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Apresentação Congresso
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RECEPÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO POR ALUNA DO ENSINO MÉDIO:
A IMPORTÂNCIA DE SE VALORIZAR AS PRIMEIRAS
IMPRESSÕES DE LEITURA
Hiudéa Tempesta Rodrigues Boberg (UENP)
Preliminares
É preciso inicialmente esclarecer a inclusão desse trabalho no Simpósio
“Literatura Infantil e ensino de literatura”, embora se trate de uma exposição sobre o
envolvimento de aluna do ensino médio com a leitura literária. O conjunto de textos
lidos por ela, durante a investigação aqui descrita, constituiu-se de contos infantis
adaptados em diferentes gêneros textuais e em diferentes suportes. Em virtude dessas
características e da importância de tal repertório no processo da pesquisa se justifica
demonstrar o tratamento do tema nesse Simpósio.
A matéria em pauta é fruto dos estudos empreendidos pelo Grupo de Pesquisa
Literatura e Ensino, do Centro de Letras, Comunicação e Artes da Universidade
Estadual do Norte do Paraná, campus de Jacarezinho. Embora seus integrantes tenham
se dedicado a investigar, entre 2003 e 2011, como a literatura poderia ser apreciada na
educação básica, priorizando o conhecimento de metodologias e a proposição de
sequências didáticas, desde 2012, movidos por notícias nada animadoras vindas dos
professores1, passaram a examinar com cuidado o fato de não haver leitura efetiva de
literatura, em particular no ensino médio, ocorrência comum em todo território nacional.
No Paraná, vários motivos são apontados, de ordem estrutural e até política, para
inviabilizar a convivência com a literatura. Dentre as reclamações alinhavadas,
sobressaem críticas ao sistema educacional, como a redução da carga horária da
disciplina de língua portuguesa e a manutenção de salas superlotadas.
1 Na condição de docente da disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado de Literatura, no
CLCA-UENP/CJ, foi possível conviver com dúvidas e apreensões dos docentes da rede pública, por via
dos depoimentos dos graduandos que estagiavam nas escolas. Desses debates e reflexões surgiam
propostas de auxílio aos professores, divulgadas em eventos ou em encontros de extensão.
O suporte teórico e a mudança de enfoque
O problema de não haver espaço para a leitura literária nessa etapa do ensino
encontrou eco numa série de publicações a que o grupo teve acesso, também a partir de
2012, abrangendo artigos de periódicos ou livros recém-lançados de estudiosos
franceses, como Vincent Jouve, Gérard Langlade e Annie Rouxel, além de produções de
pesquisadoras brasileiras, também responsáveis pelas traduções. No convívio com essas
ideias, surgem expressões como “leitor real” e “sujeito leitor” ligadas à perspectiva da
leitura subjetiva e à tentativa de se ter em sala uma “comunidade interpretativa”.
Ao justificar o uso da “leitura cursiva”, adotada pelos programas dos liceus na
França, a partir de 2001, Annie Rouxel argumenta sobre a necessidade de se assumir
esta prática a par das técnicas tradicionais, comumente utilizadas no secundário:
Doravante, ao lado do exercício codificado de leitura analítica, surge
outra prática de leitura, mais flexível, a leitura cursiva. Descrita como
“a forma livre, direta e corrente” da leitura, ela se define por seu
“tempo” rápido e por sua função: “apreender o sentido a partir do
todo”. Leitura autônoma e pessoal, ela autoriza o fenômeno da
identificação e convida a uma apropriação singular das obras.
Favorecendo outra relação com o texto, significa um desejo de levar
em conta os leitores reais. (ROUXEL, 2012, p. 276)
Não obstante divulgado no Brasil em 2012, originariamente o artigo foi
publicado em Paris, em 2007, portanto, com os estudos em curso, segundo comenta a
autora:
Na verdade, conforme as classes e os docentes, a leitura cursiva revela
práticas muito heterogêneas que vão desde a quase autonomia do
aluno – até mesmo com o abandono do jovem leitor a ele mesmo –, à
orientação mais ou menos precisa da leitura por meio de instruções.
Acompanhamento muito variado, portanto, em sua forma e suas
exigências. No entanto, essa breve experiência de seis anos trouxe à
luz o interesse de abordagens mais livres da leitura. Nesse sentido, os
diários de leitura mantidos pelos alunos permitem observar a
existência de uma relação pessoal com a obra lida e de traços do
processo de elaboração identitária. O jovem leitor exprime suas
reações diante do texto e se interroga sobre aquilo que sente.
(ROUXEL, 2012, p. 276, grifo nosso)
O experimento levado a efeito pela pesquisadora francesa tem hoje resultados
substanciosos, com adequações efetuadas no decorrer do processo, inclusive
aprimorando conceitos e ajustando as práticas a eles vinculados. Chama a atenção o fato
de ser adotado o “diário de leitura” (ou “de bordo”) como recurso que enfim pudesse
revelar a subjetividade numa experiência de leitura “verdadeira”, efetuada por um
“leitor real”, sobretudo quando a sua formação está em andamento:
É possível modificar a relação com o texto construído por meio da
leitura escolar desenvolvendo uma “didática da implicação” do sujeito
leitor na obra. Para isso, convém incentivar a expressão do julgamento
estético, convidando o aluno a se exprimir sobre seu prazer ou
desprazer em relação à leitura, evitando censurar os eventuais traços,
em seu discurso, de um investimento por demais pessoal, imaginário e
fantasmático. Não se trata, portanto, de renunciar ao estudo da obra
em sua dimensão formal e objetivável, mas de acolher os afetos dos
alunos e de incentivá-los na descoberta de dilemas pessoais na leitura.
[...] Esse advento do leitor como sujeito pode sobrevir ainda mais se a
classe for pensada como lugar de emergência e de confrontação de
leituras subjetivas. (ROUXEL, 2012, p. 281)
A ideias recém divulgadas no Brasil, atualmente são objeto de análise do Grupo
de Pesquisa Literatura e Ensino, que ora busca assimilá-las, verificando a pertinência e
o adequado ajuste das ações sugeridas ao contexto das salas de aula. Logo, a adoção do
Diário de Leitura constituiu uma primeira experiência, cujos resultados estão sendo
avaliados, e inclusive serão discutidos no âmbito dessa realidade, especialmente com
docentes.
Tais concepções, colocadas em diálogo com outras referências adotadas,
proporcionaram novas reflexões e estímulos. Dentre as referências, além daquelas
tributárias da estética da recepção, destacam-se os fundamentos pedagógicos da
literatura, propostos pelo educador alemão Hans Kügler, de onde deriva a expressão
“primeiras impressões de leitura”2. Compreende-se aqui a concepção de “leitura
primária”, proposta por Kügler, como a recepção do texto pelo leitor no momento em
2 As concepções de Kügler foram divulgadas por membros do Grupo de Pesquisa Leitura e Literatura na
Escola, da UNESP/campus de Assis.
que ela ocorre, quando efetivamente se dá a interação entre o leitor e o texto e acontece
uma “silenciosa compreensão afetiva do texto pelo leitor” (FANTINATI, s.d., p. 1).
A mudança do foco das investigações do Grupo de Pesquisa ocorreu, portanto,
em razão de se pretender auxiliar o docente da educação básica a abrir um espaço na
rotina escolar, seja durante as aulas ou em atividades extraclasse, para a leitura
acontecer de modo efetivo, assegurando ao leitor real seu lugar de manifestação, tanto
voluntariamente quanto interagindo numa comunidade interpretativa. Segundo os
estudiosos citados, é preciso primeiro garantir que haverá leitores, e então se projetar a
perspectiva de que haverá leitores que estudarão literatura, como pedem os currículos
oficiais do ensino médio.
Dos propósitos da pesquisa aos ajustes de percurso
Em princípio concebida para coletar informes sobre o acolhimento de textos
literários em turmas do ensino médio, a investigação acabou ganhando novos contornos,
ao ser aplicada com a participação de apenas uma estudante, dadas as dificuldades de
acesso às salas de aula e aos rumos tomados em função da possibilidade de concorrer a
bolsas de Iniciação Científica da Fundação Araucária. Considerando essa probabilidade,
foram criados dois projetos complementares, denominados respectivamente “Recepção
do Texto Literário no Ensino Médio: Análise de Impressões de Leitura”, depois
aplicado por graduandas de Letras, bolsistas PIBIC, e “Impressões de leitura literária em
ambiente virtual: dois contos, duas memórias para contar”, realizado por uma aluna que,
por sua vez, foi bolsista PIBIC Jr.
A equipe envolvida definiu o objetivo de focar apenas a recepção inicial de cada
texto, pretendendo com isso colher as primeiras impressões da adolescente e analisá-las
a partir das suas anotações num Diário. Propunha-se enfatizar a importância desse
momento de envolvimento prazeroso, captado no ato da leitura, levando em seguida ao
docente da classe a alternativa de lançar mão de uma nova ferramenta que promovesse a
leitura efetiva e o seu melhor aproveitamento.
Os encontros, realizados no colégio, eram agendados em período de contraturno,
com o objetivo de se estabelecer um elo entre os dois projetos. Nessas ocasiões, a
adolescente recebia orientações para a realização das leituras em casa e imediatamente
fazia os seus apontamentos. Nas reuniões com as graduandas e com a orientadora,
entregava o Diário para a coleta dos dados e se envolvia com outros encaminhamentos e
em entrevistas.
Na primeira etapa, as tarefas consistiram em: registrar as memórias de alguns
contos infantis pré-selecionados, ouvidos na infância, realizando em seguida a leitura
deles em livro ilustrado; depois, leitura dos originais, a par da elaboração de breve
estudo sobre os Irmãos Grimm. Na segunda etapa foram escolhidos Cinderela e
Chapeuzinho Vermelho, os referenciais que deveriam ser objeto de apreciações em
definitivo, cabendo à estudante conhecer adaptações juvenis e em HQs, em sua maioria
lidos em ambiente virtual.
Quanto ao trabalho realizado por graduandas de Letras, com o apoio de uma
bolsa PIBIC, também transcorreu em duas etapas, cada uma com um semestre de
atividades. Atuaram como observadoras e organizadoras dos informes coletados,
acompanhando o programa executado pela adolescente, além de colaborarem nas
análises das anotações e do conteúdo das entrevistas. Suas participações serão tratadas
em outro artigo, oportunamente.
As leituras empreendidas e o estranhamento inicial
Não se pode negar a importância da escolha do Diário de Leitura como
instrumento de registro das primeiras ideias e consequentemente de coleta das
informações. Trata-se de uma circunstância peculiar: uma garota se predispõe a ler, mas
com uma timidez própria da idade, reluta em expressar-se oralmente na presença de
adultos, sabendo de sua responsabilidade como participante de um projeto de iniciação
científica.
No capítulo intitulado “Aspectos metodológicos do ensino da literatura” (2013),
Annie Rouxel reconhece as dificuldades do professor, no sentido de instituir o aluno
sujeito leitor, ao afirmar:
Isso significa, em primeiro lugar, tanto para o professor quanto para o
aluno, renunciar à imposição de um sentido convencionado, imutável,
a ser transmitido. A tarefa, para ambos, é mais complexa, mais difícil
e mais estimulante. Trata-se de, ao mesmo tempo, partir da recepção
do aluno, de convidá-lo à aventura interpretativa com seus riscos,
reforçando suas competências pela aquisição de saberes e de técnicas.
(ROUXEL, 2013, p. 20)
A pesquisadora francesa identifica os saberes adquiridos no âmbito da leitura
como sendo de três ordens: aqueles sobre o texto, sobre si mesmo e sobre a própria
atividade lexical. Ao tratar dos saberes sobre si mesmo, a estudiosa faz a distinção entre
os comportamentos dos alunos do fundamental, que são capazes de revelar abertamente
suas emoções e pensamentos, e os do secundário:
os adolescentes resistem a revelar aquilo que consideram sua
intimidade. Pudor ou medo do contrassenso, do erro de interpretação
que os desacredita diante da classe e de seu professor? Eles se
refugiam num silêncio obstinado, às vezes no psitacismo ou em
observações sem risco para eles. (ROUXEL, 2013, p. 21-22)
Propondo contornar o impasse, Rouxel sugere o uso dos diários como alternativa
capaz de inspirar confiança nos alunos, e assim “fazer emergir sua subjetividade, para
que aprendam a escutar a si próprios” (2013, p. 22).
Portanto, o Diário foi o instrumento apropriado para colher as impressões de
leitura da estudante, o espaço de manifestação de sensações, mas também de algum
desconforto sobre o que lhe foi solicitado e de opiniões sobre as tarefas agendadas. Sem
dúvida, ele lhe permitiu organizar melhor as ideias e então expô-las com cuidado,
embora de forma enxuta, como foi o seu caso.
Os primeiros registros das lembranças das histórias ouvidas na infância e lidas
em livro ilustrado – Chapeuzinho vermelho, Cinderela, A bela adormecida – são apenas
narrativas, pois ela se limitou a reproduzi-los, em especial por não se recordar
perfeitamente das histórias. Caprichando na escrita sem desvios da linguagem formal,
usando concordâncias e recursos coesivos adequados, tudo foi feito a lápis,
naturalmente sujeito a algumas correções reveladas por pequenos borrões.
Dada a dificuldade inicial de se desinibir, a forma de se expressar pela narrativa
não foi rejeitada, mas foi estimulada a referir pensamentos e emoções percebidos no ato
da leitura e identificados durante as entrevistas. Aos poucos, ganhando confiança nas
suas interlocutoras, passou a exprimir-se de modo espontâneo, sem todo o cuidado com
a linguagem formal.
A leitura dos originais e uma apreciação breve sobre os Irmãos Grimm
contribuíram muito para o novo tom adotado na escrita. Conforme revelou numa
entrevista, a princípio ficou bastante chocada com aqueles enredos, mas em seguida, ao
fazer a avaliação sobre seu percurso, escreveu:
Gostei muito das originais, são um pouco rústico em relação aos que
conhecia, com mais mortes que lembrava e o quanto a mulher era
dependente. Recomendaria para minhas amigas passarem pelo
mesmo: ler os contos de fada “alegres” e os originais depois, para
compará-los.
Nesse tópico, foi interessante encontrar juízos de valor como:
Em relação as leituras posso dizer que subestimei os contos de fada
achando que histórias boas são aquelas de 300 páginas. Eu achava que
pela minha idade não me interessaria mais em contos de fadas. Achei
que seria tudo igual, que todos viveram felizes para sempre, quase
sem punições.
Em entrevista à bolsista de Letras, confidenciou não ter muita vontade de ler
enquanto faz o seu curso, pois a escola não a estimula. É uma circunstância bem
diferente daquela escrita a respeito das leituras feitas na infância:
Tive o hábito de ouvir histórias quando era criança e isso me
influenciou a ler cada palavra dos meus livrinhos e não só ler pelas
imagens. Por isso acho importante as crianças também terem esse
hábito.
Já na segunda etapa, ao passar a ler as histórias em suportes virtuais (sites e e-
books), necessitando acessar endereços eletrônicos, a par de outras versões em livro
juvenil, suas anotações começam a ganhar substância, misturando emoções, juízos de
valor e especialmente estabelecendo contrapontos com aquelas lidas na primeira etapa.
Ao ler Mônica em Chapeuzinho Vermelho3, de Maurício de Sousa, afirmou ter gostado
dessa adaptação porque
3 No início da pesquisa, constavam no site de Maurício de Sousa os gibis selecionados da Turma da
Mônica. No entanto, quando a bolsista precisou acessar o endereço, os exemplares de Mônica em
Chapeuzinho Vermelho e de Mônica Adormecida não estavam mais disponibilizados, em virtude do site
passar por reformulação. Em outro endereço, foi encontrada apenas a primeira HQ.
foge da versão que conheço. Tive surpresa com o papel do lobo, que
além de apanhar, suplica por ajuda para sair vivo da história e ainda
diz virar vegetariano. O final da história foge do conto, esse foi o
único estranhamento que tive, pois a cesta nunca foi entregue e a
comida dentro dela foi devorada por outra personagem. [...] Minha
versão favorita, de todas que li até hoje, essa da turma da mônica (sic)
me agradou mais.
Em entrevista, a jovem lamentou a segunda história selecionada não estar
também disponível no site do cartunista. Nesse meio tempo percebe como os contos
infantis podem ser revisitados e recontados ao sabor da imaginação criativa dos autores.
Em HQs, o autor tem liberdade de reinventar o tema, introduzir personagens com perfis
contemporâneos, inovar a linguagem dos diálogos, além da vivacidade das imagens
muito cativantes, no caso da Turma da Mônica.
Em seguida, lhe foi apresentada a recriação de Cinderela, feita por Pedro
Bandeira, sob o título “Um par de tênis novinho em folha”, disponível no livro Sete
faces do conto de fadas (1993). Eis as considerações apontadas:
Esse conto tem relação a um clássico, Cinderela. No começo, imaginei
que fosse coincidência. Posso dizer que esta é uma versão mais
realista para o nosso dia a dia. Uma garota pobre, uma “madrinha” que
a ajuda, voltar antes da meia noite e um par de sapatos, que no caso
eram tênis. Fiquei surpresa ao saber que o “príncipe” era um garoto
pobre que trabalhava como office-boy. Esse final foi o que mais me
chamou atenção, pois é a parte que mais foge do conto Cinderela.
Conforme as experiências transcorriam, a jovem se mostrava curiosa por
conhecer outras recriações das duas narrativas selecionadas, sempre manifestando nas
entrevistas a preferência pela última leitura em relação à anterior. Nesta altura, era
incontestável o seu engajamento e o empenho em ler.
Do livro, a aluna leu ainda “Chapéu Vermelho II – as bocas do lobo”, de
Orlando Miranda, uma adaptação de maior fôlego, redundando nas seguintes
observações:
Essa versão do conto Chapeuzinho Vermelho, como o (sic) anterior,
também é vivido no mundo de hoje. Vi a garota sendo a mesma do
conto infantil, só que crescida. A cada medo que ela sentia, fazia
alguma relação a (sic) quando a mesma era criança. Achei muito legal.
O conto que conheço desde criança mostra a inocência e a
dependência que a menina tem, logo esse também, assim não deixa de
levar consigo a moral da história. [...] O que mais me chamou atenção
foi o vício em remédio para dormir da avó. Já em [relação a] outras
versões, essa foi a que mais gostei. Entre todas que li, preferi essa.
Como se percebe, enquanto tem acesso às variantes, igualmente elas lhe
agradam e de modo espontâneo vai recorrendo à história de vida ou ao seu repertório,
nos momentos de confronto entre as sensações agora amealhadas com aquelas que
fazem parte da sua cultura literária. Tal comportamento se repete ao ler Chapeuzinho
amarelo, do Chico Buarque de Holanda, visivelmente encantada, ao se desdobrar em
comentários com maior conteúdo:
Uma história inocente e mais engraçada. Não tive surpresa ou
estranhamento, porque já conhecia essa versão, mas imagino que na
primeira vez que eu li senti muita diferença, já que essa adaptação
foca no medo que a Chapeuzinho Amarelo tinha e como deixou de tê-
lo. Era amarela de tanto medo. Conheci esse conto na escola, no
fundamental, se não me engano a professora que leu. [...] Pra tudo foi
novidade, com a Chapeuzinho com nova personalidade a história não
toma o mesmo fim. A cada história se transmite algo diferente: os
medos, os perigos, o humor. Essa versão foi a mais leve possível para
as crianças, não vi uma cena de violência física, o oposto dos outros
contos que conheço, principalmente o original.
As impressões alinhavadas nesta altura vão continuar a produzir alguns
resultados, conforme se poderá constatar na última entrevista realizada com a
orientanda, tratada à frente. Por enquanto, esses contrapontos parecem sinalizar que a
leitora acompanha o próprio envolvimento com as leituras, sabendo poder extrair delas
os fundamentos de seus argumentos, opiniões, suas reflexões enfim.
Encerrando o seu percurso, a aluna recebeu o e-book O livro das princesas
(2013), da autoria de duas norte-americanas e duas brasileiras, contendo contos de fadas
em vestes contemporâneas. Do livro, deveria ler “Princesa Pop”, adaptação de Paula
Pimenta para Cinderela. Embora mais extensa, tem os bons ingredientes que caem bem
no gosto dos leitores adolescentes: uma heroína a enfrentar mil dificuldades, um enredo
envolvente, com desencontros surgindo num crescendo, o resgate da história conhecida,
convidando ao jogo das descobertas dos novos perfis dos personagens. Com essas
tintas, se expressa sem receio de demonstrar o envolvimento afetivo com a história
narrada:
Gostei da história, é divertida e se encaixou perfeitamente na
atualidade, com todo aquele drama da mídia. Houve muita surpresa,
quase o conto todo, é até difícil citar. Não houve estranhamento, eu
acho que demoraria tanto para ler um conto com mais de 100 páginas,
mas gostei muito da história, fiquei ansiosa durante a leitura. Não
conhecia a versão. Permaneceu praticamente o principal da história, a
personagem, o príncipe, a madrasta e suas filhas, o sapato, claro que
um pouco diferentes. O que não faz parte são a mãe e a tia, DJs,
internet, mídia, quase tudo. Se não me engano, no conto infantil o pai
morreu, não tenho certeza. De todos que li, acabei gostando mais
dessa, senti mais emoção e ansiedade a cada capítulo do que
qualquer outro conto da Cinderela. Mesmo não tendo toda aquela
magia do conto de fada ou as estranhezas do conto original. (Grifo
nosso)
Eis aqui o “sujeito leitor” registrando sua “compreensão silenciosa e afetiva do
texto”, a subjetividade emergindo espontaneamente e revelando o gosto, o
encantamento e a emoção ou a sua identificação com o narrado. De permeio, surgem as
opiniões – não muito distantes das resenhas do livro, desconhecidas pela leitora – e
também a evocação do repertório cultural, tudo convergindo à apropriação singular da
obra. De fato, esta é a leitura que lhe faz sentido, porque lhe tocou a emoção legítima,
lhe proporcionou a ampliação dos saberes e a projeção de sua humanidade.
Na última entrevista, voltou a falar sobre sua experiência de leitora. Afirmou
gostar de participar dessa experiência, porque voltou a ler. Ainda sente um pouco de
preguiça, mas lê “livros não muito grandes”. Tinha um livro em casa, lido
anteriormente, Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, em versão adaptada. Está
gostando de lê-lo novamente com olhos atentos.
Quando lhe foi perguntado sobre qual recriação lhe agradou, disse gostar
bastante de “Princesa Pop”, de Paula Pimenta, “pela curiosidade de saber se tudo iria
dar certo, a adaptação do tema”, “um livro que faz muito sentido, porque é uma coisa
que pode acontecer de verdade”, e o recomendaria às colegas. Contudo, do qual
realmente gostou, olhando agora o percurso empreendido, foi de Chapeuzinho amarelo,
do Chico Buarque,
que já conhecia, mas que depois de lida novamente é a melhor versão,
parece que você está lendo uma música. Não é uma historinha assim
pequenininha, é diferente! É um poema que você está lendo, uma
coisa que você já conhece, só que no final é diferente e tudo fica legal!
É muito lindo!
No Relatório Final de sua Bolsa PIBIC Jr, deixou o comentário:
No começo, estranhei um pouco o fato de ter que ler contos
tradicionais infantis, mas depois, com o desenvolvimento do projeto,
fui compreendendo que posso ler adaptações dos mesmos contos para
várias possibilidades de leitura: em quadrinhos, na forma de poema,
em ambiente virtual, em e-book. Também eles podem deixar de ser
infantis e ganharem versões para adolescentes e mesmo para adultos.
Considerações finais
A conclusão dos dois projetos produziu um conjunto de informações que
começam a ser processadas. Aqui foi tratada apenas uma vertente, envolvendo uma
série de procedimentos: a seleção de contos infantis para leitura e o acompanhamento
sobre como permanecem no imaginário até serem revisitados em novos formatos e
suportes, disponibilizados inclusive em ambiente virtual; a escolha de uma aluna do
ensino médio como leitora e a observação sobre seu convívio com as narrativas; o
registro de suas impressões, o acompanhamento do percurso empreendido e da
construção de sua identidade de sujeito leitor; a opção por conhecer como se dá a
recepção pela leitora, por meio de sua expressão escrita e também nas entrevistas; a
indicação de um modo de registro, fundamental para colher os dados da investigação.
Os procedimentos adotados foram vinculados às concepções teóricas e
metodológicas que privilegiam a recepção do texto por um leitor real, cuja leitura
subjetiva demonstrou haver realmente envolvimento afetivo e aproveitamento, dadas às
circunstâncias propícias criadas.
Ainda há muito por conhecer sobre as informações coletadas, mas as
transcrições feitas demonstram a importância de se valorizar o sujeito leitor, para ele
deveras existir, bastando apenas criar oportunidades paralelas ao cumprimento dos
currículos, se a prioridade é realmente alcançar as metas neles definidas quanto à efetiva
leitura literária no ensino médio.
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(Coleção Veredas).