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076 FAMÍLIA E PARENTESCO: DIREITO E ANTROPOLOGIA artigo 05 pp. 076 - 092 São Paulo FAMÍLIA E PARENTESCO: DIREITO E ANTROPOLOGIA Laura Souza Lima e Brito Aluna do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de São Paulo, nível doutorado FAMILY AND KINSHIP: LAW AND ANTHROPOLOGY RESUMO O presente artigo apresenta uma abordagem comparativa entre o direito e a antropologia acerca da noção de família e de parentesco. Pretende uma valorização do direito de família como ciência social aplicada que se ocupa com a análise e solução de problemas complexos da sociedade ligados à existência da entidade familiar. Para tanto, são analisadas as intensas modificações ocorridas na concepção de família nas últimas décadas, destacadas pela antropologia, ressaltando como as mesmas foram absorvidas pelo direito de família no Brasil. Além disso, destaca-se – tanto para a antropologia quanto para o direito – o aspecto cultural da relação entre parentes, salientando-se a gravidade das repercussões do exame de DNA como prova de laço consanguíneo, mas não necessariamente de laço de parentesco, gravidade esta tão bem pontuada pelo Poder Judiciário brasileiro. Por fim, conclui-se que o direito de família, alinhado à antropologia, deve desenvolver trabalho complementar com a mesma, assumindo-se como locus privilegiado da interdisciplinaridade. PALAVRAS-CHAVE: Família. Parentesco. Paternidade socioafetiva. Exame de DNA ABSTRACT This paper presents a comparative approach between law and anthropology about the notion of family and kinship. It intends the appreciation of family law as an applied social science that deals with the analysis and solution of complex problems of society linked to the existence of a family unit. For this purpose, deep changes regarding the conception of family in the past few decades have been analyzed, as highlighted by anthropology, stressing how they were absorbed by family law in Brazil. Moreover - both to anthropology as to law - the cultural aspect of the relationship between relatives have been detached, highlighting the severity of the impact of DNA testing as proof of consanguinity bond, but not necessarily paternity bond, as Brazilian courts have repeatedly acknowledged. Finally, we conclude that family law, aligned to anthropology, must develop a complementary work, assuming itself as a remarkable interdisciplinarity locus. KEYWORDS: Family. Kinship. Social paternity. DNA test 1. INTRODUÇÃO Há uma preocupação, inclusive no meio acadêmico, acerca da existência de um atraso crônico do direito em relação às ciências sociais no que concerne à abordagem de novos desafios da família e da sociedade (GOMES, 2005, pp. 121 a 134). Ocorre que o direito de família é uma área jurídica sob a qual se revelam os conflitos mais íntimos das pessoas, e pela qual são levados ao conhecimento do Poder Judiciário demandas tão diversas que escapam a qualquer tentativa de simplificação. Pergunta-se, então, se seria possível demonstrar, por meio de uma análise comparativa entre o direito e a antropologia, que o direito de família não se omite em relação às particularidades das relações familiares, mas, ao contrário, oferece soluções a tais questões em complementaridade ao que apontam as observações sociais dos antropólogos. Diante disso, o presente artigo tem como objetivo pontuar os aspectos jurídicos da noção de família e das relações de parentesco, de maneira a demonstrar que, tomado o direito como mais do que um conjunto de

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família e parentesco - antropologia

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  • 076FAMLIA E PARENTESCO: DIREITO E ANTROPOLOGIA

    artigo 05

    pp. 076 - 092

    So Paulo

    FAMLIA E PARENTESCO: DIREITO E ANTROPOLOGIA

    Laura Souza Lima e Brito

    Aluna do Programa de Ps Graduao em Direito da Universidade de So Paulo, nvel doutorado

    FAMILY AND KINSHIP: LAW AND ANTHROPOLOGY

    RESUMOO presente artigo apresenta uma abordagem comparativa entre o direito e a antropologia acerca da noo de famlia e de parentesco. Pretende uma valorizao do direito de famlia como cincia social aplicada que se ocupa com a anlise e soluo de problemas complexos da sociedade ligados existncia da entidade familiar. Para tanto, so analisadas as intensas modificaes ocorridas na concepo de famlia nas ltimas dcadas, destacadas pela antropologia, ressaltando como as mesmas foram absorvidas pelo direito de famlia no Brasil. Alm disso, destaca-se tanto para a antropologia quanto para o direito o aspecto cultural da relao entre parentes, salientando-se a gravidade das repercusses do exame de DNA como prova de lao consanguneo, mas no necessariamente de lao de parentesco, gravidade esta to bem pontuada pelo Poder Judicirio brasileiro. Por fim, conclui-se que o direito de famlia, alinhado antropologia, deve desenvolver trabalho complementar com a mesma, assumindo-se como locus privilegiado da interdisciplinaridade.

    PALAVRAS-CHAVE: Famlia. Parentesco. Paternidade socioafetiva. Exame de DNA

    ABSTRACTThis paper presents a comparative approach between law and anthropology about the notion of family and kinship. It intends the appreciation of family law as an applied social science that deals with the analysis and solution of complex problems of society linked to the existence of a family unit. For this purpose, deep changes regarding the conception of family in the past few decades have been analyzed, as highlighted by anthropology, stressing how they were absorbed by family law in Brazil. Moreover - both to anthropology as to law - the cultural aspect of the relationship between relatives have been detached, highlighting the severity of the impact of DNA testing as proof of consanguinity bond, but not necessarily paternity bond, as Brazilian courts have repeatedly acknowledged. Finally, we conclude that family law, aligned to anthropology, must develop a complementary work, assuming itself as a remarkable interdisciplinarity locus.

    KEYWORDS: Family. Kinship. Social paternity. DNA test

    1. IntroduoH uma preocupao, inclusive no meio acadmico, acerca da existncia de um atraso crnico do direito em relao s cincias sociais no que concerne abordagem de novos desafios da famlia e da sociedade (GOMES, 2005, pp. 121 a 134).

    Ocorre que o direito de famlia uma rea jurdica sob a qual se revelam os conflitos mais ntimos das pessoas, e pela qual so levados ao conhecimento do Poder Judicirio demandas to diversas que escapam a qualquer tentativa de simplificao.

    Pergunta-se, ento, se seria possvel demonstrar, por meio de uma anlise comparativa entre o direito e a antropologia, que o direito de famlia no se omite em relao s particularidades das relaes familiares, mas, ao contrrio, oferece solues a tais questes em complementaridade ao que apontam as observaes sociais dos antroplogos.

    Diante disso, o presente artigo tem como objetivo pontuar os aspectos jurdicos da noo de famlia e das relaes de parentesco, de maneira a demonstrar que, tomado o direito como mais do que um conjunto de

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    normas estanques, o direito de famlia tem se mostrado como uma rea em que os novos fenmenos sociais tm sido abordados e enfrentados, sem que seja esquecida da complexidade das relaes humanas.

    Justifica-se a presente abordagem em razo da necessidade de valorizao do direito de famlia como uma cincia social aplicada que se ocupa com a anlise e soluo de problemas complexos da sociedade ligados existncia da entidade familiar.

    Para tanto, este artigo realizar uma reviso bibliogrfica da rea de antropologia da famlia acerca da noo de entidade familiar e de parentesco, para que, ento, seja realizado um contraponto com a abordagem jurdica normas, jurisprudncia e doutrina desses mesmos temas, para que reste demonstrado que o direito de famlia tem se posicionado mesmo sobre os aspectos mais atuais da vida familiar.

    Ressalte-se que o tema famlia por demais amplo para ser exaurido jurdica e antropologicamente na extenso de um artigo. A questo do parentesco, ento, mostrou-se um recorte adequado, em razo das valiosas contribuies que a antropologia fornece quanto desvinculao dos laos entre parentes e a consanguinidade.

    Por fim, ficar evidenciado que as cincias humanas acima elencadas direito e antropologia debruadas sobre o mesmo objeto a famlia oferecem abordagens diversas, mas concluses cujo conhecimento necessariamente complementar para os estudiosos do tema.

    2. o nomos como objeto de pesquIsaA primeira observao cabvel neste artigo a de que, tanto o direito quanto a antropologia possuem, em ltima instncia, o mesmo objeto o nomos. Tal expresso, de origem grega, significa aquilo que oposto natureza (physis), ou seja, aquilo que cultura1. Na Grcia antiga, os usos mais importantes para a palavra nomos eram (a) uso ou costume baseado em crenas tradicionais ou convencionais quanto ao que certo ou verdadeiro; (b) leis formalmente esboadas e passadas, que codificam o uso correto, elevando-o a norma obrigatria coberta pela autoridade do Estado (GUTHRIE, 1995, p. 58 ) (grifo nosso).

    Ainda, acerca dessa dupla acepo acima elencada para a expresso nomos, vale observar que o primeiro uso foi o anterior (costumes), mas que nunca se perdeu de vista, de sorte que para a lei grega, por mais que fosse formulada por escrito e reforada pela autoridade, permanecia dependente de costume e hbito (GUTHRIE, 1995, pp. 58 e 59).

    Importa salientar que o senso comum busca organizar e explicar o caos, assim como o faz a cincia. Os antroplogos buscam entender essa ordem dada s sociedades, que podemos chamar de cultura. Ainda, a antropologia preocupa-se, de maneira especial, com o aspecto costumeiro da cultura, que, como visto acima, uma das acepes do termo nomos:

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    Na antropologia, desde o incio, houve uma preocupao com esse aspecto dinmico da cultura, que est incorporada no estudo dos costumes. A ideia do costume um pouco diferente da ideia de produto simblico. Agora no se trata apenas do produto da ao humana, mas da prpria natureza dessa ao: uma ao padronizada e organizada pelas regras, codificada simbolicamente e, como os bens culturais, carregada de significao. essa dimenso do conceito de cultura que acredito ser a fundamental: aquela que toma por referncia bsica a regularidade e o significado do comportamento criado pela manipulao de sistemas simblicos. (DURHAM, 1984, p. 27)

    Os juristas, por sua vez, tambm procuram entender a ordem imposta s sociedades por meio do monoplio da fora fsica detido por um soberano.Diante disso, observa-se que as regras culturais tanto os costumes, quanto as normas jurdicas possuem relao intrnseca e, em ltima anlise, constituem o mesmo objeto de estudo para ambas as cincias em comento. verdade que a antropologia e o direito no so a mesma cincia, inobstante possam tratar, numa viso mais ampla, de um mesmo objeto. O recorte, os limites dados ao tema, assim como os mtodos utilizados por essas duas cincias so, em regra, muito divergentes. Enquanto o trabalho do antroplogo pode ser entendido, como sugere Oliveira, em trs etapas: olhar, ouvir, escrever (OLIVEIRA, 2000, pp. 17 a 35); dogmaticamente, o trabalho do jurista visivelmente voltado para uma tcnica de deciso:

    Podemos dizer, nesse sentido, que a cincia dogmtica do direito costuma encarar seu objeto, o direito posto e dado previamente, como um conjunto compacto de normas, instituies e decises que lhe compete sistematizar, interpretar e direcionar, tendo em vista uma tarefa prtica de soluo de possveis conflitos que ocorram socialmente. (FERRAZ JR., 2003, p. 82)

    Em suma, no que concerne ao objeto normativo (nomos), a antropologia descreve e o direito prescreve.

    3. a noo de famlIaPrimeiramente, cumpre ressaltar que famlia palavra que no oferece um conceito fechado nem para a antropologia, nem para o direito , mas que pode ser estudada como uma noo processual, dinmica, visto que uma instituio cultural e, por isso, modifica-se geogrfica e historicamente.

    Nesse sentido, Durham destaca que o estudo dessa instituio requer cuidado especial com a tendncia do senso comum de naturalizar o conceito de famlia, noo essa que eminentemente cultural:

    No caso da famlia, entretanto, a tendncia naturalizao

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    extremamente reforada pelo fato de se tratar de uma instituio que diz respeito, privilegiadamente, regulamentao social de atividades de base nitidamente biolgica: o sexo e a reproduo. (...)O problema inicial do estudo de famlia dissolver essa aparncia de naturalidade para perceb-la como criao humana mutvel. (DURHAM, 1983, p. 15)

    Reconhecida a tendncia de naturalizao da noo de famlia2, pode-se admitir que, at muito recentemente, em nossa sociedade, famlia foi identificada como o modelo conjugal ou nuclear: a famlia a unidade constituda pelo marido, a mulher e seus filhos, que forma um grupo domstico (DURHAM, 1983, p. 32).

    Contudo, atualmente, as pesquisas na rea da demografia e da antropologia demonstram que, em nossa sociedade, na composio das unidades domsticas, a descrio de modelos familiares distintos do nuclear numerosa em qualidade e quantidade. Dentre eles, tipicamente, as famlias constitudas por casais sem filhos, as famlias monoparentais e os domiclios ocupados por uma nica pessoa.

    De acordo com os dados do IBGE, entre 2001 e 2009, nas pesquisas nos domiclios brasileiros, houve uma queda considervel na porcentagem de unidades ocupadas por famlias nucleares, como se observa da tabela abaixo3:

    Modelo familiar 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

    Famlia unipessoal 9,2 9,3 9,9 10 10,4 10,7 11,1 11,6 11,5

    Casal com filhos 53,3 52,8 51,5 50,9 50 49,4 48,9 48,2 47,3

    Casal sem filhos 13,8 14,1 14,4 14,6 15,1 15,6 16 16,7 17,4

    Mulher sem cnjuge com

    filhos17,8 17,9 18,1 18,2 18,1 18,1 17,4 17,2 17,4

    Da mesma forma, evidenciando a correspondncia dos objetos de pesquisa entre o direito e a antropologia, a modificao da noo de famlia no campo jurdico tambm pode ser percebida de maneira clara. Os limites para a verificao, na viso do direito, de se um arranjo social pode ser considerado como famlia ou no, ou seja, merecedor da especial proteo do Estado, so observados na Constituio da Repblica de 19884:

    Artigo 226. A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado. 1 - O casamento civil e gratuita a celebrao. 2 - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. 3 - Para efeito da proteo do Estado, reconhecida a

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    unio estvel entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua converso em casamento. 4 - Entende-se, tambm, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 5 - Os direitos e deveres referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 6 - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divrcio. 7 - Fundado nos princpios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsvel, o planejamento familiar livre deciso do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientficos para o exerccio desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituies oficiais ou privadas. 8 - O Estado assegurar a assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes. (grifos nossos)

    Diversa era a acepo de famlia presente na Constituio imediatamente anterior, de 19675:

    Artigo 175. A famlia constituda pelo casamento e ter direito proteo dos Poderes Pblicos. 1 - O casamento somente poder ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prvia separao judicial por mais de trs anos; 2 O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil se, observados os impedimentos e prescries da lei, o ato for inscrito no registro pblico, a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado. 3 O casamento religioso celebrado sem as formalidades do pargrafo anterior ter efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no registro pblico, mediante prvia habilitao perante a autoridade competente. 4 Lei especial dispor sobre a assistncia maternidade, infncia e adolescncia e sobre a educao de excepcionais. (grifo nosso)

    A doutrina jurdica tambm consagrou as modificaes ocorridas na noo de famlia no ltimo sculo. Na obra de Washington de Barros Monteiro, cuja atualizao de responsabilidade de Regina Beatriz Tavares da Silva, possvel perceber no prprio texto as mudanas na acepo do objeto que prprio do direito de famlia. Em sua primeira parte, do texto original, observa-se a naturalizao do conceito de famlia consangunea:

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    Necessrio, destarte, antes de mais nada, precisar o sentido da palavra famlia, suscetvel, na linguagem jurdica, de diversas significaes. Num sentido restrito, o vocbulo abrange to somente o casal e a prole. Num sentido mais largo, cinge o vocbulo a todas as pessoas ligadas pelo vnculo de consanguinidade, cujo alcance ora mais dilatado, ora mais circunscrito, segundo o critrio de cada legislao. (MONTEIRO, 2012, p. 17)

    Aps a adaptao da obra s modificaes mais recentes da noo jurdica de famlia, observa-se a transformao no conceito: nessa designao devem ser includas a entidade familiar constituda pelo casamento, pela unio estvel, pela comunidade formada por apenas um dos pais e seus descendentes e, ainda, pela socioafetividade (MONTEIRO, 2012, p.17).

    As transformaes na noo de famlia no direito brasileiro tambm j foram amplamente reconhecidas pelo Poder Judicirio, sendo certo que o trecho abaixo transcrito revela com preciso o vanguardismo do direito de famlia no Brasil, com o entendimento da possibilidade da existncia de famlia mesmo sem a presena de ascendentes:

    (...) o conceito de ncleo familiar estvel no pode ficar restrito s frmulas clssicas de famlia, mas pode, e deve, ser ampliado para abarcar uma noo plena de famlia, apreendida nas suas bases sociolgicas (...). O primado da famlia socioafetiva tem que romper os ainda existentes liames que atrelam o grupo familiar a uma diversidade de gnero e fins reprodutivos, no em um processo de extruso, mas sim de evoluo, onde as novas situaes se acomodam ao lado de tantas outras, j existentes, como possibilidades de grupos familiares (...). Nessa senda, a chamada famlia anaparental - sem a presena de um ascendente -, quando constatado os vnculos subjetivos que remetem famlia, merece o reconhecimento e igual status daqueles grupos familiares descritos no art. 42, 2, do ECA(...). (STJ, RESP. N. 1.217.415/RS, 3 Turma, Min. Rel. Nancy, D.J. 19/06/2012) (grifo nosso)

    Maria Celina Bodin de Moraes (2006, p. 615) reconhece que o processo de transformao da noo de famlia foi acompanhado de perto pela legislao e pela jurisprudncia brasileiras que tiveram nas duas ltimas dcadas, inegavelmente, um papel promocional na construo do novo modelo familiar.

    Vale ressaltar que as razes para as modificaes, acima relatadas, esto intimamente ligadas com o desenvolvimento do capitalismo, sistema em que o sexo do trabalhador irrelevante, desde que o

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    mesmo possa vender sua fora de trabalho (DURHAM, 1983, p. 34). Desta feita, a industrializao colocou em xeque a diviso sexual do trabalho tradicional, que mantinha o modelo nuclear de famlia.

    Com a entrada da mulher no mercado de trabalho e a sua participao na renda familiar, as relaes de poder no seio da famlia se modificaram, tornando invivel a manuteno de um modelo exclusivo para a instituio em tela. Diante disso, a dependncia econmica entre homem e mulher se desfez, de maneira que a manuteno do modelo tradicional de famlia s se justifica caso seja aquele que satisfaz os projetos de cada indivduo dentro do contexto familiar. Como bem salienta Singly (2007, p. 152):

    O trabalho assalariado da mulher transforma, em parte, a natureza dos laos que a unem a seu parceiro. Ele permite ter a chave de casa. Esse ponto tanto mais importante quanto o amplo lugar da afeio nas relaes conjugais. A abertura de um segundo mercado para as mulheres (alm do matrimonial) lhes d a possibilidade de s viver conjugalmente por motivos amorosos. (grifo nosso)

    Os meios de controle da natalidade tambm foram determinantes para as mudanas percebidas ao longo das ltimas dcadas no que concerne aos modelos aceitos sob a rubrica de famlia. A possibilidade de manuteno de relaes sexuais sem reproduo permitiu uma maior liberdade na troca de parceiros, permitindo que fosse possvel a manuteno de uma vida social sem o casamento. Ainda, para as pessoas casadas, os mtodos contraceptivos permitiram o planejamento familiar, inclusive, com a opo de no ter filhos.

    Tais pontos so evidenciados tambm no plano do direito, vez que, conforme se observa do 5 do artigo 226 da Constituio da Repblica vigente, acima citado, no h mais diferena institucional entre os papis masculino e feminino na conduo da sociedade conjugal, o que , antes de tudo, um corolrio lgico do princpio da igualdade de gneros abraado pela mesma Constituio (artigo 5, inciso I).

    Ainda, tambm a liberdade no planejamento familiar foi contemplada na Lei Maior, a reforar que nenhuma mulher pode ser obrigada a ter ou deixar de ter um filho contra a sua vontade (artigo 226, 7, da Constituio da Repblica).

    Por fim, ainda no que concerne noo de famlia, cabe ressaltar que, inobstante a famlia seja cultural e, como tal, flexvel e mutvel, uma de suas bases a proibio do incesto. A esse respeito, Lvi-Strauss chamou a ateno para o terrvel mistrio que a universalidade da proibio do incesto, ainda que esta seja uma regra e, como tal, relativa e particular. Em suas palavras:

    Encontramo-nos assim em face de um fato, ou antes de um

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    conjunto de fatos, que no est longe, luz das definies precedentes, de aparecer como um escndalo, a saber, este conjunto complexo de crenas, costumes, estipulaes e instituies que designamos sumariamente pelo nome de proibio do incesto. Porque a proibio do incesto apresenta, sem o menor equvoco, e indissoluvelmente reunidos, os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditrios de duas ordens exclusivas, isto , constituem uma regra que, nica entre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo carter de universalidade. (LVI- STRAUSS, 2009, pp. 45e 46)

    No poderia ser diferente na seara jurdica, em que o incesto terminantemente proibido pelo Cdigo Civil, tanto no caso de parentesco consanguneo, quanto no caso de parentesco no biolgico, no captulo dos impedimentos para o casamento (artigo 1.521 do Cdigo Civil).

    Saliente-se, ainda, nesse sentido, que, da mesma forma que o parentesco prximo impede a formao de uma famlia pelo casamento, o direito brasileiro no reconhece como famlia constituda por unio estvel quando presente qualquer dos impedimentos para o casamento acima referidos (artigo 1.723,1, do Cdigo Civil).

    Em suma, inobstante a impossibilidade de definio de um conceito de famlia, possvel, por meio das cincias antropolgica e jurdica a percepo de um conjunto de regras e tradies que permitem a identificao do que famlia para determinada comunidade cultural. E, ainda, que para o direito de famlia brasileiro, a noo de entidade familiar abarca a abertura prpria desse fenmeno social.

    4. as relaes de parentescoNo que concerne s relaes de parentesco, a advertncia de Eunice Durham, acima referida, sobre os riscos da naturalizao da noo de famlia deve ser rigorosamente observada (DURHAM, 1983, p. 15). nesse sentido que Romanelli (2003, pp. 80 a 81, grifo nosso) salienta o carter no natural da instituio domstica:

    (...) a dimenso biolgica (da instituio domstica) elaborada culturalmente em todas as sociedades humanas e adquire significado mediante a construo de normas e modelos que passam a orientar o conjunto das relaes familiares, inclusive na expresso de vnculos afetivos do par conjugal e entre esses filhos. (...) Assim como os laos de aliana so institudos a partir de ordenaes culturais, as relaes entre pais e filhos tambm so construdas do mesmo modo, sobrepondo-se ao aspecto biolgico do processo reprodutivo. (grifo nosso)

    A ligao que possui o parentesco com a reproduo conduz ao

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    reforo dessa noo de que os vnculos familiares seriam decorrentes dos laos sanguneos, o que uma falcia. O parentesco um fato cultural e no biolgico.

    Importante destacar que foi a antropologia que, por meio de suas pesquisas de diferentes culturas, possibilitou que fosse evidenciada a dimenso cultural das relaes de parentesco, pois o que parecia natural e biolgico em uma sociedade era encarado de maneira diversa em outra comunidade humana. Ora, se as regras de parentesco fossem derivadas da consanguinidade, certamente, por naturais, deveriam ser universais. Contudo, estudos antropolgicos demonstraram que a ideia de parentesco particular, ou seja, pertencente ao mundo da cultura.

    fato que no se pode negar que as ligaes entre as pessoas frequentemente podem ser descritas em termos genealgicos, mas tambm podem ser descritas de outras formas (CARSTEN, 2000, p. 1). Por exemplo, Eunice Durham (1983, pp. 23 e 24) destaca a anlise realizada por Malinowski acerca da famlia trobriandesa6, que evidencia a artificialidade das relaes de parentesco, em razo da extrema diferena que existe entre a organizao da famlia trobriandesa e a da nossa:

    Os trobriandeses constituem um dos casos (relativamente raros) de sociedades que negam totalmente a participao do genitor no processo reprodutivo. Acredita-se que as crianas sejam concebidas atravs de espritos que vagam sobre as guas e penetram na vagina das mulheres quando estas se banham. Relaes sexuais nada tm a ver com o caso, a no ser no sentido mecnico de que a perda da virgindade necessria para alargar a abertura vaginal a fim de permitir a penetrao do esprito-beb (o que, alis, segundo os prprios trobriandeses, pode ser obtido por outros meios que no o coito). A relao com a me ao mesmo tempo fsica e espiritual e todos os parentes em linha materna so pensados em termos muito semelhantes ao que chamamos de comunidade de sangue. Por outro lado, o pai estritamente um afim e no um parente o marido da me, algo correspondente nossa noo de padrasto. (grifos nossos)

    Outros exemplos antropolgicos que reforam o carter cultural do parentesco so citados por Romanelli (2003, pp. 81 e 82):

    Que a paternidade fato cultural pode ser documentado pela separao que certas sociedades primitivas, como os nayar, fazem entre pai biolgico, ou genitor, responsvel pela fecundao de uma mulher, e pai social, ou pater, aquele que assume social e legalmente a paternidade de uma criana. Outro exemplo da construo cultural da paternidade ocorre entre os nuer e os zulu. Nessas sociedades, uma mulher assume simbolicamente o papel de

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    um irmo que faleceu sem ter deixado filhos e casa-se socialmente com outra mulher, a fim de, indiretamente, gerar descendentes para dar continuidade linhagem do irmo. Esse casamento no constitui empecilho para a mulher que ocupa o lugar simblico do irmo ter um parceiro sexual, que no socialmente seu marido e com quem ter filhos. Assim, o irmo falecido torna-se pater dos filhos gerados por sua irm com um parceiro, que de fato o pai biolgico ou genitor desse filho. (grifos nossos)

    O que se verifica, diante disso, que as relaes de parentesco so definidas independentemente das ligaes biolgicas, contrariando a concepo de parente tipicamente ligada noo de famlia nuclear.

    Observe-se, nesse sentido, que no diferente a percepo do parentesco em seu aspecto jurdico, inclusive, porque, como visto acima, a noo de famlia, no direito brasileiro, j no se identifica com a famlia nuclear. Conforme se verifica do artigo 1.593 do Cdigo Civil brasileiro: O parentesco natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (grifo nosso).

    O texto da norma claro: parentesco pode ser natural, identificado pela consanguinidade; ou civil, o qual se origina de qualquer outra origem afinidade, adoo, socioafetividade ou, na contemporaneidade, pelas tcnicas de reproduo assistida. Nesse ponto, merece destaque que so justamente as novas tecnologias que levaram o legislador a optar pela expresso outra origem, extremamente aberta, para que novas formas de ligao familiar no ficassem excludas da noo jurdica de parentesco.

    importante destacar, desde j, que a distino da espcie de parentesco, para fins de discriminao entre filhos, constitucionalmente proibida no Brasil, como forma de eliminar os preconceitos tpicos advindos da noo nuclear de famlia, como, por exemplo, a ideia de filhos legtimos e ilegtimos. o que consta do artigo 227, 6, da Constituio Federal: os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.

    A percepo do parentesco, no sentido exclusivamente jurdico, feita em linha reta (pais, avs, filhos, netos) ou colateral (irmos, tios, sobrinhos), com contagem de graus por meio da identificao do ascendente comum (artigos 1.591, 1.592 e 1.594 do Cdigo Civil).

    Alm do parentesco com a famlia de origem, h o estabelecimento do parentesco por meio do casamento ou da unio estvel, ou seja, com a famlia de procriao. Maridos e esposas no so parentes, mas, dentro de limites jurdicos, passam a ser parentes da famlia de origem de seu companheiro (artigo 1.595 do Cdigo Civil).

    preciso notar que o parentesco por afinidade em linha reta mantido mesmo com a dissoluo do casamento entre as pessoas e, com

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    o Cdigo Civil atual, mesmo em casos de unio estvel. Isso consagra uma noo moral de nossa sociedade, nos seguintes termos:

    A nova regra tem apoio nos princpios morais que a inspiram, de modo a impedir no s a celebrao de casamento, mas tambm a constituio de unio estvel entre parentes afins e em linha reta, como sogro e nora, sogra e genro, padrasto e enteada, madrasta e enteado, mesmo diante da extino das relaes que deram origens a esses vnculos de parentesco (BARROS e TAVARES DA SILVA, 2012, p. 422).

    A manuteno do parentesco por afinidade, no caso do direito de famlia brasileiro, assim como a consequente proibio da formao de nova famlia de procriao dentro da anterior, vem a corroborar a noo acima exposta de que a formao da entidade familiar est intimamente ligada proibio de incesto.

    Em suma, a concepo de parentesco, como observada pela antropologia e determinada pelas normas jurdicas, no tem ligao intrnseca com o fato da consanguinidade, mas, efetivamente, com o reconhecimento de um papel social a ser exercido.

    4.1 o parentesco e o exame de dnaEm continuidade com que o que foi acima exposto, ou seja, de que o parentesco no se trata de um lao biolgico, destaca-se a contrarrevoluo que pode ser identificada pelo advento do exame de DNA.

    No se nega a relevncia do exame de mapeamento gentico, inclusive para reconhecimento de paternidade. Contudo, tambm devem ser salientadas as repercusses graves que a adoo da prova cientfica de paternidade pode ter.

    Conforme relata Claudia Fonseca (2004, p. 13), h hoje no Brasil uma onda de testes de DNA que desafia a imaginao.

    A busca pela verdade real acerca da paternidade contraria, de maneira frontal, a convico, j assentada, de que a paternidade no uma espcie de vnculo biolgico, fazendo com que pais que sempre exerceram o papel social como tal se desfaam dessa incumbncia; enquanto se descobrem pais biolgicos que nunca cumpriram ou vo cumprir o compromisso paterno conforme esperado em nossa sociedade.

    Ainda assim, movidos pelo mpeto de checar a fidelidade de suas companheiras, o nmero de homens que buscam os testes de DNA aumenta cada vez mais, inclusive com suporte financeiro do Estado, sob a alegao de que tm o direito de saber (FONSECA, 2004, p. 23).

    Ocorre que, dentro desse contexto, mesmo sem adentrar-se no mrito de se h ou no um direito de saber por parte dos pais que registram filhos que acreditaram serem seus, grave o caso das tentativas de desfazimento de vnculos de paternidade, por meio de exame de DNA, nos casos de adoo brasileira.

    Explica-se. A adoo brasileira nada tem a ver com a adoo como

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    instituio reconhecida pelo direito brasileiro. A adoo brasileira ocorre quando um homem, ciente de que o filho que sua namorada ou companheira espera no biologicamente seu, registra-o como se o fosse, sem cumprir qualquer uma das exigncias da adoo regulamentar. Como bem anota Fonseca (2004, p. 20): Nesse caso, parece que registrar o filho da companheira quase que substitui o casamento, servindo para marcar a nova aliana entre homem e mulher.

    Ocorre que, nos casos em que essa unio se rompe posteriormente, com a possibilidade do exame de DNA, os homens que registraram filhos biolgicos de outrem como se seus fossem, sentem-se livres para questionar a paternidade no Poder Judicirio, pretendendo romper no s o vnculo matrimonial, como tambm o de paternidade, sob o fundamento de que no existem laos consanguneos.

    Mas preciso entender que estes homens, na maioria dos casos, criaram esses filhos por longos perodos, inclusive com desconhecimento da prole de que no se tratava de um vnculo consanguneo. Com isso, restou estabelecido uma espcie de vnculo hoje reconhecido como paternidade socioafetiva, ou seja, a paternidade independente do compartilhamento biolgico, que se constitui no plano dos fatos, por meio do que se convencionou chamar da posse do estado de filho.

    Essa tentativa de desfazimento da paternidade nos casos de livre escolha pelo registro no pode ser admitida, em razo da inexistncia, j pontuada, de ligao imediata entre vnculo consanguneo e parentesco e/ou paternidade.

    Em consonncia com o acima exposto, pleitos como esses vm sendo reiteradamente rechaados pelo Poder Judicirio brasileiro, com a convico de que, tambm juridicamente, a paternidade no se trata de um vnculo biolgico.

    Nesse sentido, so didticos os trechos abaixo transcritos, excertos de julgados do Superior Tribunal de Justia:

    Processual civil. Civil. Recurso especial. Registro civil inverdico. Anulao. Possibilidade. Paternidade socioafetiva. Preponderncia. 1. Ao negatria de paternidade decorrente de dvida manifestada pelo pai registral, quanto a existncia de vnculo biolgico com a menor que reconheceu voluntariamente como filha. 2. Hiptese em que as dvidas do pai registral, quanto a existncia de vnculo biolgico, j existiam poca do reconhecimento da paternidade, porm no serviram como elemento dissuasrio do intuito de registrar a infante como se filha fosse. 3. Em processos que lidam com o direito de filiao, as diretrizes determinantes da validade de uma declarao de reconhecimento de paternidade devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado, para que no haja possibilidade de

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    uma criana ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que, conscientemente, reconhece paternidade da qual duvidava, e que posteriormente se rebela contra a declarao auto-produzida, colocando a menor em limbo jurdico e psicolgico. 4. Mesmo na ausncia de ascendncia gentica, o registro da recorrida como filha, realizado de forma consciente, consolidou a filiao socioafetiva - relao de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma deciso espontnea, deve ter guarida no Direito de Famlia. 5. Recurso especial provido. (STJ, RESP. N. 1.244.957/SC. 3 Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, D.J. 07/08/2012) (grifos nossos)

    Direito de famlia. Ao negatria de paternidade. Exame de DNA negativo. Reconhecimento de paternidade socioafetiva. Improcedncia do pedido. 1. Em conformidade com os princpios do Cdigo Civil de 2002 e da Constituio Federal de 1988, o xito em ao negatria de paternidade depende da demonstrao, a um s tempo, da inexistncia de origem biolgica e tambm de que no tenha sido constitudo o estado de filiao, fortemente marcado pelas relaes socioafetivas e edificado na convivncia familiar. Vale dizer que a pretenso voltada impugnao da paternidade no pode prosperar, quando fundada apenas na origem gentica, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2. No caso, as instncias ordinrias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiao), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declarao realizada pelo autor por ocasio do registro foi uma inverdade no que concerne origem gentica, certamente no o foi no que toca ao desgnio de estabelecer com as ento infantes vnculos afetivos prprios do estado de filho, verdade em si bastante manuteno do registro de nascimento e ao afastamento da alegao de falsidade ou erro. 3. Recurso especial no provido. (STJ, RESP. N. 1.059.214/RS. 4 Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomo, D.J. 16/02/2012) (grifo nosso)

    Direito civil. Famlia. Criana e Adolescente. Recurso especial. Ao negatria de paternidade. Interesse maior da criana. Vcio de consentimento. Ausncia de alegao. Mera dvida acerca do vnculo biolgico. Exame de DNA no realizado. Cerceamento de defesa no caracterizado. O ajuizar de uma ao negatria de paternidade com o intuito de dissipar dvida sobre a existncia de vnculo biolgico, restando inequvoco nos

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    autos, conforme demonstrado no acrdo impugnado, que o pai sempre suspeitou a respeito da ausncia de tal identidade e, mesmo assim, registrou, de forma voluntria e consciente, a criana como sua filha, coloca por terra qualquer possibilidade de se alegar a existncia de vcio de consentimento, o que indiscutivelmente acarreta a carncia da ao, sendo irreprochvel a extino do processo, sem resoluo do mrito. Se a causa de pedir da negatria de paternidade repousa em mera dvida acerca do vnculo biolgico, extingue-se o processo, sem resoluo do mrito, nos termos do art. 267, inc. VI, do CPC, por carncia da ao. Uma mera dvida, curiosidade vil, desconfiana que certamente vem em detrimento da criana, pode bater s portas do Judicirio? Em processos que lidam com o direito de filiao, as diretrizes devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado, para que no haja possibilidade de uma criana ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que, consciente no momento do reconhecimento voluntrio da paternidade, leva para o universo do infante os conflitos que devem permanecer hermeticamente adstritos ao mundo adulto. Devem, pois, os laos afetivos entre pais e filhos permanecer inclumes, ainda que os outrora existentes entre os adultos envolvidos hajam soobrado (...) (STJ, RESP. N. 1.067.438/RS. 3 Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, D.J. 03/03/2009) (grifos nossos)

    Direito civil. Famlia. Criana e Adolescente. Recurso especial. Ao negatria de paternidade c.c. declaratria de nulidade de registro civil. Interesse maior da criana. Ausncia de vcio de consentimento. Improcedncia do pedido. O assentamento no registro civil a expressar o vnculo de filiao em sociedade, nunca foi colocado to prova como no momento atual, em que, por meio de um preciso e implacvel exame de laboratrio, pode-se destruir verdades construdas e conquistadas com afeto. Se por um lado predomina o sentimento de busca da verdade real, no sentido de propiciar meios adequados ao investigante para que tenha assegurado um direito que lhe imanente, por outro, reina a curiosidade, a dvida, a oportunidade, ou at mesmo o oportunismo, para que se veja o ser humano to falho por muitas vezes livre das amarras no s de um relacionamento fracassado, como tambm das obrigaes decorrentes da sua dissoluo. Existem, pois, ex-cnjuges e ex-companheiros; no podem existir, contudo, ex-

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    pais. (STJ, RESP. N. 1.003.628/DF. 3 Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, D.J. 14/10/2008) (grifos nossos)

    Diante disso, o exame de DNA, que est necessariamente atrelado descoberta de vnculos genticos, independentemente de sua extrema relevncia, no instrumento apto construo ou desconstruo imediatas de vnculos de parentesco, nem mesmo formao ou desmantelamento de uma famlia. Em suma, como os laos de parentesco so culturais, o que reconhecido tanto pela antropologia, quanto pelo direito, o resultado do teste de DNA no passa a ser, necessariamente, a confirmao da existncia ou no de um vnculo de parentesco e/ou paternidade.

    5. conclusoOs temas acima explorados esto muito distantes de esgotar a interface entre o direito e a antropologia, mesmo no que tange ao objeto de estudo famlia.

    Ainda assim, entende-se que os dilogos realizados acima entre as duas reas foram suficientes para demonstrar que os estudos antropolgicos e jurdicos apresentam resultados convergentes na abordagem das relaes familiares.

    O direito de famlia brasileiro, revelado tanto pelo ordenamento jurdico, como de maneira especial pelo Poder Judicirio, reforado pela doutrina especializada, reconhece o carter cultural da entidade familiar e dos laos de parentesco, de modo que tem enfrentado e abraado complexidade e s intensas modificaes operadas no modelo familiar vigente.

    Em outras palavras, no se pode admitir a perpetuao do senso comum, principalmente no campo do estudo da famlia, no sentido de que o direito vem sempre por ltimo, sob pena de desvalorizao da produo jurdica, destacadamente a doutrinria e jurisprudencial, no cenrio brasileiro.

    Ao contrrio do que comumente reproduzido, o direito de famlia se afirma como espao privilegiado para a discusso dos diferentes olhares sobre a familiaridade, algo que pode vir a contaminar todo o Direito de uma mobilizao para a interdisciplinaridade (COLARES, 2000, p. 323).

    preciso reconhecer que o direito regulamenta a mesma realidade que a antropologia observa. Ou seja, o objeto de estudo, quando o mesmo, como no caso da famlia, no pode apresentar divergncias substanciais.

    A diferena, como acima apontado, que o direito precisa prescrever condutas, enquanto a antropologia precisa descrev-las. Com isso, a inter-relao entre ambas as cincias necessria, pois o direito deve prescrever, de modo geral, condutas aceitas pela comunidade, enquanto a antropologia, ao descrev-las, observa se as condutas so transgressoras ou no das regras ditadas pelo direito.

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    NOTAS

    1 Ainda hoje a ideia de cultura oposta ideia de natureza, como se observa dessa relevante passagem: O que o conceito antropolgico de cultura pressupe exatamente que essas qualidades (excelncia tcnica, riqueza formal ou complexidade simblica) esto presentes em todo comportamento social humano. (...) Para classificar todas as aes como sendo igualmente culturais, a antropologia parte de uma oposio bsica entre natureza e cultura. (DURHAM, 1984, p. 26 ) (grifo nosso).

    2 At mesmo entre os cientistas sociais, possvel identificar tal tendncia, conforme denunciam as autoras: The issues here are too complex for thorough explication in this essay, but if you are to better understand the nature of the family in the present, it seems worthwhile to explore the question, first, of why so many social thinkers continue to believe in Capital-Letter Families as universal institutions, and second, whether anthropological tradition offers any alternatives to a necessary and natural view os what our families are. (COLLIER; ROSALDO; YANAGISAKO, 1992, p. 36).

    3 Tabela de modelo familiar nos domiclios brasileiros. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios 2001-2009. Disponvel em: . Acesso em 25 de maio de 2012.

    4 Com o texto dado pela Emenda Constitucional n 66, de 2010.

    5 Com o texto dado pelas Emendas Constitucionais n 1, de 1969, e n 9, de 1977.

    6 Habitantes das Ilhas Trobriand, atis coralinos que formam um arquiplago de aproximadamente 440 km ao longo da costa oriental da Nova Guin.

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