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O QUIN TO IM RI O Apr op o st a e de f es adoQui n toI m pério po r par t e deVi ei ra, noscolocadiante de um fatoinsóli t o nahistóriada s idéias.C on stitui uma su rpr es a-quaseum cho qu e de cr ed ibili da de - pa ra o leitor atual qu e Vi ei ra " a m ai s no t ável pe r son ali da de , i n d i sc u t ivelm e n te, d o m u n d ol u so - b rasileiro d o cu loXVII", ( 1 ) , t e nha d ef e n d i d o q ueo r e i D .Joã oIV,já m ort o,h averi a der es su sci t arp araina ug urarum i m pério cr istão, ba sea ndo-se,ao pa recer,exclusi vam en t e.na s escur as trovas com po st as porum sa p a t e ir o q u aseil e t ra d o d e u m a vi lar e m o t a d oi n t e ri o r. Este p ri m e ir o j zo , a p r e ss a d o , se d e ve áf a lta d ef a mili a ri d a d e co m o co n tex t o hist ó ricoeá t e n d ê n ci a , n ã o i se n ta d e et no centri sm o, de j ul ga r outrosm om entoshistóricos pe l os po r no sso sparâmetr os de ob j etivida de . A su rpresa, doprimeir o m om entoco nve rte-se m ai s t ar de em ad m ir açã o a o con stat arqu eestaa rm ação choca nte de Vi ei ra,nosanos qu arenta,nãofoi uma vaci l ação m omen t ânea, senãoori ge m de um acontínuael ab or ação duran t e ci nq üe nt a an os a t é o m de sua vi da . Ten do est e parad oxocom ofun do , t ratarem osd e ir acom pa nhan do a el ab or ação da idéia doQuintoI m pério na m ente de V ieira atr avé s d as ob ras qu e lhededicou. No t er ceiro exam e,pe ran t e o S an t o O f í ci o de C oi mbra,o i nq ui si do r p e r g u n t o uaVieira so b r e o t í t ulo q u e q u e ria d a r a a se uli vr o d e Q u i n toIm p é ri o , se n d o q ue a E sc rit u r a f a la d a ex ist ê nci a d e q u atr o I m péri o s. R espondeu que " segundo a opi niãomais com um dos Doutor es na vi são da estátuade N ab uco donosorer am si gn i cad os qu atroi m riosa sab er: o pr imeir o do s A ssírios, o seg undo do s P er sas, oterceir o do s G regos, e o quarto do s R om anos, equ e t am bém sabequeésentençadealgunsPadrese Teól ogosqueoImpéri oR om ano de du rar até o mdo m un do . (2) V ieira pa ra car act er izar "OI m rio de C risto consumado no m un do " t om ou , po is, a pe rio di zaç ão, usadana ép oc a, da suc essãodei m p érios, qu ese en con t rano cap , II do livrode D an iel nosonhodeN ab uco do no sor. É deno t ar quei m rio, nesta exp li caçã o da hi st ór ia, si gn i ca po der sup r em o q uesei m e so breosoutr os pa íses e rei no s, em vi rt u d e p ri n ci p a l m e n t e d a co n q u istamili t a r. Os q u a t roim p é rios e num e ra d o s, o a ssí ri o , o babilôni o , o pe rsaeor om anotornar am -sei m rios pe la con qu i st ae sub j ug açã o de po vos estranhos,especial m ente os do is primeir os se di sti ng uiram pela extrema cr ueldad e dosm ét odo se mprega dos. E m virtudedesta den ominaçãodeimpérioe da co n t i n u i d a d e q uein d ica se r o" q u in t o ", su ce ssã o d o ú ltim o , oIm p é rio d e C risto a d q uire i m p li ci t a m e n te e stacon ot a çã o co n t ra d i t ória: se r a últi m a p r o l o n ga çã o d e ssa su ce ssã o de gu erras, exti nção de povos, di sput asde po de r, qu e onom e áhistóriahu m ana, m asa om esm otempocomoImpériode C risto consum adonaterra, ser asuperação d e st eti p o d ehist ó ria m ov i d ap e la d i sc ó r d i a . Tal ve z n e stepar a d ox ose e n co n t reaf o r ça e vo ca t iva d a e xp re ssã o : Q u i n to I m p é rio

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O QUINTO IMPÉRIO

A proposta e defesa do Quinto Império por parte de Vieira, nos coloca diante deum fato insólito na história das idéias. Constitui uma surpresa -quase um choque decredibilidade-para o leitor atual que Vieira "a mais notável personalidade,indiscutivelmente, do mundo luso-brasileiro do século XVII", (1), tenha defendido que o

rei D. João IV, já morto, haveria de ressuscitar para inaugurar um império cristão,baseando-se, ao parecer, exclusivamente. nas escuras trovas compostas por um

sapateiro quase iletrado de uma vila remota do interior. Este primeiro juízo, apressado,se deve á falta de familiaridade com o contexto histórico e á tendência, não isenta de

etnocentrismo, de julgar outros momentos históricos pelos por nossos parâmetros deobjetividade. A surpresa, do primeiro momento converte-se mais tarde em admiração aoconstatar que esta afirmação chocante de Vieira, nos anos quarenta, não foi uma

vacilação momentânea, senão origem de uma contínua elaboração durante cinqüentaanos até o fim de sua vida.

Tendo este paradoxo como fundo, trataremos de ir acompanhando a elaboraçãoda idéia do Quinto Império na mente de Vieira através das obras que lhe dedicou.

No terceiro exame, perante o Santo Ofício de Coimbra, o inquisidor

perguntou a Vieira sobre o título que queria dar a a seu livro de Quinto Império, sendo

que a Escritura só fala da existência de quatro Impérios.Respondeu que "segundo a opinião mais comum dos Doutores na visão da

estátua de Nabucodonosor eram significados quatro impérios a saber: o primeiro dos

Assírios, o segundo dos Persas, o terceiro dos Gregos, e o quarto dos Romanos, e quetambém sabe que é sentença de alguns Padres e Teólogos que o Império Romano há

de durar até o fim do mundo. (2)Vieira para caracterizar "O Império de Cristo consumado no mundo" tomou, pois, a

periodização, usada na época, da sucessão de impérios, que se encontra no cap, II dolivro de Daniel no sonho de Nabucodonosor. É de notar que império, nesta explicaçãoda história, significa poder supremo que se impõe sobre os outros países e reinos, emvirtude principalmente da conquista militar. Os quatro impérios enumerados, o assírio, obabilônio , o persa e o romano tornaram-se impérios pela conquista e subjugação depovos estranhos, especialmente os dois primeiros se distinguiram pela extrema

crueldade dos métodos empregados. Em virtude desta denominação de império e dacontinuidade que indica ser o "quinto", sucessão do último, o Império de Cristo adquireimplicitamente esta conotação contraditória: ser a última prolongação dessa sucessãode guerras, extinção de povos, disputas de poder, que dão nome á história humana,

mas ao mesmo tempo como Império de Cristo consumado na terra, ser a superaçãodeste tipo de história movida pela discórdia. Talvez neste paradoxo se encontre a força

evocativa da expressão: Quinto Império

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Esta contradição implícita no Quinto Império, de ser de Cristo, superação total detoda a história enquanto lugar da discórdia e do pecado, mas ao mesmo tempo ser o

seu um império na terra, continuação dos anteriores, está na base da maior parte dasobjeções e condenações do Santo Ofício. Para os inquisidores, O Quinto Império,

apesar das explicações, não passava de um messianismo terreno, erro central do judaísmo.

Na "Defesa do Livro Intitulado : Quinto Império", explicação sintética de suadoutrina, apresentada por escrito á Inquisição, Vieira procurou ignorar este ladopolêmico ao caracterizaro Quinto Império : "O argumento ou assunto do livro que quis há muitos anos escrever,e do qual tinha totalmente desistido, depois que me apliquei às missões, era o ImpérioConsumado de Cristo debaixo de nome do Quinto Império. Digo -Império-conforme ocômputo dos impérios de Daniel, entendendo-se por império consumado de Cristo, nãoalgum império que Cristo havia de ter nos tempos futuros, senão um novo e maior

estado do mesmo império e reino que Cristo hoje tem e sempre teve, depois que veio aomundo, que vem a ser um novo e perfeito estado da Igreja Católica, que é o único everdadeiro Reino de Cristo".

"As partes, circunstanciais e felicidades de que se compõe este novo e mais

perfeito império ou estado, eram a extirpação de todas as seitas de infiéis, a conversãode todas as gentes, a reforma da Cristandade e a paz geral entre os príncipes, a mais

abundante graça do céu, com que se salvariam pela maior parte os homens e seencheria o número dos predestinados, sendo os instrumentos imediatos da dita

conversão um Sumo Pontífice santíssimo e alguns varões apostólicos de singularespírito, que divididos por todas as terras de infiéis, as reduziriam e sujeitariam á Igreja,

e um Imperador zelosíssimo da propagação da Fé, o qual empregaria toda suaautoridade em serviço do dito Pontífice e favor dos pregadores, segurando-lhes o passoe defendendo-os onde necessário fosse com as suas armas, e sujeitando com elas atodos os rebeldes, principalmente o Império Otomano, com que Deus o faria senhor domundo" (3)

Tema, diz Vieira,que "de nenhum modo é invento meu, senão promessa eesperança e exposição de muitos santos antigos e modernos, e de muitoscomentaristas das Escrituras, e de muitas pessoas de espírito profético" Vinte e nove

são os nomes citados de autores, tão díspares, como as Sibilas da época pré-cristã,São João Crisóstomo da igreja primitiva, santos medievais como Brízida e Matilde,

Joaquim Abade e escritores contemporâneos, Salazar, Sherlogo, Árias Montano. Amaior parte, porém, são nomes obscuros e até fabulosos da elaboração mítica popular.

O Império é de Cristo, mas a sua frente tem um imperador cristão: "E porque ossobreditos autores, que falam no Imperador que Deus há-de dar á Igreja, para asexecuções temporais desta espiritual conquista, não declaram em particular que pessoahaja de ser, acrescentava eu... interpretando, em honra de nossa nação, que seria reiportuguês, e do Reino de Portugal, fundando este pensamento principalmente nas

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palavras de Cristo ao El-rei D. Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo imperiummihi stabilire -quero fundar em ti e no teu sangue um império para mim-" (4)

Como o Império de Cristo consumado na terra, segundo a concepção de Vieiradeverá ter longa duração, possivelmente os mil anos , de acordo com a profecia do

Apocalipse, vemos queo Quinto Império resulta da fusão de duas correntes de pensamento marginal que

pululavam nos ambientes politicamente convulsionados de seu tempo: milenarismo esebastianismo. A fusão

destas duas correntes de pensamento permitia a Vieira

dar a máxima contribuição á exaltação dos dois interesses

maiores de sua vida: a pátria e a religião.

Escatologia/milenarismo A escatologia é uma corrente

teológica de tempos deficitários. No judaísmo apareceu e

se desenvolveu poderosamente no período pós-exílico.Depois da volta dos judeus deportados da Babilônia a Jerusalém, em virtude do

decreto de Ciro (538), começou a reconstrução da cidade e da nação com a esperança

de que haveriam de realizar-se em breve as promessas de grandeza nacional,preconizadas pelos profetas. Mas quando em vez dessas grandezas se abateu sobre

Israel o domínio grego, dos sucessores de Alexandre, e a perseguição de AntíocoEpifanes ameaçava perigosamente a mesma existência do judaísmo, os líderesreligiosos se encontraram numa situação de perplexidade, sem saber como se poderiaharmonizar a crença na Providência divina com a situação de humilhação que o povo judeu atravessava. Neste ambiente de carência e perplexidade é que se desenvolveu o

pensamento apocalíptico judeu depois do exílio -séc. IV e III, e especialmente duranteos três séculos anteriores á destruição de Jerusalém pelos romanos (7l).

O gênero apocalíptico interpreta as provações presentes como sinais do iminentefim dos tempos, em que uma intervenção direta e grandiosa de Deus reverterátotalmente a situação. Por isso temas da literatura apocalíptica são os sinais do fim, as

últimas provas, a Parusia, Juízo, ressurreição dos mortos, salvação e condenação. Ecomo forma literária, a apocalíptico judia recorre a sinais extraordinários como

"revelação"em sonhos, visões, ensino de anjos e vozes celestes.Desta forma, encontramos nos últimos livros do Antigo Testamento passagens de

tipo apocalíptico, pelo conteúdo ou pela forma, desde os profetas pós-exílicos: Isaías24-27, no século V, profecia sobre o juízo do mundo e o novo reino de Deus; mais

tardio, o apocalipse de Isaías, 34-35.; Ezequiel, a quem Schierse chama "pai"e "corifeudo apocalipse"; o segundo Zacarias, 9l4; Joel, 3-4, fim dos tempos, juízo e salvação deIsrael; e sobre tudo Daniel, o autor tipo da literatura apocalíptica do Antigo Testamento.

Mas junto a estes livros canônicos, existia toda uma literatura mais exuberante:como o Livro de Enoch -entre 170 e 64 a. C-; o Livro dos Jubileus; o Terceiro livro dosOráculos Sibilinos;

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o Testamento dos doze Patriarcas; Salmos de Salomão; Ascensão de Moisés; várioslivros de Qumram.

Neste ambiente denso, não é de estranhar que no Novo Testamento apareçaminfluências do gênero apocalíptico como a descrição do fim dos tempos nos três

evangelhos sinópticos, nas duas cartas aos Tessalonicenses de São Paulo, em 2. Pe, 3-1,13, na epístola de Judas. Mas o grande livro do gênero no Novo Testamento é o

Apocalipse de João. Escrito num momento de perplexidade e angústia em virtude dasperseguições que se abatiam sobre a Igreja nascente, o Apocalipse exibe, num estilomagnífico, todas as características do gênero, visões, revelações, hipotiposes, e comomensagem o triunfo iminente de Deus e seus eleitos. O Apocalipse de João, além disto,oferece no cap. X. um apoio sólido para a teoria milenarista, o reinado de Cristo durantemil anos na terra.(5)

Estas são as fontes da Escritura em que Vieira vai buscar confirmação de suateoria do Reino consumado de Cristo na terra.

Durante a Idade Média a doutrina do abade Joaquim de Fiori sobre a iminentechegada da terceira idade do mundo, a idade do Espírito Santo, com uma humanidadesuperior e uma realização feliz de todas as expectativas parcialmente realizadas naprimeira e segunda idade do Pai e do Filho, desencadeou um processo muito difundido

entre os espirituais de tendências escatológicas, de tipo milenarista.Vieira cita a Joaquim de Fiori como uma das autoridades de sua interpretação do

futuro reino de Cristo na terra.Que estas sementes ainda estavam vivas no tempo da Reforma ficou patente com

as revivescências milenaristas entre os taboritas e em vários ramos do anabatismo.Que motivação empurrava Vieira a abraçar o milenarismo? Tanto na Defesa

escrita, como nos interrogatórios, perante a Inquisição afirmou que sua intenção aopropor a instauração do reino de Cristo na terra era dar uma resposta ao grandeproblema da pregação do evangelho e salvação dos homens. Considerava que depoisde mais de milênio e meio da redenção, o número dos que se salvavam erareduzidíssimo: "Até o presente tempo do Mundo é, e foi sempre muito maior o númerodos que se condenam do que o dos que se salvam", pois nos mostra a experiência o"ïnfinito número de hereges, gentios, judeus, maometanos, ateus, e outros sem fé quecertamente se condenam todos"(6).Na sua opinião poderia calcular-se a proporção dos

que se salvam de um para dezPor outra parte, o avanço da evangelização lhe parecia angustiantemente lento .

Nos 160 anos transcorridos desde os descobrimentos da América e do caminho daÁsia, pode-se estimar, argumentava, que só a uma vigésima parte destes povos foi

pregado o evangelho, o que levaria a calcular que para a evangelização do mundo todose necessitariam 19 vezes 160 anos, dos mil oitocentos e cinqüenta anos.(7)

É difícil conjeturar se esta preocupação de missionário pela evangelização teriapodido motivar e sustentar a elaboração da teoria do Quinto Império, sem o dinamismo,o transe místico, recebido do sebastianismo.

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Ao chegar Vieira a Lisboa em 1641, ao dia seguinte da Restauração, asesperanças do sebastianismo pareciam receber plena confirmação e um clima de delírio

sacudia a nação. Vieira aderiu em corpo e alma, até tornar-se o principal intérpretedestas esperanças.

Sebastianismo.

Tanto J. Lúcio de Azevedo, como Besselaar, que escreveram a história do

sebastianismo o definem como um messianismo português. O messianismo, "a crença

num enviado de Deus que trará a salvação...é uma esperança histórica". O

messianismo, sublinha Besselaar, pressupõe uma sociedade sacral, em que a religião é

a força aglutinadora da sociedade e constitui a chave de interpretação de todos os

acontecimentos. Não é privativo do cristianismo; apresenta-se nas mais variadas

culturas e religiões. (8)

O exemplo histórico maior de um povo reunido em torno de uma esperança

messiânica é constituído pelo povo judeu. Mas depois dele, na opinião de João Lúcio de

Azevedo, não se encontra em todo o âmbito da História outro exemplo semelhante ao

messianismo português. “A crença messiânica, -crença em um salvador, que há de

reunir a pátria e exaltá-la ao domínio universal-vigorou em Portugal por três séculos. O

patriotismo sagrado é a origem dela... surge em um período de aparente grandeza...

afirma-se na catástrofe em que perdemos a autonomia, alenta-nos nas horas tristes da

sujeição a Castela, triunfa com a independência, decresce em seguida com a apatia

reinante e revive no tempo da invasão francesa"

"A persistência do messianismo, por tão longo tempo e sempre o mesmo naexpressão a animar a mentalidade de um povo é fenômeno que excluída a naçãohebraica não tem igual na história"(9)

Deve distinguir-se, como o faz Azevedo, "entre o rei predestinado que se espera e"os anelos que ele havia de realizar". Estes anelos aparecem em Portugal com umséculo de antecedência á pessoa do rei esperado.

Em fins do século XIV, Portugal se tinha adiantado a todos os outros países daEuropa na evolução para a constituição de uma nacionalidade. Para isso concorriamcircunstâncias muito peculiares: era o único país da Europa cujas fronteiras se

encontravam fixadas definitivamente desde o século anterior; o único cuja população

falava uma só língua. E quanto ao consenso compartilhado de um destino comum-cerne da consciência nacional-Keyserling observou que em Portugal sempre esteveconstituído pelo ódio ou oposição ao castelhano que neste momento se tornava

absorvente, pela ameaça constante que significava o reino de Castela e suastendências expansionistas.

Depois da "revolução gloriosa" (1383-1385), que colocou no trono a casa de Aviscom D. João I e, com a derrota de Castela em Aljubarrota assegurou a independência

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nacional, a tomada de Ceuta (1413) e o início dos descobrimentos geográficos criaramum clima de exaltação nacional, de "ufanismo", em que se procedeu á sacralização da

história da nação e de sua vocação histórica.A profecia, diz Besselaar, "é a base e ao mesmo tempo produto do messianismo".

(10) E as profecias se multiplicavam. Além das profecias bíblicas, interpretadas comoprofecia da expansão portuguesa, citavam-se os oráculos sibilinos, a profecia de S.

Metódio, mártir da época romana, a profecia de Santo Isidoro, bispo da Espanhavisigótica, as profecias de S. Gil, do beato Amadeu, de Simão Gomes... Mas entre todasse destaca pelo peso que teve ao ser incorporada irrevogavelmente á consciêncianacional, a lenda da aparição de Cristo ao futuro rei Afonso Henriques, na véspera dabatalha de Ourique: á sua luz toda a história de Portugal adquire um caráter sacro, poisCristo pessoalmente foi quem revelou ao rei que o reino que ia a fundar, era seu, efundado exclusivamente para propagação de seu nome: "Volo enim in te et in seminetuo imperium mihi stabilire" -quero fundar meu império em ti e na tua descendência.

Esta lenda apareceu por primeira vez na Crônica do Cister (1596) de Frei Bernardo deBrito, que disse ter achado o manuscrito da época. Foi incorporada á mente coletivacomo expressão de uma verdade histórica. Vieira cita o fato, repetidas vezes, comocomprovação apodíctica de Portugal ser um reino diferente dos outros por ter sido

fundado por Cristo para a propagação da religião católica.Comenta João Lúcio de Azevedo: "Estes -profetas-existiam já antes de aparecer o

predestinado e foi seu primeiro intérprete Gonçalo Anes, O Bandarra, nas trovas quesão o evangelho do sebastianismo"(11)

O Bandarra (1534-1545) era sapateiro da Vila de Trancoso, na Beira. Vivia entrecristãos novos e tira seus vaticínios do Antigo Testamento. "Ao fundo judaico se juntou o

que da lenda de Merlin restou na tradição popular, se é que não venho de Espanha comoutros elementos da tradição popular".

O "Encoberto" veio da Espanha, onde circulavam estas profecias em 1520.Numerosas obras espanholas, citadas por Azevedo, falam do Encoberto. O Bandarraconheceu Santo Isidoro nas coplas do cartuxo espanhol Pedro de Frias e do frade bentoJuan de Rocacelsa de Monserrate, que escrevia profecias ritmadas.

O Bandarra tomou desta literatura o Encoberto, as menções de arianos, turcos evenezianos, a grifa, pastores, vacas, dragões, serpentes.

A grande agitação existente entre os judeus da época, esperando o messias, semanifestava, ao mesmo tempo, no aparecimento de vários falsos messias.

"Foi neste ambiente de maravilhoso que o Bandarra e seus vaticínios floresceram.Era um místico convencido, um enganador por gosto, um burlão que vivia de seus

prognósticos? “, pergunta-se Azevedo. "Provavelmente de tudo um pouco" "Entretanto,continua, um ponto sobressai nítido, que se não satisfazia aos cristãos novos, á esperade seu Messias, contentava o patriotismo ferido dos primeiros revezes no Oriente e emÁfrica : conquista de Marrocos, o Turco derrotado, império universal"(12)

As Trovas se compõem de 159 quadras: 16 na introdução, e as restantes divididas

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em três sonhos. No primeiro sonho (estrofes 17-93) o ambiente é campestre e ospersonagens o Pastor-Mor e o Encoberto; no segundo sonho (estrofes 94-108), se dá a

derrota dos turcos no levante, e há aliança do Encoberto com o Papa; no terceiro sonho(estrofes 109-159), há o aparecimento das dez tribos perdidas de Israel. A linguagem é

hermética, e o mínimo que podemos dizer com Ameal , é que seus "vaticínios seacumulam enigmáticos" (13)

Condenadas as Coplas pela Inquisição, por seu sabor judaico, sua mensagemcontinuava difundindo-se e " afinal soou o momento em que todo Portugal esperava osalvador prometido, para uns o filho da casa de Davi anunciado a Israel, para outros orei Desejado. E neste sentido, foi Bandarra verdadeiramente profeta, não porqueacertasse nos prognósticos, mas pela ação intensa que no seu povo exerceu"

"Ele deu por muitos anos á nação a esperança e a fé. Uma e outra se afirmaramno brado jubiloso que em 1554 saudou o nascimento de D. Sebastião"

De D. Sebastião se esperava -Camões nos Lusíadas-a vitória em Marrocos, a

derrota do turco, o império universal.Depois da derrota e morte de D. Sebastião em Alcazaquibir (1568), buscou-se apervivência das profecias (não foi encontrado o cadáver do Rei, depois da derrota, oque alimentou o sonho de estar escondido -” o encoberto”, preparando sua volta triunfal)

A incorporação de Portugal ao reino de Filipe II com a perda da independênciaportuguesa, converteu o sebastianismo numa força política. A leitura e propagação das

profecias e a espera na volta de D. Sebastião passaram a ser uma forma de protesto eresistência contra a ocupação estrangeira. Frei Manuel Calado descreve o clima

daqueles dias : "E assim os portugueses que se prezavam de o ser, traziam as mãoscheias destas papeladas, a quem chamavam profecias do Bandarra, de S. Isidoro, de

Fernão Gomez, de S. Tomé, e outros semelhantes"(14). Mas também havia autoresletrados empenhados em sistematizar as esperanças do sebastianismo. D. João deCastro, que fora partidário ativo de D. Antônio, tornou-se porta-voz do sebastianismo,de seu profeta Bandarra e inclusive do Quinto Império. O astrólogo e matemáticofamoso -em 1618 descobrira um cometa-, Manuel Bocarro Francês, em 1624 publicavaa obra Anacefalosis da Monarquia Lusitana, poema composto de 131 oitavas, em quevaticina o futuro de Portugal: "Sujeição de mouros e turcos, o império universal, domínioda fé católica e obediência ao Pontífice romano em toda a terra" Prognosticava a volta

de D. Sebastião, vivo em seu sangue, para o ano de 1653, Com maior grandeza.(15)O clero, as ordens religiosas, e especialmente os jesuítas eram os agentes mais

ativos para a manutenção deste clima. D. Francisco Manuel de Melo, historiador daRestauração, escreve em Epanáfora Política: "Os jesuítas a fomentavam a crença

messiânica, a revolução predita em vaticínios, sinais prodigiosos e anunciavam aredenção próxima".(16)

Vieira e o sebastianismo.Vieira, chegado a Lisboa na onda da Restauração, ficou imerso neste clima de

exaltação e maravilhoso. Entregue em corpo e alma á Restauração, transferiu para D.

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João IV todas as expectativas do sebastianismo e seu halo de profecias, especialmenteas de Bandarra, que passou a ser o ponto fundamental de apoio para sua elaboração f

utura da visão do Quinto Império.João Lúcio de Azevedo fez em seu livro a Evolução do Sebastianismo a história

do estado de exaltação com que a nação inteira esperava o cumprimento da segundaparte das profecias do Bandarra: "Embriagada pelo sonho do maravilhoso em que

novamente se encontra a nação nada em júbilo, e como expressão da época surge umaliteratura em que soa o desafio ao inimigo expulso, e a cega confiança nas profecias,que já em parte estão cumpridas".

"A essa literatura corresponde um estado peculiar da mentalidade nacional queela exprime. É a megalomania dos tempos sebásticos que ressuscita. Para isso seexalta o valor português, se recordam façanhas dos tempos idos, se refere a proteçãodivina às nossas armas"(17).

É o momento da apoteose do Bandarra. "Venerado de todos, cada vez mais crido,

ninguém lhe contestava a categoria de profeta nacional. Não podia, só por um esforçode vontade, o país canonizá-lo; mas no dia da aclamação solene de D. João IV estava aimagem dele num altar da Sé, exposta como se faria á de um santo. O Arcebispoconsentiu, e ninguém contra isso protestou, nem mesmo o Santo Ofício, que o tinha

condenado... Os pregadores, celebrando a aclamação do novo rei não exitavam emdizer do púlpito serem as Trovas verdadeiras profecias, e verdadeiro profeta o autor. A

proibição do Santo Ofício era como se não existisse; o livro vendia-se publicamente.Não havia livro, em defesa da independência que não o citasse com o sentido profético

a que os acontecimentos tinham dado sanção. A censura da Inquisição aprovou estasobras, o réu condenado ao silêncio falava livremente ante os juízes de outrora, em plena

apoteose"(18)Não era, pois, Vieira, com sua aceitação incondicional das profecias, um caso raro

ou único, especialmente entre os jesuítas. (19)Mas o específico de Vieira -possivelmente devido a seu temperamento extremado

e amante do paradoxo-é que manteve a fé intata nas profecias do sebastianismo contraa evidência dos tempos. O que era expressão do meio nos anos quarenta, já estavatotalmente fora do ambiente em l654, catorze anos de experiência tinham ensinado aosportugueses que as profecias sobre o império não podiam ser interpretadas como uma

ocorrência imediata. Desta forma quando Vieira, então missionário no Maranhão depassagem por Lisboa, com ocasião da grave doença do Rei

D. João IV,predisse, fundamentado nas profecias do Bandarra, que o rei não podiamorrer, pois ainda lhe faltava realizar a segunda parte das profecias, e que se morresse

deveria ressuscitar. "O espanto nos ouvintes foi grande- segundo Azevedo-, arecordação inoportuna. A voz do jesuíta era como a de um morto esquecido, que dotúmulo saísse, a dizer aos vivos coisas de seu tempo, antiquadas e que eles nãocompreendiam"(20)

Isto nos coloca o problema não de como Vieira acreditou no Bandarra e nas suas

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profecias -houve um tempo em que todos os portugueses o fizeram-senão como depois,inarredável, continuou acreditando contra a evidência. A única variação que se permitiu

foi ir atualizando a pessoa do monarca português, que deveria conquistar o impériouniversal: até o ano 67 pensava que deveria ser D. João IV, vivo ou ressuscitado, em 67

transferiu as esperanças para seu filho D. Afonso VI, e ao ser D. Afonso deposto porincapaz, passou as expectativas para seu irmão D. Pedro, e nos últimos anos de sua

vida, ainda alimentava esta esperança no infante, recém nascido, filho de D. Pedro.Para João Lúcio de Azevedo: "Não é lícito pôr em dúvida a boa fé de Antônio

Vieira, intelecto de primeira grandeza, mas para quem a vida do claustro, na sugestãocontínua do milagre, o ambiente místico tão intenso da Companhia, e uma falhaincontestável no equilíbrio mental (sem contar com a influência do meio saturado desebastianismo), tudo eram forças a impeli-lo ao desvario. A sua capacidade de crer nomaravilhoso era enorme, sem nisso se distinguir da meia dos contemporâneos, se bemque o excesso de imaginação o levasse até onde só o comum só desconfiado o seguia.

O caso da ressurreição era um desses" (21)De fato este caso extremo nos leva a refletir

sobre estrutura lógica das argumentações de Vieira. O

leitor das obras de Vieira , principalmente dos sermões,

fica de início surpreso pelo uso contínuo na

argumentação de procedimentos aparentemente

contraditórios: uma observaçãoextremamente precisa da realidade e uma lógica racionalista ao extremo, junto com o

uso contínuo da metáfora e a alegoria com o mesmo , ou maior, valor probatório que os

fatos comprovados. Hernani Cidade vê nesta atitude um parecido com o que Vosslerintitulou de “realismo fantástico”, na análise da literatura espanhola do século de ouro.(22)

A continuidade entre realidade e alegoria, metáfora e realidade passou a ser umaestrutura mental no raciocínio de Vieira. J. Saraiva estudou estas características dopensamento de Vieira, principalmente nos sermões, como o exemplo mais alto naoratória sacra do modo de pensar e expressar-se de toda uma época: o barroco. É oque ele qualifica, empregando um conceito de Gracián, de “discurso engenhoso”, umaforma de pensamento diametralmente oposta ao discurso clássico, que estão seelaborava na Europa -Discurso do Método de Descartes-em função dos progressos do

método experimental e do emprego da matemática. O discurso clássico tem semprecomo ponto de referência a natureza objetiva das coisas a que devem acomodar-se alinguagem e o raciocínio; já o “discurso engenhoso”prescinde do lado objetivo dos

conceitos e palavras e libera a linguagem e o raciocínio para todo tipo derelacionamentos, com os sentidos mais vários e cambiantes. Saraiva estuda o “discurso

engenhoso “nos sermões de Vieira a partir do emprego que faz dos quatro elementosdo discurso: as palavras, as imagens, as proporções e

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o texto. Desta forma metáfora e alegoria passam a adquirir total liberdade, valendo porsi mesmas independentemente da realidade que representem. Saraiva encontra uma

explicação do emprego constante por parte de Vieira na sua oratória do “discursoengenhoso” na inadequação entre a estrutura do sermão, idêntica á do sermão

medieval -”sob o ponto de vista da estrutura geral não há diferença, por exemplo, entreum sermão de Vieira e um sermão de Santo Antônio de Lisboa”-e a mentalidade dos

ouvintes a quem Vieira se dirigia, totalmente diferente da medieval. Por isso paraconvencer, conservando essa estrutura, Vieira tinha potenciar ao máximo os recursosda época barroca. (23)

De fato o próprio Vieira se defendeu com antecedência da acusação de abuso noemprego da metáfora, atribuindo o uso que dela fazia ao gosto do público, não a suaconvicção. Diz no sermão de S. Pedro, pregado em Lisboa em 1644: “Suposto andaremtão válidas no púlpito e tão bem recebidas do auditório as metáforas, mais por satisfazerao uso e gosto alheio, que por seguir o gênio e ditame próprio, determinei, na parte que

me toca desta solenidade, servir ao Príncipe dos Apóstolos também com umametáfora”. Por estas palavras, pode parecer que Vieira se encontrava um poucoconstrangido obrigado pelo costume, mas de fato, depois deste protesto inicial, leva tãolonge a metáfora que chega á conclusão que o único ponto de comparação válido para

caracterizar a São Pedro é Deus: “Ou as grandezas de S. Pedro se não podem declararpor metáfora, como eu cuidava, ou, se há ou pode haver alguma metáfora de S. Pedro é

Deus. Isto é o que hei de pregar, e esta a altíssima metáfora que hei de prosseguir”E osermão todo desenvolve com extremo rigor lógico a análise desta metáfora paradoxal

(24)João Lúcio de Azevedo buscou as origens em Vieira desta atitude para nós

estranha, e muitas vezes até incongruente, - confusão de metáfora e realidade- naformação recebida durante os anos de estudo no método argumentativo da escolásticadecadente: "Para exercitar a agudeza dos alunos, davam-se-lhes para resolverproblemas abstrusos. Taes os seguintes: se foi a mãe de Cristo, suposta a inferioridadefeminil, realmente mulher, ou varão? Se as almas das plantas e brutos são divisíveis?Em uma tese sobre a quantidade de Maria: qual era a estatura da Virgem? O esforço dalógica chegava ao extremo da demonstração adeante, que o autor reputaseguríssima:"A Virgem Maria foi concebida sem pecado; logo o Sumo Pontífice é

imperador de toda a terra". O exemplar de onde saem as referências, pertenceu aoColégio dos jesuítas de Évora. Neste distrito de extravagâncias do raciocínio a área

suscetível de se explorar é vastíssima. Também o sebastianismo, com suascontrovérsias, oferecia tema às faculdades especulativas dos arguentes. Em 1664

disputava-se no Colégio de Coimbra sobre se havia de vir ou não D. Sebastião e quemera o Encoberto das Profecias. Nos sermões, História do Futuro e outras obras deVieira, a cada passo se encontram reminiscências deste ensino, em problemas que sepropõe resolver, não menos extravagantes que os mencionados". (25)

Antônio Sérgio busca outra origem. Analisando o barroquismo de Vieira -o

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barroquismo é próprio de países latino-mediterrâneos- distingue entre cultismo econceptismo. O cultismo afeta á expressão, tornando-a hermética e rebuscada. Vieira

não é cultista, porque sempre fala para ser entendido, busca a expressão mais direta eimediatamente compreensível ; combateu o cultismo na crítica aos pregadores de seu

tempo. Mas Vieira é conceptista. Não respeita o significado objetivo dos conceitos ebaralha constantemente o plano objetivo e o metafórico. Este costume lhe advém da

pregação da época. Corriam numerosas as coleções chamadas de "conceitospredicáveis". Sérgio encontrou sete publicações deste tipo impressas em Espanhadurante o século XVII. Todas recorrem a desenvolver temas de pregação por meio delugares da Escritura, tomados como alegoria, sem nenhuma relação com o temaproposto para a pregação. Para mostrar o funcionamento do sistema recorre ao livro deOntiberos “Conceptos predicables” (Madrid, 1674). O exemplo primeiro proposto peloautor tem como texto as palavras do Cântico: “Murenulas aureas faciamos tibi”(Cant,1,11)-faremos para ti uma jóia de ouro em forma de moreia(26). Esta citação da

Escritura é adequada, propõe Ontiberos, para falar da morte e as postrimerias, pois amoreia é um peixe, que segundo os naturalistas, tem toda a força vital concentrada nacauda, e assim como estas moreias se enroscam para morder a cauda,auferindo delasua força vital, o cristão deve voltar-se com a meditação para a morte e as postrimerias,

onde encontra a força para a vida cristã. Todos os outros casos comentados seguem omesmo tipo de lógica: apresentar uma citação da Escritura como lema para um tema de

pregação com o qual a passagem escolhida da Escritura não tem nenhuma relação real,mas unicamente alegórica ou metafórica. Este sistema conclui Sérgio, é constante em

Vieira: “ as teses do padre Vieira sobre o Quinto Império reduzem-se, pois, á suaaplicação do método dos conceitos predicáveis” A "descrição analógica",também

empregado por Vieira, se baseia no mesmo sistema. (27)Desta forma, Vieira pelo ambiente, por temperamento e por formação estava

predisposto para aventurar-se na fronteira do maravilhoso, a história do futuro nasprofecias. Este foi seu grande projeto a que deu o nome de Clavis Prophetarum ouHistória do Futuro.

Esperanças de Portugal, Quinto Império do mundo foi sua primeira elaboração dogrande projeto do Quinto Império.

Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo

Esperanças de Portugal foi enviado como carta ao Padre André Fernandes paraque o apresentasse á rainha viúva em 1659, mas a elaboração mental é muito mais

antiga. Na segunda sessão de interrogatórios perante a Mesa do Santo Ofício foiperguntado a Vieira sobre

o tempo da composição do escrito: "Disse que de presente e ainda de dez anos a estaparte em que começou a aplicar-se às missões do Maranhão não compôs nem compõepapel ou livro algum... Mas que antes do dito tempo, de dezoito anos a esta parte,andava estudando e compondo um livro, que determina intitular Clavis Prophetarumcujo principal assunto, e matéria é mostrar por algumas proposições, com lugares da

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Escritura, e Santos que na Igreja de Deus há de haver um novo estado diferente do queaté agora tem havido, em que todas as nações do Mundo hão de crer em Cristo Senhor

Nosso, e abraçar nossa Fé Católica; e que há de ser tão copiosa a graça de Deus quetodos , ou quase todos, os que então viverem, se hão de salvar, para se perfazer o

número dos predestinados" (28).Acrescentou Vieira que todos os jesuítas mais doutos do Reino , França, Espanha

e Itália a quem tinha comunicado sua intenção lhe tinham animado a publicá-lo. A obra,disse, deverá ser escrita em língua latina, mas até o momento só alguns apontamentosforam escritos "e que o principal estudo que fez para o dito livro foi de memória comoordinariamente costuma em seus estudos -o século XVII é o século da memória artificialmediante a nemotecnia- (29)

Podemos ver desta declaração que a grande obra, intenção da vida inteira, aClavis Prophetarum, avançava muito lentamente através dos anos e ficaria inconclusano fim da vida, enquanto Esperanças de Portugal um mero capítulo dentro desse painel

grandioso, foi escrito em poucas semanas "numa canoa em que vou navegando ao riodas Amazonas"De fato Esperanças de Portugal é um livro monocromático -nenhuma das longas

digressões tão freqüentes em Vieira-de um tema só, a ressurreição de D. João IV, e

baseado numa única fonte, as profecias do Bandarra.Desta forma Vieira pode apresenta-lo: "Resumindo pois tudo a um silogismo

fundamental, digo assim: -O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou queEl-rei D. João o quarto há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar

senão ressuscitando; logo , El-rei D. João, o quarto há-de ressuscitar- Estas trêsproposições provarei" (30)

A primeira proposição, que Bandarra é verdadeiro profeta, é a base de todo oresto. Não sendo profeta canônico, nem santo, nem autoridade reconhecida, só pelo"sucesso das cousas profetizadas" se pode provar a sua condição de profeta.. Estecritério, aliás, já fora indicado por Deus para julgar os profetas: "Se não suceder o que oprofeta disser, tende-o por falso; e se suceder o que disser, tende-o por verdadeiro"

Com este critério "Não se pode logo negar que Bandarra foi verdadeiro profeta,pois profetizou e escreveu tantos anos antes tantas cousas, tão exatas, tão miúdas e tãoparticulares, que vimos todas cumpridas com nossos olhos, das quais apontarei aqui

brevemente as que bastem, sucedidas todas na mesma forma e com a mesma ordemcomo foram escritas"(31)

Em primeiro lugar profetizou a revolta de Évora (1638), que tendia a levantar oReino todo contra o domínio espanhol, mas não encontrando apoio algum se desfez.

Descreveu este acontecimento pormenorizadamente o Bandarra:

Antes que cerrem quarenta

Erguer-se-a grã tormenta

Do que intenta,

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Que logo será amansada,

E tomarão a estrada

De calada,

Não terão quem os afoite.

O Bandarra, vivendo num tempo em que Portugal era Reino e tinha rei, previu os

longos anos da dominação espanhola, em que havia um desejo e expectativa geral daproclamação de um rei português, o que se deu em 1640 com a Restauração; e este rei

foi um rei novo e não colocado no trono por seu esforço, senão pelo levantamentopopular, e imediatamente tomou as armas para combater Castela, que dominara o paístantos anos.

"Assim o dizem claramente os versos do mesmo Sonho:

  Já o tempo desejado

É chegadoSegundo o firmal assenta;

  Já se chegam os quarenta,

Que se ementa

Por um doutor já passado.

O Rei novo é levantado,

  Já dá brado,

Já assoma sua bandeira

Contra a grifa parideira,Lagomeira,

Que tais pastos tem gostado

Os versos descrevem objetivamente a aclamação, quanto á grifa, explica Vieira,significa Castela com muita propriedade, porque os reinos distinguem-se por suasarmas, e o grifo é um animal composto de leão e águia, em que grandemente simbolizacom as águias e leões, partes tão principais do escudo de armas de Castela; e chama-se com igual energia neste caso grifa parideira, porque por meio de partos e

casamentos, veio Castela a herdar tantos reinos e estados como possui, que foitambém o título com que entrou em Portugal"(32)

O Bandarra profetizou também que o novo rei havia de ser de casa de

infantes e se chamaria João: "Saia, saia esse Infante/ Bem andante/ O seu nome

é D. João".(33) Até aqui -deixando de lado variantes nos manuscritos e que os

trechos selecionados se encontram emaranhados no meio de outros não

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mencionados-poderia pensar-se que as coplassão objetivas e a interpretação de forma alguma é forçada. O contrário ocorre quandoVieira encontra profetizadas nas coplas acontecimentos da Restauração, como aadesão das conquistas.

No Brasil encontrava-se como Vice-rei o Marquês de Montalvão e na Índia,também como Vice-rei o Conde de Aveiras. Os dois aderiram á Restauração, mas deforma diferente e com resultado para eles oposto. O Marquês de Montalvão aderiuimediatamente e ele mesmo fez a proclamação do novo rei, mas apesar disso foi

deposto do cargo pela suspeita que levantavam de entendimentos com Castela suamullher e filhos da nobreza espanhola. Já o Conde de Aveiras, ao receber a notícia,

pediu um tempo para refletir, mas foi atropelado pelo entusiasmo do povo que forçou aproclamação de D. João IV. Contudo foi mantido no cargo de Vice-rei.

Tudo isto, diz Vieira, profetizou Bandarra:Não acho ser deteúdo

O Agudo,Sendo ele o

instrumento;

Não acho,

segundo sentoO Excelento

falso no seu escudo;Mas acho que o Lanudo

Mui sisudo

Que

arrepelará

o gato,

E fa-lo-á

murar o

rato,De seu fatoDeixando-o todo desnudo.

Por ser "a trova mais dificultuosa do Bandarra, e a quem ninguém jamais pode darsentido", Vieira diz que explicará verso por verso. O Marquês de Montalvão é chamadoo agudo "pela esperteza natural que tinha em todas suas ações e execuções, e aindanas feições e movimentos do corpo" O verso diz sendo ele o instrumento, porque ádiferença de outros lugares ele foi o instrumento da aclamação... O conde de Aveiras échamado "o lanudo", porque "era mui cabeludo e barbaçudo, como todos vimos", e"sisudo" porque tinha "aquelas partes por que o mundo chama aos homens sisudos".

Gato é o estado da Índia a que o Vice-Rei deixou nú pelas riquezas que roubou. (34)

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Recapitulando a prova da primeira proposição, conclui Vieira: "Tudo o que fica ditosão cousas em que até agora mais palpavelmente termos visto cumpridas as profecias

de Bandarra, as quais profecias já cumpridas se bem se distinguirem e contarem ,achar-se-á que são mais de cinqüenta... E todas conheceu e anteviu Bandarra, com

tanta individuação de tempos, lugares, nomes, pessoas, feições , modos e todas asoutras circunstâncias mínimas, que bem parece as via com lume mais claro que a dos

mesmos olhos que depois as viram; e como todos estes sucessos eram totalmentecontingentes, e dependentes da liberdade humana, e de tantas liberdades quantos eramos homens, repúblicas, governadores, cidades e estados de todo o Reino e suasconquistas, bem se colhe que por nenhuma ciência, nem humana, nem diabólica, nemangélica, podia conjeturar Bandarra a mínima parte do que disse... Foi logo lumesobrenatural, profético e divino, o que alumiou o entendimento deste homem idiota ehumilde, para que as maravilhas de Deus, que nestes últimos tempos havia de ver omundo em Portugal, tivessem também aquela preeminência de todos os grandes

mistérios divinos, que é serem muito de antes profetizados" (35)Provada a proposição fundamental de que Bandarra é verdadeiro profeta, passaVieira á segunda, mostrando que, além destas profecias já realizadas, "Bandarraprofetizou outras muitas coisas sobre D. João IV, ainda, não cumpridas. Estas são tão

grandes que o profeta se admira e começa o segundo sonho, com esta exclamação".

Oh! quem pudera dizer

Os sonhos que homem sonha!

Mas hei medo que ponha

Grã vergonha

De me os não quererem crer. (36)

Diz em primeiro lugar Bandarra que o rei D. João IV -que neste segundo sonhoaparece sobo nome de Fernando, segundo Vieira, por ser descendente de Fernando o Católico-sai á

conquista da Casa Santa -Jerusalém-. "Diz mais Bandarra, acrescenta Vieira, que esta jornada será por mar, e que o efeito dela será tomar El-rei ao Turco com grande

facilidade e quase sem resistência":Vi um grande leão correr,

E fazer sua viagem,E tomar o porco selvagem

Na passagem,Sem nada lhe o defender.

Explica Vieira, comentando outras coplas, que esta expedição militar de D. JoãoIV era devida a que os turcos, realizando o castigo devido aos pecados da Igreja,

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tinham invadido Itália praticando as maiores crueldades:  Já os lobos são entrados

De alcateia nas montanhas,Os gados tem esfolados,

E muitos alobegados,Fazendo grande façanha.

O pastor-mor se assanhaE junta seus ovelheiros,Esperta sua companha,Socorre seus pequreiros.

O pastor-mor, que é o Papa, pede ajuda aos príncipes cristãos, e é nestacontraofensiva que o Rei de Portugal, General de todos os príncipes cristãos, derrota oturco, toma

Constantinopla e recebe dos príncipes a coroa imperial: Serão os reis concordantes,Quatro serão e não mais, Todos quatro principais De Poente até

Levante; Os outros reis mui contentes De o verem imperador, E

havido por grão-senhor Não por dádivas, nem presentes."Coroado por Imperador, diz Bandarra que voltará El-rei vitorioso com dois

pendões, que devem ser o de Rei de Portugal e de Imperador de Constantinopla"(37)A última parte deste segundo sonho, e o sonho terceiro integralmente, são

dedicados a narrar como aparecem, de repente, as dez tribos perdidas de Israel, e sãointroduzidas ao Papa pelo Rei de Portugal.

Á vitória dos Turcos e redução dos judeus se seguirá também a extirpaçãodas

heresias por meio deste glorioso

príncipe:

Todos terão

um amor,

Assim gentios

pagãos Como

 judeus ecristãos, Sem

 jamais haver

error.

Depois se seguirá a paz universal do Mundo 'tão cantada e prometida por todosos profetas".

Conclui Vieira que sete são as profecias do Bandarra sobre o Rei João IV, ainda

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não realizadas: :"1a. Que sairá do Reino com todo o poder dele e navegará aJerusalém. 2a. Que desbaratará o Turco na passagem de Itália a Constantinopla.

3a.Que o ferirá por sua própria mão, e que ele se lhe virá entregar. 4a. Que ficarásenhor da cidade e Império de Constantinopla, de que será coroado por Imperador.

5aQue tornará com dois pendões vitoriosos a seu Reino. 6a. Que introduzirá aoPontífice e á Fé de Cristo os dez tribos de Israel prodigiosamente aparecidos. 7a. Que

será instrumento da conversão e paz universal de todo o Mundo, que é o último fim paraque Deus o escolheu. E faltando a El-rei D. João por obrar todas estas cousas, e sendocerto que há-de obrar, pois assim esta profetizado, bem assentado parece que fica estesegundo fundamento de nossa conseqüência"(38)

Já podia a obra terminar aqui, estabelecidas as três proposições iniciais, masainda se demora Vieira, analisando diversas passagens das Trovas, que identificam,segundo ele, não o rei de Portugal senão D. João IV, como protagonista do Impériouniversal. Há aqui uma polêmica implícita com os sebastianistas, ainda vivos em suas

esperanças. Responde também á objeção de como o Bandarra que tudo viu não falouda ressurreição de D. João IV. Responde Vieira que o Bandarra previu a ressurreição dorei e falou dela:

  Já o tempo desejado É chegado

Segundo o firmal assenta;

  Já se passaram os quarenta,Que se amenta,Por um doutor já passado;O Rei novo é acordado,

  Já dá o brado,  Já

ressoa

seu

pregão,

Levi lhe dá

a mãoContra Sichem desmandado.

Os sete primeiros versos, diz Vieira, são muito semelhantes aos da aclamação deD. João IV de forma que muitos códices os suprimiram pensando ser repetição. Mas osda aclamação se referem aos anos quarenta, e aqui diz "já se passaram os quarenta".Trata-se da segunda grande empresa de D. João, a derrota do turco e a conquista de

Constantinopla. E há outra diferença sutil entre as duas passagens, na primeira se diz oRei novo é levantado, e nesta o Rei novo é acordado. Nesta expressão Bandarra

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profetizou claramente a ressurreição, pois dormir e acordar são expressõescontinuamente empregadas na Bíblia como metáforas de morrer e ressuscitar.

E Vieira acrescenta um argumento de congruência: "Considerem os incrédulos, seainda os há, quantos homens tem ressuscitado neste mundo, não só cristãos mas

gentios, e para fins muito ordinários. Só S. Francisco Xavier, quase em nossos dias,ressuscitou vinte e cinco. Pois se Deus em todas as idades e nesta nossa ressuscitou

tantos homens, e ainda gentios, para fins particulares; para um fim tão universal e tãoextraordinário como nunca teve o Mundo, como é a recuperação da Terra Santa, adestruição do Turco, a conversão de toda a gentilidade e judaísmo, como nãoressuscitará um homem cristão, pio, religioso... Ressuscitará sem dúvida El-rei D. Joãoe sua ressurreição será o meio mais fácil de conciliar o respeito e obediência de todasas nações de Europa, que o hão de seguir e militar em suas bandeiras nesta empresa,o que de nenhum modo fariam, sendo tão orgulhosas e altivas, se não fossemobrigadas de um sinal do Céu, entendendo que não obedecem a um rei de Portugal,

senão a um capitão de Deus"(39)Finalmente trata Vieira do tempo em que estas maravilhas deveriam acontecer, eencontra em Bandarra a indicação de que nos anos sessenta, já iminentes.

Desta forma, pode concluir Vieira: "No efeito dos sucessos é certo e certíssimo

que não me engano; no cômputo de tempo, de que não tenho tanta segurança, tambémpresumo que me não hei de enganar. E se assim for, aparelhe-se o Mundo para ver

nestes dez anos fatais uma representação dos casos maiores e mais prodigiosos quedesde seu princípio até hoje tem visto. Em Espanha verá o rei de Portugal ressuscitado

e Castela vencida e dominada pelos portugueses. Em Itália verá o Turco barbaramentevitorioso e depois desbaratado e posto em fugida. Em Europa verá universal suspensão

de armas entre todos os Príncipes cristãos, católicos e não católicos; verá ferver o mare a terra em exércitos e em armadas contra o inimigo comum. Na África e na Ásia, e emparte da mesma Europa, verá o Império Otomano acabado, e El-rei de Portugal adoradoImperador de Constantinopla. Finalmente com a assombro de todas as gentes, veráaparecidos de repente os dez tribos de Israel, que há mais de dois mil anosdesapareceram, reconhecendo por seu Deus e seu senhor a Jesus Cristo, em cujamorte não tiveram parte. Esta é a prodigiosa tragicomédia, a que convida Bandarranestes dez anos a todo

o Mundo"(40)Com a fé intacta nesta cronologia, especialmente no valor simbólico do ano 666,

Vieira pode enfrentar impávido, quase desdenhoso, os interrogatórios da Inquisição,pensando que sua hora estava chegando. Ao inquisidor Alexandre da Silva que o

interrogava "disse entre outras coisas que a roda que agora o tinha abatido, o poderátornar a levantar; porque em uma de suas trovas dizia o Bandarra: "Vejo um altoengenho em uma roda triunfante" e que mais de quatro ou cinco pessoas, que nãonomeou, lhe tinham dito, que aquele alto engenho era ele, Padre Antônio Vieira"(41).

Ao passar, porém, o ano 66 sem que nada acontecesse, um choque profundo

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deve ter abalado Vieira, como se morresse uma parte central de todo seu passado , ruiasua arrogância , a teimosia de sustentar a defesa durante quatro anos, a certeza de sua

interpretação Na defesa que apresentou á Inquisição nos últimos dias, libelo que não foilido pelos inquisidores, atribuía, sem constrangimento, e ao que parece de absoluta boa

fé, ao desejo de dar "alívio" á Rainha o que tinha escrito de D. João IV, "sendo, porém,certo que meu intento não era resolver por último que o Senhor Rei D. João fosse ou

houvesse de ser o prometido Imperador... e o meu pensamento era dedicar eu este livroa El-rei D. Afonso VI, que Deus guarde, e concluir, por remate de tudo, haver S. M. ser ofuturo Imperador, em quem tivesse princípio o Império prometido..."(42)

Quando escrevia esta homenagem D. Afonso estava sendo deposto por incapaz,num golpe palaciano comandado pelo irmão, Pedro. A este se voltaria Vieira para vernele o futuro imperador.

Fechada assim a via curta para o Quinto Império, Vieira devia voltar-se ao lento epenoso labor de estabelecê-lo com as Escrituras e os Padres, que é o que tentava fazer,

há anos, tão lentamente, na Clavis Prophetarum.Notas:1) C. R. Boxer, A great luso-brasilian figure: P. Antonio Vieira, London, 1969.

2) Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição,

edição, transcrição, glossário e notas por Adma

Muhana, São Paulo, l995, p. 63. 3) Defesa do livro

intitulado Quinto Império, in Antônio Vieira, Obras

Escolhidas VI, comprefácios e notas de Antônio Sérgio e Hernani Cidade, Livraria Sá da Costa Editora,

Lisboa.4) Ibid. 96ss5)Cf. Franz Joseph Schierse, Apokalyptik , in Herders Theologishes Tashen

lexicon e, Ugo

Vanni, Apocalittica come Teologia in Dizionario Teologico

Interdisciplinare. 6) Defesa perante o Santo Ofício, o. c. II, p. 197.

Vieira trata em numerosos escritos -sermões, Defesa, Autos-da

comparação relativa do número dos que se salvam e dos que secondenam. Embora suas apreciações variam nestes escritos, em todos contrapõe o

pequeno número dos que se salvam em comparação da enorme multidão dos que secondenam. A razão principal para defender que o Reino estabelecido de Cristo na terradeve ter uma duração prolongada é que se durante centenas de anos a quasetotalidade dos homens se salvasse se poderia completar a décima parte dospredestinados em comparação com os nove décimos de condenados ao longo dahistória (Autos, p.91) Esta atitude de Vieira, para nós tão chocante, é um testemunhovivo da dureza do pensamento teológico dos tempos em que viveu. A aplicação

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inflexível do ditado teológico “Extra Ecclesiam nulla salus” -fora da Igreja não hásalvação-levava aos maiores excessos, como este de Vieira -comum aos teólogos

contemporâneos-de condenar inepelavelmente todos os povos anteriores a Cristo, ounão cristãos. Um exemplo paralelo desta mentalidade a encontramos repetidamente nas

cartas de São Francisco Xavier que pensava e proclamava que todas as religiões nãocristãs só conseguiam levar para o inferno. La Couture. Os calvinistas foram mais longe

pois puseram como fundamento de sua crença a doutrina da predestinação, que inclui acondenação dos não eleitos -os eleitos uma minoria insignificanteantes de qualquerescolha pessoal. E quando o pastor Armínio tratou de introduzir uma leve atenuaçãonuma doutrina tão desumana em si, recebeu a condenação do Sínodo de Dordrecht(1618) e teve que partir com seus seguidores para o desterro.

7) Defesa perante o Santo Ofício, o.c. II, p. 244 ss.8) José Van der Besselaar, O Sebastianismo. História Sumária, Lisboa, 1987.9) J. L de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, 1947, 2a ed. P. 7

10) Besselaar, o. c.11) Azevedo, A evolução, o.c.12) Ibid.13) J. Ameal, História de Portugal 33

l4) Calado, Frei Manuel, O Valoroso Lucideno e triunfo da liberdade, Recife, l942vol I-II, p.

19. 15) Evolução do Sebastianismo, o. c. p. 55 16) Francisco Manuel de Melo,Epanáfora Política, 17) A evolução do Sebastianismo, o. c. p. 72 18) Ibid. P. 75, ss

19) A grande apologia da Restauração, vendo nela o cumprimento das profecias,

Restauração de Portugal prodigiosa foi escrita pelo padre jesuíta João de Vasconcelos,companheiro de Vieira em S. Roque. Para a participação dos jesuítas na RestauraçãoCf. Evolução do Sebatianismo, o. C. p. 62 ss.

20) História de Antônio Vieira, o. c., p. 81 21) Evolução do Sebastianismo, p. 8622)Cf., Hernani Cidade, Padre Antônio Vieira. Estudo biográfico e crítico, Lisboa,1940,, p.

166. 23) José Antônio Saraiva, As Quatro Fontes do Discurso Engenhoso nos sermões

do Padre Antônio Vieira, em O Discurso Engenhoso, São Paulo, 1980, E Padre

Antônio Vieira na História

da Literatura Portuguesa, p. 549-565, Porto, 1989

24) Sermão de S. Pedro, in Sermões XVI, p. l8ss

25) História de Antônio Vieira, o. c. p. 33.

26)As traduções atuais da Bíblia não conservam a metáfora da moreia27)Antônio Sérgio, Ensaios V, p. 101 ss. Um exemplo de raciocínio analógico é o

proposto por Vieira para provar a futura existência do Quinto Império através da

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analogia entre as três etapas da vida de Cristo e as três etapas correspondentes dahistória da Igreja. Esta argumentação Vieira a propôs em vários dos interrogatórios

perante a Mesa do Santo Ofício, com pequenas variantes: “Perguntado de que modocomputa ele declarante e combina mais particularmente, do que na dita sessão deixa

tocado, os anos e sucessos da vida de Cristo com os anos da duração e sucessos daIgreja Romana. Disse que a dita combinação mais em particular vinha a ser,

responderem os primeiros sete ou oito anos da perseguição de Herodes, e desterro deCristo a outros tantos anos do jubileu, que vêm a montar trezentos e cinqüenta ouquatrocentos anos que são os que duraram as principais perseguições da Igreja até oImperador Constantino. e que os anos de Cristo seguintes até os trinta, em que viveu naobediência e retiro, correspondem ao tempo das religiões (sic) que também professamretiro e obediência, e começaram pelos mesmos anos de quatrocentos, pouco mais oumenos, em São Basílio e São Bento; e que aos três últimos anos da vida e pregação deCristo, que começaram depois dos trinta de sua idade, respondem também

pontualmente á pregação mais universal , que houve no mundo, depois dos novosdescobrimentos dele, em ambas as Índias, que foram pelos anos do nascimento deCristo de mil e quinhentos. e que esta combinação até aqui, a tem ele declarante pormais provável por corresponder com os sucessos. e que daqui por diante segundo a

mesma combinação, lhe parece se poderão seguir primeiro alguns trabalhos eperseguições da Igreja, que respondam á paixão de Cristo, e depois deles, as

felicidades e glórias da mesma Igreja, correspondentes ao tempo da ressurreição, queCristo se deteve glorioso neste mundo, até o tempo de sua ascensão, como melhor dirá

no papel de sua defesa”Autos, o. c. p.9028) Os Autos do Processo, o. c. p. 55.

29) Cf. Jonathan D. Spence, O Palácio da Memória de Matteo Ricci, São Paulo,l986. Vieira constitui, de fato, um caso prodigioso de retenção na memória. A longaDefesa perante o Santo Ofício, Salvador, l959, em que cita centenas de autores elugares da Escritura, foi escrita toda de memória, sem poder consultar nenhum livro ouapontamento. Outro caso notável, no Brasil, é Anchieta, que segundo a tradição -nestecaso altamente provável-, compôs o Poema da Virgem -De Beata Virgine Dei MatreMaria-de 5,786 versos, escrevendo os versos na areia da praia e guardando-os namemória.

30) Ibid.p. 2.31) Ibid. p. 4-5

32) Ibid. p. 733) l. c.

34) Ibid. p. 9 ss 35) Ibid. p. 17 37) Ibid. p.40) Ibid. p. 64 ss

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 36) Ibid. p. 19

 38) Ibid. p. 35

 39) Ibid. p. 46

 41) Os Autos , o. c. p. 405

 42) Defesa do livro intitulado “Quinto Império”, in Obras Escolhidas VI, p. 103

Pe. Luís Gomes Palacín, SJ, pertence ao Departamento de História da UFG-GO.