ressuscitar sua crença em diversas ocasi-

ões, a sensação de vazio total, ou niilismo (do Latim nihil = nada), volta a fervilhar

em altos graus. No termômetro bipolar de crer-descrer, o poeta sofre a ausência de

Deus em dois sonetos desoladores, cujos tercetos citamos a seguir:

(...) ‘Stamos sós com a treva e a voz do nada. Tudo quanto perdemos mais perdemos. De nós aos que se foram não há ‘strada. O vácuo encarna em nós, na vida; e os céus São uma dúvida certa que vivemos. Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

(Fernando Pessoa; In: O Halo Negro I – De Mortuis, 1925)

(...) Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. Meu coração, que fala estando mudo, Repete seu monótono torpor Na sombra, no delírio da clareza, E não há Deus, nem ser, nem Natureza, E a própria mágoa melhor fôra dor.

(Fernando Pessoa; In: “Nas grandes horas em que a insônia avulta”, 1929)

Noutras ocasiões, a sensação de vazio se abranda, dando lugar a um ceticismo

que prolifera questionamentos dentro de questionamentos, sendo incapaz de defini-

tivamente crer em ou descrer de qualquer coisa. A única lealdade remanescente é

dada ao credo na sensação – e mesmo ante ela o heterônimo Álvaro de Campos,

encarnação do ceticismo pessoano, é “um pouco ateu” (como o declara em seu Soneto

I). Vejamos um poema de Campos em que o ceticismo habita.

Barrow-on-Furness I Sou vil, sou reles, como toda a gente, Não tenho ideais, mas não os tem ninguém. Quem diz que os tem é como eu, mas mente. Quem diz que busca é porque não os tem.

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É com a imaginação que eu amo o bem. Meu baixo ser porém não mo consente. Passo, fantasma do meu ser presente, Ébrio, por intervalos, de um Além. Como todos não creio no que creio. Talvez possa morrer por esse ideal. Mas, enquanto não morro, falo e leio. Justificar-me? Sou quem todos são... Modificar-me? Para meu igual?... — Acaba lá com isso, ó coração!

(Álvaro de Campos, entre 1915 e 1923)

A “febre de Além” do ortônimo, aqui, é embriaguez de Além – mas só “por inter-

valos”, sendo o soneto inteiro feito de períodos interrompidos, intervalos em que

Campos duvida do que acaba de dizer, confessando não crer naquilo em que crê. Ana-

lisemos o jogo de faz-desfaz que este soneto tece:

Tese I: “Sou vil, sou reles” – com essa declaração inicial, imaginamos à primei-

ra vista que o heterônimo esteja a definir-se de maneira única, distanciando-se de

toda a gente com sua vileza especial.

Antítese I: “como toda gente” – eis uma antítese singular, visto que, em vez de

distinguir o poeta, ela o iguala a “toda a gente”; a antítese desfaz, pois, a qualidade

específica da auto-definição que principia o soneto: estou a definir-me como reles,

mas isso não é algo particular e, sim, de todos.

Tese 2: “Não tenho ideais” – em paralelismo com seu primeiro traço biográfi-

co (o de ser vil e reles), Campos mais uma vez define uma qualidade que esperaría-

mos ser algo idiossincrático...

Antítese 2: “Mas não os tem ninguém” – tal como na antítese primeira, o hete-

rônimo frustra nossa expectativa de definição particular, universalizando seu ceticis-

mo; esse atravessar de adversativas implícitas (ou não) marca intervalos no poema,

em que o poeta diz ser algo, só para em seguida dizer algo oposto...

Tese 3: “Quem diz que os tem é como eu” – se o heterônimo principia os dois

primeiros versos com teses em que aparentemente se diferencia de todos (para de-

pois se igualar), este terceiro começa com a igualdade: quem diz ter ideais é como ele...

Antítese 3: “mas mente” – a adversativa aqui é explícita pela primeira vez no

soneto, distinguindo do heterônimo toda a gente que não confessa seu ceticismo;

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Campos, portanto, faz-se único por ter a coragem de declarar sua vileza e descrença,

(tal como na vileza mais demoradamente declarada no Poema em Linha Reta).

Tese e Antítese 4: “Quem diz que busca é porque não os tem.” Em argumen-

to perfeitamente lógico, Campos denuncia como hipocrisia a fala de quem diz “bus-

car ideais”, pois, se há uma busca, isso quer dizer que o idealista não encontrou ainda

os ideais, ou seja, que “não os tem”.

Tese e Antítese 5: “É com a imaginação que eu amo o bem. / Meu baixo ser

porém não mo consente.” Mais uma vez o heterônimo apresenta uma qualidade

definidora (seu amor ao bem em imaginação), só para contradizê-la no verso seguinte,

confessando que sua baixeza não permite a consumação desse amor. Na pena de

Campos, o feito é imediatamente desfeito, a tese invoca a antítese.

Tese e Antítese 6: “Passo, fantasma do meu ser presente, / Ébrio, por inter-

valos, de um Além.” O poeta é tese e antítese de si mesmo! Se Pessoa é tese, Cam-

pos é antítese, “fantasma” heteronímico do “ser presente” que é Fernando; é nesse

sentido que Campos é “ébrio (...) de um Além”, enquanto o ortônimo tem “febre de

Além”, sendo essa embriaguez um intervalo cético na crença metafísica de Pessoa.

Tese Paradoxal, Antítese e “Antítese da Antítese” 7: “Como todos não

creio no que creio. / Talvez possa morrer por esse ideal. / Mas, enquanto não mor-

ro, falo e leio.” Na Volta do v.9, Campos resume a operação de seu pensamento,

confessando que não crê no que crê – donde vem cada verso a desdizer o dito no verso

anterior. Essa tese paradoxal é, ela mesma, desdita pela absurda e bem-humorada

afirmação, no verso seguinte, de que o poeta talvez pudesse morrer pelo ideal de que

não crê no que crê – e essa possibilidade transforma a confissão de descrença numa pos-

sível crença, antiteticamente (não crer na crença = talvez um ideal por que valha a

pena morrer). O terceto finda com uma “antítese da antítese”, indicada pela adversa-

tiva na abertura do v.11 (“mas”); ela nega parcialmente – ou temporariamente – o

ideal de talvez morrer com a vida da poesia: enquanto não morre, o poeta diz e desdiz.

O terceto final é a perfeita expressão do ceticismo de Campos, elaborando per-

guntas que não chegam a ser respondidas, porque imediatamente invalidadas: não

vale a pena justificar-se nem modificar-se. Resta, ao fim do poema, apenas o coração,

esta concretude pulsante da qual não se pode duvidar.

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O poema de Campos é riquíssimo em sentido, não só pelo seu conteúdo, mas

também por seu título e sua participação num ciclo de sonetos que, segundo estuda-

do por MONTEIRO (2000), dialoga com a tradição romântica da poesia inglesa – só

que dialoga ceticamente. Em seu ensaio “Speech, Song and Place”, George Monteiro

explica que, na tradição sonetística, Bowles & Wordsworth celebram rios reais em

sonetos meditativos que formam sequências lógicas. Ora, é justamente isso o que faz

Campos em Barrow-on-Furness, só que com três qualidades que levam, nos seus versos,

o ceticismo a uma outra dimensão.

1. Se Bowles e Wordsworth celebram o rio em termos pastoris – em cenas sil-

vestres (“part of sylvan scenes” nas palavras de Monteiro) –, o rio de Campos encon-

tra-se num ambiente industrial, numa cidade que, por seu rápido crescimento desde

fins do século XIX, chamar-se-ia a “Chicago Britânica” – local ficcionalmente con-

vincente para a presença do engenheiro Álvaro de Campos.

2. Esta cidade é chamada “Barrow-in-Furness”, quase o mesmo título da guir-

landa de sonetos camposianos, estando a diferença apenas na preposição – “on” no

título dos poemas. Monteiro encontra, num texto de Campos de 1926, uma outra

referência à cidade Barrow-in-Furness (com “in”), o que o leva a cogitar duas possibili-

dades: ou a editora Ática teria publicado o ciclo de sonetos com um erro de leitura

(editando “on” em vez de “in”), ou Pessoa-Campos teria cometido o erro de propó-

sito. “Barrow”, numa de suas acepções etimológicas, significa “promontório”; Fur-

ness é o nome da península inglesa em que tal promontório se encontra; logo, tal

“Barrow” está “in” e não “on” Furness. No soneto, porém, Furness não é apenas

referência à península inglesa, mas sim o rio “Furness”, que na realidade jamais exis-

tiu. Na obra de Campos, a preposição estaria, contudo, perfeita: o local poético em

que se encontra Campos está no rio (on Furness) e não na península (in Furness). Se

Campos já se distinguia do romantismo inglês por tratar de um rio urbano e não sil-

vestre, agora diverge ainda mais, pois este rio heteronímico é imaginário, enquanto os

de Bowles e Wordsworth celebravam a vera natureza local.

3. Monteiro nota, ainda, que a meditação de Campos não faz homenagem aos

predecessores ingleses por mera imitação (que visasse a superar os românticos em

seu romantismo): o rio de Wordsworth, cuja meta é o oceano, desafia o poeta inglês

a encontrar um propósito igualmente grande em seu fluir; como diz Monteiro (2000),

o propósito do rio de Campos é outro e bem distinto:

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Campos’ river serves not to challenge the poet to strive to achieve higher purposes or even to think higher thoughts, but only to put the ironies of the poet’s life into relief.

Essas ironias de que fala Monteiro também encontram suporte na troca de

preposição “in” por “on”. Se os poetas ingleses observavam seus rios do alto de

uma montanha, ou espreguiçados nas gramadas margens fluviais, Campos está senta-

do “numa barrica” (Soneto II). A barrica sobre a qual Campos observa seu rio lem-

bra o barril em que “Diógenes, o Cínico”, observava o mundo – ambos cosmopoli-

tas, ambos realizando uma crítica mordaz dos costumes humanos, denunciando sua

hipocrisia. Ceticismo e cinismo são mesmo atitudes similares ao duvidarem das mo-

tivações humanas. Do alto de sua barrica, Campos é o promontório, o próprio “bar-

row” on Furness, apenas um montinho acima do nível do rio da vida que vê passar,

suficientemente alto para criticar suas aparências. Aliás, foneticamente, “barrow” soa

como “barrel”: o promontório confunde-se com o cínico barril.

Longe da descrença total do niilismo, encontramos no ceticismo uma oscilação,

intervalando as certezas da crença com as mil suspeitas da descrença. Vejamos agora

o Paganismo que, nos sonetos de Pessoa, exibe uma espécie complicada de descren-

ça, a qual, vista de outro lado, é também uma crença, paradoxalmente.

À Grécia Não foram os teus deuses destronados, Pois não têm trono a graça e a beleza. Nem /*foram/ do Olimpo desterrados Fora do tempo e espaço e da incerteza Que às vidas naturais a essência lesa, Viveis ainda, calmos, recortados, Sonhando mundos de tal inteireza E perfeição, que o nosso ☐ /*-ados/ Vivem ainda, mais reais do que este Mundo cansado que os sonhou, e chora O tempo quando foram e tu deste, Ó Grécia, o exemplo ☐ que rememora Em cada aurora que de orvalho veste Ao coração pagão de quem a adora.

(Fernando Pessoa, circa 1910)

Este poema não apresenta qualquer data no testemunho, e SFD3 (que primeiro

o editaram em 2006) não fazem qualquer conjectura de datação. Na cota “36-5”,

imediatamente seguinte à do poema, encontramos um texto fragmentário com a data

“5/3/10” e que principia pelo algarismo romano “II”, aparentando a mesma caligra-

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fia e tinta do soneto À Grécia, como se se tratasse de um poema a continuar o tema

do grego – o que nos permite conjecturar a data do soneto pagão.

Em prosa sem data, Pessoa escreve sobre a Grécia (com grifo nosso abaixo):

Sempre que a nossa civilização tem contrariado o espírito de racionalidade, de har-monia e objectividade, a nossa civilização tem decaído. Decaiu em toda a parte onde a Inquisição, ou outra qualquer tirania semelhante, pôs peias ao pensamento individu-al. Libertou-se onde se estabeleceu a Reforma — não que o espírito dos Reformado-res fosse, de per si, mais tolerante que o dos católicos; mas a necessidade de livre exame abriu, mau grado seu, as portas à Razão. E onde a Razão entra, entra a Grécia; e onde a Grécia entra, entra a civilização.

(In: SERRÃO, 1980)

Esta exaltação da Grécia, na prosa elogiando sua Razão e civilização, no soneto

de 1910 eleva e adora o paganismo grego. Esse paganismo de 1910 antecipa a encar-

nação Pagã que seria o Mestre Alberto Caeiro – dizemos “seria” pois Caeiro era mais

que pagão: era o próprio Paganismo. Caeiro jamais escreveu sonetos – e jamais os

poderia ter escrito em sã consciência, dada a liberdade formal de seus versos, que

refletia a liberdade de sua vida. No entanto, para entender o Paganismo em Pessoa é

preciso mergulhar no mundo de Caeiro, encontrando o Poema V de O Guardador de

Rebanhos, em que o Pastor, a certa altura, inicialmente nega o nome “Deus” às coisas

naturais:

(...) Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e árvores e montes, Se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol. (...)

Na seqüência dessa demolição pagã, porém, Caeiro, de tanto descrer, acaba

crendo... a negação absoluta da transcendência torna-se uma “metafísica do aqui-e-

agora” – e isto é obedecer a Deus, obedecer verdadeiramente a Deus, segundo Caeiro.

(...) E por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora.

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Mantendo em mente este paradoxo pagão, voltemos ao soneto À Grécia, em

que dois versos encerram a contradição crença-descrença.

Há uma mútua criação sonhadora de mundos no soneto, pois tanto os deuses so-

nham mundos (v.7) quanto este mundo os sonha (v.10). O segundo axioma – o de nosso

mundo sonhar deuses – lembra a gênese antropológica das divindades ao fim do

soneto Divina Comédia de Antero de Quental: “Mas os deuses, com voz inda mais

triste, / Dizem : – 'Homens! porque é que nos criastes?'.”

O soneto À Grécia, porém, não é niilista, nem cético – apenas paradoxal –, pois

os deuses, ainda que sonhados por humanos, são “mais reais do que este mundo”...

E eles “não foram destronados”; ainda vivem, “calmos”, como bem sabe “o coração

pagão” – coração de quem adora a Grécia, como o de Ricardo Reis, discípulo de

Caeiro que, prefaciando o livro do Mestre, declara: “o grande Pã renasceu!” Caeiro é

um desses deuses que não foram destronados, numa Grécia pessoana atemporal.

É pagão o classicismo de Ricardo Reis, cujas odes de corte tanto pindárico co-

mo horaciano são uma longa homenagem à Grécia Antiga (e ao que de grego havia

em Roma). Há, nas margens da definição de soneto, um poema que cogitamos atri-

buir ao paganismo de Reis (e que já visitamos):

Trago nas mãos as oferendas todas Com que se a Primavera depois veste De nova, e as /*árv’res/ saem dos troncos negros Para a sua palavra de verdura. Meus braços são só brancos no intervalo Da trazida folhagem que os atulha. Meus olhos viram a manhã nascer E no olhar o relembram, que estremece Com a alegria de melhores horas Se pensa no presente. A minha voz Erguida é como a fonte no sossego Da sombra que copada a árvore jaz Na relva curta, e o viandante esquece A árdua necessidade de um destino.

(Ricardo Reis?, /*1918/)

Conjecturamos como de Ricardo Reis a autoria deste “soneto” nada tradicional

(vide “Atribuição” e “Soneto?” na primeira parte desta tese). A temporalidade deste

poema lembra o paganismo de Caeiro, para quem o tempo não passa de modo linear,

teleológico. Nada é menos teleológico do que esquecer “a árdua necessidade de um

destino”, na conclusão desta paisagem primaveril e meditativa, em que o caminhante

se perde e se deixa perder, sem se preocupar, ficando apenas a ver. Como escreveu

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Eduardo Lourenço (1979), “em Alberto Caeiro tudo conflui numa espécie de presente

eterno” – ambição ecoada na tentada “promoção do efémero a eterno” (LOURENÇO,

idem) na obra de Ricardo Reis... marca pagã do poema acima.

Atravessemos o Paganismo rumo às regiões de mais clara crença em Pessoa, al-

cançando as manifestações do Cristianismo nos sonetos ortônimos. Comecemos por

um poema justamente intitulado Cristo.

O deus Ódin é louro como o sol Mas o seu corpo é branco como o luar Muito antes que o sussurro do arrebol Comece no horizonte a esverdear.

O deus Apolo é belo como a face Da natureza quando é primavera A sua ☐ é rapace Do que em nós ☐

Mas aquele da cruz? o que na frágua Do sofrimento é frio no estertor? Porque é que quando o fita perde a cor

A alma? Qual o seu valor? De que é senhor? O da beleza interior da mágoa Da verdade vital da eterna dor.

(Fernando Pessoa, 1911)

Ainda que incompleto, este soneto é significativo para o estudo do Cristianis-

mo em Pessoa. O poema formula uma indagação sobre a beleza de Cristo, após

compará-lo à divindade nórdica de “Ódin” e à grega de Apolo: de que é Cristo senhor?

A indagação pessoana, embora atrevida (dirigida a “aquele da cruz”), não é cética,

terminando por atribuir a Cristo o reino “da beleza interior da mágoa”; trata-se de

um mundo de “eterna dor”, que não é desvalorizado pelo poema, mas sim conside-

rado “verdade vital”, ainda que dolorosíssima.

A tristeza com que Cristo é representado na cruz contrasta com a alegria de

deus pagão vivida por Alberto Caeiro. As representações de Cristo costumam ser

mesmo mórbidas, ao menos na tradição portuguesa – por isso “quando o fita, perde

a cor a alma”. Quem já visitou a Capela dos Ossos em Évora, Portugal, conhece bem

esta sensação de palidez tétrica da alma. No soneto Cristo, o atrevimento do poeta pa-

rece questionar a fealdade dessas representações, tal como a mera aceitação de uma

vida de eterno sofrimento, que a imagem de Cristo na cruz transmite – chegando

mesmo a embasar doutrinas fanáticas de autoflagelação, ditas “cristãs”.

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Talvez para aliviar a dor da Cruz, busca Pessoa a sua história, num “Passo da

Cruz” tardio, escrito 14 anos após a guirlanda “Passos da Cruz” de 1916.

Vieram com o ruído e com a espada Senhores do destino após vencer E uma após outra foi cada mulher Os sucessores esconder da estrada. Eram soldados, com a ordem dada E vinham sobriamente recolher O sangue das crianças a morrer Nos escombros da própria casa achada. Mas longe, sobre o asno do destino, Levava a Mãe piedosa aquela dor Futura que era agora o seu Menino. /*Aperta-o/ ao peito, sob a vaga luz Que /*toldam/ mais as árvores ao sol pôr. De uma, talvez, seria feita A Cruz.

(Fernando Pessoa, 1930)

O que ocorre neste soneto? É notável a diferença entre ele e os Passos da Cruz

publicados em 1916: estes são tão abstratos quanto o de 1930 é figurativo... Em ver-

dade, podemos facilmente dizer o que ocorre no Passo de 1930, ao passo que os sonetos

de 1916 desafiam a interpretação de até mesmo o seu assunto. O motivo do poema

de 1930 é claro – e claramente cristão – narrando a fuga do menino Jesus ante o mas-

sacre das crianças de Belém, ordenado pelo rei Herodes.

O único outro soneto puramente narrativo de Pessoa que agora me vem à

mente é The Death of the Titan (um de seus primeiros poemas): nele, também Pessoa

não filosofa, mas tão-somente conta uma história. No fim do soneto de 1930, po-

rém, há uma visão que escapa à narração, fechando o soneto em estupefação e possi-

bilidade aberta: talvez uma das árvores na paisagem da fuga de Jesus, habitante imó-

vel desta pintura da sobrevivência de Cristo, viesse a fornecer, noutro momento, a

madeira para a Cruz, compondo também a paisagem mais famosa da morte de Jesus.

Eis que a simples narração da cena bíblica se complica, passando de vitral de

igreja a paisagem cubista: numa mesma cena, o poeta enxerga tempos múltiplos, inter-

seccionisticamente; as árvores, que viram velas na Chuva Oblíqua e no poema de Men-

sagem dedicado a Dom Dinis, aqui também podem ser cruz. É talvez este atravessa-

mento de paisagens que faz o poeta intitular o poema narrativo com o mesmo nome

dado às 14 paisagens cubistas dos Passos da Cruz de 1916.

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Em 1908, um poeta europeu contemporâneo de Pessoa passaria ante um torso

divinal e pararia: perante o torso, esse poeta começa a refletir, concluindo, ao fim do

poema, que lhe é obrigatório mudar de vida, tamanho o poder transformador da vi-

são que o arrebata. Este poeta é Rainer Maria Rilke, autor do magistral soneto Torso

Arcaico de Apolo, dedicado ao seu amigo, o mestre escultor Auguste Rodin. Na tradu-

ção de Manuel Bandeira, segue o poema de Rilke, originalmente em alemão:

TORSO ARCAICO DE APOLO Não sabemos como era a cabeça, que falta, de pupilas amadurecidas. Porém o torso arde inda como um candelabro e tem, só que meio apagada, a luz do olhar, que salta e brilha. Se não fosse assim, a curva rara do peito não deslumbraria, nem achar caminho poderia um sorriso e baixar da anca suave ao centro onde o sexo se alteara. Não fosse assim, seria essa estátua uma mera pedra, um desfigurado mármore, e nem já resplandecera mais como pele de fera. Seus limites não transporia desmedida como uma estrela; pois ali ponto não há que não te mire. Força é mudares de vida.

(RILKE. Tradução de Manuel Bandeira)

Também Pessoa se detém ante uma imagem do divino – uma “Cabeça”, justa-

mente a primeira parte que faltava ao torso contemplado por Rilke. Também como

ocorre com Rilke, o objeto contemplado por Pessoa instiga uma mudança, um en-

tendimento profundo no poeta.

Cabeça augusta, que uma luz contorna, Que há entre mim e o mundo que me faz (Porque em espinhos a auréola se torna?) Ansiar a minha morte e a tua paz? A tua história — Pilatos ou Caifás Que tem? São sonhos que o narrar transtorna. Não é esse o calvário a que te traz Tua sina onde todo o fel se entorna. Não. É em mim que se o Calvário ergueu. É em meu coração abandonado Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu. Quem na Cruz onde está ermo e pregado O pregou? Foi Romano ou foi Judeu? Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!

(Fernando Pessoa, 1933)

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Toda a culpa cristã transborda deste soneto singular: se a realização de Rilke era

inspiradora, a de Pessoa é profundamente dolorosa. Percebendo Cristo dentro de si,

especificamente no “coração abandonado”, Pessoa reconhece sua própria vida como

Calvário – para, ao fim do poema, ver também em si mesmo o algoz deste Calvário

interior... tudo isso a partir da meditação sobre a “Cabeça augusta que uma luz con-

torna”, a face de Cristo.

É interessante notar que, se nos quartetos o poeta invoca na 2a pessoa a “Cabe-

ça augusta” de Cristo, nos tercetos a ela se refere na 3a – afastando de si a visão de

Cristo na mesma medida, inversamente proporcional, em que Cristo surge em seu

coração. Talvez seja a culpa de Pessoa a responsável por afastar a pessoa do prono-

me, proteção irracional e involuntária da negação de um crime.

É apenas no último soneto que Pessoa dedica a Cristo que há alguma paz reli-

giosa. É outra vez a visão do rosto de Jesus que move o soneto, como se o poeta o

pintasse à medida que escreve.

O Rei O Rei, cuja coroa de oiro é luz Fita do alto trono os seus mesquinhos. Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos E por trono Lhe deram uma cruz. O olhar fito do Rei a si conduz Os olhares fitados e vizinhos Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos, As pálpebras descidas de Jesus. O Rei fala, e um seu gesto tudo prende, O som da sua voz tudo transmuda. E a sua viva majestade esplende; Meu Rei morto tem mais que majestade: Diz-me a Verdade aquela boca muda; E essas mãos presas dão-me a Liberdade.

(Fernando Pessoa, 1935)

Comparemos os dois “retratos em soneto” que Pessoa faz. Ainda que ambos

evoquem Cristo, suas conclusões não poderiam ser mais distintas: o primeiro poema

termina em culpa e sofrimento – já O Rei finda em Liberdade.

Que religiosidade apresenta este soneto de 1935? Se o poeta se confessa cris-

tão ao se dirigir a Cristo como “meu Rei”, também se confessa místico ao dizê-lo

diretamente a Ele – em diálogo de olhares que se comunicam, diálogo entre os olhos

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do poeta e “as pálpebras descidas de Jesus”. A mudança de vida que ocorria no en-

contro de Rilke com Apolo, no soneto de Pessoa ganha o sentido milagroso da

transmutação: a cruz torna-se vida, o calar de Jesus torna-se a Voz a Verdade, as

mãos presas tornam-se Liberdade.

Compare-se este falar de Jesus com o fim do soneto No Túmulo de Christian Rosen-

creutz, em que o “mestre Roseacruz conhece e cala” – o calar de Jesus não é frustran-

te como o de Roseacruz; pelo contrário, é revelação (o oposto da verdade escondida).

No verso do manuscrito de O Rei há outro poema cristão que, mesmo incom-

pleto, complementa perfeitamente o primeiro soneto, formando um dístico: um po-

ema dedicado a Cristo, outro à Virgem Maria, também o nome da mãe do poeta,

Maria Magdalena Pinheiro Nogueira.

Mãe de Deus, porque tu a Deus criaste, Filha de Deus, pois Ele te criou, Irmã de Deus, pois Ele te enviou, ‘Sposa de Deus, pois virgem tu ficaste, Eterna, transcendente e frágil haste Que abre ao alto em Mulher, na que baixou À terra, a dar à Eva que pecou A seiva do carinho que lhe achaste. És tu que dás às mães o ☐ afago És tu ☐ /*-eijo/ Tu és a alma da Mulher ☐ /*-ago/ E se o que penso é com o amor afim, E em minha inspiração sinto o teu beijo, Mãe, mãe de Deus, mãe do Divino em mim.

(Fernando Pessoa, 1935)

O poema apresenta uma assinatura interessantíssima entre parênteses, que liga

semanticamente este soneto ao poema anterior (O Rei) e ao tríptico que Pessoa viria a

preparar para publicação (que não chegou a ocorrer) na revista Sudoeste de Novembro

do mesmo ano (No Túmulo de Christian Rosencreutz). Eis a inscrição:

(A Mulher, Rosa nesta Cruz que é o mundo)

Ora, “O Rei” é a Cruz; “Mãe de Deus” é a Rosa; Christian Rosencreutz é Rosa-

e-Cruz, ou Rosa-Cruz. Nada mais natural que temas afins fossem tratados por Pes-

soa nestes sonetos.

Daí discordarmos de PRISTA que, além de levantar a hipótese de se tratar de

uma assinatura (“quase assinatura?” em suas palavras), considera a alternativa de os

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parênteses indicarem um verso que o poeta teria dubitado. Após a conclusão impe-

riosa do soneto no v.14, algo entre parênteses que não rima com nada e separado por

um espaço... ao nosso ver está mais para assinatura, interessantíssima assinatura.

O primeiro quarteto a Maria desenvolve uma visão religiosa muito mais próxi-

ma do hinduísmo místico que do Cristianismo atual*. Eis que, no terreno da crença

pessoana, deslizamos do Cristianismo ao Misticismo. Pessoa-ele-mesmo chegou a

declarar-se “cristão gnóstico”, combinando estas duas dimensões religiosas.

Posição religiosa: Cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas or-ganizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais diante estão im-plícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

(Nota biográfica de 30 de Março de 1935)

Todas as partes místicas das religiões se parecem, visto que o misticismo en-

tendido como “crença na comunicação direta com Deus” transcende as fronteiras

das denominações religiosas. É nesse sentido que o primeiro quarteto pessoano do

soneto a Maria lembra o misticismo hindu. Segundo Sri Caitanya Mahaprabhu

(1486-1534), existem vários modos de se relacionar com Deus, tomando-o, por

exemplo, por Pai/Mãe, filho/a, irmã(o), amigo/a ou mesmo amante, sem que haja

nisso qualquer idéia de pecado. Isso é bem próximo das várias faces que Maria as-

sume no soneto de Pessoa: Mãe, Filha, Irmã e mesmo Esposa de Deus.

Ao fim do poema, o poeta traz a divindade para dentro de si mesmo, num ou-

tro exemplo de uma religiosidade mais mística que tradicional: a “Mãe de Deus” é

também a “Mãe do Divino em mim”. Essa identidade entre Deus e o indivíduo é

blasfema para certos grupos religiosos, que a vêem como incrível megalomania de se

igualar o sujeito a Deus; ainda que o ser humano, segundo a Bíblia, tenha sido feito

“à imagem e semelhança” do Criador, para tais grupos religiosos isso só quer dizer

que o humano é feito de um pequeno punhado de matéria divina, que, embora divina, é

parte infinitesimal de um Deus infinito: se o indivíduo possui a mesma qualidade de seu

Criador, não a possuiria, pois, em mesma quantidade infinita.

Essa cautelosa distinção soa ridícula ao misticismo, especialmente para um poe-

ta como Pessoa, a quem estas quantidades não passam de vagueza ilusória em meio à

imensidão de tudo. No misticismo pessoano, tal como no hindu, a alma é idêntica a

* Durante a defesa desta tese, em 28 de Março de 2012, A Prof ª. Maria Helena Nery Garcez lembrou uma antiga oração cristã em que Maria é apresentada como mãe e esposa de Deus.

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Deus, indefinivelmente. Isto só não é evidente a toda hora, devido ao véu de ego que o

sujeito interpõe entre si e a Verdade: véu da ignorância. O sujeito é capaz de se comu-

nicar com Deus justamente porque a alma e o Divino compartilham das mesmas

propriedades: imortalidade, consciência, júbilo (no hinduísmo, Sat, Chit, Ananda, res-

pectivamente).

Estas três propriedades surgem aqui e acolá nos sonetos de Pessoa.

A transmigração da alma surge no poeta desde 1902, quando o Dr. Pancrácio,

sempre meio a sério, meio a rir, conclui o soneto Metempsicose, título traduzível justa-

mente por transmigração da alma: “É a sua alma pura que em minh’alma habita!”

Nos 35 Sonnets, é recorrente a idéia de uma alma imortal, mais idosa que a Na-

tureza, que o Tempo, que as estrelas – transmigrando de corpos a corpos, até se

identificar com o poeta... Cito algumas dessas passagens de alma imortal:

My soul is a stiff pageant, man by man, Of some Egyptian art than Egypt older (…)

(Fernando Pessoa. In: Sonnet XXII, 1918)

Something in me was born before the stars And saw the sun begin from far away. (...)

(In: Sonnet XXIV, 1918) I am older than Nature and her Time By all the timeless age of Consciousness, (…)

(In: Sonnet XXXI, 1918)

Como sugere a última citação acima, essa imortalidade da alma é Consciente – a

segunda propriedade que a alma mística compartilha com Deus. No soneto “Então,

porque pensar conduz ao ermo”, de 1930, Pessoa distingue essa consciência metafísi-

ca do limitado pensar:

(...) Mais vale a estrada que pensar; mais dura A consciência da minha alma escura Que o sol na aldeia, como azul do ar.

Mesmo que gozasse de consciência (Chit) e imortalidade (Sat), que seria de uma

alma sem júbilo, eternamente consciente... mas a sofrer? No misticismo hindu, é o

júbilo (Ananda) que completa, na alma, a tríade de qualidades que espelham Deus.

Este júbilo parece estar em Pessoa mesmo em seus sonetos mais tristes – às vezes

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como ironia espalhafatosa de um Campos, outras como humor sutil do ortônimo,

algumas vezes ainda como notável júbilo, magnífica sensação conhecedora de Deus:

(...) Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações...

(In: Passos da Cruz XIII, 1914)

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3.3.4. O que sou?

“Quem sou, que assim me caminhei sem eu, Quem são, que assim me deram aos bocados

À reunião em que acordo e não sou meu? ”

(In: “Quem me roubou quem nunca fui e a vida?”, 1930)

Quem é, afinal, Fernando Pessoa? Eis a pergunta que inevitavelmente fazem,

em voz alta ou a si mesmos, todos os estudiosos da obra de Fernando Pessoa ao fim

dos seus estudos... E continuarão fazendo, pois a resposta são muitas. Dizemos

“são”, no plural, propositadamente, tal como o poeta na epígrafe acima: logo após

perguntar “quem sou”, ele indaga “quem são”, como se estivesse a corrigir-se.

Costuma-se dizer, graciosamente, que os quatro maiores poetas portugueses do

século XX foram Fernando Pessoa: Caeiro, Campos, Reis e Fernando ele mesmo. Se

contarmos as personagens de menor tamanho – alguns do tamanho de um único

soneto – Fernando Pessoa foram 127 pessoas, que Cavalcanti Filho (2001) se deu ao

trabalho de biografar.

Nos sonetos, as pessoas de Pessoa somam 14 vidas distintas, curiosamente o

mesmo número de versos num soneto. Estas pessoas de soneto costumam definir-se,

direta ou indiretamente, de 3 modos distintos:

1. negando o que são,

2. cogitando que talvez sejam ou não sejam algo

3. e afirmando o que são.

Vejamos, nesta última microleitura de nosso estudo de Pessoa, as múltiplas

respostas que o poeta e seus heterônimos dão à pergunta “o que sou?” – conforme

tais respostas venham surgindo nos sonetos. Esta pergunta é a versão pessoana da

questão central da Filosofia – “o que é o ser humano?” No anseio de compreender o

ser, as pessoas em Pessoa cantam e calam sua identidade, competindo pela assinatura

de pequenos corpos de sonetos para ganhar alguma existência.

O primeiro a encarnar um soneto em Pessoa foi o Dr. Pancrácio, cujo nome é

significativo; combinando os radicais gregos “Pan” (todos) + “kratos” (poderes),

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Pancrácio é o “Todo Poderoso”, um deus inicial na série de 14 sonetistas em Pessoa.

Fora do mundo pessoano, Pancratium é uma modalidade de luta livre oriunda do

mundo Grego (praticada por Hércules e outros heróis), assim como o nome de uma

planta, assim chamada por resistir a uma diversidade de climas. Já o heterônimo...

Surge em 1902, [quando Pessoa está] nos Açores. Esse escritor inglês, que reside em Durban, é diretor de A Palavra, colaborador e depois diretor literário de O Palrador [esses periódicos sendo ficções em que habitam apenas heterônimos pessoanos].

(CAVALCANTI FILHO, 2011)

É em O Palrador que Pancrácio publica os seus 4 sonetos, três deles de amor

mais ou menos satírico, e um – o primeiro – seriíssimo, sobre o sonho que é o mun-

do. Em nenhum deles o Dr. Pancrácio se define, mas a ausência de auto-definição é

significativa: em dois dos sonetos amorosos quer Pancrácio ilustrar o que entende

(preconceituosamente) ser a mulher portuguesa e a africana; no terceiro soneto amo-

roso, é a alma da musa que passa a habitar seu ser, em Metempsicose; no soneto Sonho, o

ser de tudo é ilusão, visto que toda vida é sonho. O heterônimo “Todo Poderoso”,

portanto, pelo menos em sonetos não se apresenta como ser algum.

A existência em soneto de Eduardo Lança é muito fugaz: a este heterônimo

brasileiro coube apenas assinar a primeira versão dos quartetos do soneto Antígona,

que nem era chamado “Antígona” nesse primeiro rascunho – havendo o plano de

publicar o poema numa coleção de seus “Sonetos d’Amor”; este plano é bem compa-

tível com a lírica de Lança, visto que, segundo o outro heterônimo Luís António

Congo, Eduardo teria publicado em Lisboa, em 1897, o livro de poemas Coração

Enamorado. Note-se que não foi Lança – e sim o ortônimo em momento posterior –

quem completou o soneto, adicionando a Volta do v.9 em que o Amor “rompe en-

fim os laços crus do Ser” [grifo nosso].

Menos crus que os laços do ser de Lança seriam os de JMC, iniciais que surgem

num soneto inédito, o único que encontramos de JMC, dedicado a maldizer Teófilo

Braga, primeiro líder do Governo Provisório da República Portuguesa, após a abdi-

cação do Rei D. Manuel II, em 1910. JMC não tem papas na língua e, talvez para

proteger-se, assina apenas as iniciais, seu nome completo sendo Joaquim Moura Cos-

ta. Trata-se de um militante republicano cuja existência é totalmente dedicada a ata-

car outrem: fora dos sonetos, seus poemas alvejam a mulher do rei D. Carlos (que

corredia), o poeta Augusto Gil (a quem só falta ser poeta) e o padre Mattos (nascido da

mistura de divinos flatos com mijo de gatos). JMC não se define em sua pouca poesia: ele é

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apenas uma vontade aguda de que outros não sejam – ou que sejam menores, feita a

justiça poética de seus sonetos ferinos.

Pouco mais de um ano após JMC atirar seu soneto contra Teófilo Braga, o he-

terônimo-pássaro Íbis, tão alegre e bem-humorado noutros poemas, assina o seu

único soneto conhecido com tom notavelmente trágico, definindo um angustiado

Ser, justamente no aniversário de 23 anos do poeta Fernando Pessoa:

Vinte e três anos, vãos inutilmente, Sou vinte e três remorsos e fastios. Vinte e três portos de lembrar, sombrios, (...)

Esta definição, aparentemente na afirmativa, na verdade apresenta o sujeito

poético com uma negação, decretando a inutilidade de todo e qualquer esforço até

então feito em sua vida – o Íbis é o que não foi feito nesta vida, ou foi feito de ma-

neira errada (remorsos) ou demasiada (fastios).

O Íbis também se define com sua assinatura icônica, em que um homúnculo

tem ambos os braços e uma perna semi-erguidos, como se estivesse a imitar um pás-

saro – o que de fato costumava fazer Fernando Pessoa em plena rua, para o descon-

certo de seus irmãos Luís e João, quando estes vieram da África do Sul para visitá-lo

em Lisboa.

[Figura 27: Assinatura e ícone do heterônimo Íbis, em 1911]

A assinatura do pássaro-heterônimo também conta com outra versão, ainda

mais graciosa; num caderno pessoano, Íbis tem cabelos engraçadíssimos que lem-

bram os de Fernando Pessoa. Neste desenho, uma figura novamente de perna e

braços levantados surge ao lado de uma figura humana “normal”, esta circunscrita de

maneira a lembrar o homem vitruviano de Leonardo Da Vinci. Íbis seria a vitruviave!

[Figura 28: Homem & Íbis.]

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Se o homem vitruviano guardava, em suas proporções perfeitas, o segredo do

universo (suas “regras de ouro”), o pássaro-Íbis, em seu desequilíbrio bastante des-

proporcional, representaria de maneira cômica a tragédia da busca pessoana, o segre-

do buscado ficando sempre perdido no universo de si mesmo.

Na mesma altura em que o Íbis escreveu seu soneto – talvez um pouco antes –

o poeta assinou com as iniciais “FP” seu soneto mais grosseiro, apresentando até

mesmo um palavrão que Pessoa jamais diria pela pena do ortônimo, só sendo capaz

de xingar sob a máscara de Álvaro de Campos. Quem seria, então, este “FP” – e

quem estaria ele a xingar de modo tão vulgar?

Alma de corno – isto é, dura como isso Cara que nem servia para rabo; Idéias e intenções tais que o diabo As recusou a ter a seu serviço – Ó lama feita vida! ó trampa em viço! Se é pra ti todo o insulto cheira a quiabo – Ó do Hindustão da sordidez nababo! Universal e essencial enguiço! De ti se suja a imaginação Ao querer descrever-te em verso. Tu Fazes dor de barriga à inspiração. Quer faças bem ou mal, /*bufão-sabujo/, Tu fazes sempre mal. És como um cu, Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!

Como contamos no capítulo “Atribuição” desta tese, cogitamos um “FP” dife-

rente do Fernando Pessoa ortônimo para assumir a autoria desses versos escrachan-

tes: o Francisco Paú, diretor da seção humorística do jornal O Palrador. Esta hipótese,

porém, tem seus limites, visto que o periódico parece ter terminado por volta de

1905... e o soneto “Alma de corno...” parece datar de meados de 1910. Além disso, o

humor do poema é violento demais para constar confortavelmente em jornalzinho

tão ingênuo quanto O Palrador. Há algo estranho no achincalhe total deste soneto de

FP, pois nem Teófilo Braga, nem Joseph Chamberlain – increpados respectivamente

pelos heterônimos JMC e Alexander Search – receberam xingamentos tão pesados

quanto os de FP, muito menos palavrões. O xingamento estapafúrdio “Hindustão

da sordidez nababo” lembra as invectivas de Álvaro de Campos no Ultimatum, mas o

tom aqui é outro, simplesmente cruel.

Note-se, ainda, que a segunda pessoa do poema denota intimidade, sendo no

Português de Portugal reservada para pessoas especialmente íntimas. Ora, a única

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pessoa especialmente íntima de Pessoa – em 1910 e sempre – foi ele mesmo, pois

nem o grande amigo Mário de Sá-Carneiro mereceu o tratamento de “Tu”, como

atestam as três cartas (ou rascunhos de cartas) que conhecemos de Pessoa a Sá-

Carneiro. Nossa hipótese é, pois, que o possuidor da “Alma de corno” seja o pró-

prio FP, auto-achincalhando-se de modo tão cruel quanto o de Mário de Sá-Carneiro,

que zombou cruelmente de si mesmo em 1916, chamando-se de “Aquele Outro”...

(...) O raimoso, o corrido, o desleal – O balofo arrotando Império astral: O mago sem condão, o Esfinge gorda.

(SÁ-CARNEIRO, In: Aquele Outro, 1916)

Teríamos, pois, um caso singular de heteronímia: um heterônimo a escrachar,

veladamente, a si próprio, como se o escrachado fosse outro – um alter-ego, espécie de

heterônimo negado de si mesmo. Decerto esse “heterônimo de heterônimo”, alter-

ego de um possível Francisco Paú, é mera charada, servindo apenas para esconder a

autoria de um poema sob a rubrica enigmática “FP”. Há, porém, dois heterônimos

pessoanos que realmente geram, dentro de si mesmos, personagens que se aproxi-

mam bastante do estatuto de heterônimos de heterônimos: Carlos Otto & David Merrick.

Carlos Otto assina o soneto incompleto Sonho de Górgias. Veja-se que quem so-

nha não é Otto, mas o próprio Górgias, a recitar em primeira pessoa o pouco que há

deste soneto incompleto:

Sonhei uma cidade informe e colossal Fora da sensação e idéia de existir À qual nem o amor saberia sorrir Tão estranha ao que nós alcunhamos real. ☐ ☐ ☐ ☐ ☐ Uma figura ☐ de pedra de /*cansaço/ Que do conhecido não ☐ traço. O ceptro do Pavor caíra d’algum braço E jaziam-lhe aos pés ocamente partidas As estátuas do Ser, e do Tempo, e do Espaço.

(Carlos Otto, /*1909/)

Quem é Górgias? Trata-se do retórico grego Górgias de Leontinos, dito “o Niilis-

ta”, que enfrenta Sócrates num diálogo de Platão. O sonho de Górgias termina com

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a destruição “do Ser, e do Tempo, e do Espaço” – como se esses fossem estátuas

“ocamente partidas”...

Em prosa de 1906, Pessoa explica que “Gorgias, of Leontium (...) brought the

eleatic principle to its last consequences: nihilism”, acrescentando que “he goes

beyond Zeno and demolishes being itself ”.

Na mesma prosa de 1906, Pessoa reproduz o argumento cético de Górgias:

Argument: Nothing exists. If anything exists, it must be eternal (Parmenides). What is eternal is infinite; infinite Being is neither in time nor in space, which would limit it «tour à tour». It is nowhere, and what is nowhere does not exist. If (what is impossi-ble) anything existed, we could not know it. And if we could know it we could not communicate this knowledge to others.

(In: COELHO, 1968)

Trata-se de um argumento cético, pois, após deduzir a inexistência do Ser, Gór-

gias (In: EMPIRICUS, 160-210) desacredita parcialmente sua dedução, prosseguindo

o raciocínio como se o ser existisse, só para deduzir novamente uma outra negação –

e o argumento faz isso uma terceira vez, parcialmente aceitando, em saudável ceti-

cismo, a existência do ser, só para em seguida negá-lo, ou negar a possibilidade de

conhecê-lo ou comunicá-lo.

No soneto Sonho de Górgias, estamos diante de uma vertiginosa relação de seres

dentro de seres: temos o poeta Fernando Pessoa (ser de carne e osso) que gera o

heterônimo Carlos Otto (ser de poesia) que empresta sua voz ao retórico grego Gór-

gias (ser de carne e osso), que viveu dois milênios antes deste soneto em que diz so-

nhar um lugar “fora da sensação e idéia de existir”, terminando por demolir o pró-

prio conceito Ser.

No entanto, neste soneto Pessoa não existe. Quem existe é Otto. Contudo,

também Otto se nega, pois quem fala é Górgias que, por sua vez, nega a realidade

duplamente: primeiro, por estar sonhando, segundo, por argumentar, no sonho niilis-

ta, a destruição do conceito do Ser. Ao fim das contas: quem é que existe, se o pró-

prio Ser é negado?

Para complicar ainda mais as coisas, num outro texto de 1906, Pessoa nega o

niilismo de Górgias através do mesmo argumento cético do retórico grego, como se

estivesse a seguir o próprio ceticismo gorgiano, ora negando, ora aceitando o Ser:

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System of Gorgias is idealistic. What it means is that nothing exists of appearance. Gorgias was perhaps a very deep philosopher; if not, he was a happy blunderer. His system makes us reach a conclusion many do not suspect. When he says Being is non-existent because it is out of time and of space, he is hardly a nihilist. He is an idealist, and very much of one. To most deep philo-sophers, even to the philosophers of the Catholic Church, God is immense and eternal. To Gorgias, Being in addition held to be non-existent (as appearance), Being is the only thing existing. The completest idealism results. At least the reas-oning leads thither whatever Gorgias may have meant by it, whithersoever he may have meant it to lead.

Se o soneto de Otto apresentava uma persona dentro do heterônimo, também a

personagem David Merrick contará com uma espécie de “heterônimo de heterôni-

mo”... Eis Marino, o protagonista de uma tragédia escrita por Merrick, de que só co-

nhecemos fragmentos – um deles com um corte de 14 versos e rimas emparelhadas

que cogitamos dentro das possibilidades do soneto.

Thus when I rove along the fragrant fields Everything to me such pleasure yields. The blades of grass, in graceful curve aslant, Have their sweet, springful and melodious chant.

Nothing is dumb: with furious voice enorm Its rude advice doth give the staggering storm; The trees, whose rustling ceaseless to the breeze Seems as the hissing of the summer seas,

Tell wondrous tales of easy, pleasant bowers, Which also tell the bright and early flowers. These pleasures do thou but allow thy mind And when thou readest thou wilt surely find

Books are but Nature’s thoughts in dress diverse, Though never better, yet too often worse.

(David Merrick, /*1904/)

Este fragmento é conhecido como Early Fragment XXIII e é, em geral, atribuído

a Alexander Search; é a assinatura de Search que consta no caderno em que o poeta

passou a limpo textos de juventude que gostaria de preservar, dentre eles o Early

Fragment XXIII. No entanto, como há, em pelo menos duas ocasiões, a atribuição

explícita da peça Marino a David Merrick, deixamos a ele este único soneto.

Quem recita o solilóquio do poema acima? Acreditamos que seja, ou o próprio

Marino, ou uma mulher sem nome explícito que se dirige a Marino no fragmento

imediatamente anterior da mesma peça.

Que diz este soneto sobre o ser pessoano? Trata-se de um elogio da natureza

como fonte primordial de conhecimento – conhecimento que os livros tentariam

imitar, sem jamais lograr vestir os pensamentos naturais com palavras “melhores”

(mais acertadas que as flores e mares e campos), freqüentemente “piorando” as lições

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da natureza. Ora, esta visão de um pensamento natural lembra o heterônimo Alberto

Caeiro, para quem “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-

lhe o sentido” (O Guardador de Rebanhos, IX).

A peça Marino, da qual este soneto de Merrick é mera parte, seria uma tragédia,

tendo-se Pessoa talvez inspirado na tragédia Marino Faliero que Lord Byron escreveu

– embora o Marino pessoano não viesse a morrer guilhotinado como o de Byron,

mas sim afogado no Mar, que etimologicamente pulsava em seu nome: Mar ino. Eis

que, tragicamente, a natureza (Mar) que vivia dentro do ser humano (Marino) o en-

globa, na realização total do ser natural que o soneto pregava – e que o Mestre Caei-

ro, muitos anos depois, viria sintetizar no poema XLVIII: “Corre o rio e entra no

mar e a sua água é sempre a que foi sua”.

A etimologia dos nomes pessoanos é sempre significativa: não só o nome “Ma-

rino” serve de profecia etimológica ao destino do protagonista – também o sobre-

nome “Merrick” é particularmente expressivo. Segundo o dicionário virtual “Behind

the Name”, Merrick é um sobrenome derivado de um primeiro nome normando,

composto dos elementos germânicos “meri” (fama) e “ric” (poder). Lembrando o

significado “Todo Poderoso” do nome Pancrácio, novamente temos um heterônimo

de batismo nada humilde: Merrick é “Fama Poderosa” ou “Poder Famoso”.

Não é só Marino que morre (ou se transforma em Mar), mas também o drama-

turgo David Merrick se torna Charles Robert Anon, que mais tarde se tornaria Ale-

xander Search – daí alguns fragmentos de Marino acabarem com a assinatura de

Search... Na natureza heteronímica de Pessoa, pouco se perde e muito se transforma.

Charles Robert Anon é um heterônimo interessantíssimo. Seu sobrenome,

abreviatura de “Anonymous” (Anônimo), veio a calhar em Junho-Julho de 1904,

quando escreveu ao Natal Mercury, contradizendo um professor do jovem Pessoa

acerca da tradução de uma ode de Horácio. Sendo Anônimo, Charles Robert poderia

criticar em público e, ao mesmo tempo, permanecer protegido.

Em dois versos, de dois sonetos de 1904, o heterônimo Anon busca definir-se:

(...) Oh for a word, one phrase in which to fling All that I think or feel, and so to wake The world; but I am dumb and cannot sing, Dumb as yon clouds before the thunders break.

(Sonnet, Maio de 1904)

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Neste primeiro e primoroso soneto, Anon anuncia um dos temas que persegui-

riam Pessoa ao longo de sua vida: a Incomunicabilidade – especialmente desenvolvida

nos 35 Sonnets que o ortônimo publicaria 14 anos mais tarde, sem que o tratamento

do tema mudasse em qualidade, mas apenas em complexidade. Neste Sonnet, após

lamentar não conseguir dizer o que anseia cantar, Anon qualifica-se como “dumb”

(bobo, estúpido), identificando-se com as nuvens pasmadas ante a força rasgadora do

trovão, o qual não podiam prever. Se Anon é a nuvem boba, quem seria o trovão?

Num soneto sobre a morte (On Death), o heterônimo define-se belamente co-

mo sendo a vida, ainda que ela, ao seu ver, dure tão pouco:

(...) Though strange and sad to one it doth appear That I (who now am life) must soon be dead, (...)

(On Death, Maio de 1904)

No 2o verso acima, dentro dos parênteses, FREIRE (1999) edita a variante 'feel',

enquanto optamos pela versão 'am' que, ao brincar com a regência verbal do Inglês,

parece-nos muito mais expressiva – além de ser a última variante. Pesando o seu ser

entre vida e morte, Anon termina este mesmo soneto em máxima, como se estivesse

a contar “a moral da história”:

(…) I know not death and think it no release – The bad indeed is better than the unknown.

(idem)

Esta máxima contrasta com o estertor do homem Fernando Pessoa em 1935,

que diria “I know not what tomorrow may bring”. Se, em suas horas finais, Pessoa

soaria aberto ao desconhecido, Anon parecia certo de sua preferência pelo conheci-

do, ainda que este fosse mau.

No poema Elegia, de 6 de Abril de 1905, Pessoa deixaria a anotação “C. R. id

est Alexander Search” – e Alexander Search, nascendo como heterônimo, assumiria

sem pejo a autoria de alguns poemas previamente assinados por Anon. Por outro

lado, a já citada carta ao Natal Mercury foi escrita por Anon em Junho-Julho de 1905 –

isto é, dois meses após a decretada transmutação de Anon em Search –, o que faz

dessa dualidade heteronímica um dos muitos paradoxos na vida e obra de Pessoa.

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Alexander Search é o grande heterônimo da juventude de Fernando Pessoa,

nascido no mesmo dia do ortônimo e falecido em 4 de Fevereiro de 1908, pouco

antes de completar 20 anos de idade. Apesar de sua morte precoce, ilustrada por

uma série de epitáfios de 1907 e 1908, Search misteriosamente ressurge e, segundo

CAVALCANTI FILHO (2011: 301) “Por volta de 1911, rabisca um poema em por-

tuguês; e, vez por outra, ainda escreve em Inglês, como um último poema publicado

na revista Contemporânea (1923)”.

Além disso, há pelo menos 3 fragmentos de entrevistas de Alexander Search

com Alberto Caeiro, que, tendo nascido em Pessoa por volta de 1915, também serve

de prova dessa existência post-mortem de Search. Essa relação com Caeiro é central

na vida de Search, pois é com o surgimento de Caeiro que o Pessoa-Search realmente

desaparece – “por não ser mais necessário” (CAVALCANTI FILHO, idem); Alexan-

der Search, em Português “Alexander Busca”, encontra. Está, pois, finda a busca do

jovem Pessoa, ante a presença do Mestre Caeiro. Merrick vira Anon, que vira Search,

que vira Pessoa ao encontrar Caeiro – numa sucessão heteronímica que lembra a

Quadrilha (1930) de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Teresa que amava

Raimundo que amava Maria...”

Sobre o ser de Alexander Search, há um significativo soneto de 1906.

Blind Eagle What is thy name? and is it true that thou A land unknown of men inhabitest? What pain obscure is figured on thy brow? What cares upon thy heart contrive their nest? Of human things the purest and the best No constant beauty doth thy soul allow; And through the world thou bear’st thy deep unrest Lock’d in a smile thine eyes do disavow. Being of wild and weird imaginings, Whose thoughts are greater than mere things can bind, What is the thing thou seekest within things? What is that thought thy thinking cannot find? For what high air has thy strong spirit wings? To what high vision aches it to be blind?

(Alexander Search, Nov. de 1906)

O primeiro título deste poema foi The Poet (Ms. 79-31); ao mudar o título, o

poeta deixou o resto do texto praticamente intocado. Logo, as perguntas do soneto,

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antes de encarnarem o espírito de uma Águia Cega, voltavam-se para o próprio poeta,

em bela metalinguagem.

Qual é o teu nome? (“What is thy name?”). Se soa apenas bela quando dirigida a

uma águia, essa pergunta inicial torna-se completamente pessoana ao sabermos que o

The Poet também se dirige a si mesmo: afinal de contas, qual é o verdadeiro nome

deste poeta que foi tantas pessoas? Segundo a Volta do v.9, sabemos que este poeta-

águia é um Ser de imaginação selvagem e estranha (“Being of wild and weird imaginings”).

Em 1910, o heterônimo Vicente Guedes apresenta uma pista para entendermos

a fragmentação heteronímica de Pessoa:

Quando o Tédio, invencível e infecundo, Nos faz sentir a solidão de ser, E uma monotonia ocupa o mundo, Que mais tem o espírito a fazer (…)

(In: Nunc Est Bibendum, 1910)

O soneto prossegue, passando a defender a bebida como preferida fuga à soli-

dão – e o próprio título latino do soneto quer dizer “Agora é Hora de Beber”. No

entanto, o próprio Guedes, em si mesmo, é mais uma resposta de Pessoa à “solidão

do ser”. Segundo o dicionário etimológico de GUÉRIOS (1973), da raiz germânica

“gada”, o sobrenome de Vicente Guedes torna o heterônimo em “Vicente Compa-

nheiro” – mais um companheiro na populosa solidão do ser pessoano.

Outro breve companheiro foi Diniz da Silva, declarando de supetão sua loucu-

ra no soneto Eu, por vezes atribuído ao próprio ortônimo.

Eu

Sou louco, e tenho por memória Uma longínqua e infiel lembrança De qualquer dita transitória Que sonhei ter quando criança. Depois, maligna trajetória Do meu destino sem esp’rança, Perdi, na névoa ou noite inglória, O sonho e o arco da aliança. Só guardo como um anel pobre Que o tê-lo herdado só faz rico, Um fim perdido que me cobre Como um céu dossel de mendigo, Na curva inútil em que fico Da estrada certa que não sigo.

(Diniz da Silva, Paris, 24-9-1923)

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CAVALCANTI FILHO (2011) nota que o título deste soneto é o mesmo que

o do único livro do poeta pernambucano Augusto dos Anjos, publicado em 1912,

contendo sonetos hoje célebres que também abordam o tema do ser e da loucura.

Diniz da Silva é um poeta modernista que, como Mário de Sá-Carneiro, vive

em Paris. Outra semelhança entre esses poetas é o tema da Loucura; Sá-Carneiro

chega a escrever um ensaio chamado Loucura (1910), dedicado à vida do seu amigo

escultor Raul Vilar. Também Loucura é o título geral dos 3 poemas que Pessoa pu-

blica na revista Europa – o soneto “Eu” sendo um desses textos.

Sentindo-se imobilizado, Diniz da Silva está parado “numa curva inútil” de

uma “estrada que não” segue. A curva e a estrada são significativas, pois curva é sím-

bolo de mudança de direção – que aqui não se altera, já que o heterônimo é imóvel.

Compare-se o ser imóvel de Diniz com a estrada do “soneto” não-convencional

que atribuímos a Ricardo Reis:

Trago nas mãos as oferendas todas Com que se a Primavera depois veste De nova, e /*as árv’res/ saem dos troncos negros Para a sua palavra de verdura. Meus braços são só brancos no intervalo Da trazida folhagem que os atulha. Meus olhos viram a manhã nascer E no olhar o relembram, que estremece Com a alegria de melhores horas Se pensa no presente. A minha voz Erguida é como a fonte no sossego Da sombra que copada a árvore jaz Na relva curta, e o viandante esquece A árdua necessidade de um destino.

(/*Ricardo Reis/, /*1918/)

Se Diniz estava parado, o protagonista deste outro soneto, que traz nas mãos as

oferendas todas, não pára, viandante esquecido da “árdua necessidade de um destino”. O

verso faz-nos lembrar a máxima da escritora Clarice Lispector (1949), segundo a qual

“perder-se também é caminho”. Note-se que, embora Diniz páre e a persona que

identificamos com Reis passe sem preocupações de chegar... ambos os heterônimos

estão, a seu modo, perdidos: um, em sua loucura, outro, na paisagem natural com

que se irmana.

Também perdido, o grande heterônimo Álvaro de Campos não sabe onde está,

nem quer saber, berrando-o ao fim do seu último soneto:

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(...) Mas onde a gente está, ou eu, não sei... Não quero saber mais de nada mais E berdamerda para o que saberei.

(In: Regresso ao Lar, 1935)

No mesmo soneto, valorando como Diniz & Reis a metáfora do caminho,

Campos define-se como comboio que encontra a pedra no meio do caminho de sua infância

(“imóvel ponto preto”), terminando por ser ejetado do seu trajeto:

(...) Sonetos são infância, e, nesta hora, A minha infância é só um ponto preto, Que num imóbil e fatal trajecto Do comboio que sou me deita fora. (...)

(In: Regresso ao Lar, 1935)

Diniz era imóvel; Reis era caminho; Campos é o trem que, pelo caminho, coli-

de com algo imóvel, tendo seu ser expulso desse mesmo trem. O que isto quer di-

zer? Quem é Campos, afinal?

Não é Campos quem a isso responde, limitando-se a dizer o que não é: “Não

sou meu ser, nem sou meus pensamentos” (no soneto sem data “Estou ‘screvendo

sonetos regulares”).

Fernando é o último em nossa lista de 14 personae nos sonetos de Pessoa. Nes-

ses poemas, o ortônimo não só ilustra sua vastidão heteronímica, mas também reflete

sobre ela de maneira quase obsessiva, como se estivesse a buscar, vez após outra,

uma resposta que pudesse satisfazer as suas muitas almas.

Para Fernando, falar de si mesmo é falar de muitos, os muitos seres que explo-

diram o seu ego, transbordando-se para fora de si.

Abismo de ser muitos! Noite minha! Encruzilhada do meu vasto ser! Quem quero que seja eu? Quem, no entrever Do que fui, treva anônima e mesquinha? (...)

(Fernando Pessoa, /*1929/)

O caminho, no ortônimo, é encruzilhada, ante a qual Fernando pára e indaga:

“Quem quero que seja eu”? Que caminho percorrer?... como se as possíveis vias

fossem dar não noutros lugares, mas noutras pessoas. Por este caminho ou “abismo

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de ser muitos”, o poeta conversa consigo mesmo – sendo este “diálogo a sós” um

precioso símbolo da heteronímia:

Converso às vezes comigo E esse diálogo a sós Com o impossível amigo Que sonha cada um de nós, Vai de clareira em abrigo Ouvido, visto, veloz Nas expressões que consigo Das sombras a que dá voz. (...)

(Fernando Pessoa, 1924)

Quantos amigos brotariam do ser pessoano? Tal como Zeus a expulsar seus

irmãos olímpicos do âmago de Cronos, que os engolira, Pessoa busca desembrulhar os

muitos indivíduos de dentro de si, para dar a cada um deles a vida necessária.

Por mais que tente, não me desembrulho. Há qualquer cousa de confuso em mim. Lá pela confusão não dar barulho, Não quer dizer que lhe não seja afim. (...)

(Fernando Pessoa, 1932)

No entanto, o poeta não se desembrulha totalmente; mesmo expulsando de si

tantos heterônimos, permanece algo confuso e obscuro dentro dele – uma confusão

que está, na realidade, localizada em parte especial: o centro do seu ser.

Qualquer coisa de obscuro permanece No centro do meu ser. Se me conheço, E até onde, por fim mal, tropeço No que de mim em mim de si se esquece. Aranha absurda que uma teia tece Feita de solidão e de começo Fruste, meu ser anônimo confesso Próprio, e em mim mesmo a externa treva desce. (...) Teve a eterna infância, Em que comigo fórma um mesmo ente.

(Fernando Pessoa, 1933)

Na multiplicação de personae, Fernando é o grande pai de todos e, ao mesmo

tempo, apenas mais um: quanto mais dá à luz seus filhos-poetas, mais ele mesmo se

torna e se confessa anônimo: “ser anónimo confesso”.

Por trás de tantas máscaras, quem é o verdadeiro poeta? Eis a pergunta que,

desde 1918, Pessoa já formulava num dos 35 Sonnets.

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How many masks wear we, and undermasks, Upon our countenance of soul, and when, If for self-sport the soul itself unmasks, Knows it the last mask off and the face plain? The true mask feels no inside to the mask But looks out of the mask by co-masked eyes. Whatever consciousness begins the task The task’s accepted use to sleepness ties. Like a child frighted by its mirrored faces, Our souls, that children are, being thought-losing, Foist otherness upon their seen grimaces And get a whole world on their forgot causing; And, when a thought would unmask our soul’s masking, Itself goes not unmasked to the unmasking.

(Fernando Pessoa, 1918)

Quem é este poeta? Trata-se de apenas uma máscara que não se sabe másca-

ra?... Ou de um ser que, sabendo-se todas as máscaras, também permanece Pessoa

por trás delas?

No mais belo soneto sobre a heteronímia, Pessoa sintetiza seu imenso ser: eis

uma multidão de seres meus e fóra – a heteronímia como um fenômeno inevitável na des-

cida da “vasta escadaria” do ser pessoano, este “múltiplo mesmo que se ignora”.

Dia a dia mudamos para quem Amanhã não veremos. Hora a hora Nosso diverso e sucessivo alguém Desce uma vasta escadaria agora. É uma multidão que desce, sem Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fóra. Ah, que horrorosa semelhança têm! São um múltiplo mesmo que se ignora. Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo. E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo. Sinto-os a todos dentro em mim mover-me, E, inúmero, prolixo, vou descendo Até passar por todos e perder-me.

(Fernando Pessoa, 1933)

Tal como o próprio soneto, Fernando Pessoa é pequeno e infinito: pequeno, pois

seu ego é apenas um na multidão da heteronímia pessoana; infinito, pois este ego se

implodiu, gerando espaços infinitos. Deus de sua própria criação, Pessoa fez o que

qualquer Deus, sabendo e podendo tudo, faria: ele a toda hora se surpreenderia.

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