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  • 39Semina: Ci. Soc. Hum., Londrina, v. 22, p. 39-56, set. 2001

    Resumo: O presente artigo discute os elementos condicionantes das polticas sociais no Brasil atravs de sistematizao dosdados histricos sobre as polticas sociais e os movimentos sociais no pas. Procuramos tomar como diretriz de anlise acorrespondncia histrica entre ambos, destacando especialmente os principais acontecimentos voltados para as lutas por melho-res condies de vida e pelo aumento dos direitos sociais na legislao brasileira.Palavras-chaves: Estado brasileiro; movimentos sociais; poltica social; legislao social.

    Abstract: The present article discusses the elements that drive welfare policies in Brazil by means of the organization of historicaldata on welfare policies and social movements in the country. The historical correspondence between both of them was consideredthe focus of the analysis, highlighting the main events concerning the fights for better life conditions as well as for the increase ofsocial rights in Brazilian legislation.Key words: Brazilian State; Social movements; Welfare policies; Welfare legislation.

    Estado e Sociedade Civil na Histria das Polticas Sociais Brasileiras

    State and Civil Society in the History of Brazilian Welfare Policies

    Maria Luiza Amaral Rizotti*

    Introduo

    O estudo dos elementos condicionantes das polti-cas sociais no Brasil no constitui tema inovador nombito da produo cientfica do Servio Social.Contudo, mostra-se ainda relevante a sistematizaode dados histricos sobre as polticas sociais e osmovimentos sociais no pas. Por sua vez, j h umaimportante produo na literatura tcnica acerca daespecificidade das condies sob as quais se pro-cessaram a estruturao e o desenvolvimento das pol-ticas sociais no Brasil. Nesta introduo desejamosretomar este ltimo tema, a partir de uma tica parti-cular. A comparao sucinta que realizaremos entreas principais caractersticas do caso nacional e ostraos predominantes nos pases europeus nospermitir vislumbrar em que consistiu tal singularidade.

    O perodo de maior intensidade na instaurao desistemas de seguridade social nos pases europeuspode ser determinado a partir do encerramento daSegunda Guerra Mundial. Naquele contexto, a neces-

    * Doutora em Servio Social pela PUC/SP; docente do Departamento de Servio Social da da Universidade Estadual de Londrina.

    sidade de reconstruo das economias nacionaiseuropias encontrou uma classe trabalhadora forte-mente mobilizada, com crescimento da base socialdos partidos de iderio socialista, motivado pelasensao de forte insuficincia do capitalismo e pelapresena da Unio Sovitica entre os pases vence-dores da guerra.

    Alm disso, a ltima metade da dcada de 1940 eas duas prximas foram o palco de um vertiginosocrescimento do socialismo em todo o mundo, atravsde revolues polticas que estenderam os regimessocialistas inicialmente por todo o leste europeu e, aseguir, em alguns outros pases. Nesse contextopoltico de difuso do iderio socialista foi que seplasmaram os sistemas de seguridade social daEuropa Ocidental, como resposta poltica daquelesEstados nacionais s demandas das classes trabalha-doras (HOBSBAWM, 1998).

    Apesar de constiturem respostas s reivindica-es da sociedade civil, a constituio do Estado deBem-Estar naqueles pases inaugurou uma era na quala manuteno do modelo econmico e social capi-

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    talista encontrou-se fortemente vinculada implan-tao de polticas sociais que formavam sistemas deseguridade crescentemente abrangentes. Mesmoinexistindo uma base de negociao que pudesse seridentificada em torno de reivindicaes pontuais, ouque se destinasse a atingir o horizonte de um modeloeconmico igualitrio, esse fenmeno produziu naque-las sociedades o surgimento de uma perspectiva demelhorias progressivas nas condies de vida de suaspopulaes.

    Isso se consubstanciaria em estabilidade econ-mica duradoura, com situaes prolongadas de plenoemprego, eficientes sistemas de aposentadoria eascenso social entre as geraes mais novas emsuma, o iderio dos 30 anos dourados do capitalismo,nos quais as crises econmicas e sociais da primeirametade do sculo pareciam seguramente afastadasdo horizonte capitalista.

    O desenvolvimento do capitalismo no Brasil cons-titui processo plenamente diverso do que apontamosacima. Tendo emergido em seus primrdios de umasituao de economia colonial, o desenvolvimento eco-nmico e social brasileiro esteve sempre subordinado dominao dos pases capitalistas centrais.

    Nessa circunstncia, o capitalismo tardio (MELLO,1986) que aqui se desenvolveu apresentou alternada-mente o predomnio de formas arcaicas e modernastanto no mbito econmico no qual o papel do Estadofoi o de articulador fundamental de cada fase de umdesenvolvimento econmico de caractersticas retarda-trias quanto na esfera poltica, na qual as marcasdo patrimonialismo impediram at o presente a consti-tuio de eficazes formas de controle pblico dasinstituies governamentais.

    No Brasil, jamais chegou a ser constitudo oEstado de Bem-Estar Social. Ao contrrio, ao mesmotempo em que o welfare state europeu era estruturado,o Estado brasileiro dava incio a um processo dedesenvolvimento amplamente apoiado na utilizaodo fundo pblico para a realizao dos investimentosessenciais ao desenvolvimento econmico (meios detransporte, comunicaes, indstrias de base e gera-o de energia, entre outros). Toda interferncia doEstado no processo de desenvolvimento nacional seprocessava atravs de suas funes de agente econ-mico, cuja atuao visava garantir as formas essen-ciais de acumulao.

    Por sua vez, foram relegados a planos no-prioritrios os investimentos em meios de consumocoletivo, consubstanciados, em sua maior parte, naspolticas sociais. Visto que o desenvolvimento econ-mico experimentado caracterizava-se por uma lgicade extrema concentrao de riquezas, a coexistnciade um ainda que frgil iderio poltico liberal e deum modelo de desenvolvimento monopolista, ocasio-nou uma insuficiente resposta das polticas pblicass questes sociais que se colocavam nos diferentesperodos deste sculo.

    Implantou-se aqui um sistema de proteo socialque, subordinado pelas instituies polticas e econ-micas nacionais, desenvolveu-se marcado pelo papelhegemnico que o modelo de desenvolvimento conser-vador desempenhou na trajetria brasileira. Ao invsde respostas polticas apropriadas s demandas dosmovimentos sociais organizados, as polticas sociaisbrasileiras caracterizaram-se, de modo geral, comoelementos perifricos no sistema de represso aosmovimentos sociais e de controle social que a burgue-sia nacional logrou empreender ao longo da recentehistria nacional.

    Com isso no pretendemos afirmar a inexistnciaou importncia menor do papel dos movimentossociais na configurao dos sistemas de seguridadesocial no pas. Mesmo no contexto de desenvolvimentodependente, as polticas sociais no deixam de serresultado, em certa medida, da luta dos trabalhadorese da populao em geral, que as fizeram necessriasao modelo de desenvolvimento em evoluo.

    Por isso, cremos que a interpretao da evoluoda poltica e da legislao social no Brasil deve neces-sariamente remeter-nos a uma reflexo sobre a trajet-ria das lutas sociais levadas a cabo pelos movimentossociais organizados, a fim de esclarecer sua influnciano contexto hegemnico de dominao conservadora,que se configurou de modo pendular ora atravs deaberturas populistas, ora por intermdio do exerccioda represso estatal.

    Com o objetivo de realizarmos esta reflexo, recor-remos principalmente ao estudo de Gohn (1995), queanalisa em retrospecto os principais movimentossociais do pas desde o final do sculo passado. Estadiscusso nos permitiu analisar no apenas as princi-pais reas de concentrao das lutas sociais no pas,mas tambm as aes dos diferentes interlocutoresdesses movimentos, tanto no mbito do Estadoquanto no mbito das classes dominantes.

    Paralelamente, procuramos ressaltar na breve re-trospectiva histrica das polticas sociais que apresen-tamos, as lacunas existentes entre os princpios, dire-trizes e direitos dispostos na legislao social que,via de regra, resultaram das reivindicaes expressasnas lutas populares e as aes efetivas do aparelhogovernamental, o que nos permitiu concluir pelo carterincipiente dos sistemas de seguridade social nahistria do pas, organizados sob forma centralizadorae sob princpios de alta seletividade.

    1 Antes da Repblica: lutas sociais noBrasil do sculo XIX

    Os movimentos sociais que emergiram no contextobrasileiro do sculo XIX caracterizaram-se, essencial-mente, pela inexistncia de algum projeto poltico esocial que lhes dotasse de unidade histrica quanto

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    s estratgias de interveno e base social na qualse apoiavam. certo, porm, que todos os principaismovimentos sociais surgidos naquele sculo pos-suam entre suas causas a contestao s condiessociais de vida que se degradavam e a reivindicaopor mudanas que proporcionassem sua melhoria.Bandeiras polticas relativas a um projeto de indepen-dncia nacional ou conquista de reas territoriaisna fronteira brasileira tinham sua base social ampliada medida que se encontravam associadas a reivindica-es sociais da populao da poca.

    A influncia das transformaes polticas no con-texto internacional tambm se fazia sentir na motiva-o dos movimentos sociais do pas. Especialmentepor intermdio de membros da elite agrria queretornavam da Europa, os ideais liberais da RepblicaFrancesa chegavam ao Brasil e compunham o subs-trato de legitimao dos movimentos sociais emer-gentes. Gohn (1995) contabiliza, para o perodo daprimeira metade do sculo XIX, o nmero de quarentae duas lutas sociais importantes que, entretanto, poraglutinarem em sua base social segmentos muitodiversificados, no logravam constituir um projeto detransformao poltica e social, devido especialmente dificuldade de superar as divergncias entre interes-ses imediatos dos segmentos envolvidos. Mas, emtodos eles, a sustentao do propsito de independn-cia poltica e financeira do pas em relao a Portugale os ideais de liberdade e igualdade encontravam-secondicionadas incorporao de reivindicaes con-cretas de melhoria das condies sociais de vida noBrasil.

    Dentre as principais lutas e movimentos sociaisda poca, trs episdios merecem ser destacados,pela abrangncia de sua base social composta pormilitantes oriundos das classes subalternas, trabalha-dores e escravos, por estudantes, intelectuais e outrosmembros da burguesia em ascenso e pela impor-tncia de suas repercusses no perodo que lhessucedeu:a) O movimento da Cabanagem que, durante dez

    meses, entre os anos de 1835 e 1836, sucedeu noPar, chegando a instituir um governo local prprio,que Gohn nos descreve como o primeiro governopopular de base ndio-camponesa da histria doBrasil no perodo imperial (1995, p. 35);

    b) A Revoluo Farroupilha, transcorrida no Rio Grandedo Sul, que perdurou por dez anos, entre 1835 e1845, denominada pelos que dela participaramGuerra dos Farrapos, remetia sua identificao grande massa de homens livres pobres queconstituam sua base social e que vislumbravamna deposio do Governo Provisrio o meio desuperao de sua condio de vida marcada pelapobreza e misria social;

    c) a Revoluo Praieira, levante poltico organizadopelo Partido da Praia em Pernambuco, entre osanos de 1847 e 1849, que agregou elites intelec-

    tuais e polticas e uma importante participaopopular na oposio ao Governo Imperial, propondoj naquela poca a realizao da reforma agrria eo fim dos latifndios rurais.Ao destacarmos estes trs movimentos, dese-

    jamos ressaltar como as aspiraes por melhoriasna qualidade de vida surgiam associadas, em primeirolugar, aos ideais de consolidao de regimes maisdemocrticos no pas e de libertao do regime econ-mico de explorao colonial a independncia polticae econmica de Portugal apresentando-se como modode constituio de um governo prprio, que governassepara os brasileiros e em defesa dos interesses nacio-nais e, em segundo lugar, s propostas de transfor-maes de base na economia nacional, com realiza-o de reforma agrria e mudana da estrutura produ-tiva local. Essa dupla associao constitui, a nossover, demonstrao irrefutvel da identificao da basesocial dos movimentos analisados.

    A exemplo do perodo que a antecedeu, a ltimametade do sculo XIX tambm foi palco da emergnciade um grande nmero de lutas polticas e sociais noBrasil. De fato, nos ltimos cinqenta anos dessesculo, registraram-se aproximadamente setentamovimentos sociais, das mais diversas origens, quepossuam como estratgias caractersticas um amploleque de aes, abrangendo desde a associao paraa prestao de socorro mtuo no mbito corporativoou tnico, at as reivindicaes pelo fim da escrava-tura e pela proclamao da Repblica. certo que asexigncias do contexto poltico nacional e internacio-nal fizeram estas ltimas lutas possurem maiordestaque na histria nacional.

    Contudo, se procedermos anlise desses movi-mentos como fizemos para aqueles que os antecede-ram, verificaremos igualmente que a preocupao comas condies de vida das classes subalternas encon-trava-se presente nesses movimentos de forma multifa-cetada, ora novamente a partir de reivindicaes dereformas econmicas, ora pela apresentao de reivin-dicaes sociais da populao, ora pela composioda base social de militantes que engrossavam suasfileiras. Nesse particular aspecto, Canudos constituio exemplo maior da associao de vrias dessasexpresses: como movimento de contestao aodomnio dos latifundirios e de reivindicao daresoluo da questo agrria aliava, tambm, preocu-paes com o socorro aos pobres e invlidos e com asuperao das condies de misria que caracteriza-vam a vida da massa pobre sertaneja, da fome emespecial e no era sem razo que o Conselheiroevocava, em suas pregaes, as imagens de ummundo de fartura que deveria suceder o fim da luta.

    Um aspecto final que desejamos registrar queesse perodo demarca o momento a partir do qual asreivindicaes populares, expressas nos movimentossociais, passaram a ser respondidas atravs de aesassistenciais que, a despeito de seu carter pontual,

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    introduziam na pauta poltica do pas a questo dadesigualdade social. Alm disso, j se pode localizar,no perodo, o surgimento consistente de organizaesda sociedade civil que se destinavam a prover serviosde atendimento s demandas sociais da populao.Mas o princpio do sculo XX seria realmente o perododurante o qual essas organizaes proliferariam.

    2 Da Repblica Velha ao Estado Novo: oprimeiro marco das polticas sociais noBrasil

    Os primeiros trinta anos do sculo XX assinalamno Brasil o perodo de uma dupla transformao. Deum lado, o fim do regime escravocrata enfraquecera odomnio poltico e econmico das antigas oligarquiasrurais, promovendo o surgimento de uma nova classede senhores, cujo principal interesse na cena polticanacional foi adequadamente expresso na poltica docaf-com-leite; mas a fragilidade poltica das novasoligarquias dominantes seria logo evidenciada pelasaes dos novos movimentos sociais, que surgiamcomo desestabilizadores do establishment constitudo.De outro, o crescimento das cidades modificava o perfilda populao e acelerava o crescimento das carnciasurbanas no pas.

    A natureza dessa dupla transformao permiteexplicar adequadamente a origem e o desenvolvimentodas novas lutas sociais que dominaram o cenriopoltico do pas, naquele momento. Os movimentossociais que surgiam caracterizavam-se por reunir, sobuma nica bandeira, a reivindicao de ampliao dosdireitos de cidadania no pas e o objetivo de conquistado poder poltico no aparelho de Estado. estetambm um perodo no qual as filosofias polticasrevolucionrias, de inspirao socialista e anarquista,ganham expresso atravs da organizao de traba-lhadores recrutados dentre as fileiras de imigrantesque haviam chegado ao pas desde a dcada de 1910.

    No ano de 1914, na cidade do Rio de Janeiro,saques a casas comerciais colocavam em evidnciaa luta contra a carestia levada a termo pelos movimen-tos populares da poca. A expresso poltica dessesmovimentos tornou-se ainda mais evidente com suaunificao no Movimento Contra a Carestia de Vida,que alcanou repercusso em vrias das cidades maisimportantes do pas e culminou com a realizao, nacapital da Repblica, do comcio contra a carestia,que reuniu mais de dez mil pessoas (GOHN, 1995).Em 1917, o movimento de trabalhadores organizadospromoveu em So Paulo um conjunto de grandesmanifestaes, culminando com a deflagrao de umagreve geral que reivindicava a reduo da jornada detrabalho para oito horas e a regulamentao do trabalhofeminino e infantil.

    Em 1925, eclodiu no Rio Grande do Sul a ColunaPrestes, que encontraria ampla base social para

    crescer no interior do pas e que, nos dois anosseguintes, percorreria o Brasil organizando levantespopulares contra a deteriorao das condies sociaisde vida e reivindicando a criao de direitos civis epolticos, tais como a instituio do voto secreto, aextenso do direito de voto s mulheres e o respeito liberdade de imprensa.

    No obstante o relativo sucesso dos movimentospopulares surgidos naquele momento cuja mais ex-pressiva vitria parece ter sido a organizao do movi-mento sindical nos principais centros do pas, com osurgimento de comits de fbrica que se mostrarameficazes na mobilizao dos trabalhadores para reivin-dicao de melhorias salariais e de condies detrabalho poucos avanos se fizeram sentir na organi-zao dos servios sociais demandados pela populao.

    Como afirmamos anteriormente, o perodo foi mar-cado pela proliferao de organizaes corporativase de auxlio mtuo, fazendo os servios criadosdependerem quase que exclusivamente de gestesde cunho privado e filantrpico, cuja ao de maiorrelevncia pode ser registrada nas iniciativas dasSantas Casas no campo da sade e da assistncia.

    Da parte do Estado, as iniciativas desenvolvidasrestringiram-se ao surgimento de novos elementos nalegislao que regulava o trabalho assalariado e naedio do Cdigo de Menores, que passou a regularpelo vis da represso institucional as aes destina-da infncia no pas. A esse respeito, Oliveira (1989)assinala, apropriadamente, como a ausncia do Esta-do no provimento de polticas sociais nessa pocadecorreu da inexistncia de organizao poltica sufi-cientemente expressiva dos segmentos especficosque a demandavam:

    A poltica social relativa prestao de servios,que se refere s demandas gerais da populaosade, educao, saneamento, etc., como notinha grupos especficos que a demandassem,foi delegada a segundo plano na agenda socialdo governo, haja vista o reconhecimento socialde grupos profissionais (OLIVEIRA, 1989, p.109).

    Apenas na dcada de 1930 o pas seria palco deimportantes transformaes no papel desempenhadopelo Estado para a proposio de alteraes no campode direitos sociais no Brasil. O regime surgido daRevoluo, ao contrapor-se em suas tticas dedomnio s oligarquias regionais tradicionalmenteinstaladas no poder, requeria a constituio, pelaprimeira vez levada a termo no Brasil, de um projetopoltico nacional, que estendesse a ao do podercentral a todas as regies do pas.

    Naturalmente, a ao do governo central teria deafirmar-se por meio de artifcios mltiplos que fossem

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    capazes de evidenciar o novo papel desempenhadopela Unio, ao mesmo tempo em que ofuscava aproeminncia dos governos regionais. Para tanto, onovo regime utilizou-se do expediente de encerrar oregime poltico enquanto, concomitantemente, bus-cava difundir sua presena por meio de polticaspblicas diretamente operadas pelos rgos centraisdo poder. A questo social seria trazida, gradativa-mente, para o centro da ao poltica do Estado.

    A forma de operar tal mudana estaria estreita-mente associada aos novos mecanismos de organiza-o do poder instaurados pela Revoluo vitoriosa.Para garantir a eficcia do ordenamento poltico centralno nvel local, o mecanismo das interventorias, sendode nomeao imediata do Presidente da Repblica econsistindo num permanente rodzio de governantesregionais, monitorado pelo poder central, mostrou-sede imediato apropriado para os propsitos do governogetulista.

    Impedidos que estavam de ganhar a expressopoltica anteriormente possuda pelos coronis e gover-nadores do interior do pas, os interventores possuamseu prestgio e sua importncia poltica diretamentevinculados ao sucesso alcanado na implementaodas novas aes governamentais das quais estavamincumbidos. Por sua vez, as atribuies prprias dasinterventorias proporcionavam-lhes realizar um governocentralizador, que poderia, rapidamente e com grandeeficcia, executar as novas formas de interveno doEstado na vida poltica e social do pas.

    Na esfera nacional, o principal problema do novogoverno residia na necessidade de legitimar-se rapida-mente em todas as regies do pas, a fim de impediro ressurgimento das oligarquias regionais no-aliadas.A ao governamental que perseguiu tal propsitoapontar para o desenvolvimento de grandes planosnacionais que vo responder de diversas formas sdemandas sociais da classe trabalhadora do pas.

    Deste modo, de um lado o Estado proporcionariao desenvolvimento econmico, aliando-se ao processode industrializao; de outro, produziria um amploprocesso de respostas ao agravamento das condiesde vida, com a realizao de aes de interveno di-reta nas condies de reproduo da fora de trabalhono pas. Neste momento, as bases da poltica socialbrasileira seriam construdas de acordo com a marchada modernizao com a qual o pas se encontraria, apartir de ento, comprometido.

    Em sntese, podemos afirmar que a busca dalegitimidade poltica e a necessidade de constituiode um projeto poltico nacional eram naquele momentoos principais elementos a impulsionar a ao governa-mental na rea das demandas sociais. As inovaesproduzidas nas reas da Educao e da Cultura, coma instituio da obrigatoriedade do ensino fundamentale a participao governamental na produo e dissemi-nao de bens culturais de carter nacionalista,constituem exemplos da nova disposio do Estado

    em interferir nas respostas s carncias sociaishistoricamente consolidadas no pas. Na outra ponta,a iniciativa de implementao de uma legislao traba-lhista de abrangncia nacional modificava o conjuntode relaes de trabalho no Brasil, embora sua eficciaestivesse ainda limitada ao conjunto dos trabalhadoresurbanos.

    O enfrentamento questo social havia se tornado,definitivamente, uma bandeira e uma necessidade doregime ps-revolucionrio na dcada de 1930: ocaminho ao poder galgado pela nova elite emergenterequeria, ainda que de modo centralizador e seletivo,a ao social do Estado para proporcionar a qualifica-o da fora de trabalho e o desenvolvimento econ-mico correspondentes ao processo de industrializaoque se instaurava no pas.

    As polticas sociais iniciadas a partir da dcadade 1930 destinaram-se ento a permitir alcanar,concomitantemente, os objetivos de regulao dosconflitos surgidos do novo processo de desenvol-vimento econmico e social do pas e de legitimaopoltica do Governo. Para compreendermos como issose tornou possvel, faz-se mister relacionarmos osnovos servios sociais realizados pelo poder pblicos emergentes necessidades de reproduo e qualifi-cao da fora de trabalho nacional.

    Com efeito, a poltica de substituio de importa-es iniciada pelo governo getulista sustentava-se naintroduo no pas de um padro tecnolgico exterior dinmica econmica nacional que, se de um ladoproporcionava a modernizao das formas tradicionaisde produo e a rpida criao de um eficiente parqueindustrial, de outro encontrava sua disposio fartoscontingentes de fora de trabalho, cuja qualificaono correspondia requerida e cujo volume era dema-siadamente superior ao demandado pelas indstriasque surgiam.

    Como resultado dessa inadequao inicial, a inte-grao da fora de trabalho ao setor produtivo ocorreriade forma parcial, e sua maior conseqncia consistiriana ciso do mercado de trabalho urbano, resultando,de um lado, em uma elite operria integrada ao moder-no parque produtivo e, de outro, em amplo conjuntode trabalhadores, cujo precrio vnculo empregatciotornava impraticvel a efetiva integrao econmica esocial. Ao mesmo tempo, as caractersticas polticasdo regime influam negativamente na possibilidade deorganizao poltica dessa nova classe social urbana,chegando a ocorrer apenas nos maiores centrosurbanos do pas a organizao da atividade sindicaleficaz e da luta poltica operria por melhores condi-es de vida e de trabalho.

    A descrio que apresentamos acima explicaporque as polticas sociais nascidas no perodo nosurgiriam determinadas diretamente pelas demandaspopulares expressas nos movimentos sociais dapoca, mas encontrariam sua origem na iniciativaestratgica do Estado. Respondendo necessidade

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    seletiva de garantia apenas parcial das condiesbsicas de reproduo da fora de trabalho no pas, oEstado desempenhava o papel de guardio dos inte-resses da nova elite industrial e, ao mesmo tempo,interferia nas possibilidades de organizao polticareivindicatria, sempre presente devido intensificaodas relaes de trabalho assalariado.

    Foi da ao centralizadora do Estado que surgiramas iniciativas de interveno social consolidadasdesde ento. Tal qual a ordem social competitiva quese instaurava, as polticas sociais que lhes davamparte da sustentao necessria convergiam para aintegrao apenas parcial da fora de trabalho nacio-nal. Ao lado da resposta privativista, a questo socialno Brasil produzia, a partir de ento, a ao estatalseletiva, como forma de manipulao econmica econtrole poltico das massas de trabalhadores urbanos.

    A Constituio Federal de 1934, primeira constitui-o do pas a possuir um captulo referente ordemeconmica e social, foi tambm pioneira na definiode responsabilidades sociais do Estado. Entre asnovas iniciativas governamentais no campo daspolticas sociais, foi instituda a assistncia mdica esanitria ao trabalhador e gestante1 . Seu texto finalincluiu ainda temas como o salrio mnimo, a jornadade trabalho de oito horas, o repouso semanal remune-rado, o direito a frias anuais, a indenizao em casode demisso sem justa causa, a aposentadoria poridade, invalidez ou acidente de trabalho, a concessode penso aos dependentes por morte do trabalhador,alm de outras medidas de carter preventivo que,sob responsabilidade da Unio, dos Estados e dosmunicpios, formavam o sistema de seguridade socialdo trabalhador na poca. No campo especfico daassistncia social foram criados servios de amparoaos desvalidos, servios de socorro s famlias deprole numerosa, servios de proteo maternidadee infncia, alm de ter sido regulamentado o trabalhoinfantil (KUGELMAS e ALMEIDA, 1987).

    Se, por um lado, a introduo dessas obrigaesdo poder pblico no novo sistema legal indicava umsalto de qualidade nos servios sociais existentes,expressando novas determinaes polticas e ideol-gicas na relao entre o Estado e a sociedade civil,por outro, as formulaes da poltica social introduzidaspelo modelo adotado na esfera governamental, almde manifestamente assistencialistas, eram corrente-mente utilizadas como instrumentos de controle erepresso das reivindicaes por melhores condiesde vida promovidas por segmentos organizados daclasse trabalhadora.

    A prpria preocupao com o tema da ordemeconmica e social na Constituio de 1934 decorreu,primariamente, das mudanas que se faziam sentirnas relaes econmicas e sociais e que se origina-

    1 Neste mesmo perodo vive-se no Brasil o reflexo da crise econmica mundial, e duas medidas tornaram-se primordiais na polticaeconmica: o controle cambial como uma alternativa para a dvida externa e a redefinio no campo da agricultura, com acriao do Instituto do Acar e do lcool e do Conselho Nacional do Caf.

    vam do desenvolvimento industrial recente. A esserespeito, Lonzar assim se refere:

    O crescimento e a organizao da fora de traba-lho industrial, aliado s pssimas condies detrabalho, desencadeavam o que se passou achamar embate entre capital e trabalho. O cresci-mento e a organizao da burocracia estatal, almde uma certa autonomia do Estado em relao sociedade, traziam luz um segundo embate,entre a iniciativa privada e a estatizao, correlata-mente vai surgindo uma terceira questo com aexpanso do capital atravs da propriedade daterra. A disputa aqui envolver o capital privado, otrabalho e o Estado (1987, p. 45).

    Com a instalao do Estado Novo, no ano de 1937,um novo perodo pode ser demarcado para aquelemodelo inicial de organizao das polticas sociaisno pas. Revogada a Constituio de 1934, a novaCarta Constitucional apresentava grandes retrocessosno que tange s liberdades polticas e aos direitossociais dos cidados. Somando-se a isso, o novopanorama poltico do pas, aps a instaurao daditadura varguista, tornava extremamente difcil asustentao desses direitos pela via da mobilizaopopular. Embora no tenham sucumbido por completo,as manifestaes populares que reivindicavammelhores condies de vida foram reprimidas com foracada vez maior, a ponto de terem suas conseqnciasneutralizadas pelo aparelho de Estado.

    Conjuntamente, a edio de uma nova legislaotrabalhista interferiu na estrutura de organizao domovimento sindical, atrelando-o ao Estado e reforandoo corporativismo no interior das categorias de trabalha-dores. Como alternativa legtima para manifestaodas demandas populares, restaram as ligas de bairros,que na poca desenvolveram suas atividades ativa-mente nas lutas por infra-estrutura urbana, reivindica-o dotada de grande apelo popular no contexto deurbanizao acelerada que se desenvolvia, sobretudo,nos entornos dos grandes centros urbanos.

    Entre os retrocessos que podemos registrar naConstituio de 1937 encontram-se a limitao dodireito educao universal, a ampliao do controleestatal sobre a organizao sindical trabalhista e aredefinio das competncias dos governos regionaise locais nas aes de poltica social, resultando emgrande centralizao de aes e chegando ao pontode restar aos municpios to somente a administraode cemitrios.

    Nesse contexto legal e poltico, as aes daspolticas sociais desenvolvidas tero carter apenas

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    incipiente, servindo prioritariamente como mtodo decontrole dos movimentos sociais emergentes e dereafirmao da legislao social corporativa, incorpo-rando de forma parcial e controlada as reivindicaespopulares, atravs de procedimentos clientelistas narelao entre o Estado e os setores organizados dasociedade civil.

    nesses termos, enquanto mediadora da relaoentre capital e trabalho, que se desenvolveram asiniciativas governamentais da poca, com destaqueda criao da Legio Brasileira de Assistncia em1938 e do Departamento Nacional da Criana, vincula-do ao Ministrio da Sade. No mbito das aesprivadas, a criao do Servio Nacional de Aprendiza-gem Industrial (SENAI) e do Servio Social da indstria(SESI), respectivamente em 1942 e 1946, acentuariao carter conservador das aes sociais da poca.

    A anlise do caso particular da poltica de assistn-cia social apenas reafirma a concluso que apresenta-mos no pargrafo anterior. A dcada de 1940 foi operodo no qual o Estado, ao lado dos tradicionaisprogramas de ateno a crianas carentes e aosidosos, iniciou novas linhas de atuao na rea, taiscomo os programas de enfrentamento pobrezarealizados na poca. Entretanto, os novos programasapresentavam-se fortemente condicionados por umaconcepo assistencialista, o que resultava em aespontuais, fragmentadas e de alta seletividade, comalijamento significativo de parcelas da populao queno possuam acesso aos servios demandados porsuas carncias, originadas da nova situao dedesenvolvimento do pas2 . Este era o limite do primeiromarco das polticas sociais no Brasil.

    3 Populismo e Polticas Sociais no Brasil

    O perodo subseqente ao fim do Estado Novo,compreendido entre os anos de 1945 e 1964, registrana histria brasileira o predomnio da poltica populista.As bases dessa poltica populista encontravam-seestabelecidas desde o perodo final do governo Vargas,no qual a conjuntura poltica internacional e a emergn-cia de movimentos sociais que contestavam o regimeautocrtico no pas, colocavam em xeque a continui-dade do governo Vargas. O Estado Novo seria encerra-do com a deposio de Vargas e a convocao deuma nova Assemblia Nacional Constituinte, a realizar-se no ano de 1946.

    A nova Constituio Federal registrou mudanasno captulo da Ordem Econmica e Social, acentuan-do o papel do Estado no desenvolvimento econmicoe atribuindo-lhe a responsabilidade da justia social.Seu texto final registrava ainda a necessidade deconciliao da ordem econmica, devendo esta ltima

    2 O resgate histrico da poltica de seguridade social no Brasil foi feito com muita propriedade por Maria Luiza Mestriner, emdissertao de Mestrado apresentada na PUC/SP, em 1992, sob o ttulo Assistncia e Seguridade Social no Brasil.

    encontrar-se em conformidade com os princpios dejustia social. Conforme o artigo 145:

    A ordem econmica deve ser organizada conformeos princpios de justia social, conciliando a liber-dade de iniciativa com a valorizao do trabalhohumano.

    Pargrafo nico. A todos assegurado que possi-bilite existncia digna. O trabalho obrigaosocial (DUARTE, 1947, p. 91).

    De acordo com esses princpios, a Constituiodefiniu como competncia da Unio a responsabili-dade pela defesa permanente contra endemias e pelaregulamentao da legislao social. Alm disso,retomou o disposto na Constituio de 1934, tornandoobrigatria a assistncia maternidade, infncia eadolescncia. Garantiu ainda o direito de aposentadoriaintegral aos trabalhadores, motivada por acidente detrabalho ou invalidez.

    Os novos direitos sociais prescritos na Constitui-o de 1946 teriam de ser implementados no contextoda poltica populista, e esta peculiaridade parece terestabelecido o limite possvel de sua efetivao. Defato a abertura do regime poltico brasileiro, que suce-deu o perodo do Estado Novo, proporcionaria pequenasmodificaes no mbito da poltica social no pas. Ainstaurao de um perodo democrtico na RepblicaNova possibilitava o crescimento do papel poltico dasclasses trabalhadoras, fazendo vir tona a premnciada ao pblica do Estado na garantia de condiesde vida adequadas populao pauperizada.

    Por sua vez, a caracterstica populista herdada daera do Estado Novo moldava as possibilidades derelacionamento do Estado com a sociedade civilorganizada: emergiria no quadro de relaes polticasdemocrticas a tutela do Estado sobre os movimentossociais e as formas de representao das classespopulares da poca.

    Contudo, essa tutela parcial do Estado no chegoua impedir por completo a organizao poltica deimportantes grupamentos, em todas as esferas dasociedade. No contexto dos governos populistas, po-demos enumerar ao menos dois grandes movimentosde organizao poltica cuja base social, majoritaria-mente formada no interior da classe mdia, representa-vam essa organizao: a Juventude UniversitriaCatlica e a Ao Popular, cuja estratgia de atuaoconsistia na formao massiva de quadros polticosjunto ao movimento estudantil, aos movimentos cam-poneses e aos movimentos operrios.

    Alm desses, no campo trabalhista os movimentosde reivindicao tornavam-se gradativamente mais

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    politizados como demonstra o fato de que a grevegeral de 1953, que chegou a paralisar mais de 300mil trabalhadores, tenha obtido como principaisresultados a afirmao do direito de greve e a reformaministerial, que levaria Joo Goulart ao Ministrio doTrabalho (GOHN, 1995).

    No meio rural, por sua vez, as manifestaesimportantes, transcorridas principalmente nas regiessul, norte e centro-oeste, expressavam, com destaquecada vez maior, as bandeiras das reformas de base,nelas includas a reforma agrria e a luta pela posseda terra o que, especialmente no caso da reformaagrria, se de um lado era entendido como uma neces-sidade fundamental, naquele perodo de liberdadedemocrtica, de outro era interpretado pelas facesconservadoras como crescimento da influncia comu-nista na sociedade brasileira. Originava-se da umagrande reao poltica s reformas propostas, cujaprincipal conseqncia foi polarizar em torno deconcepes ideolgicas opostas do debate que setravava, impedindo que as bandeiras das reformas segeneralizassem como reivindicaes nacionais.

    A despeito dessa polarizao, um amplo leque dereivindicaes da sociedade civil, que se estendiadesde as lutas em torno de polticas sociais especfi-cas at o movimento pelas reformas de base, emergiudos movimentos sociais que eclodiram no perodo eque encontravam expresso no momento de liberdadepoltica, com restaurao dos direitos polticosindividuais, da liberdade de expresso e dos partidospolticos.

    As manifestaes que expressavam a necessida-de de melhores condies de vida chegaram a reunirgrande nmero de participantes. Dentre elas, destaca-mos aqui as trs mais importantes: as passeatas dapanela, ocorridas entre 1951 e 1953, com a participa-o de aproximadamente 500 mil pessoas; a grevegeral contra a carestia, ocorrida em 1959; e o movi-mento contra a carestia de vida, que atingiu vriasregies do Brasil (GOHN, 1995).

    No campo especfico das polticas sociais, osmovimentos sociais surgidos expressavam reivindica-es, cujo atendimento no se vinculava apenas ademandas emergenciais da populao, mas requeriatransformaes mais consistentes na sua condiosocial de vida. Em virtude disso, nem sempre essasdemandas foram rapidamente incorporadas s priorida-des dos governos populistas, evidenciando a incapaci-dade que o populismo possua de responder comeficcia aos movimentos sociais que emergiam forade seu controle poltico.

    Este foi o caso do movimento pela casa prpria,que transcorreu nos anos de 1961 e 1962 e fez surgirnos institutos de funcionrios e industririos asiniciativas de criao de conjuntos habitacionais e dareivindicao de transporte coletivo, que culminou comos episdios do quebra-quebra dos bondes no Riode Janeiro e do protesto contra o aumento da

    passagem de nibus em So Paulo, respectivamentenos anos de 1956 e 1958. E, como exemplo maiscontundente dessa nossa tese, o movimento pelareforma de base na educao, que foi publicamenteiniciado em 1947, e cuja eficcia, aps 14 anos deexistncia, foi apenas parcial, resultando em 1961 naconsolidao de uma legislao bsica e geral para aeducao em todo o pas e no fortalecimento da escolapblica.

    Ao analisarmos as caractersticas fundamentaisdos governos populistas, compreendemos o motivopelo qual apresentavam esta dificuldade na incorpo-rao efetiva das reivindicaes populares de maiorprofundidade. Isto se devia, fundamentalmente, ao fatode que no contexto do populismo, a ao polticainstitucional orientava-se pela expanso pontual debenefcios sociais, sem que tal expanso consistisserealmente no reconhecimento de novos direitossociais, ou sequer no estabelecimento de polticasduradouras.

    Assim, se por um lado a instituio de novosbenefcios na legislao social da poca constitua-se padro de manejo da questo social pelo EstadoDemocrtico at mesmo contribuindo essencial-mente para sua legitimao por outro, no se consti-tua transio para uma legislao social renovada nopas, reforando o carter seletivo pelo qual havia secaracterizado historicamente o conjunto das polticassociais brasileiras.

    Respondendo a demandas localizadas, a novalegislao social confinava ao limite do parlamento aluta poltica das classes subalternas, sem proporcionarao rgo legislativo mecanismos reais de intervenona ao governamental, que garantissem a efetivaexpanso dos direitos sociais para as camadaspopulares. Nem mesmo o controle administrativo dasaes governamentais era possvel, em face daorganizao poltico-administrativa que caracterizavao ordenamento institucional do pas.

    Nessa circunstncia, a burocracia estatal era en-carregada da organizao de um sistema de polticassociais fadado ao insucesso. Componente essencialda ao executiva, o desempenho ineficaz das polti-cas sociais deixaria evidente a ausncia de correspon-dncia entre o mandato legislativo e a efetividade dosdireitos sociais que dele decorria. E isso na melhordas hipteses, j que, via de regra, a operacionalizaodos servios provedores desses direitos encontrava-se a cargo de entes indefinidos do Estado, circunstn-cia na qual a burocracia adquiria aparente autonomiade gesto que, a despeito de no encobrir os traospatrimonialistas dos governos da poca, servia demote para atribuir-lhe a responsabilidade pela inefic-cia das aes governamentais.

    Desse modo, a inconsistncia das aes de gover-no, dissociadas de polticas sociais consistentes, noapenas no resultava em questionamento do modelopopulista de exerccio do poder, como at servia para

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    sua reafirmao, uma vez que este aparecia comoanttese do aspecto impessoal que a burocracia impri-mia gesto dos servios pblicos. No final dascontas, embora superasse a tradicional resposta dafora repressiva para as demandas sociais da popu-lao, a forma de tratamento da questo social pelosgovernos democrticos populistas veio acrescentar-lhe uma das caractersticas determinantes da questosocial no Brasil, a saber, o carter corporativo daexpanso dos direitos sociais no pas. Devemosressaltar, porm, que tal caracterstica no surgiu naspolticas sociais brasileiras a partir do perodopopulista. Os fundamentos do corporativismo napoltica social brasileira remontam ao perodo doEstado Novo (CASTRO, 1988).

    Como conseqncia desse populismo buro-crtico, as polticas sociais daquela poca nascerammarcadas por particularismos corporativistas ealgumas categorias profissionais passaram a possuiro monoplio de representao no interior da mquinaestatal. Do ponto de vista legal, desde o princpio daRepblica Nova as instituies corporativas pelasquais parcelas da classe trabalhadora obtinhamacesso aos direitos sociais encontraram acolhida nosdiplomas legais que ento se fizeram vigentes. Defato, a instaurao da primeira legislao social exten-siva no pas transcorreu mediante a institucionalizaocontinuada de tais instituies, e no pode ser com-preendida sem elas. Como exemplo, podemos apontaro caso da organizao do primeiro sistema previden-cirio no pas, que nasceu limitado quelas categoriasde trabalhadores cujo potencial de organizao, ourelativa influncia na estrutura administrativa doEstado, possibilitava impor ao errio pblico o nusde sua sustentao financeira (a princpio, os ferrovi-rios e outros segmentos do funcionalismo pblico),obtendo amparo na legislao para a organizao emanuteno de seus fundos de penso.

    Mas foi durante o perodo populista que, finalmente,a extenso de direitos sociais no pas encontrou-sedefinitivamente selada pela marca corporativa, emvirtude de sua associao s modificaes na legisla-o trabalhista vigente, quase sempre impulsionadaspela presso poltica daquelas camadas e categoriasmais bem organizadas e plenamente integradas ordem social competitiva.

    significativo o sentido da criao de novos servi-os e de reestruturao da gesto dos servios sociaisexistentes na poca. Isso porque o modelo de coopta-o instaurado pelas polticas populistas de Estadoencontrar-se-ia alinhado a iniciativas de privatizaodaqueles servios de alguma maneira rentveis, taiscomo os servios mdicos, previdencirios e de produ-

    o de habitaes e, no perodo, ganharia fora omodelo de prestao de servios sociais sob gestodo empresariado como atesta a criao do ServioNacional de Aprendizagem da Indstria (SENAI), como objetivo de adequao da fora de trabalho sdemandas emergentes das empresas. Isso tambmporque queles servios cujas caractersticas eramimprprias gesto privada os servios assisten-ciais, em particular foi dada nova formulao, quesinalizava um reforo aos modelos de gesto cientfica,com a criao de servios prprios (tais como creches,hospitais e lactrios vinculados Legio Brasileira deAssistncia (LBA) e a criao da Fundao Estadualdo Bem Estar do Menor (FEBEM), encarregada dadifuso de servios de atendimento social a crianasem situaes de risco, a partir da perspectiva da edu-cao e da preveno. A preocupao com a reformu-lao dos servios de polticas sociais estender-se-iaainda ao campo da Previdncia Social, resultando napromulgao da Lei Orgnica da Previdncia Social,em 1960, que estabeleceu a uniformizao dosbenefcios previdencirios (MESTRINER, 1992).

    Dessa restruturao parcial, desenvolveu-se ummodelo de financiamento das polticas sociais queexpressava contundentemente as contradies doregime populista. De um lado, os servios para osquais foi possvel criar fontes de financiamento quecontavam com a contribuio de empregados eempregadores (o exemplo mais importante aqui polti-ca previdenciria, qual encontravam-se agregadosos servios de assistncia mdica, habitao esaneamento bsico); de outro, polticas inteiras depen-dentes exclusivamente do oramento fiscal, tais comoa sade pblica, a educao, a suplementao alimen-tar e o transporte de massas (FAGNANI, 1989) 3 .

    A combinao desse modelo de financiamentocom os mecanismos de cooptao do Estado popu-lista que procurava antecipar-se s demandassociais dos movimentos organizados, esvaziando-lhesos contedos de reivindicao e produzindo respostasseletivas s demandas apresentadas redundou noenfraquecimento dos direitos sociais da populao,sendo os benefcios e servios das polticas pblicasconfigurados como privilgios de setores particularesda sociedade civil, oriundos de uma negociao polti-ca regulada e injusta. Isso se tornou ainda mais evi-dente com a interferncia de organismos internacio-nais, que condicionavam o apoio financeiro externoao Brasil ao cumprimento de reformas sociais pelogoverno federal.

    Enfim, em meados da dcada de 1960, o padrode constituio das polticas sociais brasileiras jhavia incorporado por completo as formas determi-

    3 O Banco Mundial, em negociaes com o governo brasileiro, foi o principal organismo internacional a interferir sobre o padrodas polticas sociais no pas. Como conseqncia mais importante dessa interferncia, perderam fora as aes de regulaono campo do trabalho e sobrevieram medidas de ateno s necessidades sociais ligadas ao saneamento bsico e educao.Tais medidas foram impostas, sobretudo, pelo modelo de desenvolvimento econmico adotado em toda a Amrica Latina, e noBrasil em particular, que tornava indispensvel a constituio de polticas globais para o atendimento questo social que seapresentava.

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    nantes que caracterizariam as respostas questosocial no pas. Em primeiro lugar, o privativismo,exemplificado pela transferncia de parcela preponde-rante dos servios prestados para a rbita de institui-es organizadas no interior da sociedade civil,mantendo agora sob forma mais sofisticada aarticulao de pequenos ncleos de poder social emtorno da assistncia pblica. Em segundo lugar, ocarter seletivo das polticas implementadas, desti-nadas quase que exclusivamente aos segmentossociais incorporados ao mercado de trabalho (isto , nova dinmica econmica e social originada com aindustrializao acelerada), o que ocasionava umaextenso vagarosa e parcial dos servios pblicos sclasses subalternas. E, em terceiro lugar, o cartercorporativo das polticas sociais desenvolvidas, queimpunha um trao de iminente desigualdade na criaoe expanso dos direitos sociais adquiridos pela classetrabalhadora, recaindo sobre aqueles contingentesmais numerosos e menos organizados, o nus dafalta de assistncia pblica s demandas coletivasde vida e trabalho.

    4 Polticas Sociais no Autoritarismo Recente

    No princpio da dcada de 1960 o contexto polticobrasileiro prenunciava uma era de grandes transforma-es sociais. Nos mais diversos campos da vidanacional eclodiam movimentos sociais de amplitudeabrangente. Das ligas camponesas, no meio ruralnordestino, ao movimento pelas reformas de base nocentro-sul desenvolvido, as reivindicaes popularesdo perodo produziam permanente mobilizao nointerior da sociedade, dotando de grande expressoas bandeiras de lutas sociais das classes subalternas.Como vimos, o contexto poltico populista podiaoferecer respostas apenas parciais aos movimentosde reivindicao popular.

    Mas, a extrema politizao do perodo no mobili-zaria apenas as classes populares. Dada a extensoda mobilizao por reformas na poca, os setoresconservadores da sociedade esboariam rpida reaos manifestaes populares, atravs da legitimaode organismos institucionais que funcionariam comoporta-vozes do pensamento conservador e de iniciati-vas de mobilizao de forte apelo moral, que tinhampor propsito opor-se s propostas reformistas, res-guardando o status quo existente sob o vu de valoresideolgicos tradicionais4 . O resultado desse embatepoltico seria a derrubada do governo constitucionaldo pas, seguido da instaurao de um regime ditato-rial, sustentado e regido pelas foras militares nacio-nais. Chegava ao fim a era dos governos populistasno Brasil.

    O advento da ditadura militar brasileira transformoupor completo a conjuntura poltica e social do pas,antes francamente favorvel ao crescimento dos movi-mentos sociais. O regime autocrtico estabeleceuuma forte represso a toda espcie de mobilizaopopular, relegando as lutas sociais em curso ao planoda ilegalidade e tornando necessria, para manter emevidncia as reivindicaes por melhorias na qualidadede vida da populao, a incorporao da bandeirapoltica de restaurao do Estado de Direito no pas.Com efeito, o autoritarismo burocrtico que se prenun-ciava e a represso violenta s organizaes da socie-dade civil deixavam sem alternativa poltica os movi-mentos sociais constitudos. Se as respostas parciaisdos governos populistas a suas reivindicaes haviamlhes parecido insuficientes, eram agora preferveis ausncia total de respostas por parte do novo regime.

    Do ponto de vista dos movimentos sociais, contes-tar a legitimidade poltica dos governos autoritriosapresentava-se como nica forma de abrir espao paraas reivindicaes populares na agenda poltica doperodo. Os governos militares, de sua parte, necessi-tavam alcanar algum grau de legitimidade, a fim desuperar a fase inicial de instabilidade que se seguiuao golpe de Estado de 1964. O caminho encontradopara busc-la seria uma consistente interveno sobreos rumos do desenvolvimento econmico e social dopas, modificando-lhe o carter e construindo umaalternativa s propostas reformistas que haviamorientado a constituio dos movimentos sociais nosprimeiros anos da dcada de 1960. Se retornarmos anlise das causas que determinaram o fracasso domodelo populista, evidenciaremos claramente comoessa alternativa poderia ser construda.

    O colapso do populismo no pas possui um signifi-cado mais profundo que a simples substituio dasfraes de classe instaladas no aparelho do Estadobrasileiro. O populismo distinguia-se das formas tradi-cionais de exerccio do poder por supor, antes e no de-correr dos processos de legitimao, que implementa-va uma estratgia poltica de desenvolvimento econ-mico.

    A longo prazo sua prpria estabilidade polticarequeria a identificao das aes polticas dos gover-nos, com um consistente processo de desenvolvi-mento do pas, de modo que o agudo clima de instabili-dade verificado no seu ltimo perodo pode ser emparte creditado crescente insuficincia de respostasgovernamentais crise social que se avizinhava dohorizonte nacional. Essa deficincia demonstrava aossetores organizados da populao fossem oriundosdas classes subalternas ou vinculados aos setoresconservadores da sociedade que o modelo populistaj no serviria a qualquer das propostas de desenvolvi-mento econmico-social em curso.

    4 A Marcha da Famlia, com Deus, pela Liberdade, transcorrida no Rio de Janeiro na dcada de 1960, consistiu numa dasmanifestaes mais importantes dessa reao conservadora, e evidenciava em sua prpria denominao os valores ideolgicosincorporados ao discurso anti-reformista da poca.

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    Em torno da questo social se daria, portanto, oprimeiro confronto por busca de legitimidade entre osmovimentos sociais populares e o governo autocrtico-militar. De um lado, figuraria a expresso de reivindica-es polticas e sociais ainda identificadas com aperspectiva desenvolvimentista do perodo anterior, queprocurava afirmar a preservao de direitos adquiridosna legislao social vigente e expandir os serviosdestinados populao, a fim de universalizar-lhes oacesso5 ; de outro, estaria o projeto poltico-institucio-nal do novo regime, orientado para a busca de estabili-dade social e a afirmao da nova ordem poltica nopas.

    Sob essa tica, podemos lanar luz ao sentidodas mudanas introduzidas pelos governos militaresna legislao social brasileira. Basicamente, essasmudanas estiveram direcionadas para fornecer res-postas s reivindicaes que impulsionavam os movi-mentos populares de contestao ao regime, propon-do, de um lado, a ampliao qualitativa dos benefciosexistentes como, por exemplo, a extenso dedireitos previdencirios a trabalhadores rurais e empre-gados domsticos e, de outro, uma expanso quanti-tativa dos servios governamentais, que era apresen-tada ao pblico como soluo para a universalizaodo acesso aos servios de educao e, mais especial-mente, de sade e habitao. No obstante a veicula-o dessa imagem, o objetivo real de tais medidasera a limitao da base social dos movimentos popula-res emergentes, e seu resultado concreto consistiuna centralizao expressiva das polticas de desenvol-vimento, no acirramento do controle de seus serviospela burocracia governamental e no recrudescimentodas prticas clientelistas antes minimiza-das com oencerramento do populismo. Sob o manto de umafalsa neutralidade gerencial, as polticas sociais doperodo adquiririam um trao contundentemente tecno-crtico e, amplamente burocratizadas, se encontra-riam merc dos grupos e associaes de interessesindividuais e corporativos que gozavam de ascendnciasobre as instncias decisrias de governo.

    Dessa transformao inicial emergiria um novopadro de polticas sociais no pas, no qual a Unioimplementaria uma forma de gesto centralizada dosprogramas sociais em desenvolvimento, substituindoo antigo modelo fragmentado de gesto e unificandosob seu controle os recursos, servios e benefciossetoriais. Com isso, o governo militar conseguia daruma resposta diferenciada das anteriores questosocial no pas, procurando auferir dividendos polticoscapazes de dotar da estabilidade necessria o novoregime.

    Se, por um lado, no se tratava ainda de qualquerampliao significativa dos direitos sociais no pas,

    5 A reivindicao por servios de acesso universalizado, por prematura que aparente ser, encontrou consistente base poltica parasua proliferao, porque parecia simbolizar a retomada da proposta de edificao de uma sociedade igualitria num contexto deprogresso econmico, desenvolvimento social e melhoria das condies de vida, que as camadas populares haviam projetado noperodo de sucesso das polticas econmicas desenvolvimentistas no pas.

    por outro, a readequao dos programas sociaisexistentes possibilitava ao governo realizar um novoconjunto de aes estratgicas, que se anunciavamcom o propsito de diminuir as disparidades do desen-volvimento regional brasileiro, mas que se reduziam,na prtica, ao direcionamento de grandes quantiasfinanceiras para os cofres da Unio, que se faziamnecessrias para equilibrar o oramento pblico eresponder s demandas por novos investimentossociais.

    O exemplo particular da poltica de previdnciasocial ilustra precisamente o que afirmamos acima.A reforma previdenciria da dcada de 1970 foi iniciadacom a ampliao da cobertura dos benefcios existen-tes, que foram estendidos, entre outras categorias,aos trabalhadores rurais, empregados domsticos etrabalhadores autnomos. Paralelamente, o aparelhogovernamental de administrao previdenciria foireorganizado, com a criao do Ministrio da Previdn-cia e Assistncia Social e a transferncia dos hospitaise lactrios para a alada do Ministrio da Sade. Aomesmo tempo, novas fontes de recursos para aspolticas sociais eram definidas, com a criao defundos de financiamento constitudos por poupanacompulsria, a saber, o Fundo de Garantia por Tempode Servio (FGTS),o Sistema Nacional de Previdnciae Assistncia Social (SINPAS), o Programa deIntegrao Social (PIS) e o Programa de Assistnciaao Servidor Pblico (PASEP).

    Centralizavam-se, no mbito do Governo Federal,os servios e recursos das polticas sociais no pas,impondo um esvaziamento das aes e responsabili-dades dos governos regionais e locais, com a ausnciade Estados e municpios na execuo dessas polti-cas pblicas. A questo social era incorporada aoregime autocrtico como ao estratgica de manuten-o da estabilidade poltica e social no pas.

    Desse modo, foi levada a termo uma significativareformulao dos mecanismos de gesto e de contro-le das polticas sociais que, por fora do contextopoltico daquele momento, redundaria de imediato naexcluso da participao popular em qualquer formade controle sobre as polticas desenvolvidas. Movimen-tos sociais, sindicatos e partidos polticos encontra-vam-se alijados do processo de discusso e avaliaodas polticas, reforando-se ainda mais o cartertecnocrtico de sua gesto. Nas palavras de Paula:

    Eliminaram-se, assim, todos os mecanismos decontrole pblico, considerando ainda que asdiretrizes bsicas das polticas sociais no eramsequer objeto de discusso no Congresso Nacional(PAULA, 1992, p. 124).

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    Desprovido de mecanismos de controle pblico, onovo padro de polticas sociais do pas reproduziriamuito do que havia de pior nos modelos que o antece-deram. Sobretudo a seguridade social seria organizadacom forte carter assistencialista. Alm disso, osservios criados ou encampados pelo governo federalse tornariam progressivamente mais seletivos, restrin-gindo-se o atendimento da populao e confiando-separte expressiva dos servios a iniciativas filantrpicas.De modo geral, foi regra no perodo a reduo ou nega-o de direitos estabelecidos na legislao, ora porfora da crise financeira da previdncia social, ora comoefeito dos modelos privatizantes realizados na sade,ora finalmente pelo descaso aberto do Estado em rela-o aos excludos do sistema formal previdencirio.

    No final da dcada de 1970 o modelo de desenvolvi-mento instaurado pelo regime militar daria seusprimeiros sinais de esgotamento. O fim do milagreeconmico brasileiro j podia ser sentido nos ltimosanos da dcada e, no perodo de 1977 a 1982, agrava-ram-se as condies gerais de vida da populao,fazendo ressurgir, agora com fora renovada, osmovimentos sociais de reivindicao.

    Em 1979, aconteceu em So Paulo e em BeloHorizonte o movimento das favelas. Nestas mesmascidades, no perodo subseqente, somaram-se a esteos movimentos de luta por creche. O transporte coletivotambm foi motivo para manifestaes em muitascidades brasileiras e obteve grande repercusso atmesmo entre os setores patronais, pois desempenha-va funo estratgica na determinao das possibilida-des de recrutamento da fora de trabalho pelasempresas. Em 1982, o Movimento Contra a Carestiaganharia expresso nacional, reunindo sob suasbandeiras amplas reivindicaes populares e promo-vendo mobilizao em todo o territrio nacional.

    Os anos 80 seriam identificados como a dcadaperdida, especialmente pelo perodo recessivo que opas conheceu entre 1981 e 1983. Nesse contexto degrave crise econmica, a atividade industrial no pascaiu em quatro por cento, ocasionando um crescimen-to acelerado do desemprego e acentuada defasagemno valor real dos salrios pagos para a fora detrabalho. Ambas as circunstncias agravavam aindamais as j comprometidas condies de vida, porqueresultavam, numa ponta, na generalizao da pobrezae, noutra, na gerao de uma importante crise fiscal,que tornava ainda mais precria a manuteno daspolticas sociais conduzidas pelo Estado:

    O aumento do desemprego e da misria ocorridono perodo de 1979 a 1983 ampliou o j dramticoquadro de carncias sociais: desnutrio, profu-so de doenas endmicas, baixa taxa de esco-larizao, favelizao da populao urbana eaumento da mortalidade infantil nas reas maiscarentes. Em face do aumento das demandassociais, a oferta de bens e servios pblicos

    revelou-se aqum das necessidades, ampliandoo dficit social (MEDEIROS, 1989, p. 189).

    Antevendo os efeitos da crise social dos anos 80,o governo federal j conclura, ainda durante a crisedo petrleo, que os recursos fiscais de que disporiaseriam por demais precrios para a manuteno daspolticas sociais sob sua responsabilidade. Pressio-nado por um desempenho econmico aqum do espe-rado, e pela perspectiva de degradao do quadro eco-nmico futuro que a conjuntura internacional prenuncia-va, o governo federal recuou na sua poltica de investi-mentos sociais e em infra-estrutura, passando a adotarum programa de controle rgido do oramento pblico.

    Os efeitos dessa nova condio financeira seriamrapidamente sentidos no campo das polticas sociais.O sistema educacional passou a ter seu oramentolimitado a percentual fixo da arrecadao auferida, eperdeu rapidamente sua capacidade de investimento,abandonando as metas de mdio e longo prazo ante-riormente traadas para o setor. O sistema previden-cirio, diante da perspectiva de restrio financeira,redimensionou suas alquotas de arrecadao e limitouos benefcios pagos, buscando obter por meio dessasmedidas o equilbrio oramentrio perdido com ainsuficincia de recursos do tesouro nacional para suamanuteno. O carter seletivo das polticas sociaisfoi ainda mais acentuado pelo novo conjunto de normasadministrativas, que passaram ento a regular oacesso aos direitos sociais previstos na legislao.

    O regime autoritrio havia definitivamente optadopela reforma conservadora das aes do Estado. Coe-rentemente com sua opo poltica, tratava no momen-to de produzir o ajustamento conservador necessrio manuteno das suas prioridades institucionais nogoverno (DRAIBE, 1988). Que para isto fosse neces-srio tornar ineficaz o frgil sistema de seguridadesocial, construdo ao longo dos anos anteriores, poucoimportava na estratgia global do governo federal, quebuscava reequilibrar a situao econmica do pas,se possvel retomando as bases do antigo surto decrescimento experimentado durante o perodo domilagre econmico.

    Segundo a tica governamental, a forma funda-mental de tal retomada deveria consistir na imposio populao de contingenciamento no consumo,necessrio gerao de poupana interna capaz decatapultar os nveis de produo da economia nacional,para esperar os frutos do crescimento a ser alcanado.No havia, na estratgia anunciada pelo governo,qualquer meno necessidade premente de comba-ter a pobreza, nem sequer ampliar o acesso da popula-o pauperizada s polticas sociais. Ao contrrio,na expresso de um analista da poca, resume-se aatitude governamental em relao a estes contin-gentes: aos condenados da terra, o equilbrio fiscal(FIORI, 1997, p. 79).

    O colapso do regime militar teria no agravamentodas condies de vida das classes subalternas do

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    pas uma de suas facetas mais reveladoras. Emcontrapartida, os movimentos sociais que nele ressur-giram apontavam claramente as necessidades sociaisque os motivavam, e a restaurao do regime demo-crtico como etapa necessria reverso da agudacrise social que se experimentava. Devido a essapercepo, as aes polticas protagonizadas poraqueles movimentos convergiriam em sua quase tota-lidade para campanhas pela restaurao do Estadode Direito e das liberdades civis e polticas no pas.

    A reivindicao de democracia poltica surgia, pelaprimeira vez na histria recente do pas, dotada deum carter substantivo, atravs da associao diretaentre os objetivos da restaurao democrtica e demelhoria na qualidade de vida da populao. Mais queum valor formal, a reivindicao por democraciaconsistia realmente num instrumento para o resgatedas desigualdades sociais brasileiras.

    No era sem razo essa associao. De fato, aresistncia ao regime autoritrio e a luta pela demo-cracia constituam outra vez o nico caminho polticopossvel para a classe trabalhadora da sociedade. Oagravamento da crise econmica fizera o governo optardefinitivamente por assegurar apenas a segmentosda elite nacional os investimentos pblicos necess-rios sua integrao no mercado competitivo. A eco-nomia nacional crescera em valores, sem que issose refletisse positivamente na condio geral de vidada populao trabalhadora. Ao contrrio, os nveis dedesigualdade social aumentavam rapidamente. Abandeira poltica da democracia substantiva, comoforma de alcanar o resgate das condies dignas devida da populao, convertia-se realmente na nicapossibilidade concreta de instaurao das condiesde bem-estar social almejadas.

    Podemos compreender, portanto, que no momentode busca das liberdades democrticas, ao lado damobilizao estritamente poltica da qual o Movi-mento pela Anistia foi o exemplo maior novasbandeiras sociais tenham ganho expresso, especial-mente com a emergncia do movimento sindicalpaulista. Preconizando o confronto organizado contraa poltica econmica governamental, o movimentosindical protagonizou, no principal centro econmicodo pas, as greves que comtribuiram para o esgota-mento final da legitimidade do regime militar.

    Finalmente, o desencadeamento do Movimentocontra a Carestia, ao qual j nos referimos anterior-mente, desnudou aos olhos da populao os limitesdo governo autoritrio, ao mesmo tempo em queembalava a eleio de governos oposicionistas nosprincipais Estados da Federao. A tarefa para essesgovernos oposicionistas ia alm de realizar um perodode liberdades democrticas formais: deveriam tornar-se instrumentos de minimizao das desigualdadessociais, gerando maiores nveis de integrao sociale melhora nas condies de acesso dos trabalhadoresaos benefcios do crescimento econmico. Consistia,

    como objetivo de longo prazo, na busca da consoli-dao de uma democracia social no pas. Todavia, oreordenamento das polticas sociais no pas somenteseria iniciado aps o final do ltimo governo militar.

    5 Polticas Sociais na Transio Demo-crtica: o perodo da Nova Repblica

    O contexto poltico e econmico da primeira meta-de dos anos 80 recolocou a questo social na agendapblica da sociedade brasileira. O esgotamento domodelo de desenvolvimento baseado em forte desem-penho das exportaes primrias, que se fizera sentirdesde os fins da dcada anterior e que se acelerounaqueles anos, aprofundou ainda mais a crise econ-mica e social vivenciada. Politicamente, a emergnciade novos e mais intensos movimentos sociais tornarao problema da dvida social parte obrigatria dodebate em torno da transio para a democracia. Oresgate da dvida social passou a consistir, a partirde ento, em bandeira poltica legitimadora dainstaurao de uma nova ordem democrtica.

    Cardoso (1994) apresenta-nos uma anlise dosmovimentos sociais na fase da transio para ademocracia no Brasil, interpretando-os de acordo como papel que desempenharam na constituio dasnovas polticas pblicas do perodo. De acordo com aautora, duas grandes fases identificam os movimentossociais da poca. A primeira, que remonta ao ltimociclo do perodo militar, caracterizou-se por umaemergncia herica dos movimentos, que cumpriamo papel de combater frontalmente as polticas desen-volvidas pelo aparelho governamental. A segunda,tipicamente localizada nos processos de ascensodas oposies ao poder (tanto na esfera estadual,quanto na esfera federal), caracterizou-se por umaprogressiva institucionalizao desses movimentos,que passaram a interagir diretamente com as agnciasgovernamentais encarregadas do planejamento egesto das polticas pblicas.

    De fato, a vitria macia das oposies nas elei-es estaduais de 1982 criou as condies polticasnecessrias para que se pudesse forjar uma respostademocrtica das agncias pblicas de desenvolvi-mento s reivindicaes apresentadas pelos movimen-tos sociais. De modo gradual e constante, a adoode uma nova postura poltica na gesto das agnciaspblicas passou a incorporar suas demandas,chegando-se a criar, em alguns casos, esferas de parti-cipao popular, na forma de conselhos no-delibera-tivos. Se isso ainda era pouco no que tange necessi-dade de constituio de formas de controle pblicosobre a definio das polticas de governo e sobre aexecuo dos servios destinados populao, poroutro lado, representava um importante canal atravsdo qual os movimentos sociais podiam exercer pres-so sobre as instncias de deciso governamental.

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    No se presuma, entretanto, que o processo deincorporao das demandas sociais pelas agnciasgovernamentais tenha transcorrido sempre de formaprogressiva e linear. Ao contrrio, isso constitua umprocesso tenso e contraditrio, por vezes errante, noqual se operavam mudanas em ambos os plos darelao. Se, de um lado, as mudanas no interior daesfera governamental tinham de se produzir no sentidoda criao de novos espaos institucionais de intera-o com a sociedade civil organizada, de outro, a din-mica dos movimentos sociais em curso era profunda-mente afetada pela necessidade de forjar consensosentre setores cuja atuao concentrava-se em reascomuns. Quando esses consensos no eram constru-dos, pela existncia de propostas inconciliveis oudevido dificuldade de afirmao de lideranas, osmovimentos no logravam interferir consistentementesobre os processos de deciso no aparelho de Estado.Via de regra, essa insuficincia ocorreu naquelessetores da classe trabalhadora cuja condio de vida,seja em virtude de laos histricos recentes a uni-los, seja em virtude do esvaziamento da participaopopular, no lograva a formao de uma clara identi-dade social, tal como os movimentos das populaesde favelas e de loteamentos clandestinos nos grandescentros urbanos.

    Mas o papel central desempenhado pelos movi-mentos sociais no contexto da transio para a demo-cracia consistiu na afirmao de direitos sociais nanova ordem que se inauguraria. Com efeito, para oreconhecimento dos direitos sociais no pas, foi essen-cial a reconstituio de espaos pblicos de discus-so, atravs dos quais foi possvel trazer para o interiorda nova ordem institucional, entre outros, os aspectosda assistncia social que anteriormente se encontra-vam tradicionalmente circunscritos ao mbito da esferaprivada. Isso produziu imediatamente uma novapolitizao da questo social no Brasil e permitiu aincorporao dos estratos excludos da sociedade arena da negociao poltica.

    Referindo-se ao processo de constituio dosdireitos na sociedade moderna, Telles salienta acondio de negociao na qual:

    [...] os direitos operam como princpios regula-dores das prticas sociais, definindo as regrasdas reciprocidades esperadas na vida em socie-dade atravs da atribuio mutuamente acordada(negociada) das obrigaes e responsabilidades,garantias e prerrogativas de cada um (1994, p.92).

    A colocao da autora certamente no esgota aabordagem que poderamos fazer sobre o papel dasrelaes de classe (isto , da luta poltica) na constitui-o do direito contemporneo. Contudo, interessa-nosaqui apenas destacar as condies sob as quais tem

    de transcorrer a negociao poltica para afirmao ereconhecimento dos direitos sociais na esfera institu-cional. Num contexto democrtico, a etapa final daslutas sociais que resultam na instituio de novosdireitos ou, simplesmente, na expanso da abrangn-cia de direitos antigos, tem de processar-se natural-mente atravs de intensa negociao poltica nasesferas decisrias do poder.

    No processo de negociao poltica por direitossociais os grupos envolvidos apresentam, na maiorparte das vezes, diferenas de identidade e propostas,originrias da diversidade de condies concretas devida que experimentam, da desigualdade social quecaracteriza a inexistncia (ou ineficcia) dos direitose dos diferentes resultados da crise social sobre ossegmentos envolvidos nessa negociao. Em facedessas diferenas, a consolidao de processosdemocrticos no espao pblico torna-se fator estrat-gico para possibilitar a expresso das diferentesdemandas e perspectivas sociais, que abrem cami-nhos de negociao entre foras contrrias. Numapesquisa sobre os processos de constituio dosdireitos sociais em contextos democrticos, Dagnino(1994) salienta como a afirmao de direitos extrapolaa conquista legal, conformando-se como um processode permanente evoluo das lutas e conquistas polti-cas dos sujeitos sociais demandantes. Dessa pers-pectiva, em oposio a qualquer definio exterior aosmovimentos sociais, somente podemos identificar acriao de direitos a partir da expresso, por partedos prprios sujeitos sociais ativos, dos pleitos queos moveram e da maneira como almejam implement-los.

    Isso ainda mais evidente quando se analisa aresposta dos agentes sociais definio de ordemdemocrtica: dentre as alternativas de definioapresentadas, os entrevistados na pesquisa da autoracitada escolheram como mais importante aquela queexpressava a igualdade social, sem discriminao desexo, raa ou classe social. Mais que uma idia abs-trata sobre a consistncia formal da ordem demo-crtica, essa expresso aponta para a perspectiva daconstituio de uma democracia substantiva:

    O que esses resultados indicam que a existn-cia do autoritarismo social e da hierarquizaodas relaes sociais percebida mais do que adesigualdade econmica ou inexistncia deliberdade de expresso, organizao sindical epartidria, como um srio obstculo construoda democracia (DAGNINO, 1994, p. 106).

    O caminho atravs do qual os benefcios e serviossociais deixariam de ser apresentados comoconcesses, para se converterem em direitos daspopulaes necessitadas, conduziria, portanto, edificao de uma nova ordem democrtica. Tratava-

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    se naquele momento de instaurar no pas, talvez pelaprimeira vez em sua histria, uma democracia social.

    Por isso, a reconstituio de espaos pblicos,que responderiam s novas demandas sociais, e apolitizao da questo social no Brasil resultariam,em primeiro lugar, num questionamento crescente doautoritarismo burocrtico que vigorava sobre a gestodas polticas sociais no pas e, em segundo lugar, natransformao do carter facultativo com que haviamnascido os servios sociais governamentais, incorpo-rando-se s funes do Estado a prestao de serviosobrigatrios e permanentes, destinados ao atendimen-to das demandas sociais dos segmentos populacio-nais pauperizados, que deveriam ter, a partir de ento,suas demandas acolhidas em totalidade no mbitodas polticas sociais. O antigo benefcio seria entotransformado em direito, no apenas por concessogovernamental, mas porque a nova ordem democrticapreconizaria o direito fundamental de todos oscidados, o direito a ter direitos, fundamento dacidadania e dos pilares da nova ordem democrtica,a participao poltica e a igualdade social (DAGNINO,1994).

    Essa percepo inovadora sobre os direitos sociaisno pas caracterizou o momento inicial de restauraodemocrtica, especialmente no que concerne ao trata-mento dado questo social, e orientou um esforopela busca de novo ordenamento institucional, quepossibilitasse alcanar maior efetividade nas polticasgovernamentais em resposta s demandas sociaisexistentes. O governo da Nova Repblica inicia suatrajetria num contexto no qual a gravidade da questosocial tinha de ser claramente reconhecida pelosrgos do Estado: a introduo de agentes polticosautnomos, portadores dos interesses da classe traba-lhadora da sociedade na poltica brasileira, proporcio-nou um rompimento com a tradio de tutela aos movi-mentos sociais. A consolidao da ordem democrticae a resposta s demandas sociais existentes teriamde ser forjadas num nico processo de luta polticaque se iniciava nos quadros da abertura: confundiam-se mutuamente a luta pela reforma agrria e a extensoda legislao trabalhista ao campo, a reorganizaodas instituies de representao da sociedade civile a bandeira da escola pblica e gratuita, a criaode Conselhos de representao popular e a edificaodo Sistema nico de Sade.

    Os movimentos sociais que haviam despontadono final do ciclo militar aceleravam-se, intensificandosua atuao nos primeiros anos da Nova Repblica.O envolvimento da sociedade civil nas lutas dereivindicao protagonizadas pelos movimentos organi-zados emprestava-lhes ainda mais legitimidade, alan-do posio privilegiada a expresso das demandassociais da populao. A reivindicao por novaspolticas sociais era dirigida diretamente ao Estado,forjando-se as bases do consenso poltico que resulta-ria na configurao do novo ordenamento constitucio-nal brasileiro.

    Nesse processo, a identidade coletiva dos movi-mentos e lutas sociais teria de ser constituda a partirda similaridade de carncias na vida cotidiana dossegmentos da populao envolvidos. De fato, a substi-tuio da tradicional noo de segmentos necessi-tados da populao pela de cidados possuidoresde direitos sociais mostrou-se como concretizaofinal dessa identidade coletiva. O contedo amplo deseu significado consistia concretamente na conjunodas aspiraes por liberdade poltica e igualdadesocial, que orientava o processo de abertura democr-tica e a mobilizao dos movimentos sociais daquelesanos.

    O resultado mais importante dessa conjuno seriaa formao de um novo paradigma para as polticassociais no Brasil. Em oposio ao antigo padroautoritrio e excludente, as propostas dos movimentossociais em relao s polticas sociais convergiampara o objetivo de superar o carter seletivo dos servi-os pblicos destinados populao. As expressesdesse objetivo tomaram as mais diversas formas,conforme as reas de atuao dos diferentes movimen-tos: o movimento sindical empunhou a bandeira dereformas profundas na legislao trabalhista, comomeio de alcanar melhorias nas condies de vida dapopulao; o movimento dos sem-terra, os sindicatosde trabalhadores rurais e a Pastoral da Terra retoma-ram com mais intensidade a reivindicao por reformaagrria, situando-a como questo fundamental para aconsolidao da ordem democrtica no Brasil; de outraparte, movimentos ligados a lutas tnicas e de sexo,associaes de bairros, grupos ecolgicos e toda sortede movimentos de minorias tambm se mobilizavamcom o propsito de construir uma democracia paratodos, na qual os direitos sociais exerceriam o papelde fundamento do novo pacto social.

    A ao dos movimentos sociais influenciou aformao da agenda governamental da poca. Osobjetivos das novas polticas pblicas refletiam estainfluncia e se relacionavam necessidade deconstituio das bases de uma transio pactuada,instrumento necessrio para alcanar a realizao dasaspiraes polticas e sociais que haviam inspirado aluta democrtica. O momento requeria uma sinaliza-o clara de que as reivindicaes populares seencontravam no horizonte governamental, mas aomesmo tempo condicionava estreitos limites s aesdo Estado, originados do agravamento do quadroeconmico e social e da duradoura crise fiscal que seiniciava no pas.

    A sada encontrada pelo governo da Nova Repblicafoi a proposio de medidas modificadoras das polti-cas setoriais que, se no eram tidas como transfor-madoras do modelo de seguridade social existente,ao menos incorporavam medidas emergenciais deatendimento s reivindicaes sociais mais agudas.Isso foi, ao mesmo tempo, a fora e a fraqueza dopacto social da Nova Repblica: se, de um lado, deuao governo margem de manobra para operar a proposta

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    de transio pactuada, de outro delimitou estritamenteas iniciativas de mudana do padro das polticassociais do pas.

    Nesse contexto, a institucionalizao dos movi-mentos sociais a que nos referimos no incio dessaseo demonstrava-se uma estratgia eficaz deafirmao dos direitos sociais da populao. A evidn-cia maior desse fenmeno foi a formao, tanto nasesferas de governo quanto nos meandros da sociedadecivil, de um consenso poltico em torno da necessidadepremente de resgate da dvida social do pas. Estavaclaro que a legitimidade da transio pactuada para ademocracia dependeria fundamentalmente de algumaminimizao das desigualdades sociais, alcanadaatravs da interveno governamental nos rumos dodesenvolvimento econmico e social do pas. A legisla-o social, nesse contexto, ganhava o sentido precisode instrumento, pelo qual a sociedade civil poderiainfluir nas aes do Estado, provocando no interior doaparelho governamental respostas institucionais sdemandas dos segmentos desassistidos das classessubalternas.

    A fim de responder necessidade de reduo dasdesigualdades sociais, o governo federal props duasmetas essenciais sociedade civil: elevar as taxasde crescimento econmico para reverter o quadro decrise social no mdio e longo prazo e, de imediato,atender a situaes emergenciais referentes condi-o de vida a que se encontravam submetidos osestratos mais pauperizados da populao. A operacio-nalizao dessas metas balizou a proposta e implanta-o do I Plano de Desenvolvimento da Nova Repblica.

    As postulaes contidas no documento apontavampara a necessidade de enfrentar o quadro de desigual-dades sociais com profundas alteraes no mbitoeconmico e com aes de curto prazo para assituaes de emergncia. Contudo, apesar de expora preocupao em associar crescimento econmico recuperao de melhores condies de vida e dedefinir segmentos prioritrios para a extenso daspolticas sociais, as metas a serem alcanadas e asestratgias a serem implementadas no se encontra-vam bem delineadas, o que dificulta a avaliao quepodemos realizar a posteriori para identificar oprogresso de sua efetiva implementao e o grau deeficincia que possa ter alcanado.

    Quanto extenso dos direitos sociais no pas,pela modificao da legislao social vigente e daao governamental nas polticas sociais, a anliseno nos deixa dvidas quanto ao carter completa-mente negativo do resultado produzido. O que seconstatou foi a dificuldade de levar a termo as reformasestruturais necessrias, sobretudo nos campos daseguridade social, da educao e da sade. A ausn-cia de consolidao de um novo padro de intervenogovernamental nestas reas frustrou as propostasprogressivas que mobilizavam grupos organizados,e desgastou a base poltica do governo, imobilizandoas aes dos rgos de polticas sociais.

    Desta forma, as polticas setoriais desenvolvidasno perodo da Nova Repblica encontraram-se eivadasde contradies demasiado fortes, que poderiam serresumidas numa contradio central: a inexistnciade um padro de financiamento dos servios e bene-fcios sociais relacionado diversidade quantitativa equalitativa de demandas nas diferentes regies do pas.Esta ausncia de uma forma adequada de distribuioeqitativa de recursos constituiu a causa mais impor-tante das distores intra e inter-setoriais no desenvol-vimento das polticas sociais e do fracasso de progra-mas destinados a combater a pobreza. Como umagrande parcela dos recursos financeiros disponveisencontrava-se comprometida com o subsdio a progra-mas destinados s necessidades da classe mdia(principalmente no campo da habitao, mas tambmnos da previdncia social, sade e educao), poucorecurso sobrava para aqueles programas dirigidos parao atendimento populao mais pauperizada, ocasio-nando aguda ineficincia nos servios a eles vincula-dos e a acentuao da condio de pobreza daquelapopulao (CASTRO e FARIA, 1989).

    A despeito dessa condio inicial, preciso assi-nalarmos os avanos conquistados pela ao dosmovimentos populares que reivindicavam melhorias naspolticas sociais governamentais. Ainda que de formainconstante e diversificada, podemos apontar uma recu-perao no padro de gastos e investimentos, espe-cialmente nas polticas de seguridade social (nas reasda sade e previdncia social), alm das reas de nu-trio, educao, cultura e trabalho (CASTRO e FARIA,1989).

    Os servios de ateno sade, por exemplo,comearam a ser reorganizados a partir da perspectivade uma reforma sanitria e das diretrizes que acaba-ram por constituir o sistema nico e descentralizado.A proposta de criao do Sistema nico de Sadeera, alis, bandeira de atuao unificadora dos diversosmovimentos sociais que atuavam na rea e que abran-giam desde a organizao corporativa dos profissio-nais da rea, at segmentos de grande participaopopular, como as pastorais e associaes de usurios.Contudo, a adoo dessas novas diretrizes no alcan-ou a soluo para importantes problemas existentesna poca, tais como a necessidade de subverter anfase dada aos servios curativos e individuais emdetrimento dos servios preventivos e coletivos quese faziam necessrios e a ineficincia dos progra-mas nacionais de combate a endemias que, falhandono controle dessas enfermidades, provocaram a voltaao cenrio nacional de doenas h muito erradicadas:a febre amarela, a malria, a dengue e a tuberculose.

    Tambm no campo da Previdncia Social, asmudanas propostas no lograram produzir resultadosconsistentes na melhora dos benefcios previdenciriospraticados no pas: o maior crescimento de recursosfoi verificado com a criao do seguro-desemprego.Pouco se fez no que tange ao pagamento de aposenta-dorias e penses. Em funo do dficit corrente nas

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    contas da Previdncia que persistia nos ltimos anosdo perodo militar, o governo federal elegeu comoprioridade alcanar o equilbrio oramentrio e, paraisso, engendrou aes a fim de obter maior eficincianas operaes de arrecadao e de controle dos paga-mentos efetuados, ao mesmo tempo em que iniciavaestudos para restruturao administrativa do sistema.Como resultado da contribuio do grupo de trabalhoconstitudo com essa finalidade, foi elaborada umanova proposta de Lei Orgnica da Previdncia Sociale ampliou-se a participao popular na gesto dapoltica previdenciria, com a criao de conselhoscomunitrios regionais e do Conselho Superior daPrevidncia Social, que contavam com a participaode representantes dos trabalhadores, da classe patro-nal e do Estado. Assim, abriram-se dois canais departicipao popular dentro da rgida estrutura do Mi-nistrio da Previdncia e Assistncia Social (CASTROe FARIA, 1989).

    Finalmente, para a poltica de Assistncia Socialpodemos verificar, nos relatrios da poca, um au-mento no nvel de recursos empregados (CASTRO eFARIA, 1989). Porm, o agravamento da crise socialno pas durante os primeiros anos da Nova Repblicae aps o fracasso do Plano de Estabilizao Econ-mica, operado pelo governo federal, fez aumentar deforma mais que proporcional o nmero de usuriosdos servios assistenciais, sem produzir um efetivoaumento do gasto com a poltica de assistncia social.

    Alm disso, a assistncia social foi a nica reana qual no se produziram avanos significativos naforma de gesto dos servios, acentuando-se, emmuitos casos, o assistencialismo, o clientelismo e aseletividade de seus servios, que haviam marcadotoda sua histria anterior. Apenas no incio da dcadade 1990, aps a instaurao da nova ordem constitu-cional e a promulgao da Lei Orgnica de AssistnciaSocial, que mudanas significativas se fizeram sentirna gesto da poltica de assistncia social levada acabo no pas.

    Enfim, podemos caracterizar sumariamente ogoverno da Nova Repblica como o momento no qualse colocaram definitivamente os desafios da universali-zao, descentralizao e nova hierarquizao dosservios nas polticas sociais brasileiras. Sem dvida,foi a diversidade de reivindicaes trazidas tona pelosvrios movimentos sociais em atuao no pas, queconferiu a importante dimenso possuda pelas inova-es de gesto e de participao poltica introduzidasno perodo. Mas, apesar disso, a resposta governa-mental (e no apenas no nvel federal, mas tambmnas esferas regionais e locais) foi quase sempre marca-da pelo clientelismo, privilegiando-se aes emergen-ciais de pronto-atendimento e retomando-se, noscasos das polticas com mecanismos de arrecadaofinanceira, a perspectiva privativista. A afirmao daresponsabilidade governamental na realizao daspolticas sociais s viria definitivamente na nova ordem

    constitucional de 1988, mas no como revoluo nopadro de servios prestados populao: desdeento as lutas populares seriam direcionadas para aconsolidao da primazia do Estado e a efetivaodos direitos sociais consignados na nova CartaConstitucional.

    Concluso

    Na anlise que empreendemos no corpo destetrabalho tornou-se evidente a origem histrica dascaractersticas que marcaram a poltica e a legislaosocial no Brasil at o advento da nova ordem constitu-cional: o privativismo, oriundo da presena quaseexclusiva das iniciativas da sociedade civil frente ausncia permanente do Estado; a seletividade dosservios, determinada pela flagrante insuficincia emsua oferta, frente crescente demanda das classessubalternas; e a centralizao na gesto da polticasocial, oriunda do modelo poltico prevalecente no pas,sobretudo nos grandes perodos de regime autocrticoque marcaram o sculo XX.

    Este quadro comeou a ser alterado a partir daabertura democrtica da dcada de 80, na qual seintroduziram princpios e diretrizes de descentraliza-o, participao popular e universalizao do acessopara as diferentes polticas sociais em execuo nopas. Naquele momento, a ao da sociedade civilorganizada passou a ter um papel fundamental naconsolidao desse novo modelo de poltica social,gerando um novo marco de direitos, consagrados nanova constituio do pas e definidores do novopardigma das