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VALLAURI/MATUCK/ZAIDLER Alex Vallauri, um etíope com passagem por Nova York, foi o primeiro artista plástico a imprimir, nas paredes da cidade de São Paulo, sua marca gestual. Segundo depoimento de seu companheiro de grafitagem, Carlos Matuck, Vallauri era um andarilho. Não tinha carro e adorava perambular pelas ruas de São Paulo, tanto à noite como durante o dia. Irreverente e audacioso, nem a luz do dia o intimidava. Pegava um táxi e sempre descia antes do lugar para onde se dirigia, com o objetivo de observar a cidade, os lugares interessantes e... logo surgia uma imagem! A princípio: a bota. A bota de um andarilho, aquela que seria sua principal marca, um signo indicial de que por ali, o então anônimo grafiteiro, tinha passado. Imagem extraída da fábrica de carimbos Dulcemira Ltda – do mostruário de figuras de borracha para impressão em anilina, para sacos de armazéns, padarias, supermercados e lojas em geral – a bota vira estrela na grande São Paulo; um poste, um muro, ou, quem sabe, uma fachada de loja, eram alvos prediletos para uma rápida grafitagem. A bota logo foi seguida pela pantera negra, imagem da história em quadrinhos "Jungle Jim" (no Brasil: "Jim das Selvas"), de Alex Raymond. Também a luva, o pequeno jacarezinho da grife Lacoste, a televisão, o carrinho de supermercado, fizeram parte do repertório desta época. A máscara do tipo estêncil e o spray permitiam que as imagens fossem reproduzidas com fidelidade e rapidez. A embalagem é um canal de publicidade para o estabelecimento que manipula a imagem de forma atraente, persuasiva, entrando no inconsciente coletivo. As imagens da fábrica de carimbos Dulcemira, na medida em que eram levadas às ruas, expostas nos muros e paredes da cidade, passavam a competir com as outras imagens publicitárias. É a oposição venda/não-venda. Décio Pignatari faz uma leitura interessante a este respeito: "Repare que coisa interessante: seria muito bonito captar em fotografia a cidade entre duas escrituras Em cima, todos os luminosos, embaixo as sprayações. daria para comparar todo o investimento, caríssimo, que são os luminosos (e que também, montam um espetáculo belíssimo no mundo urbano, especialmente no alto dos edifícios) com as pichações luminosas, embaixo, como se fosse LUZ e NÃO-LUZ. a NÃO-LUZ monta um sistema de escritura nas paredes: a NÃO-VENDA. Isto é, um mundo puramente cultural, espiritual, opondo-se ao mundo das vendas, e a cidade no meio." [apud Fonseca, p. 36) 1 As imagens dos grafites estabelecem uma competição entre o produto anunciado e a imagem grafitada. Na competição, um lado sempre sai enfraquecido; o grafite, ao disputar o mesmo espaço – a cidade – ameaça o apelo comercial e, surge daí, o protesto de muitos comerciantes, que alegam serem os grafites "poluidores" do espaço. Essas imagens de Vallauri, realidades e não representações da realidade, tiveram antecedentes dadaístas. Vallauri, a exemplo de Duchamp, expôs nas ruas paulistanas ready-mades. A televisão, a bota, os carrinhos de supermercado –

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VALLAURI/MATUCK/ZAIDLER Alex Vallauri, um etíope com passagem por Nova York, foi o primeiro

artista plástico a imprimir, nas paredes da cidade de São Paulo, sua marca gestual. Segundo depoimento de seu companheiro de grafitagem, Carlos Matuck, Vallauri era um andarilho. Não tinha carro e adorava perambular pelas ruas de São Paulo, tanto à noite como durante o dia. Irreverente e audacioso, nem a luz do dia o intimidava. Pegava um táxi e sempre descia antes do lugar para onde se dirigia, com o objetivo de observar a cidade, os lugares interessantes e... logo surgia uma imagem! A princípio: a bota. A bota de um andarilho, aquela que seria sua principal marca, um signo indicial de que por ali, o então anônimo grafiteiro, tinha passado.

Imagem extraída da fábrica de carimbos Dulcemira Ltda – do mostruário de

figuras de borracha para impressão em anilina, para sacos de armazéns, padarias, supermercados e lojas em geral – a bota vira estrela na grande São Paulo; um poste, um muro, ou, quem sabe, uma fachada de loja, eram alvos prediletos para uma rápida grafitagem. A bota logo foi seguida pela pantera negra, imagem da história em quadrinhos "Jungle Jim" (no Brasil: "Jim das Selvas"), de Alex Raymond. Também a luva, o pequeno jacarezinho da grife Lacoste, a televisão, o carrinho de supermercado, fizeram parte do repertório desta época. A máscara do tipo estêncil e o spray permitiam que as imagens fossem reproduzidas com fidelidade e rapidez.

A embalagem é um canal de publicidade para o estabelecimento que

manipula a imagem de forma atraente, persuasiva, entrando no inconsciente coletivo. As imagens da fábrica de carimbos Dulcemira, na medida em que eram levadas às ruas, expostas nos muros e paredes da cidade, passavam a competir com as outras imagens publicitárias. É a oposição venda/não-venda. Décio Pignatari faz uma leitura interessante a este respeito:

"Repare que coisa interessante: seria muito bonito captar em fotografia a

cidade entre duas escrituras Em cima, todos os luminosos, embaixo as sprayações. daria para comparar todo o investimento, caríssimo, que são os luminosos (e que também, montam um espetáculo belíssimo no mundo urbano, especialmente no alto dos edifícios) com as pichações luminosas, embaixo, como se fosse LUZ e NÃO-LUZ.

a NÃO-LUZ monta um sistema de escritura nas paredes: a NÃO-VENDA. Isto

é, um mundo puramente cultural, espiritual, opondo-se ao mundo das vendas, e a cidade no meio." [apud Fonseca, p. 36)1

As imagens dos grafites estabelecem uma competição entre o produto

anunciado e a imagem grafitada. Na competição, um lado sempre sai enfraquecido; o grafite, ao disputar o mesmo espaço – a cidade – ameaça o apelo comercial e, surge daí, o protesto de muitos comerciantes, que alegam serem os grafites "poluidores" do espaço.

Essas imagens de Vallauri, realidades e não representações da realidade,

tiveram antecedentes dadaístas. Vallauri, a exemplo de Duchamp, expôs nas ruas paulistanas ready-mades. A televisão, a bota, os carrinhos de supermercado –

imagens extraídas do catálogo da fábrica Dulcemira de carimbos para impressão em embalagens comerciais – foram reproduzidas literalmente nas ruas de São Paulo. São realidades do cotidiano diário, como o "porta-garrafas" (1914), a "Fonte" (1917), e a "janela" (1920), de Duchamp; ou, mais tarde, as criações da Pop Art, que segundo Edward Lucie-Smith: "Most of them fall into the category which has now been rather slickly labelled 'neo-dada'." (1989:122).

Vallauri, ao descontextualizar os símbolos da cultura consumista e

reproduzi-los, sem alterações formais, nas paredes da cidade – suportes fixos, não habitualmente preparados para recebê-los – estava criticando estes símbolos, tanto no que eles representam – objetos de grandes tiragens consumistas – quanto à aparência imposta a eles pela mídia, que prioriza a forma ao conteúdo. Assim como o pop Claes Oldenburg, que já havia ironizado a deliciosa aparência dos bolos e tortas expostos nas vitrinas das confeitarias norte-americanas, Vallauiri, já trabalhando com Matuck e Zaidler, escolheu, para ironizar, a imagem de porcos e frangos, assados "apetitosos" que fumegam na porta das lanchonetes paulistanas, com sua "irresistível" aparência.

Os primeiros grafites iconográficos de São Paulo, produzidos por Alex,

datam de 1978/79. Por esta época, Alex conheceu Carlos Matuck, estudante de arquitetura e artista plástico, que trabalhava em sua obra com carimbos e cola-gem. Como o próprio Matuck disse:

"... quando encontrei o Alex foi uma coisa muito fácil, a comunicação foi

muito direta, ele tinha uma coleção de carimbos, adorava carimbos e eu também tinha, adorava carimbos,... na área do carimbo está a reprodução, que apesar de não ser na cidade, tem tudo a ver... no começo eu ajudava o Alex, máscara para mim não era nenhuma novidade, porque para carimbar eu já usava máscara. Sempre tive um trabalho de estilete, quando eu vi ele trabalhando com máscara não levou cinco minutos para eu também cortar uma máscara... comecei tra-balhando com carimbos recortados... o começo do meu grafite em termos iconográficos é filho da linha clara das imagens de quadrinhos, dos carimbos, que são um subproduto das vinhetas usadas na publicidade e na imprensa do século passado."

(depoimento em 15/05/92). A linha clara, a que se refere Matuck, foi uma denominação dada à produção

europeizada das histórias em quadrinhos na Bélgica, especificamente do Hergé, autor do "Tintin". Segundo Matuck, o desenvolvimento artístico do trabalho de Hergé foi a procura de uma linha de desenho muito nítida, um desenho de comunicação direta, mas nada simples do ponto de vista da criação. O desenho é complexo, mas é complexo para ser simples, bem resolvido. A partir de 1926, Hergé começou a trabalhar para um jornalzinho com histórias em quadrinhos para crianças, e só parou quando faleceu em 1983. Famosas na Europa, principalmente na França, essas histórias, bem como muitas outras, sempre foram pouco divulgadas no Brasil, o que levou Carlos Matuck, um apaixonado pelas histórias em quadrinhos, a reproduzi-las nas ruas de São Paulo.

Para Matuck: "Essa coisa de levar os quadrinhos para a rua, no tempo da intervenção

urbana, era, na minha cabeça, uma espécie de protesto editorial, eu pensava assim: como é que não tem livros do "Reizinho" editados, então vou pichar o "Reizinho" pela cidade inteira para ver se se tocam que é um personagem legal, interessantíssimo, um desenho fantástico, com uma idéia originalíssima que já andou por aqui e que ninguém conhece."

(depoimento em 15/05/92). O primeiro trabalho de Matuck, nas ruas de São Paulo, foi a silhueta do

"Reizinho" da história em quadrinhos "La Contestazione di sua Maestá", de Otto Soglow. Depois vieram outras imagens das histórias de outros cartunistas famosos, como o Tintin e o Ladrão, de autoria do Hergé, que apareceram nos muros da rua São Vicente, na região do Bixiga.

Em "La contestazione di sua Maestá", revista em quadrinhos de onde

Matuck buscou seu personagem Reizinho, o autor, Otto Soglow, usando as imagens de forma jocosa, nos conta todas as mordomias com as quais um chefe de estado se regala, bem como toda a bajulação que os súditos prestam ao seu chefe. Logo, não era e nem podia ser editada num país como o Brasil, numa época de ditadura militar. O protesto, a que Matuck se refere, não era apenas editorial, mas bem mais político/social, ainda mais quando pensamos num Brasil pós-ditadura militar, onde, além de todas as mordomias já desfrutadas pela equipe política, há até quem ainda pretenda ser rei.

Em pouco tempo, este trabalho de rua despertou a curiosidade do amigo

de Matuck, Waldemar Zaidler, também estudante de arquitetura, que, estando na ocasião estudando urbanismo, viu as impressões nas paredes da cidade como um fato modificador das relações homem/meio ambiente. A entrada de Waldemar Zaidler trouxe maiores preocupações estéticas e sociais. Não mais só o aspecto prático, o desenho ou o local importavam, mas passam a importar as considerações técnicas de desenho e pintura em ambientes livres: luz, cor, local, tamanho, material e público. A reação do público torna-se um fato importante.

Waldemar Zaidler conta: "Naquela época, eu estava fazendo na faculdade um trabalho de

graduação, uma espécie de tesezinha, onde se tinha liberdade de escolher o tema. Foi quando reparei numa esquina aquele jacarezinho da Lacoste que o Vallauri fazia. Pensei, olha só que coisa curiosa, fantástico, curioso e logo cruzei com ele, que eu já conhecia, mas não sabia que era ele que fazia. Isso logo me despertou o interesse. Com isso comecei a fazer imagens super pequenas e depois ficar fotografando e mapeando o caminho que as pessoas normalmente faziam. De fato um ziguezague, as pessoas em função do conforto da leitura da imagem ter uma maior aproximação ou distanciamento."

(depoimento em 09/07/92). As máscaras, no começo, eram muito simples, só silhuetas recortando o

contorno das imagens. As primeiras máscaras, feitas por Vallauri, aproveitavam a reciclagem de capas de discos velhos, material sucateado pela obsolescência do disco em desuso, um fascínio dadaísta. Com a participação de Matuck e Zaidler, as máscaras passaram a ser mais elaboradas; não mais apenas o contorno, mas

apresentavam recortes internos que eram depois grampeados à máscara principal, preenchendo o desenho. Com isto, foi possível grafitar nas ruas, rapidamente, os personagens com expressão, olhos, boca e nariz.

Aqui, também não poderíamos deixar de lembrar da ligação dos grafites

com a Pop Art. As imagens dos comic strips, que o pop Lichtenstein levou para as telas, Matuck levou para as ruas paulistanas. Lichtenstein diferencia seu trabalho dos comic strips desse modo:

"I think my work is different from comic strip — but I wouldn't call it

transformation... What I do is form, whereas the comic strip is not formed in the sense I'm using the word; the comics have shapes, but there has been no effort to make them intensely unified. The purpose is different, one intends to depict and I intend to unify. And my work is actually different from comic strips in that every mark is really in a different place, however slight the difference seems to some." {apud Lucie-Smith, 1989: 152/153).

Os grafites de Matuck, Zaidler e Vallauri2, que tinham como temática os

personagens das histórias em quadrinhos, a exemplo de Lichtenstein, não fragmentavam a imagem em seriado para emitir uma mensagem, mas integravam esta nos textos da cidade, usando o suporte para ambientar as imagens. No grafite Tintin e o Ladrão, as imagens dialogam com o suporte casa e integram seus ele-mentos – janela e porta – à estrutura da composição. Assim dispostas, muitas vezes uma única dessas imagens bem selecionada e organizada, comunica gestalticamente mais do que fragmentada em muitas tiras de quadrinhos. Um exemplo foi a imagem do reizinho que, por si só, já continha um alto grau de informação, dispensando palavras ou onomatopéias.

Mas não só as imagens dos quadrinhos faziam parte do repertório de

admiração de Matuck, Vallauri e Zaidler. A exemplo de Andy Warhol, que evidenciou mitos imortais do cinema, como Elizabeth Taylor, Marilyn e Elvis Presley, também esses grafiteiros fizeram com que as ruas paulistanas vivenciassem a presença dos mitos do cinema. Os primeiros foram os dois super ídolos dos anos 50, O Gordo e o Magro, que saíram do cinema, foram para os livros, e, através do trabalho de Matuck, começaram a fazer parte não só do mundo mágico/mitológico do cinema, como também do cotidiano das pessoas.

O primeiro trabalho, em parceria com Vallauri, foi Os Músicos na Escada,

realizado não nas ruas, mas no ateliê do artista plástico Newton Mesquita. A este seguiram-se outros, como: O Pichador e Tintin e o Ladrão.

A organização dos painéis na rua segue a técnica da collage3, como no

trabalho O Pichador, Colador de Cartazes, que reunia motivos de livre expressão e máscaras a partir dos carimbos e das imagens do catálogo da fábrica de sacos para embalagens. Este trabalho, realizado inicialmente na lateral de uma casa na região do Itaim Bibi, mais tarde, por encomenda, foi refeito na parede da loja Naphtalina, na rua Oscar Freire, no bairro dos Jardins. Trabalho encomendado, pago, em lugar pré-determinado, solicitou uma maior elaboração, tanto na escolha das cores, quanto na disposição das imagens. Este painel assim elaborado, sem transgressão, surpresa, susto e anonimato é um híbrido, mural/grafite.

Além destes trabalhos com máscaras, também outros, de livre expressão, e

feitos à mão livre, aparecem nas paredes da cidade, como Os Quatro Personagens4, na região de Pinheiros.

Outro fator de relevância nos grafites de São Paulo, foi a ida, temporária,

entre 1982/83, de Vallauri para New York. Vallauri levou para New York máscaras dos grafites feitos por ele em São Paulo, em parceria com Matuck e Zaidler. Em New York, Vallauri continuou a pesquisar novas possibilidades para o grafite. Pesquisou principalmente em sebos. Segundo conta Matuck, Vallauri comprou num sebo, de um húngaro, vários estênceis antiqüíssimos, do começo do século, usados para fazer decorações internas, do tipo pré-papel de parede. Estas estampas foram usadas por Vallauri até para fazer tapetes no chão das ruas paulistanas e nova-iorquinas, o que ele chamava também de grafite. Vallauri trouxe de New York mais de sete mil slides de seus trabalhos.

Durante a ausência de Alex Vallauri, Carlos Matuck e Waldemar Zaidler

continuaram a grafitar a cidade, sempre à procura de uma melhor qualidade do trabalho. Quando Vallauri voltou à São Paulo, encontrou o trabalho dos com-panheiros de grafitagem bem mais desenvolvido.

Com a volta de Vallauri de New York, o grupo começou a elaborar, nos muros

da cidade, ambientações "neo-dadas" Matuck conta: "... na época, deu para a gente perceber uma evolução no trabalho dele. O

trabalho dele ficou muito mais sofisticado. Ele tinha um trabalho de rua diferente, um trabalho de ambientação que acabou na "Rainha do Frango Assado", que foi mais tarde para a Bienal"

(depoimento em 15/05/092). Os trabalhos do grupo, por essa época, passam a ser verdadeiras traduções

dos trabalhos de Jim Dine, Richard Hamilton e Tom Wesselmann, que nos anos 60 desenhavam ou fixavam nas telas os ready-mades – televisores, toca-discos, sofás, aspiradores de pó, mulheres sensuais – e completavam as obras com pinturas, criando um meio ambiente para os objetos. Nossos artistas grafiteiros invertiam o proces-so. Primeiro selecionavam os locais da cidade – fachadas de lojas ou muros – depois iam para o ateliê e escolhiam cuidadosamente os ready-mades nos catálogos comerciais; confeccionavam as máscaras e voltavam, durante a madrugada, para os ambientar ao suporte previamente escolhido.

Matuck nos conta: "A gente chegava a parar o carro, olhar um muro, fazer um esboço no

papel e ir para o ateliê e produzir uma coisa para aquele muro. A gente fazia isso: às onze horas da noite escolhia um muro legal, fazia um esboço, onde tinha uma janela, porta, entrada da loja, produzíamos máscaras só para isso, e depois voltávamos às três da madrugada e trabalhávamos umas duas horas nesse local... não sacaneávamos a comunicação da loja, mas completávamos, dialogávamos com ela. Tem uma que me lembro melhor, era uma esquina toda cor de rosa de uma lojinha de consertos de rádio e TV. A gente fez com um cachorro e uma mulher trazendo um porco. A luz da TV saindo e tal... brincávamos até com o tema

da loja... Às vezes as pessoas adoravam, esse cara da loja de TV dois dias depois pintou o muro. Como era muito perto do ateliê fui falar com ele e ele disse que tinha pintado porque estava chamando mais a atenção para as pinturas do que para as placas dele. Marcou bobeira, preconceituoso prá caramba, mas isso era incomum, pouca gente fez isso"

(depoimento em 15/05/92). Esses trabalhos de ambientação são interessantes na medida em que se

percebe a conjugação das duas vertentes opostas da vanguarda artística deste século. Se, por um lado, os trabalhos das ambientações lembram aspectos de humor dadaísta – "brincávamos até com o tema da loja", ou a escolha de ready-mades – pelo uso de materiais não artísticos, que ironizam o mito do consumismo e até da arte, também características dadaístas; por outro lado, tanto a elaboração dos projetos quanto a confecção das máscaras nos ateliês, lembram-nos procedimentos construtivistas que pretendiam aproximar os artistas dos cientistas e engenheiros. Para os construtivistas, os artistas deveriam seguir planejamentos racionais que incluíssem o uso de régua e compasso. A respeito dos construtivistas, Aaron Scharf nos diz:

"To these artists, geometric forms, uniform áreas of pure colours, had an

aura of rational order about them and it was order that they wanted to impose on society." (1991: 162).

Nas transgressões lúdicas das ações de alguns grafitei-ros, nos espaços da

cidade de São Paulo, há uma certa releitura das travessuras dadaístas, ..."onde o experimentar indicia mais uma vez não uma identidade acabada, mas um processo de identidade em aberto...". (Baitello, 1993: 118).

A partir de 1983, o grupo expõe em galerias como a Thomas Cohn, no Rio de

Janeiro, e participa da Bienal de 1987, Alex Vallauri com a ambientação "A Rainha do Frango Assado", Waldemar Zaidler com o trabalho "Siesta" e Carlos Matuck, numa homenagem aos escritores brasileiros Affonso Lima Barreto, Mário de Andrade e Joaquim Machado de Assis, o trabalho que intitulou "Joaquim, Mário e Affonso."

O canal estava aberto, e a cidade, as paredes, túneis, e prédios passaram a

receber milhares de imagens numa celeridade comparável, até mesmo, às tiragens diárias dos jornais e out doors, que se reciclam e se autodestroem em sua sobrevivência diária.

Célia Maria Antonacci Ramos em Grafite, Pichação & Cia., págs. 91-100, Annablume Editora, São Paulo, 1994

1 Os grifos são da autora. 2 Segundo Matuck, as imagens eram de todos, um dividia a idéia com o outro, em total desapego.

(Depoimento em 12/05/92) 3 "Atribui-se a 'invenção' da collage a Max Ernst, talvez tendo como inspiração a técnica dos papiers

collés. Numa primeira definição, collage seria a justaposição e colagem de imagens não originariamente próximas, obtidas através da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes" (Cohen, 1989:60)

4 Os autores preferem chamar a este graffiti "O Casamento". (nota do site)