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4 A crise das instituições nos anos 90, o debate das reformas e a disputa pelo novo significado do desenvolvimento dos PEDs 4.1 Introdução Esse capítulo consiste numa análise das repercussões da retomada da hegemonia norte-americana no âmbito monetário, a partir do choque dos juros de 1979. A retomada da hegemonia norte-americana em tela forneceria condições propícias para um grande avanço do processo de globalização financeira. Desde então, a gestão macroeconômica sistêmica passou a ocorrer, sobretudo, por parte dos países desenvolvidos reunidos no G-7. Esse expediente possibilitou que os efeitos da ausência de regulação sobre os fluxos financeiros internacionais fossem controlados pela cooperação entre as maiores economias mundiais para o gerenciamento dessas questões. O controle da sucessão de crises inaugurada após o fim de Bretton Woods pelo G-7 possibilitou um grande avanço do processo de globalização das finanças, a despeito da ausência de regras claras que disciplinassem o comportamento dos investidores. Isso implicava no crescimento dos fluxos de capitais que se moviam livremente ao redor do globo a partir da sucessão de Bretton Woods por um não- sistema (BRESSER PEREIRA, 2005). Esse movimento era impulsionado pela adesão dos países ao novo modelo de desenvolvimento econômico do Consenso de Washington, recomendado pelas instituições de Bretton Woods. A partir da liberalização e desregulação dos mercados financeiros nacionais surgiam muitas inovações de instrumentos financeiros que floresceram inicialmente para lidar com as conseqüências dos crescentes riscos dos investidores. No entanto, esses mesmos mecanismos financeiros de proteção ao risco passaram a ser uitilizados para operações especulativas nos mercados de futuros através da negociação com moedas ou outros títulos. Crescentemente, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510704/CA

4 A crise das instituições nos anos 90, o debate das ... · O questionamento das bases do modelo de desenvolvimento prevalecente antes das crises abria espaço no consenso internacional

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4

A crise das instituições nos anos 90, o debate das

reformas e a disputa pelo novo significado do

desenvolvimento dos PEDs

4.1

Introdução

Esse capítulo consiste numa análise das repercussões da retomada da

hegemonia norte-americana no âmbito monetário, a partir do choque dos juros de

1979. A retomada da hegemonia norte-americana em tela forneceria condições

propícias para um grande avanço do processo de globalização financeira. Desde

então, a gestão macroeconômica sistêmica passou a ocorrer, sobretudo, por parte

dos países desenvolvidos reunidos no G-7. Esse expediente possibilitou que os

efeitos da ausência de regulação sobre os fluxos financeiros internacionais fossem

controlados pela cooperação entre as maiores economias mundiais para o

gerenciamento dessas questões.

O controle da sucessão de crises inaugurada após o fim de Bretton Woods

pelo G-7 possibilitou um grande avanço do processo de globalização das finanças,

a despeito da ausência de regras claras que disciplinassem o comportamento dos

investidores. Isso implicava no crescimento dos fluxos de capitais que se moviam

livremente ao redor do globo a partir da sucessão de Bretton Woods por um não-

sistema (BRESSER PEREIRA, 2005).

Esse movimento era impulsionado pela adesão dos países ao novo modelo

de desenvolvimento econômico do Consenso de Washington, recomendado pelas

instituições de Bretton Woods. A partir da liberalização e desregulação dos

mercados financeiros nacionais surgiam muitas inovações de instrumentos

financeiros que floresceram inicialmente para lidar com as conseqüências dos

crescentes riscos dos investidores.

No entanto, esses mesmos mecanismos financeiros de proteção ao risco

passaram a ser uitilizados para operações especulativas nos mercados de futuros

através da negociação com moedas ou outros títulos. Crescentemente, a

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volatilidade desses mercados livres e desregulados aumentava, conforme a

globalização das finanças avançasse e surgissem novos atores com perfis

agressivos, controlando vastos portfólios como era o caso dos fundos de pensão e

outros investidores institucionais que superavam o setor bancário tradicional.

Uma fase importante da evolução dessas finanças que se globalizavam

consistiu no Segundo Consenso de Washington (BRESSER PEREIRA, 2005),

quando ao lado das políticas tradicionais do consenso, as instituições de Bretton

Woods passaram a também recomendar o financiamento do desenvolvimento dos

países com a poupança externa captada no mercado financeiro internacional. Isso

ocorreu no princípio dos anos 90 e aduziu uma maior exposição ao risco das crises

de volatilidade aos mercados financeiros dos países em desenvolvimento.

A partir do papel das instituições de Bretton Woods, a maior adesão dos

países em desenvolvimento às finanças globalizadas dos anos 90 determinou uma

grande vulnerabilidade para esses mercados emergentes, que passaram depender

das alterações na percepção do risco sistêmico dos investidores internacionais.

Essa trajetória culminaria nas crises financeiras dos anos 90, quando após

haver atingido o México (1994-1995), a crise ressurge no Leste da Ásia (1997),

atinge a Rússia (1998), passando pelo Brasil (1998-1999) para chegar e à

Argentina (2001-2002). A partir dessas crises, surge um amplo debate

internacional que passa a questionar o modelo de desenvolvimento preconizado

pelas instituições de Bretton Woods. Esse modelo seria agora responsabilizado

pela vulnerabilidade financeira em que aquelas economias imcorreram, pela sua

adesão às instituições.

O momento seguinte é marcado por um grande debate internacional que

não se contenta em questionar a validade do modelo de desenvolvimento

hegemônico do Consenso de Washington, por analisar as causas da crise, mas

passa também a comparar o desempenho dos países em desenvolvimento que

aderiram profundamente ao modelo, como os da América Latina, com alguns

mercados asiáticos que, em contrário, resguardaram as bases do gerenciamento

das suas políticas domésticas. Estes países conservaram sua capacidade estatal de

emprego de políticas anti-cíclicas, como instrumento fundamental para o melhor

desempenho econômico apresentado, inclusive no que diz respeito à sua

capacidade de superar as conseqüências das crises.

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As repercussões desse debate tiveram o poder de gerar uma ampla

repercussão sobre as instituições internacionais. O debate gerou muitas críticas

que partiam tanto da academia, quanto dos de dentro, envolvendo incluvive o ex-

dirigente do Banco Mundial como Joseph Siglitz. Nesse debate, as propostas para

a reforma das instituições de Bretton Woods ganhou força na agenda internacional

e nas reuniões de ambas as instituições que passaram a debater esse tema no seu

interior. A questão chegaria à discussão das reformas no Congresso norte-

americano que criou um grupo de altos estudos que resultou no Relatório Meltzer

(2002).

Um papel de destaque nesse processo coube às Nações Unidas, cuja

trajetória ao longo dos anos 90 fora marcada pelas suas cúpulas sociais que

naquele momento já dera origem às Metas do Milênio das Nações Unidas (2000).

O que figurava nessa trajetória da ONU consistia numa nova concepção do

desenvolvimento que seria agora colocada no centro da agenda internacional nos

debates sobre a reforma das instituições de Bretton Woods.

A direção que esse debate assumia focando as condições de um novo

modelo de desenvolvimento encontrou grandes resistências, pois colocava os

interesses dos PEDs no centro das reformas pela necessidade imprescindível de

que a sua integração nas instituições multilaterais fosse resgatada. O grande

debate em questão assumiria forma concreta nas discussões da Conferência de

Monterrey sobre o Financiamento para o Desenvolvimento, das Nações Unidas

(2002).

O questionamento das bases do modelo de desenvolvimento prevalecente

antes das crises abria espaço no consenso internacional que consistia no maior

estímulo para o engajamento dos PEDs nas instituições. Esse deslocamento do

consenso de Washington que ainda não dera origem nem às reformas ou a um

novo consenso, entretanto, apresentaria amplas repercussões sobre o

multilateralismo naqueles anos e em particular sobre o começo das negociações da

Rodada Doha da OMC (2001), cujo tema consistia precisamente no

desenvolvimento dos PEDs.

As etapas essenciais dessa trajetória de questionamento do Consenso de

Washington, a partir do emergente Dissenso de Cambridge (BACHA, 2002)

consistem no objeto do presente capítulo.

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4.2

A Retomada da hegemonia norte-americana nas finanças e o avanço

da globalização financeira: a origem da volatilidade dos mercados e

das crises dos anos 90

A retomada da hegemonia financeira dos EUA no gerenciamento da crise

de Bretton Woods permitiria conservar sua grande influência sobre a ordem

econômica internacional. A estratégia de manutenção da sua hegemonia pelo

choque de juros (1979), entretanto, terminou incentivando o movimento inicial de

globalização financeira que já avançava por entre os pilares de Bretton Woods

desde a década de 70, com amplas repercussões futuras sobre as perspectivas dos

Estados na sua adesão às instituições e da ordem econômica.

Nos anos 70, o crescimento do mercado de eurodólares já ameaçava os

controles regulatórios das economias nacionais sobre a poupança dos países. No

entanto, essa ameaça se concretizaria crescentemente a partir do fim do sistema de

Bretton Woods, assinalando a arrancada dessa esfera do processo de globalização,

que culminaria na grande volatilidade dos fluxos financeiros internacionais e nas

crises sistêmicas nos anos 90. Em 1973, EUA, Canadá, Suíça e Alemanha

aboliram seus controles de capitais, sendo acompanhados por Reino Unido, em

1979; pelo Japão, em 1980; pela Itália e França, em 1990; assim como por

Espanha e Portugal, em 1992 (ROBERTS, 2000).

Esse processo seria impulsionado pela ascensão de governos

conservadores nos EUA, que teve sua contrapartida na ascensão de Margareth

Tatcher (1979) ao poder britânico, inaugurando a aliança de cooperação para

avançar o processo de liberalização e desregulação monetária e financeira em

escala global (EATWELL; TAYLOR, 2000).

O crescimento da especulação financeira e da volatilidade desses mercados

levou à tentativa institucional de reverter a desorganização dos fluxos de capitais

internacionais por meio do FMI, que buscou a instauração de uma nova ordem

monetária internacional. Esse projeto envolvia o gerenciamento de um cesta de

moedas, que servisse de base para os Direitos Especiais de Saque (SDR),

financiados pelas contribuições dos seus principais membros. Entretanto, esta

estratégia foi rejeitada pelos EUA, Inglaterra, Alemanha e Japão (TAVARES,

1998). Essa conjuntura gerava a percepção crescente do risco sistêmico, diante do

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crescimento do crédito interbancário e da dívida do Terceiro Mundo. Os Bancos

Centrais de muitos países perdiam crescentemente o controle dos seus balanços de

pagamentos, diante do incremento da especulação com moedas. Excetuando-se

EUA e Inglaterra, a maioria dos países apoiava um maior controle do sistema

financeiro internacional pelo FMI (TAVARES, 1998).

A partir da impossibilidade de enquadramento dessa tendência pelas

instituições, criavam-se oportunidades para o desenvolvimento de modificações

fundamentais nas formas de gestão e aplicação dos fluxos financeiros

desregulados que se moviam crescentemente através do globo. Surgiram

inovações financeiras que repercutiriam sobre as instituições tradicionais, fazendo

com que um novo ambiente financeiro se conformasse com origem no aumento da

volatilidade dos capitais internacionais. Essas mudanças passariam a ser

retroalimentadas pela reestruturação do setor financeiro em nível global que

responde aos desafios acelerando ainda mais a volatilidade dos mercados a partir

dos novos instrumentos financeiros.

Os mercados financeiros e instituições não bancárias passariam a assumir

o predomínio no setor financeiro, pois os bancos tradicionais não foram capazes

de resistir à concorrência dessas novas instituições financeiras, que concentram

capitais vindos dos fundos de pensão e das sociedades de investimento coletivo ou

fundos mútuos (CHESNAIS, 1998).

O setor bancário tradicional passaria por grande retração, pela regressão

dos seus níveis intermediação financeira nos anos 80/90. A alternativa consistiu

na orientação do setor na direção de um processo crescente de fusões e

conglomeração. Somente desse modo, foi possível obter maior eficiência e

competitividade. Isso determinou o aumento da presença dos bancos tradicionais

nos mais diversos locais do globo, pela tendência à formação de conglomerados e

da diversificação de atividades e serviços. Agravando a instabilidade dessa nova

fase das finanças, visando à competitividade com as outras instituições, os bancos

também passariam a fornecer créditos de maior risco (EDWARDS, 1996).

Crescentemente, as companhias de seguros, os fundos de pensão e os

mercados de fundos mútuos se tornaram os novos formadores da poupança

internacional. Os fundos de pensão centralizam uma poupança elevada, figurando

entre as maiores instituições financeiras não bancárias. Com o fito de auferir

rendimentos de grandes somas de capitais, com máxima rentabilidade e liquidez,

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esses fundos se tornaram as instituições centrais do capital financeiro,

encabeçando as “finanças especulativas” (CHESNAIS, 1998).

Além disso, a regulamentação que incidia sobre os bancos possibilitava às

instituições não bancárias criarem novas maneiras de oferecer remunerações mais

altas, pois não se achavam sob regras estritas como os bancos. A criação dos

fundos mútuos oferece aos depositantes serviços de cheque, como o setor bancário

tradicional, mas com o atrativo de uma taxa de remuneração mais alta. Assim, os

depósitos do setor bancário se reduziram vertiginosamente de 55%, em 1960, para

menos de 20%, em 1994 (EDWARDS, 1996). No mercado da disputa pelas

economias familiares, em nível mundial, os fundos de pensão e companhias de

investimento despontaram como os grandes vencedores, desde os anos 80.

Desde o começo dos anos 80, expandiu-se o mercado de bônus

internacionais interligados, atendendo às demandas de grupos que trabalhavam

com poupança nos governos e nos mercados privados (HELLEINER, 1994). Isso

também repercutiu sobre o setor bancário tradicional, que se distanciava do

financiamento dos países industrializados, que passavam a recorrer à emissão de

bônus dos Tesouros e títulos das suas dívidas nos mercados financeiros.

Como aponta Roberts (2000), os derivativos financeiros representaram a

principal inovação financeira do final do século XX. Seu surgimento se deu nos

anos 70, após a falência do sistema de Bretton Woods diante da necessidade de

proteção contra a volatilidade ascendente das moedas e taxas de juros, mediante

operações de seguro - hedge. O crescimento dos derivativos deu origem a muitas

bolsas no mercado futuro, especializadas nessa aplicação. O volume destes

instrumentos financeiros avançou de US$ 7,9 trilhões, em 1991, para US$ 40,9

trilhões, em 1997 (ROBERTS, 2000).

Os contratos de derivativos podiam ser utilizados tanto para a proteção

contra os riscos da flutuação de preços de produtos. Entretanto, esse mesmo

instrumento se prestava para assumir maiores riscos, em aplicações de maior

lucratividade. Uma grande expansão dos derivativos aconteceu em conseqüência

do maior risco cambial, que era assumido pelo setor privado e da crescente

volatilidade associada aos mercados financeiros (EATWELL; TAYLOR, 2000).

Uma questão colocada pela proliferação dos derivativos nos mercado financeiro

da década de 90 consistiu nos riscos sistêmicos das crises das economias

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nacionais, uma vez que a complexidade da estruturação do mercado de derivativos

gerava grande dificuldade de previsão e controle dos ricos para os investidores.

A diversidade da crença dos agentes financeiros passava a condicionar a

liquidez sistêmica, consoante às expectativas de compra ou de venda de ativos.

Quando os interesses dos agentes coincidem pela transmissão e compartilhamento

dessas expectativas, a possibilidade de sucessivas crises de liquidez cresce,

impossibilitando o controle do risco financeiro. Nessas ocasiões, ocorre o avanço

simultâneo dos investidores sobre certos ativos, propiciando o aparecimento de

bolhas especulativas e valorização excessiva dos títulos. Quando sobrevém a

percepção dessa valorização excessiva, dá-se a corrida pela venda dos papéis,

gerando quedas abruptas de preços (EATWELL; TAYLOR, 2000).

A crescente volatilidade do sistema financeiro não era a única

singularidade do novo período das finanças internacionais que floresceria nos

anos 90. Também houve inovação na direção dos fluxos e no volume das

transferências de capitais dos países industrializados para as economias em

desenvolvimento. Nesse sentido, o avanço do processo de globalização financeira

apresenta um ponto de inflexão importante.

Os anos 90 representaram o reverso dos anos 80, quando esses países

administravam a crise da dívida externa e os fluxos de capital partiam das

economias devedoras em direção aos países industrializados. Na década de 90,

resolvido o problema da dívida pelo Plano Brady (1985), a partir da renegociação

dos saldos devedores, e retorno ao sistema financeiro internacional inaugurou-se

um novo afluxo de recursos para os países latino-americanos (CHESNAIS, 1998).

O Sudeste Asiático também recebeu esses investimentos, ainda que não tenha

passado pelo problema da dívida externa nos anos 80.

A incorporação dos mercados emergentes da América Latina e Ásia a esse

novo sistema financeiro desregulado e instável abriria espaço para uma série de

choques e crises financeiras característicos das finanças internacionalizadas,

sujeitas às bolhas especulativas e desvalorizações abruptas de ativos (CHESNAIS,

1998). Como agravante, os capitais não eram mais os tradicionais capitais de

empréstimo, pois as finanças internacionais lidavam com a emergência dos

capitais de investimento geridos por grandes investidores institucionais, como os

fundos de pensão, os fundos mútuos e as seguradoras (ARMIJO, 1999). O volume

de poupança dos novos investidores deixava para trás o crédito dos bancos

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comerciais e os principais atores financeiros dos anos 90 eram os controladores

dos fundos mútuos e fundos de pensão, operando com taxas de juros e

investimentos que moviam trilhões de dólares ao redor do globo (ARMIJO,

1999).

4.3

As mudanças nas finanças dos anos 90 e seu impacto sobre o papel

das instituições de Bretton Woods

Nos anos 80, em seguida à recessão, os países desenvolvidos

experimentaram uma recuperação proporcionalmente vigorosa às dimensões da

crise, em seguida à reversão da alta dos preços do petróleo. Apesar do desemprego

se manter elevado, em relação aos níveis do pós Guerra, as preocupações nos

países da OCDE não constituíam a tônica do momento, pois isso era considerado

produto inevitável da rigidez do mercado de trabalho e da estabilidade de preços

conquistada (HELLEINER, 1990).

As maiores preocupações com o desempenho futuro da economia

internacional residiam nas oscilações dos desequilíbrios em conta corrente dos

EUA e a ameaça representada ao sistema financeiro internacional pela dívida dos

países em desenvolvimento (HELLEINER, 1990).

Os deficits da economia norte-americana persistiram, mediante a

coordenação entre as economias da OCDE, que conseguiram insular seus efeitos

sobre o desempenho da economia global. Isso resultava do aumento da

coordenação macroeconômica e do poder de gerenciamento e supervisão do

equilíbrio entre as políticas econômicas dos países desenvolvidos que se tornou

possível pela emergência do G-7. A questão dos débitos do Terceiro Mundo, que

foi resolvida pelo Plano Brady (1985), permitindo que os Bancos Comerciais do

Ocidente reconstruíssem suas reservas, reduzindo ao mesmo tempo, a exposição

real das dívidas dos países em desenvolvimento. Desse modo, a estabilidade do

sistema financeiro internacional não parecia ameaçada por esses fatores, no final

da década de 80.

No entanto, esse grande poder de gerenciamento macroeconômico dos

países desenvolvidos consistiu também na contrapartida da perda de poder das

instituições-chave de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial. A partir do

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fim de Bretton Woods, que determinou a arrancada para a tendência dos

crescentes fluxos financeiros que se movem ao redor do globo, geravam-se

volatilidade e flutuações cambiais das moedas dos países que demandavam novos

meios de lidar com esse novo ambiente financeiro que não podiam ser

encontrados no recurso a essas instituições tradicionais.

O impacto do processo da globalização financeira sobre o Fundo

Monetário Internacional alterava seu papel de provedor de liquidez aos países

necessitados, convertendo-o, principalmente, em instrumento dos países

desenvolvidos para o processo de ajuste dos países em desenvolvimento,

consoante a aplicação da sua política de condicionalidades para a concessão dos

recursos.

Essa alteração refletia a crise por que passou a instituição em termos da

sua credibilidade e relevância, desde o fim de Bretton Woods. Por um lado, os

recursos do Fundo não eram suficientes para fazer frente às necessidades das

dívidas que os países conseguiam contrair no mercado financeiro internacional.

Por outro lado, a via para o desenvolvimento defendida pela instituição e pelo

Banco Mundial, no sentido do crescimento baseado em poupança externa ou

déficit em conta corrente, mostrar-se-ia equivocada (BRESSER PEREIRA, 2006),

sendo considerada responsável pela vulnerabilidade daqueles mercados às crises

financeiras que se abateram sobre esses mercados na década de 90.

Nessas circunstâncias, o G-7 passaria a assumir crescentemente a

coordenação da economia internacional, gerenciando a Crise da Dívida Externa e

a questão da sobrevalorização da moeda norte-americana, nos Acordos do Plaza

(1985) e do Louvre (1987) que tornaram possível a coordenação entre os Bancos

Centrais dos países desenvolvidos, possibilitando que a estratégia de soft landing

propiciasse uma desvalorização segura do dólar (BRESSER PEREIRA, 2006).

Mais tarde, após o pacote de ajuda ao México na sua crise cambial (1994-1995),

mais uma vez o G-7 entraria em operação, agora para reverter a desvalorização do

dólar que seria também revertida, mediante a coordenação entre os bancos

centrais dos países desenvolvidos (BELLUZO, 2006).

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4.4

As crises financeiras dos anos 90 e as críticas a atuação das

instituições de Bretton Woods

A herança dos anos 80 trouxe grande variação no desempenho econômico

dos países em desenvolvimento. Na Ásia, entretanto, o desenvolvimento da

década anterior se manteve ou se acelerou, regredindo um pouco apenas no final

da década, nos casos de NICs, como Hong Kong, Coréia do Sul e Singapura.

Grandes economias como a chinesa, a indiana e a paquistanesa cresceram ainda

mais do que nos anos 70. No Sudeste Asiático, apesar do encolhimento dos níveis

de crescimento no final da década, a Tailândia emergiu, ostentando grandes níveis

de crescimento, na segunda metade da década. Em contrapartida, o

desenvolvimento estagnou-se, caracterizando-se a “década perdida” na maior

parte da África sub-Saariana e na América Latina (HELLEINER, 1990).

Nos anos 90, quando algumas economias latino-americanas estabilizaram

suas economias, emergindo do processo de ajuste das reformas econômicas para

experimentarem algum crescimento, essa trajetória sofreu uma ruptura com as

crises de fuga de capitais na Argentina e no Brasil. Em contraste, a trajetória de

crescimento asiática foi capaz de fazer frente à crise, respondendo melhor no seu

processo de recuperação econômica. Esses países, entretanto, não aderiram como

a América Latina ao receituário das reformas das instituições de Bretton Woods.

Nesse sentido, as oportunidades para críticas ao modelo de desenvolvimento

proposto pelas instituições eram abertas pelo contraste entre essa diversidade de

experiências.

A Ásia conservou maior liberdade no manejo dos instrumentos de política

econômica doméstica, pois a trajetória destes países passou por uma reversão,

após o seu primeiro flerte com o neoliberalismo e a fragilidade externa que

contaminou os mercados da região. Nesse sentido, a correção de rumos passou

pela estratégia de criação de colchões de liquidez em dólares, buscando alguma

garantia para os riscos do processo de globalização financeira (CUNHA, 2004).

Essa correspondeu à mesma estratégia utilizada durante Bretton Woods,

por parte da Europa e do Japão, que se afigurava como opção disponível para os

países periféricos. A estratégia envolveu estabelecimento de limites à mobilidade

dos capitais, como nos casos da China e da Índia, reservando espaço para a

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manutenção de um câmbio administrado, somados à presença de um drive

exportador. Essa combinação de políticas passaria crescentemente a ser associada

ao seu maior crescimento, a partir da menor dependência de financiamento

privado de curto prazo, em moeda forte – US$.

Na comparação entre os países asiáticos e latino-americanos, durante o

período de 1995 a 2002, observou-se que, após a crise financeira, as economias

maiores da região, como Hong Kong, Cingapura e Taiwan conseguiram manter

níveis de crescimento maiores do que a média do conjunto da periferia capitalista,

preservando políticas monetárias e fiscais em expansão e protegendo suas

economias do crescimento da inflação (CUNHA, 2004).

Além disso, mas também refletindo o descompasso das trajetórias do

desenvolvimento do antigo Terceiro Mundo, uma das principais críticas na gestão

da crise pelos países desenvolvidos, através do FMI, consistiu na pouca atenção

que o Fundo dispensava à Ásia, justamente em razão do seu bom desempenho

econômico, desde os anos 70, muitas vezes referido como verdadeiro “milagre”

(STIGLITZ, 2002; SOROS, 2001).

Nesse sentido, as críticas ao FMI ganharam força também pelo fato de,

após o caso do México (1994-1995), o contágio internacional haver se irradiado

da Ásia (1997). A crise financeira asiática se originou na Tailândia. Para Soros

(2001) a origem da crise se relacionava ao desequilíbrio entre as moedas da

região, pois a gestão do câmbio regional envolvia um dispositivo informal de

atrelamento ao dólar norte-americano. A partir da estabilidade conquistada com

esse mecanismo, os investidores e bancos tailandeses passaram a se endividar em

dólares, invertendo esses recursos no mercado doméstico, ou mesmo concedendo

crédito a outros investidores locais, com destaque para o setor imobiliário. A

bolha tailandesa teria origem, portanto, no setor privado interno.

A partir dessa grande valorização dos ativos, originou-se crescente pressão

sobre o seu balanço comercial. Nesse quadro, sobreveio a desaceleração da

economia japonesa, levando à valorização do dólar frente ao Iene, resultando na

deterioração da balança comercial tailandesa, devido à complementaridade entre

essas economias. A partir disso, enquanto os ativos continuassem se valorizando

no mercado da Tailândia, haveria a compensação, representada pelos expressivos

ingressos na conta capital dos investimentos que se dirigiam ao seu mercado

interno (SOROS, 2001).

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Como agravante desse quadro de vulnerabilidade, a situação da Tailândia

foi mantida estável artificialmente, mediante a sustentação do câmbio local pelas

autoridades financeiras tailandesas e pelos bancos internacionais que mantiveram

o crédito internacional do país. Como aponta Blustein (2001), mesmo três

semanas após o governo tailandês haver desvalorizado o bath, que perdera nesse

prazo 19% do seu valor, as autoridades locais resistiam a aceitar o pacote de ajuda

do FMI e sujeitar sua política econômica às condicionalidades e supervisão da

instituição (BLUSTEIN, 2001).

A partir desse início, a crise espalharia pela Ásia e daí em direção a muitos

mercados emergentes abertos e desregulados, a partir do contágio das expectativas

negativas dos investidores sobre a capacidade de sustentação das moedas por parte

daquelas economias.

Essa crise de contágio que se manifestou a partir do comportamento dos

investidores apreensivos se associava intimamente aos grandes níveis da

volatilidade dos mercados financeiros globalizados, que passaram a desafiar a

teoria econômica ortodoxa que sustentava o receituário das políticas neoliberais

da liberalização e desregulamentação das finanças. Soros (2001 p. 204) observou

que a volatilidade dos mercados financeiros passava a ameaçar a consistência da

teoria econômica para explicar o seu comportamento. A teoria presume

comportamentos pendulares, de oscilação temporária, mas que devem retornar,

mais cedo ou mais tarde, a um equilíbrio que reflita os fundamentos econômicos.

No entanto, na crise do final dos anos 90, os mercados financeiros se

comportaram como uma “bola de demolição”, que atingia um país após o outro e

alterava os próprios fundamentos econômicos que presumiam a garantia do

equilíbrio. Nesse sentido, uma nota da Unctad, preparada ainda durante a vigência

da crise (UNCTAD, 1998 apud BRESSER PEREIRA, 2005) capta a natureza da

crise econômica:

Embora diferentes influências tenham estado em jogo em diferentes países da região, uma característica comum é que a crise tem origem no setor privado e assumiu a forma de um grande fracasso de mercado. Pode-se descrevê-la ou como uma excessiva tomada de empréstimos externos pelo setor privado, ou como uma excessiva concessão de empréstimos pelos mercados financeiros internacionais. Em todo caso, como ressaltado por Allan Greenspan, presidente do FED, dos EUA, é evidente que mais investimento foi canalizado para tais economias do que poderia ser lucrativamente empregado com risco moderado. (BRESSER PEREIRA, 2005, p. 10)

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Essa crise que da Tailândia (1997) se propagou por contágio, pelas demais

economias asiáticas - Indonésia, Malásia, Hong Kong – migrou para a Rússia

(1998), atingindo o Brasil (1998-1999) e a Argentina (2000-2001). Desvinculou-

se dos fundamentos econômicos a partir da grande liquidez e volatilidade do

sistema financeiro internacional, que permitia que vastos fluxos de capitais se

movessem ao redor do globo, consoante as expectativas dos grandes investidores.

A crise se manteve nas fronteiras dos mercados emergentes, devido à

coordenação do G-7, que se valeu do FMI, no suporte técnico e dos recursos

indispensáveis para as economias em crise. Independentemente da atuação

desastrosa do Fundo, que dentre outras falhas foi acusado de agravar o risco moral

– moral hazard- por conceder aos países recursos que permitiam o resgate dos

capitais dos investidores, prescindindo, algumas vezes, das contrapartidas que

caracterizam o comportamento da instituição para a liberação de recursos.

Esse comportamento se ligava à crescente percepção do risco sistêmico

envolvido pela propagação do contágio aos mercados financeiros dos países

centrais. Nesse sentido, é digno de nota que nas datas mais candentes das fugas de

capitais nos mercados emergentes, as bolsas na Europa e nos EUA manifestassem

depreciações significativas.

No caso do Brasil, a preocupação dos países do G-7 foi tamanha que o

governo Clinton se empenhou em recolher contribuições dos outros membros para

compor o pacote de ajuda ao Brasil de US$ 41.5 bilhões, disponibilizados

prontamente, sem sequer a exigência das condicionalidades que caracterizam a

atuação do Fundo.

Essa crise financeira constituiu um ponto de inflexão no debate econômico

acerca da desregulação do sistema financeiro internacional, pois ao tornar claros

os riscos de contaminação sistêmica chamou a atenção para a questão dos

desequilíbrios das finanças globalizadas que operavam a partir de um não sistema.

Nesse sentido, as críticas em relação ao Fundo Monetário Internacional não se

restringiam à incapacidade das suas políticas para estancar a crise, mas se

relacionavam profundamente com o seu passado de imposição das

condicionalidades para o mundo em desenvolvimento, impondo as diretrizes de

reforma econômica do Consenso de Washington. Essas políticas, que foram

aplicadas por grande parte do mundo em desenvolvimento, foram crescentemente

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percebidas como responsáveis pela grande vulnerabilidade dessas economias aos

capitais voláteis dos anos 90.

Principalmente tendo em conta o chamado Segundo Consenso de

Washington, do começo dos anos 90, quando, além das características clássicas do

Consenso de Washington, também a abertura das contas de capital dos países em

desenvolvimento passaria a resultar numa estratégia de desenvolvimento

propugnada pelas instituições, agora atribuindo grande potencial de crescimento

econômico mediante o financiamento pela poupança externa (BRESSER

PEREIRA, 2005) ou pelos recursos captados no mercado internacional, na maior

parte das vezes de curto prazo.

As crises dos anos 90 tinham em comum o fato de os países em

desenvolvimento atacados haverem aplicado a estratégia de crescimento baseado

na poupança externa e que implicavam nos déficits em conta corrente. Esses

déficits tiveram impacto sobre as taxas de câmbio, provocando a sua

sobrevalorização e, finalmente, evoluíram para crises nos balanços de

pagamentos.

Para Bresser Pereira (2005), o FMI tomou parte na própria gestação da

crise, pois estimulou o endividamento externo e não criticou os crescentes déficits

em conta corrente, o que se destaca nos casos das crises mexicana (1994-1995),

brasileira (1998-1999) e Argentina (2001-2002) (BRESSER PEREIRA, 2005).

Para o autor, embora tenham sido chamadas de crises financeiras, elas consistiram

em crises de balanços de pagamentos, pois implicaram na suspensão pelos

credores internacionais da rolagem das dívidas dos países emergentes. Nesse

sentido, essas crises se associam estreitamente com o alto endividamento externo

daquelas economias ou grandes déficits de balanços de pagamentos, induzindo a

perda de crédito e da confiança dos investidores que funcionou, em todos os

casos, como o ponto de ignição das crises, a partir da divulgação da suspensão do

refinanciamento dos débitos.

No entanto, como esses países também experimentam déficits fiscais, o

FMI e o Banco Mundial imputaram as crises do balanço de pagamentos à

indisciplina fiscal dos países emergentes. Atribuíam-se as causas da crise aos

setores públicos dos países e aos seus déficits, tanto públicos, como privados,

passando a discussão ao largo da responsabilidade ou papel dos déficits em conta

corrente, que se agravavam, na cadeia de causalidade da crise.

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Esse era um processo similar ao ocorrido anteriormente, quando a herança

do fim de Bretton Woods se manifestou sobre a periferia da América Latina, em

seguida ao choque dos juros (1979). Para Batista (1995), naquela ocasião a

absorção do ideário liberal do centro levou a uma inversão da causa da crise

econômica da dívida externa no pensamento econômico da periferia. A alta dos

preços do petróleo, as altas taxas de juros internacionais e a deterioração dos

termos de intercâmbio externo passaram a ser crescentemente admitidos como

resultantes das políticas econômicas domésticas aplicadas por esses países e não

resultado dos fatores externos. Isso permitiu que as propostas de políticas do

Consenso de Washington continuassem a ser percebidas como solução

modernizante para as estruturas econômicas dos países40.

Nos anos 90 os países desenvolvidos administravam a imposição de

condicionalidades pelo FMI e as reformas econômicas na periferia, mas não

deram atenção aos déficits em conta corrente dos países. Isso aconteceu em

decorrência de, logo em seguida ao retorno da periferia endividada ao sistema

financeiro internacional, uma nova onda de empréstimos haver sido concedida

pelas instituições de Bretton Woods para esses países. Esses recursos já

adentravam as suas economias sob a perspectiva do chamado Segundo Consenso

de Washington, que defendia as possibilidades do crescimento econômico a partir

do seu financiamento com poupança externa. As instituições passavam, então, a

recomendar a abertura das contas de capitais das economias para perseguirem essa

estratégia de desenvolvimento (BRESSER PEREIRA, 2006)41.

De forma similar ao ocorrido na década de 80, portanto, as circunstâncias

não permitiam por em cheque a credibilidade das instituições e do seu receituário

de desenvolvimento, avançando análises que seriam comprometedoras desse

receituário do desenvolvimento.

Para Bresser-Pereira (2005), os constrangimentos daquele momento

envolviam também uma concepção estratégica para o enfrentamento da crescente

concorrência e competitividade asiáticas que vinha tomando forma desde a década

de 70.

                                                            40 Batista, Paulo Nogueira. O consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino americanos. In: Batista, Paulo Nogueira et al. Em defesa do interesse nacional: desinformação e alienação do patrimônio público. São Paulo, Paz e Terra, 1995. 41 Bresser-Pereira, Luis Carlos. The Political Economy of Global Economic Disgovernance. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, Escola de Economia de São Paulo. Paper-151 (2006).

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The explanation behind this allegiance to US sponsorship of the strategy of growth with foreign savings. It was this strategy that since the 1970s, replaced the law of comparative advantage in neutralizing competition originated in developing countries, or in other words in ‘kicking away the ladder’ that they were using to growth. In the 1970s, with the emergence of the first NICs (newly industrialized countries) the rich world understood that its anti-protectionist strategy had become exhausted (now they needed protection) and concluded that the law of comparative advantage had now little use for them. Given the new conditions, they gradually realized that the growth cum foreign savings strategy, coupled with the openings of capital accounts and the protection of property rights, could play the role of checking the threat represented by the middle income developing economies. Countries were advised to incur current account deficits and finance them with foreign borrowing or with foreign direct investment. Growth was transformed into a competition among developing economies to obtain more credibility and more foreign savings. Yet as foreign loans or investments implied evaluation of exchange rate and the increase in consumption, there was a massive substitution of foreign for domestic savings, and little or no growth in capital accumulation and in the gross domestic product growth rates. Foreign debt, however, increased and eventually explained the balance of payment crisis of the 1990s (Bresser-Pereira, 2006 p. 172).

Nesse caso, as repercussões da crise sobre esse consenso prevalecente na

economia e quanto ao potencial do desenvolvimento conforme o receituário das

instituições de Bretton Woods sofreria abalos fundamentais. Esse é o objeto da

próxima seção que discute as implicações das crises sobre as perspectivas do

desenvolvimento econômico dos PEDs.

4.5

Do Consenso de Washington ao Dissenso de Cambridge

O impacto das crises sobre a concepção do desenvolvimento prevalecente

no sistema internacional foi de amplas repercussões. Houve um amplo movimento

de questionamento das bases do desenvolvimento econômico assentadas sobre a

ideologia neoliberal de abertura dos mercados e implantação do modelo

econômico das reformas. A liberalização e desregulação das finanças e as

privatizações compunham parte importante desse quadro, que restringia o papel

dos Estados na regulação da economia. Nesse sentido, o movimento contrário se

daria na direção de uma nova heterodoxia, apontando para as buscas de

reorientação do modelo econômico hegemônico.

Para Bacha (2002), a expansão e a retração no crescimento da economia

mundial implicaram em alterações na hegemonia do pensamento econômico do

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centro entre Keynesianos e monetaristas. Esse movimento apresentou

repercussões diretas sobre as discussões acerca das alternativas para o

desenvolvimento econômico da periferia que oscilaram entre a ortodoxia e a

heterodoxia das estratégias de estabilização aplicadas nos mercados emergentes.

O nome desse movimento de questionamento da ortodoxia predominante na

economia foi batizado “Dissenso de Cambridge” pelo autor.

 As dificuldades econômicas no pós-guerra, com a escassez de dólares na Europa e o estrangulamento externo na América Latina, trouxeram para a linha de frente a estratégia de substituição de importações da Cepal. O crescimento do comércio na década de 60 e o auge dos mercados financeiros na década de 70 abriram o caminho para o monetarismo de economia aberta e a doutrina do FMI de equilíbrio orçamentário e alinhamento dos preços relativos. A crise da dívida da década de 80 levou às tentativas heterodoxas de estabilização. A explosão do comércio e a globalização financeira da década de 90 produziram o Consenso de Washington e o neoliberalismo. A redução que ora se observa no comécio internacional, junto com a parada súbita dos fluxos de capital, estão fazendo florir uma nova heterodoxia, que vou tentativamente chamar de Dissenso de Cambridge – em homenagem à localização dos berços acadêmicos de seus dois principais

expoentes, Dani Rodrik e Joseph Stiglitz (BACHA, 2002. p 1)42

.

 Uma diferença sensível na qualidade desse debate se refere à evolução do

pensamento econômico que se teria aprimorado nessa trajetória. Para Bacha

(2002), o debate internacional entre os dissidentes de Cambridge se apresenta

mais sofisticado do que aquele travado entre o FMI e a CEPAL na década de 50.

A despeito do dissenso, o debate que ganha forma a partir do final dos anos 90 se

insere dentro dos parâmetros da economia neoclássica.

Não obstante, o questionamento crescente da supressão do papel dos

Estados na economia passa a orientar muitas das análises dos diversos críticos do

consenso. No caso de Bacha (2002), a contribuição para uma nova orientação do

paradigma neoclássico passava pela crítica fundamental do neoliberalismo

enquanto consistindo na sua crença de que a globalização financeira, somada ao

fim da Guerra Fria, haveria inaugurado uma nova era de crescimento econômico,

conformando uma nova economia que superaria os ciclos de expansão e retração

observadas no desenvolvimento da economia capitalista.

                                                            42 Bacha, Edmar. Do Consenso de Washington ao Discenso de Cambridge. Seminário do BNDES sobre Novos Rumos do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2002.

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O ajuste neoliberal das políticas propostas pelo Consenso de Washington

não se resumia à estabilização macroeconômica, mas sustinha uma concepção de

desenvolvimento da qual a estabilização consistia no primeiro componente. Nesse

sentido, o enfoque neoliberal propugnava reformas fundamentais das políticas e

dos mercados, a partir do objetivo da estabilização macroeconômica para o

desenvolvimento da competitividade internacional, pois isso é que propiciaria o

crescimento no longo prazo (ROSENTHAL, 1996. p 11)43.

A partir dessa premissa, a receita do desenvolvimento deveria possibilitar

igualar crescentemente os níveis de renda per capita entre a periferia e os países

desenvolvidos, através da expansão do comércio, da globalização financeira e da

transferência de tecnologia. Seria a não concretização desse projeto que passaria a

desafiar as bases do projeto hegemônico do desenvolvimento.

Partindo desse quadro e buscando contribuir com a evolução do dissenso

na direção de um novo paradigma analítico, que congregasse as críticas de Rodrik

e Stiglitz, Bacha (2002) propõe concentrar a análise sobre a restrição de divisas44

como principal problema para a concretização da premissa da convergência dos

níveis de renda entre centro e periferia do neoliberalismo.

Nesse ponto, a análise recai sobre as três opções para contornar o

problema enquanto as opções de políticas regional, global ou nacional, sendo a

última alternativa a merecedora de maior atenção. O foco sobre a capacidade das

políticas domésticas e o poder dos Estados para orientar o desenvolvimento dos

                                                            43 Rosenthal, G. ‘La Evolución de las Ideas Políticas para el Desarrollo’, Revista de la Cepal, n.60, Santiago, Dezembro, 1996. 44 Para Bacha (2002): “[...] o maior problema para a convergência dos níveis de renda é que – exceto pelos exportadores de petróleo – o retorno ao capital estrangeiro se materializa na moeda doméstica do país importador de capital. E existe uma dificuldade, típica das estruturas econômicas e financeiras dos países emergentes, para transformar esses recursos em divisas fortes. Esta restrição de divisas limita o fluxo de capital (porque aumenta o risco do investimento) e tende a provocar crises periódicas de balanço de pagamentos. Sob diferentes disfarces, este problema de transferência, ou restrição de divisas, tem uma longa história na literatura herética sobre comércio e desenvolvimento. Sua origem parece estar nas primeiras décadas do século XX na Europa, com o debate entre Keynes e Ohlin sobre as reparações alemãs. Reaparece na proposta de Keynes em Bretton Woods para a criação do Bancor, como forma de superar a “escassez de dólares” na Inglaterra e Europa...Na minha percepção, a forma como que, nas últimas décadas, os diversos países emergentes lidaram com essa restrição de divisas separa os casos de sucesso dos de fracasso de forma muito mais clara do que se seguiram ou não o Consenso de Washington” Ibid. p 4.

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mercados financeiro, de exportações e consumo internos, aparece como a forma

privilegiada para reduzir a vulnerabilidade externa das economias emergentes45.

No mesmo ano da análise de Bacha (2002), o debate internacional sobre as

alternativas para o desenvolvimento dos países que se inseriram no modelo do

capitalismo tardio das reformas do Consenso de Washington ganha impulso com a

publicação do livro de Stiglitz, A Globalização e Seus Malefícios (2002). Nesse

caso, o dissenso crítico culminava numa análise de um ex-tecnocrata do Banco

Mundial. As críticas ao modelo haviam sido capazes de atingir o cerne do

pensamento econômico prevalecente no interior das instituições de Bretton

Woods.

Stiglitz (2002) analisa diferentes casos dessa transição dos mercados

emergentes no seu processo de adesão ao modelo econômico, ressaltando que os

casos exitosos da transição para as reformas e para o processo de estabilização

econômica, estariam diretamente associados às bases de autonomia política

conservadas por alguns países para a aplicação das medidas específicas que

endereçassem os seus problemas econômicos. Nesse sentido, o autor compara os

casos da China e da Polônia, que jamais seguiram à risca as recomendações das

instituições de Bretton Woods, mantendo alguma cautela no seu engajamento ao

novo ideário econômico, contrastando-os com o caso russo e da República Theca,

aderindo sobejamente ao modelo sem restrições.

A ênfase em um novo papel para o Estado na regulação econômica aparece

também pela recomendação para os governos maximizarem as margens de

liberdade econômica existentes, prospectando os espaços possíveis entre os

compromissos internacionais assumidos, para perseguirem objetivos estratégicos

nacionais. Nessa perspectiva, embora houvesse muitas restrições, constrangendo

as possibilidades de planejamento de uma política industrial nacional, não se

justificaria a conclusão da inexistência tout court dessas possibilidades.

O tom dessas críticas ao consenso assumia a forma da defesa de uma

postura ativa dos governos na economia que possibilitasse enxergar seus

interesses, a partir de uma relativa autonomia das suas relações prevalecentes no

sistema internacional. Esse movimento tinha por força que se insurgir contra a

                                                            45 A análise de BACHA (2002) recorre a partir desse ponto ao conceito de “exportabilidade” de um economista do desenvolvimento como Hirschmann.

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noção do Estado reduzido propagada pelas instituições econômicas. Nesse sentido

se insere a crítica de Ha-Joon-Chang (2002)46.

Para esse autor, as políticas ótimas recomendadas pelo consenso de

Washington para o desenvolvimento dos PEDs jamais foram aplicadas pelo

mundo desenvolvido no seu processo de desenvolvimento. Ao contrário, apesar de

recomendarem essas políticas muitas vezes impostas pelas instituições de Bretton

Woods, os países desenvolvidos estariam agora “chutando a escada” que eles

mesmos utilizaram para se desenvolver, ocultando dos países em desenvolvimento

o caminho que eles próprios utilizaram no seu desenvolvimento econômico, pela

recomendação das políticas ortodoxas para a periferia.

Nesse sentido, Chang (2002) conclui que caso os países hoje

industrializados utilizassem da mesma estratégida de desenvolvimento que eles

recomendam aos PEDs, estes países jamais teriam atingido os níveis de

desenvolvimento que ostentam no presente.

Através de um estudo histórico, o autor estabelece quais políticas foram

fundamentais para o desenvolvimento dos países hoje desenvolvidos, concluindo

que elas residem nas políticas industrial, comercial e tecnológica. No entanto, as

condições para a persecução dessas iniciativas de desenvolvimento requerem

instituições radicalmente diversas daquelas recomendadas pela economia ortodoxa

das instituições de Bretton Woods para os PEDs. Implicado, sobretudo, como pré-

condição para a persecução dessas políticas se encontrava o papel do Estado como

regulador da economia e alocador dos recursos.

Nesse sentido, Chang (2002) adverte com Stiglitz (2002) de que havia

espaço para a persecução dessas estratégias e que esses países deveriam buscar

encontrá-las.

Outro autor fundamental que conforma o dissenso de Cambridge, na

conceituação de Bacha (2002)47 é Dani Rodrik, corroborando o argumento dos

demais autores. O divisor de águas consiste no exemplo de países que aderiram

indiscriminadamente ao modelo, frente aos casos dos países do Leste da Ásia, que

                                                            46 Chang, Há-Joon. Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective. London, Anthem Press, 2002. 47 Rodrik, Dani, (2002), Depois do Neoliberalismo, O Quê? Desenvolvimento e Globalização, Desenvolvimento em Debate. In: www.bndes.gov.br/conhecimento/livro_debate/1-desnv&glob.pdf Consulta em 14/01/2010. Palestra realizada no Seminário do BNDES sobre os “Novos Rumos do Desenvolvimento no Mundo”, realizado entre 12 e 13 de setembro de 2002.  

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apesar de perseguirem políticas pró-mercado não embarcaram ou aderiram

estritamente às diretrizes do Consenso de Washington.

Como nos casos dos outros autores, cautela e parcimônia em relação à

adoção das diretrizes neoliberais autorizava a conclusão de que o sucesso

econômico nos casos da China, do Vietnã e da Índia se relacionava diretamente à

conservação da autonomia dos instrumentos de gestão e planejamento das suas

estratégias nacionais para a inserção externa.

Assistiu-se, portanto, a uma convergência em torno da ausência de um

consenso no sistema internacional, quanto às perspectivas de políticas ótimas para

o desenvolvimento econômico. Por trás desse questionamento, o sucesso das

estratégias dos países emergentes que desafiaram o consenso predominante, sendo

bem sucedidos nessas iniciativas, fornecia uma base empírica para a contestação

do modelo, inaugurando a fase do Pós Consenso de Washington.

Nesse processo, passava-se de um consenso prevalecente para uma fase na

qual o que passa a predominar consiste no dissenso quanto às estratégias mais

favoráveis para o desenvolvimento econômico dos países emergentes. A tendência

mais próxima do consenso passava a ser rejeição da adesão irrestrita ao modelo

neoliberal.

Segundo Diniz (2006)48, essa fase corresponde a uma terceira geração das

análises e interpretações sobre o fenômeno da globalização, distinguindo-se das

fases anteriores que atribuíam ao fenômeno um caráter inexorável ao qual os

países teriam de aderir indiscriminadamente ou perecer. O significado do

questionamento inaugurado nessa fase contribui com elementos importantes para

permitir sustentar a rejeição dessa adesão incondicional ao modelo do

desenvolvimento hegemônico.

A partir dessa capacidade de rejeição, teríamos atingido um ponto de

inflexão no debate, referente ao resgate do papel do Estado como representando

um ingrediente importante na sua capacidade de regulação e de indução do

desenvolvimento dos PEDs. A partir desse ponto, a capacidade de intervenção

econômica estatal na economia assume o proscênio nas discussões sobre as

estratégias de desenvolvimento no capitalismo globalizado. Nesse movimento

                                                            48Diniz, Eli. O Pós-Consenso de Washington: globalização, Estado e desenvolvimento revisitados. Texto apresentado na Mesa-Redonda 16, O Desenvolvimento Revisitado, 30° Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 24 a 27 de outubro de 2006.

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abre-se espaço para o papel destaque desse Estado principalmente nos casos dos

países em desenvolvimento. Segundo Diniz (2006.p 8):

“A natureza e a qualidade do intervencionismo estatal aparecem, assim, em primeiro plano na discussão sobre as vias de desenvolvimento no contexto do capitalismo globalizado, admitindo-se a existência de várias formas de capitalismo, distintas combinações institucionais e a importância da coordenação estatal para alcançar o aumento do crescimento e da competitividade das economias nacionais (Soskice, 1999; Hall & Soskice, 2001). No caso dos países em desenvolvimento, este é um ponto ainda mais relevante, pois tais economias não podem prescindir de um Estado ativo em todas as esferas, particularmente na ordem econômica. O Estado necessita intervir, segundo uma estratégia, uma visão de longo prazo, que seja capaz de coordenar a ação dos agentes públicos, bem como dos atores privados” (DINIZ, 2006.p 8).

4.6

O impacto do dissenso sobre as instituições: o debate sobre as

reformas no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial

A repercussão do debate sobre as políticas adequadas para o

desenvolvimento dos PEDs apresentou repercussões diretas sobre as instituições

pelo questionamento do papel do FMI e do Banco Mundial diante da globalização

financeira dos anos 90. Esse debate reverberou com força no interior dessas

instituições, desde 1999. Em setembro desse ano, o relatório semestral do FMI,

World Economic Outlook49

reservou um capítulo do documento às propostas de

prevenção e resolução das crises financeiras. No mesmo ano, o relatório anual do

Banco Mundial procedeu da mesma forma.

Nesses documentos constam as primeiras autocríticas do Fundo e do BIRD

em relação à sua atuação nas crises. Ambas as instituições adotavam uma inflexão

no seu posicionamento tradicional que consistia em atribuir as crises

exclusivamente aos fatores estruturais ou macroeconômicos dos mercados

emergentes. A partir daquele momento houve o reconhecimento do papel

desempenhado pelo funcionamento inadequado e ineficiente do sistema financeiro

internacional como responsável pela vulnerabilidade dos mercados vitimados

pelas fugas de capitais. Nos relatórios das instituições, atribui-se esse mau

funcionamento à falta de transparência ou informações dos países, assim como

aos problemas dos seus sistemas financeiros domésticos.                                                             49 World Economic Outlook. IMF, sept-1999. In: http://www.imf.org

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As assimetrias de informação teriam sido responsáveis pelas decisões

incorretas dos investidores e bancos internacionais. Sobre esse funcionamento

inadequado do sistema financeiro internacional é que as deficiências na infra-

estrutura institucional dos países teriam impedido os ajustes necessários de

revisão dessas decisões.

Dentro da avaliação das instituições, a negligência dos investidores, que

não avaliaram corretamente os riscos, havendo investido muitos recursos nos

mercados emergentes é ressaltada. No entanto, reconheceu-se que o Fundo e o G-

7 tinham sua parcela de responsabilidade, pois a concessão de empréstimos aos

países em crise de liquidez contribuiu para agravar o risco moral – moral hazard

(FREITAS; PRATES, 2002).

Desse modo, o fortalecimento do sistema financeiro impunha uma série de

medidas, que incluíam a reforma do sistema e do FMI. Esta instituição deveria

coordenar esforços para reverter as “falhas de mercado”, ao passo que o Comitê

de Basiléia se encarregaria de formular regras para a adequação do capital,

impedindo a exposição excessiva dos países, a partir da atuação dos investidores.

A questão do risco moral também deveria ser endereçada pela reforma do FMI e

do BIRD.

O design dessa reforma partiu dos EUA, que divulgou uma proposta nesse

sentido em fins de 1999 que foi defendida pelo Secretário do Tesouro dos EUA,

em 2000 (FREITAS; PRATES). Assim, na reunião conjunta do FMI e do BIRD,

de abril de 2000, em Washington, debateu-se a reforma de ambas as instituições e

o seu papel futuro. A proposta de reforma institucional originada do Congresso

norte-americano vinha sob a forma do Relatório Meltzer, que defendia uma

reestruturação radical do FMI e do BIRD. O FMI deveria concentrar suas funções

sobre a correção do mercado impedindo a recorrência do pânico no sistema

financeiro, pois essa situação é que tornava as crises independentes da solvência

das economias ou dos seus fundamentos econômicos, inviabilizando a obtenção

de financiamentos.

Para esse objetivo, o Fundo deveria abandonar a política das

condicionalidades e somente emprestar recursos aos países que satisfizessem pré-

condições, como sistemas bancários bem estruturados, livre entrada e operação de

bancos estrangeiros, políticas fiscal, monetária e cambial prudentes, assim como

grande transparência de informações e dados macroeconômicos. Além disso, o

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Fundo se deveria concentrar em sua função original e não mais estruturar grandes

pacotes financeiros. Os empréstimos futuros deveriam ser de curto prazo e com

altos juros. Deveriam ser extintos os recursos a taxas subsidiadas aos países mais

pobres.

Apenas emergencialmente, nos casos de crises sistêmicas que ameaçassem

o sistema financeiro, os países não elegíveis deveriam contar com algum tipo de

suporte do Fundo. A linha de crédito, Enhanced Structured Adjustment Facility,

proposta em setembro de 1999, visando o suporte a um programa de redução da

pobreza e promoção do crescimento deveria ser extinta. Quanto ao BIRD, sua

função deveria se restringir à transferência de recursos aos países mais pobres e

sem acesso aos fluxos privados de capital, revertendo a tendência predominante

da provisão de crédito aos países de renda média. O BIRD deveria ser

transformado em agência de fomento, restringindo suas funções ao fornecimento

de assistência técnica, provimento de bens públicos regionais e globais e

promoção do ingresso de recursos financeiros privados aos mercados emergentes

(FREITAS; PRATES, 2002).

Em oposição a essa proposta existia a de Lawrence Summers, do governo

Clinton, que temia a perda de ingerência sobre os países de renda média, caso as

restrições da proposta Meltzer fossem aprovadas. No entanto, ambas possuíam

alguns elementos em comum:

[…] a necessidade de uma delineação clara das funções dessas instituições e suas propriedades; o foco na maior transparência de informações tanto das instituições quanto dos países que recebem ajuda; importância de configurar fortes incentivos para que os países reduzam sua vulnerabilidade às crises; necessidade de definir um programa de apoio mais efetivo ao desenvolvimento; o reconhecimento de que os recursos oficiais não deveriam ser destinados aos países que não cumprem as metas, nem implementam as reformas previstas nos acordos assumidos. (FREITAS; PRATES, 2002, p. 26)

As propostas de mediação entre os credores e devedores são

constantemente abortadas por falta de pressão dos países centrais ou por

reivindicações do setor financeiro. Esta circunstância coloca a questão dos

impactos sobre as economias periféricas deste ambiente de menor liquidez e

enxugamento nos graus de liberdade para estratégias de desenvolvimento que

utilizem instrumentos de política econômica desviantes aos parâmetros

estabelecidos e monitorados pelo FMI e Banco Mundial.

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O Relatório Meltzer foi emitido pela Comissão Meltzer sendo conhecido

como “Report of the International Financial Institution Advisory Commission –

IFIAC2000- havendo sido aprovado, mas gerando muitas críticas do Governo

Clinton, de uma minoria na Comissão Meztzer, assim com por uma parte do

Congresso. Esse relatório consistiu na primeira manifestação concreta da

necessidade de reforma do FMI, do Banco Mundial, assim como de uma série de

bancos de desenvolvimento multilaterais.

Como apontou Calomiris (2000)50, nesse debate sobre a reforma da

arquitetura das finanças globais podemos distinguir claramente entre duas

discussões distintas. Uma delas é mais objetiva e compreende os aspectos técnicos

das propostas específicas para obtenção de metas econômicas bem-definidas.

Outra dimensão paralela a esse debate, contudo, não é tão perceptível ou objetiva

à primeira vista, mas se reveste de uma importância fundamental por lançar um

amplo debate questionando se o FMI e o Banco Mundial, assim como os demais

bancos de desenvolvimento multilaterais, deveriam perseguir apenas esses

objetivos ou metas econômicas concretas definidas de forma técnica ou se,

alternativamente, deveriam permanecer sendo utilizados como instrumentos para a

prática de uma diplomacia ad hoc, como vinha sendo feito até então.

Esse consistia no ponto mais crítico da mudança e que despertava as

maiores resistências no debate interno dos EUA. Segundo o Chairman do IFIAC,

Allan Meltzer (2000)51:

That issue remains unspoken by the critics. This administration, even more than previous administrations, has used the international financial institutions as sources of readily available funds to support its foreign policy. If it could not make heavily subsidized long-term loans through these institutions to Russia, China, Mexico, Brazil and other countries whose policies the U.S. wishes to influence, the administration would have to change policy or ask Congress to appropriate the funds. Congress could better perform oversight, would question whether programs are successful and whether they benefit the American people. This issue is sometimes described as a foreign policy issue. The Commission majority is accused of interfering with the conduct of foreign policy. I do not agree with that characterization. The core issue is the constitutional responsibility of Congress to appropriate funds. Administrations for years circumvented the budget process to support Mobutu, Suharto, Marcos, and others. The majority believes, firmly, that final decisions about spending should remain with the

                                                            50 Calomiris, Charles W. When will economics guide IMF and World Bank Reforms. In: Cato Journal, Vol. 20, No. 1 (Spring/Summer 2000). 51 Meltzer, Allan H. Reform of the IMF and World Bank. Carnegie Mellon University Year 2000. Tepper School of Business. In: http://repository.cmu.edu/tepper/14. Consulta em 09/01/2010.

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Congress, not the administration acting through the international financial institutions. This reform is most basic because it deals with legislative responsibilities and constitutional prerogatives that, once sacrificed, are difficult to recover.

Como assinala Calomiris (2000), por trás da discussão técnica, sustenta-se

uma grande oposição não apenas às propostas do relatório Meltzer, mas

fundamentalmente a própria abertura desse debate que desperta interesses

políticos refratários às mudanças. No entanto, esse obstáculo consistia na pré-

condição para que quaisquer perspectivas de reforma pudessem avançar.

“Until we settle that second, broader political debate, we cannot seriously even begin the constructive dialogue over how best to achieve economic objectives. That dialogue is important; our proposals are a starting point for rebuilding these institutions, not the final word. But those who oppose the basic premises of the Meltzer Report do not want to get to that constructive phase. They want the reformers to just go away. Although open opposition to the Meltzer Report generally focuses on its details, behind closed doors critics are candid about their primary reason for objecting to our proposals: “Forget economics; it’s the foreign policy, stupid.” For proposed reforms to succeed, then, they must face the challenges posed not only by economic logic, but by the political economy of foreign policy” (CALOMIRIS, 2000. p 86).

O relatório da Comissão Meltzer consistia num primeiro passo para a

reforma da arquitetura financeira internacional, a partir de uma proposta credível

para o início de um amplo debate diretamente orientado para a necessidade das

mudanças. Acima de tudo, a iniciativa denunciava a percepção interna ao cenário

político norte-americano de que aquele momento consistia na ocasião apropriada

para o início dessas reformas.

A forma como o relatório pretendia endereçar essas reformas assinala,

sobretudo, o foco sobre a credibilidade internacional dessas instituições

multilaterais que deveria ser restabelecida como condição para que elas voltassem

a cumprir o seu papel. Existia uma preocupação genuína com a legitimidade

dessas instituições que deveriam ser capazes de operar como mecanismos

econômicos efetivos para serem capazes de conquistar a adesão dos países ao seu

conteúdo normativo.

A preocupação com esses aspectos da reforma das instituições é visível

pelo foco concedido no documento à credibilidade dos debates e do processo de

reforma das instituições. Nesse sentido, o relatório se preocupou em estabelecer

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não apenas um conjunto bem definido de metas econômicas para as instituições,

mas também e fundamentalmente um conjunto de princípios políticos que

deveriam guiar o processo de reformas. Além disso, o relatório sugeria os

mecanismos que poderiam conduzir a reforma na direção das metas econômicas

estabelecidas, mediante a orientação daqueles princípios.

Os objetivos econômicos que aparecem no relatório consistem em

melhorar a liquidez dos mercados globais de capitais; reduzir a pobreza nos países

mais pobres; promover o desenvolvimento dos países em desenvolvimento através

de reformas institucionais nos seus sistemas legais e financeiros; promover bens

públicos globais, como nos casos dos programas de saúde pública e proteção ao

meio-ambiente nos países em desenvolvimento; produzir e divulgar dados

econômicos relativos de forma coordenada e transparente (IFIAC, 2000).

A percepção que orientou o trabalho da comissão percebia esses objetivos

como consistindo em metas que deveriam fazer parte do escopo de atuação das

instituições da ordem econômica para que elas fossem capazes de resgatar seu

papel de regulação multilateral. Para isso, seria necessário endereçar questões que

permitiriam o resgate da legitimidade da sua atuação. Um foco prioritário nesse

processo deveria consistir no foco sobre questões globais que ameaçavam os

países de menor desenvolvimento, reclamando soluções também globais que

deveriam figurar como parte do repertório de soluções à disposição dos

dispositivos institucionais do multilateralismo.

Ao lado do teor dessas metas, figuravam seis princípios que deveriam

contribuir com a credibilidade dessas reformas. O primeiro desses princípios

refletia claramente a influência dos debates sobre as vias para o desenvolvimento

dos PEDs, conforme as discussões que se seguiram às crises econômicas e o

advento do dissenso de Cambridge. Esse princípio chamava a atenção para a

necessidade de respeitar a soberania dos países. Nesse sentido, deveria ser

minimizada a interferência sobre a regulação econômica dos Estados no que diz

respeito aos critérios para o ingresso nas instituições, assim como no que concerne

às condições estabelecidas para que os países possam recorrer à assistência das

instituições multilaterais (IFIAC, 2000)52.

                                                            52 International Financial Institution Advisory Commission - IFIAC- Allan H.Meltzer, Chairman. Report of the International Financial Institution Advisory Commission. March, 2000. In: http://phantom-x.gsia.cmu.edu/IFIAC. Consulta em 10/02/2010.

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Outro princípio importante dizia respeito à ausência de complementaridade

entre a atuação das instituições desde o fim de Bretton Woods, pois ele chamava a

atenção para a necessidade de separação da área de atuação das instituições com o

objetivo de aumentar a eficiência dos recursos, evitando o desperdício

representado pela sobreposição da atuação desses mandatos sobre as mesmas

áreas ou temas. Mais um princípio deveria atuar no mesmo sentido, estabelecendo

as fronteiras objetivas e concretas para a atuação das instituições, para evitar a

concentração dos técnicos de mais de uma instituição sobre os mesmos temas e

melhorar a transparência da sua atuação (IFIAC, 2000). Além disso, as

instituições deveriam julgar as políticas aplicadas não pelos seus objetivos

assumidos, mas sim pela sua efetividade, garantindo que os mecanismos de

assistência aos países seriam bem sucedidos e evitariam desperdícios. Além disso,

esses princípios estabeleciam que o orçamento de assistência das instituições seria

dividido de forma equânime entre os países contribuintes.

4.7

A busca de um novo consenso sobre o Desenvolvimento a partir das

instituições

O Relatório Meltzer buscou iniciar as discussões sobre a reforma das

instituições, mas encontrou fortes resistências políticas que se interpõem no

caminho de uma mudança substantiva. No entanto, a forma como esse relatório

buscou endereçar essas questões revela, sobretudo, uma alteração sensível em

relação ao papel das instituições de Bretton Woods no cenário internacional.

Esse formato de reforma baseado em metas econômicas concretas que

deveriam ser atingidas segundo certos princípios aponta para uma alteração

fundamental sobre a concepção do desenvolvimento que passa a figurar no debate

internacional, sendo incorporada como parte da Agenda internacional após as

crises.

Segundo Diniz (2006), o debate internacional sobre o tema do

desenvolvimento passou por um ponto de inflexão a partir da contribuição de

Armatya Sen. A nova fase do debate incopora na discussão a problematização da

visão unidimensional da economia. Desde trabalhos como On Ethics and

Economics (1987), passando por Development as Freedom (1999), essa literatura

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buscou resgatar a dimensão ética e política das questões econômicas, pondo em

xeque a supremacia da eficiência como critério de avaliação econômica.

Critérios de avaliação como PIB, nível de industrialização, crescimento

das exportações são vistos como omitindo dimensões que devem fazer parte do

conceito do desenvolvimento, como as liberdades de participação política, direito

à educação e à saúde pública. Na disputa pelo significado do desenvolvimento,

argumenta-se que o tema deva dizer respeito à expansão das liberdades efetivas

dos cidadãos, exigindo incorporar na discussão as fontes de privação dessas

liberdades: a tirania, a pobreza, a ausência de oportunidades econômicas, a

marginalização social, a carência dos serviços públicos essenciais, assim como a

insegurança econômica, política e social (DINIZ, 2006).

Dentro do espectro considerado como do âmbito do desenvolvimento

deveriam passar a fazer parte também as possibilidades de financiamento do

Estado e sua capacidade de intevenção, para garantir a seguridade social (DINIZ,

2006). O desenvolvimento passa, portanto, a representar não apenas o crescimento

de renda, mas fundamentalmente o crescimento dos serviços a disposição da

população que elevem o seu bem estar.

Essa nova concepção do desenvolvimento social, a partir da luta contra a

pobreza e as privações dos maiores graus de liberdade social, ganhou espaço no

interior da agenda das Nações Unidas, a partir dos Objetivos de Desenvolvimento

do Milênio. Esta Declaração foi aprovada pela Assembléia Geral como parte das

Metas do Milênio, em setembro de 2000. 189 governos celebraram sua aprovação,

incluindo 147 chefes de Estado e Governo (ONU, 2000)53. O conteúdo da

declaração estabelece 8 objetivos de desenvolvimento social e econômico que

devem ser atingidos através de 18 metas quantificáveis para o período de 1990 a

2015 que estabeleceu vários indicadores para o progresso em cada uma das áreas.

Esses objetivos chegaram ao interior das Nações Unidas através da

concorrência de muitos atores e processos. Alguns deles partiram das cúpulas das

Nacões Unidas e das suas declarações e planos de ação aprovados nos anos 90, a

partir do fim da Guerra Fria, e do processo de crise da ideologia neoliberal que

consistiram em circunstânncias favoráveis para promover esses debates.

                                                            53 Resolução da Assembléia Geral (A/RES/55/2), de 8 de setembro de 2000.

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Essas cúpulas paralelas das Nações Unidas consistiram também no

ambiente de formação de muitos movimentos sociais e das ONGs que terminaram

protagonizando o grande impasse de Seattle na OMC (1999). Os temas dessas

cúpulas englobaram: Infância, em Nova Yorque (1990); Meio-ambiente e

Desenvolvimento, Rio de Janeiro (1992); Direitos Humanos, Viena (1993);

População e Desenvolvimento, Cairo (1994); Mulher e Desenvolvimento, Pequim

(1995); Desenvolvimento Social, Copenhague (1995); Alimentação, Roma (1996)

(ONU, 2010)54.

Dentro desse processo um marco importante consistiu no papel do Comitê

de Ajuda e Desenvolvimento da OCDE (OCDE, 1996).55 Este Comitê, que é

formado pelos países que contribuem com recursos para a ajuda ao

desenvolvimento, passou a adotar esses objetivos oriundos das cúpulas das

Nações Unidas, como metas para a concessão da ajuda internacional. Essa diretriz

se inseria dentro da proposta de renovação dos fundamentos da ajuda

internacional no pós Guerra Fria.

O movimento de renovação da ajuda internacional tinha raízes no fim dos

interesses pós-coloniais que não mais se justificavam, diante do deslocamento do

papel central que a ajuda internacional representava para os interesses estratégicos

dos países desenvolvidos do Ocidente. Isso aconteceu porque diante do novo

cenário da unipolaridade, a legitimidade da luta contra a pobreza promovida pelas

Nações Unidas consistiu numa oportunidade para dar um novo ânimo à ajuda

internacional para torná-la compatível com as políticas de liberalização e os novos

interesses dos países desenvolvidos de integração dos países menos desenvolvidos

à ordem liberal.

A dimensão desses novos temas relacionados ao desenvolvimento foi

capaz de assegurar o compromisso conjunto do FMI, do BIRD, da OCDE e das

Nações Unidas em relação a esses novos objetivos do desenvolvimento,

propugnados pelo CAD, em Junho de 200056. O compromisso conjunto entre as

instituições de Bretton Woods assinalava uma mudança na atuação destas

                                                            54 http://www.un.org Consulta em 20/01/2010. 55 Shaping the 21st Century; the Contribution of Development Cooperation, París, OCDE, maio (1996). In: http://www.oecd.org/dac. Consulta em 13/01/2010. 56 Um mundo melhor para todos. Implementação dos objetivos do desenvolvimento internacional. Documento elaborado para a XXIV sessão especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, junho 2000 para acompanhar o cumprimento dos compromissos da Cúpula do Desenvolvimento Social de Copenhague de 1995. In: http://www.paris21.org/betterworld. Consulta em 13/01/2010.

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instituições, pois tradicionalmente elas não se aproximavam assim justamente em

razão da maior representação dos interesses dos países em desenvolvimento pelas

Nações Unidas em relação às instituições de Bretton Woods, que sempre

representaram e sustentaram as políticas favoráveis aos países desenvolvidos.

Nesse sentido, esse documento é importante, pois as instituições de

Bretton Woods assumem diretamente o comprometimento com as metas

internacionais do desenvolvimento, especialmente com a redução da pobreza. No

caso do FMI, a instituição vinha sustentando anteriormente às crises financeiras

dos anos 90 que a pobreza não se compatibilizava com seu mandato e que o

Fundo deveria permanecer buscando estabilizar as finanças internacionais, para

restabelecer o crescimento. Na ressaca das crises e após a renúncia do seu Diretor

Gerente Michel Candessus, o novo Diretor Horst Köhler anunciava que a luta

contra a pobreza passaria a consistir numa das principais preocupações da

instituição.

Um ponto importante das Metas do Milênio consiste em estabelecer

compromissos e os meios necessários para concretizá-los. Nesse sentido, áreas

como a ajuda internacional ao desenvolvimento e a abertura comercial resgatam

algumas das bandeiras sempre levantadas pelos países em desenvolvimento pelo

acesso a setores chave das economais desenvolvidas e fim do protecionismo

comercial nos Têxteis e na Agricultura. Nesse sentido, um dos setores em que

coincidiam as percepções tanto dos economistas neoliberais, quanto de ONGs

como a OXFAM consiste na relação existente entre o protecionismo comercial

dos paíes desenvolvidos e a pobreza existente nos países em desenvolvimento57.

4.7.1

O Consenso de Monterrey: Financiamento para o Desenvolvimento e

a busca pela coerência entre os mandatos das instituições de

Bretton Woods

Após as crises financeiras do fim dos anos 90, o tema da reforma do BIRD

e do FMI ingressou na agenda internacional, gerando o debate sobre a necessidade

de maior coerência entre os mandatos e a atuação dessas instituições de Bretton

                                                            57 Cambiar las reglas. Comercio, globalización y lucha contra la pobreza. Oxfam, 2002. In: http://wwwcomercioconjusticia.org. Consulta em 11/01/2010.

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Woods. Esse debate se daria, entretanto, a partir de uma nova concepção ou

modelo para o desenvolvimento dos PEDs, refletindo as expectativas da

comunidade internacional sobre a necessidade de mecanismos conjuntos de

atuação das instituições fundamentais da ordem econômica que assegurassem a

incorporação desses países às possíveis reformas do sistema multilateral.

Uma expressão desse momento de transição das instituições consistiu na

realização da Conferência Internacional sobre o Financiamento e o

Desenvolvimento – CIFD-, entre 18 e 22 de março de 2002. A conferência contou

com a presença de 60 chefes de Estado e 200 ministros da economia de diversas

nações, numa iniciativa que representava o ponto culminante de um processo

preparatório de dois anos, que já incluíra cinco conferências regionais e quatro

sessões preparatórias (ONU, 2002). Refletindo o momento de transição, a

conferência consistiu na primeira iniciativa da Organização das Nações Unidas

destinada a endereçar conjuntamente questões macroeconômicas e financeiras,

num ambiente e segundo um processo decisório mais democrático,

alternativamente ao lócus tradicional das discussões no interior das instituições de

Bretton Woods.

Para esse objetivo, a Conferência incluiu a participação do FMI, com a

presença do seu Diretor-Gerente Horst Kohler; do BIRD, pelo seu presidente Jim

Wolfenson e da OMC e do seu Diretor Geral. Nela também tomaram parte outros

órgãos do sistema ONU, como a UNCTAD e o PNUD.58

A meta oficial da Conferência consistia em discutir o mecanismo de

instrumentalização de fundos para efetivação do Plano de Ação da ONU, que

buscava associar a iniciativa ou incluí-la sob o Ciclo de Desenvolvimento Social

da ONU, para a década de 90. A continuidade das cúpulas sociais das Nações

Unidas dos anos 90 passaria, portanto, pela realização dessa conferência que

deveria se concentrar sobre o financiamento do desenvolvimento, visando os

meios para a concretização das Metas do Milênio, a partir de uma maior

                                                            58 Destacava-se também a participação de representantes da Sociedade Civil, como empresas, ONGs e demais setores de representação dos governos, que tomaram parte, inclusive, nas mesas redondas ministeriais. Além disso, dentro do sistema ONU também participaram Organização Internacional do Trabalho, FAO OMS, Organização da Propriedade Intelectual, Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola, a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial. Os Secretariados das seguintes comissões regionais: Comissão Econômica para a Europa, Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Comissão Econômica para a África, Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental. (FOSTER, 2002).

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mobilização dos recursos econômicos compatível com a materialização daquela

iniciativa.

No entanto, como o desenvolvimento dos PEDs estava no centro das

preocupações da conferência, o documento final terminaria por trazer inovações

fundamentais para os países em desenvolvimento. Não propriamente nos termos

de metas concretas, mas pelo estabelecimento de compromisssos envolvendo a

necessidade de uma maior coerência entre a atuação das instituiçõs de Bretton

Woods, assim como em relação à necessidade da liberalização do comércio em

setores considerados fundamentais para o desenvolvimento dos PEDs.

No que diz respeito às novas fontes de financiamento para o

desenvolvimento, a premissa da conferência consistia em que os recursos internos

dos países são os principais elementos para a promoção do seu desenvolvimento.

No entanto, no caso dos países em desenvolvimento seria necessário contar com

recursos adicionais para viabilizar o desenvolvimento e a provisão dos bens

públicos globais não disponíveis, nem da parte dos investimentos externos que se

direcionam a essas economias, nem da capacidade de financiamento a disposição

desses países59.

Em Monterrey (2002), estabeleceu-se que o comércio e o capital privado,

principalmente no que diz respeito aos investimentos diretos, consistem nas

principais fontes de financiamento para o desenvolvimento. Nessa definição,

portanto, os recursos oficiais terminariam relegados a um papel subordinado, pois

eles se justificariam apenas a partir da existência de falhas de mercado e não por

razões ligadas à justiça, equidade, por consistirem num direito ao

desenvolvimento ou mesmo por objetivos de solidariedade social.

Nesse sentido, a partir de Monterrey parecia que a experiência das crises

dos anos 90 havia deixado a lição de que a grande volatilidade dos fluxos

financeiros internacionais se devia, sobretudo, ao papel das políticas de gestão

macroeconômica dos países em desenvolvimento, que teriam desempenhado um

papel fundamental para o surgimento das crises.

No entanto, essas crises que se sucederam de 1997-2001 fizeram com que

os recursos a disposição desses países se reduzissem em mais de 40%. O exame

da distribuição dos fluxos de investimentos para os países em desenvolvimento                                                             59 Informe da Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, Monterrey (México), 18-22 de março de 2002. ONU, 2002 (A/CONF.198/11).

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revelava ainda uma grande concentração – 80% destinavam-se a 16 mercados

emergentes. Apenas 0,6% do total tinham por destino os 49 países pertencentes ao

mundo menos desenvolvido - PMDs60.

Nesse quadro, os resultados da conferência pareceram consistir num

regresso na direção da ideologa liberal que havia orientado o financiamento do

desenvolvimento desde o pós Guerra, a despeito das grandes expectativas dos

países em desenvolvimento. Isso se chocava frontalmente com a perspectiva de

que fosse celebrado algum compromisso concreto que avançasse em relação ao

montante de ajuda internacional concedida pelos países donatários.

Essas expectativas se baseavam na urgência de canalização dos recursos

necessários para o cumprimento das Metas do Desenvolvimento do Milênio das

Nações Unidas. Ao lado desse objetivo, que tornava mais provável um avanço,

havia também a comoção causada pelos ataques do onze de setembro de 2001. O

impacto desse evento sobre o sistema internacional contribuiu para o surgimento

da percepção de que havia uma relação direta entre a ameaça do terrorismo global

emergente e o crescimento da pobreza e da desigualdade social em muitos países

com menor nível de desenvolvimento.

Essas expectativas eram reforçadas pelo engajamento de líderes políticos

do G-7, como o Ministro da Fazenda britâncio, Gordon Brown, que antes da

conferência propunha a realização de um novo Plano Marshall. Da parte de

instituições multilaterais comprometidas com o tema do desenvolvimento, o

presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, também divulgava pretender

duplicar os recursos empregados para ajuda ao desenvolvimento.

No entanto, o documento aprovado na ocasião apenas reiterou a meta

tradicional de destinação orçamentária do PIB dos países contribuintes, em 0,7%.

Não houve o estabelecimento de obrigações concretas, tampouco a vinculação das

obrigações dos países mediante um cronograma para entrada em vigor dos

compromissos. O documento final da Conferência, portanto, contribuía

indiretamente para a falta de crediblidade do seu objetivo oficial (ONU, 2003).

Propostas preliminares que buscavam novas fontes de recursos para a

ajuda internacional ao desenvolvimento, sequer tiveram acolhidas nos debates,

                                                            60 Perspectivas da Economia Mundial. Fundo Monetário Internacional (2001), Washington DC. p 174. In: http://www.imf.org. Consulta em 10/01/2010.

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como nos casos daquelas constantes do Informe Zedillo61, enquanto proposta de

Joseph Stiglitz para o emprego das reservas internacionais dos países no

financiamento ao desenvolvimento. Outra iniciativa nesse sentido consistiu na

proposta de George Soros, de emissão de Direitos Especiais de Saque, para o

financiamento de bens públicos globais. Ambas as propostas foram descartadas do

debate previamente à conferência.

Outras propostas como o estabelecimento de taxas globais como a Taxa

Tobim, os impostos sobre emissões de Carbono ou mesmo pelo uso do patrimônio

comum de toda a humanidade também não ganharam espaço no interior da

Conferência62. Estas propostas permitiriam gerar novos recursos para a ajuda ao

desenvolvimento, desvinculadas da influência dos países contribuintes da OCDE.

A falta de espaço para essas porpostas no interior da conferência refletiu a

influência dos países desenvolvidos sobre os resultados do encontro, pois a

despeito da abertura dos debates à maior participação, conformando um processo

de funcionamento mais democrático, os resultados do encontro já haviam sido

alcançados no documento “Consenso de Monterrey”, seis semanas antes em

Washington (FOSTER, 2002). No entanto, apesar das mesas redondas não terem

aspécto decisório, houve espaço para o debate de propostas que não eram

aprovadas pelo consenso oficial e que provinham dessa ampla participação que

admitiu representantes da Sociedade Civil, ONGs, empresas e outras instâncias

políticas domésticas dos países convidados, como diferentes ministérios.

Para os países em desenvolvimento, a oportunidade do debate direto com

os representantes do mundo desenvolvido consistia numa oportunidade de

expressão da sua percepção sobre a questão do desenvolvimento. Essa

oportunidade, porém, restringiu-se à expressão retórica da sua insatisfação, pois o

que foi acentuado na conferência foi a continuidade do processo político-

institucional, inaugurado em Bretton Woods. Segundo Jean Art Scholte, que

participou da reunião, a Conferência consistia em retórica, por não traduzir as

promessas em resultados concretos sobre a Ajuda ao Desenvolvimento,63 a

                                                            61 Informe do Grupo de Alto nível sobre o Financiamento para o Desenvolvimento (Informe Zedillo). Nações Unidas A/55/1000. 26 de junho de 2000. In: http://www.un.org. Consulta em 11/01/2010. 62 New Sources of Finance for Development. Overseas Development Institute. Briefing Paper (1). Fevereiro de 1996. 63 No processo preparatório para a Conferência, ONGs se dedicaram à elaboração de uma série de compromissos. Estratégia que foi utilizada também pelo ministro da fazenda britânico, Gordon

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redução das dívidas dos países em desenvolvimento ou o estabelecimento de

impostos globais ou emissão dos Direitos Especiais de Saque (FOSTER, 2002).

Em contraste, uma inovação importante por suas repercussões

fundamentais para as futuras negociações comerciais consistiu na associação entre

comércio e desenvolvimento que partiu dos trabalhos da conferência. Na

Declaração de Monterrey, a seção “International Trade as an Engine for

Growth”,64 apresenta o comércio diretamente relacionado ao objetivo do

desenvolvimento dos PEDs.

O documento defende um sistema de comércio multilateral aberto, não

discriminatório e equitativo, que promova uma liberalização comercial

substantiva. A liberalização atingida deveria consistir num estímulo universal para

o desenvolvimento, contemplando todos os países indiscriminadamente. Seria

nesse sentido que o documento assegurava que o comércio produziria crescimento

econômico, emprego e desenvolvimento. Nesse espírito, o documento saudava a

iniciativa do lançamento da Rodada Doha (2001) que colocava as necessidades

dos países em desenvolvimento no centro do seu programa, destacando o

compromisso dos participantes da conferência em lutar pela sua implementação.65

To benefit fully from trade, which in many cases is the single most important external source of development financing, the establishment or enhancement of appropriate institutions and policies in developing countries, as well as in countries with economies in transition, is needed. Meaningful trade liberalization is an important element in the sustainable development strategy of a country. Increased trade and foreign direct investment could bost economic growth and could be a significant source of employment.66 Ainda mais importante, na Conferência de Monterrey foram reconhecidas

e legitimadas as preocupações das economias em transição em relação às

negociações de comércio multilateral. Nesse sentido, os acordos comerciais

                                                                                                                                                                   Brown, que se traduziram, contudo apenas em promessas para ajuda oficial ao desenvolvimento – AOD. 64 Report of the International Conference on Financing and Development. New York, United Nations, 2002. Disponível em: http://dacceddssds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N02/392/67/pdf/N0239267.pdf?OpenElement. Acesso em: 08 jun. 2008. 65 Monterrey Consensus of the International Conference on Financing Development. United Nations Department of Economic and Social Affairs: Financing and Development Office, 2003. Disponível em: http://www.un.org/esa/ffd/monterrey/MonterreyConsensus.pdf. Acesso em: 08 jun. 2008 66 Ibid. Parágrafo 27.

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deveriam se tornar mais efetivos, precisos e operacionais para promover a

capacidade interna dos países de financiamento do seu próprio desenvolvimento.

A partir dessa meta, o documento se foca sobre os obstáculos no regime

que impedem o financiamento do desenvolvimento. Especificamente, os temas

considerados mais importantes para a realização desse potencial foram:

As barreiras ao comércio nos países desenvolvidos; os subsídios

concendidos por esses países que distorcem o comércio. As medidas de distorção

comercial incidentes sobre produtos que constituem parte fundamental da pauta de

exportação dos países em desenvolvimento, sobretudo no caso da Agricultura. A

proliferação de medidas antidumping, das barreiras técnicas, sanitárias e

fitosanitárias. A liberalização em manufaturas intensivas em mão-de-obra, a

liberalização da Agricultura, do comércio em Serviços, os picos tarifários, as altas

tarifas e o processo de escalada tarifária, assim como movimento de pessoas, a

falta de reconhecimento de Direitos de Propriedade Intelectual para a promoção

do conhecimento tradicional e folclore, a transferência de conhecimento e

tecnologia e a implementação e interpretação do Acordo sobre aspectos

relacionados ao comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual de forma a

apoiar a saúde pública naqueles países. Além disso, foi reconhecida a necessidade

de concessão do Tratamento Especial e Diferenciado para esses países (ONU,

2003).

Para assegurar que a partir da atenção a esses temas, as negociações

comerciais assegurassem o desenvolvimento em benefício de todos os países, o

documento encorajava os membros da OMC a aplicarem os compromissos com o

desenvolvimento dos PEDs estabelecidos na IV Conferência Ministerial da OMC

de Doha (2001).

We Will implement the commitments made in Doha to address the marginalization of the least developed countries in international trade as well as the Work programme adopted to examine issues related to the trade of small economies67. Nesse sentido, foi identificada uma oportunidade histórica no Mandato de

Doha, estabelecendo as bases da incorporação do tema do desenvolvimento na

agenda internacional de liberalização do comércio. Os países desenvolvidos

                                                            67 Ibid. Parágrafo 32.

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teriam uma grande oportunidade de pautarem sua atuação pelo respeito aos

compromissos assumidos nesse sentido.

Ao lado da questão do financiamento para o desenvolvimento e do

prosseguimento das negociações do regime de comércio de forma compatível com

o desenvolvimento dos PEDs, a Declaração de Monterrey também consistiu numa

importante manifestação da percepção das relações entre o tema do

desenvolvimento e a coerência dos mandatos das instituições de Bretton Woods.

Nesse sentido, na última seção do documento; “Adressing systemic Issues:

enhancing the coherence and consistency of the international monetary, financial

and trading systems in support of development”, reconhece-se a necessidade

urgente de complementar os esforços nacionais para o desenvolvimento dos

países, mediante uma maior coerência entre a atuação dos sistemas monetário,

financeiro e comercial multilaterais. Para atingir essa meta, o documento

recomendava aprimorar a governança econômica global, fortalecendo a liderança

das Nações Unidas na promoção do desenvolvimento (ONU, 2003).

No nível da política doméstica dos Estados, recomendava-se a

coordenação de esforços entre os ministérios dos países e suas instituições. No

plano externo, visava-se o estabelecimento de uma sinergia ou maior coordenação

de programas e políticas entre as instituições internacionais de Bretton Woods.

Nesse movimento deveriam ser também conjugadas ou tornadas coerentes as

atuações das instituições domésticas dos países em relação a atuação das

instituições internacionais. Seria importante estabelecer objetivos internacionais e

domésticos compatíveis, a partir da construção da coerência entre os níveis

operacional das políticas dos países e o cenário internacional. Somente desse

modo seria possível atingir os objetivos da Declaração do Milênio da ONU, de

crescimento econômico, erradicação da pobreza e desenvolvimento sustentável

(ONU, 2003).

Important international efforts are under way to reform the international financial architecture. Those efforts need to be sustained with greater transparency and the effective participation of developing countries and countries with economies in transition…We also underscore our commitment to sound domestic financial sectors, which make a vital contribution to national developments efforts, as an important component of an international financial architecture that is supportive of development…strong coordination of macroeconomic policies among the leading industrial countries is critical to greater global stability and reduced exchange rate volatility, which are essential to economic growth as well as for

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enhanced and predictable financial flows to developing countries and countries with economies in transition68. A governança global nesse documento passava a ser relacionada

estreitamente com objetivo do desenvolvimento. Para ser compatível com o

crescimento da interdependência entre os países e aumentar a legitimidade desse

processo, a governança deveria se desenvolver em dois sentidos: aumentar a base

do processo decisório internacional nos assuntos referentes ao desenvolvimento e

preencher as brechas organizacionais existentes nas instituições multilaterais. Para

cumprir esses objetivos, o documento recomendava o fortalecimento do sistema

das Nações Unidas e das demais instituições de Bretton Woods, a partir de uma

maior integração dos países em desenvolvimento, que deveria servir de base para

o reforço do multilateralismo (ONU, 2003):

[…] we encourage all international organizations to seek to continually improve their operations and interactions...we stress the need to broaden and strengthen the participation of developing countries and countries with economies in transition in international economic decision making and norm-setting. To those ends, we also welcome further actions to help developing countries and countries with economies in transition to build up their capacity to participate effectively in multilateral forums…a first priority is to find pragmatic and innovative ways to further enhance the effective participation of developing countries and countries with economies in transition in international dialogues and decision-making processes.69

Para efetivar o avanço dessa incorporação a partir dos mandatos e das

funções das instituições de Bretton Woods, o documento recomendava que o FMI

e o BIRD continuassem a incentivar a participação de todos os países em

desenvolvimento e economias em transição nos debates e processos decisórios

internacionais, buscando sua contribuindo para o debate sobre o papel dessas

instituições, uma vez que elas deveriam lidar com as necessidades do

desenvolvimento que consistem nas preocupações fundamentais desses países.

Para a OMC, recomendava-se que as consultas fossem representativas da

plenitude dos seus membros e que a participação fosse baseada em critérios

simples, claros e objetivos (ONU, 2003).

                                                            68 Ibid. Parágrafo 53. 69 Ibid. Parágrafo 61.

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No relacionamento entre estas instituições, o documento recomendava

uma maior cooperação entre as Nações Unidas e a OMC, que deveria se

concretizar por intermédio do sistema das Nações Unidas.

[…] interactions between representatives of the Economic and Social Council and the Directors of the Executive Boards of the World Bank and the International Monetary Fund can serve as preliminary Exchange on matters related to the follow-up to the Conference and preparations for the annual spring meeting between those institutions. Similar interactions can also be initiated with representatives of the appropriate intergovernmental body of the World trade Organization…We encourage the United Nations, the World Bank and the International Monetary Fund, with the World Trade Organization to address issues of coherence, coordination and cooperation, as a follow up to the Conference, at the spring meeting between the Economic and Social Council and the Bretton Woods institutions. The meeting should include an intergovernmental segment to address an agenda agreed to by the participating organizations, as well as a dialogue with civil society and the private sector.70 O papel que as Nações Unidas deveriam exercer nesse processo apareceu

nos debates da mesa “Looking Ahead”, no qual figuravam a criação de um Fórum

de consulta permanente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre

temas monetários e financeiros e o estabelecimento de um compromisso entre a

OMC e a ONU para trazer a Organização Mundial do Comércio para o interior do

sistema da Organização das Nações Unidas, no sentido de aumentar a sua

coerência com as demais instituições de Bretton Woods71.

4.8

As apreensões das Nações Unidas com o avanço das negociações

comerciais: a herança do espírito de Monterrey e a ênfase no

desenvolvimento dos PEDs

Os esforços das Nações Unidas para concretização das metas de

desenvolvimento social envolveu o debate sobre a coerência entre as instituições

como forma de viabilizar o desenvolvimento econômico dos PEDs e a sua maior

integração ao cenário multilateral. Essa preocupação das Nações Unidas se

                                                            70 Report of the International Conference on Financing and Development. New York, United Nations, 2002. Disponível em: http://dacceddssds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N02/392/67/pdf/N0239267.pdf?OpenElement. Acesso em: 08 jun. 2008 71 Ibid.

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tornava mais presente na razão direta do contexto internacional após crises

financeiras dos anos 90, quando o debate sobre a reforma da arquitetura

econômica de Bretton Woods exigia a incorporação a esse projeto da maior parte

dos países que sentiam os efeitos das crises.

O destaque conferido ao papel do comércio como capaz de promover o

desenvolvimento dos PEDs que anima o espírito de Monterrey já vinha, contudo,

se desenvolvendo na esteira do debate sobre as reformas. Essas preocupações já

figuravam no debate previamente à Conferência de Monterrey e permaneceram

como foco das apreensões das Nações Unidas nas discussões que se seguiram à

aprovação da Declaração de Monterrey. Principalmente no que diz respeito aos

encontros que avaliavam os graus de aplicação dos compromisssos da

conferência.

Nesse sentido, nessas discussões das Nações Unidas já havia uma

preocupação clara com o possível resultado da Conferência de Cancun que

ocorreria em setembro de 2003. Durante o trânsito entre Doha (2001) e Cancun

(2003), portanto, a ONU buscaria amortecer os conflitos, já prevendo a possível

reemergência de uma clivagem Norte-Sul no regime de comércio.

Essa trajetória das análises da ONU é importante, pois ela identifica a

inserção dos países em desenvolvimento no interior do regime de comércio numa

conjuntura que parecia pouco propícia para o avanço das negociações, na fase

anterior à Conferência de Cancun (2003).

Antes da Conferência de Monterrey (2002), em 20 de fevereiro de 2003, a

Assembléia Geral adotou uma resolução sobre o diálogo de alto nível com vistas

ao fortalecimento da cooperação econômica internacional para o

desenvolvimento,72 já inspirada na futura ratificação do Consenso de Monterrey.

Nessa resolução, já era determinada a continuação dos debates que seriam

inaugurados naquela conferência, mediante a organização de encontros bienais de

nível ministerial. O primeiro desses encontros seria realizado no final de outubro

de 2003, com o nome de “The Monterrey Consensus: status of implementation

and tasks ahead”.

Em 24 de março de 2003, o Secretário Geral da ONU emitiu um

documento onde consta o esforço das Nações Unidas para levantar dados sobre a

                                                            72 General Assembly- Fifth-Seventh Session. Agenda Iten 86(d) - A/RES/57/250.

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possibilidade de compatibilização entre as políticas internas dos países e a das

instituições de Bretton Woods. O foco do documento consistia na necessidade de

coerência das instituições para possibilitar a aplicação do Consenso de Monterrey.

Naquele documento, as futuras negociações do regime de comércio

multilateral já aparecem sob a perspectiva da ressurgência da clivagem Norte e

Sul. Sobressai-se a preocupação com as possibilidades do sucesso da futura

Conferência Ministerial de Cancun (2003), a partir da questão do

desenvolvimento dos PEDs que reclamava uma solução ou compromisso da parte

das instituições fundamentais da ordem internacional. A solução encontrada

residia no aprofundamento do debate e implementação do Consenso de Monterrey

(2002) que a partir do encontro programado para 2003 teria o poder de reforçar a

confiança internacional na economia global:

World Trade is Growing Slowly and short term prospects remain unsatisfying. Especially, for most developing countries. Analysts perceive difficulties in reach agreement in World Trade Organization (WTO) negotiators missed 2002 deadlines and its difficult to discern the direction in which global trade might evolve.73 Após a Conferência de Monterrey, em 14 de abril de 2003, o Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas promoveu um encontro especial de alto

nível entre as instituições de Bretton Woods e a OMC. A tônica desse encontro

consistiu na coerência dos sistemas financeiro, monetário e comercial como via

essencial do desenvolvimento. No diálogo entre as instituições de Bretton Woods

sobre a aplicação dos resultados do Consenso de Monterrey, resultou um

documento final que apontava a necessidade de avançar naquelas negociações

antes da Conferência Ministerial de Cancun (2003), que ocorreria em setembro.

Na ocasião, surgiu a proposta de que o Mecanismo de Revisão de Políticas

Comerciais da OMC fosse utilizado para permitir levar em conta as políticas de

comércio nacionais no enfrentamento de questões como o desenvolvimento

nacional e redução da pobreza.

Na seção “Coherence and Governance”, do documento final (A/58/77), os

participantes afirmam que coerência seria fundamental entre o âmbito doméstico e

o internacional, com muitos ministros afirmando que os fundamentos da política

                                                            73 E/2003/50. p. 3. 

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econômica internacional se encontravam no âmbito doméstico dos Estados e que a

coordenação efetiva entre os ministérios das finanças, do comércio, cooperação

para o desenvolvimento e relações exteriores, enfatizando que os objetivos do

Mandato de Doha deveriam ser observados nas negociações comerciais:

[…] instructions to country representatives to the United Nations, the Bretton Woods institutions and WTO should be consistent with the commitments in the United Nations Millennium Declaration, the Doha Ministerial Declaration, the Monterrey Consensus and the Johannesburg Plan of Implementation.74 Houve também o consenso em torno da necessidade de incorporação dos

países em desenvolvimento no processo decisório das instituições multilaterais.

Sugeriu-se a criação de um Conselho de Segurança Econômica subordinado às

Nações Unidas. No que diz respeito às instituições de Bretton Woods, sugeriu-se

uma reformulação ou mesmo um “re-birth” se sugerindo que essa reformulação

poderia envolver a redistribuição do peso dos votos nas instituições, incluindo a

OMC:

[…] to enhance the voice and participation of developing countries there was a need to reduce the size and complexity of the governance structure of the Bretton Woods institutions, for example, by reducing the number of ad hoc grouping of countries. More cooperative efforts should be deployed to enhance the capacity of poor countries to be represented and articulate their position in the Bretton Woods institutions and WTO more effectively.75 Nesse espírito de incorporação dos PEDs ao multilateralismo, em 5 de

agosto de 2003 o Secretariado-Geral da ONU divulgou seu relatório

“implementation of and follow-up to commitments and agreements made at the

international Conference on Financing and development” (A/58/216). Nesse

documento, crescia a ênfase no comércio multilateral, sendo ressaltado que a

agenda de Doha (2001) oferecia a oportunidade de incorporação dos países em

desenvolvimento aos benefícios do comércio multilateral e que essa oportunidade

deveria ser plenamente realizada, demonstrando preocupação com a perda dos

prazos estabelecidos para as negociações que ocorreriam em setembro de 2003,

em Cancun.

                                                            74 A/58/77. Parágrafo 33. 75 A/58/77. Parágrafo 39.

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Esse documento contrastava o andamento das negociações de Doha (2001)

com o compromisso estabelecido no programa de Monterrey (2002), onde os

países se comprometeram em garantir acesso a todos os mercados aos produtos de

exportação dos países em desenvolvimento, sublinhando que as negociações

deveriam levar em conta as necessidades especiais dos países em

desenvolvimento.

O documento (A/58/216) também denunciava o protecionismo dos países

desenvolvidos, apontando que 60% dos picos tarifários nas importações dos

países desenvolvidos – EUA, EU, Japão e Canadá incidiam sobre os produtos

exportados pelos países em desenvolvimento, o que era sublinhado como

inconsistente com o espírito de Monterrey (2002):

Agriculture subsidies and support that impede competitive imports from developing countries are inconsistent with the spirit of the Monterrey Conference and must be reduced, including those not currently subject to WTO commitments and export subsidies should be eliminated. All countries must exercise the utmost restraint in applying those remedies, standards and rules so that they do not act as trade barriers.76 Diante do reconhecimento dessas questões e como forma de permitir a

incorporação dos PEDs ao avanço das negociações, o documento recomendava

não apenas a necessidade de tratamento especial e diferenciado para os PEDs nas

negociações da rodada, mas também que se fazia necessária a consideração da

dimensão do desenvolvimento dos países como questão fundamental que deveria

ser observada naquelas negociações:

A broad based, development-oriented set of special and differential treatments of developing countries in trade policy needs to be formulated, taking into account the following considerations: the broad application of most favoured nation and non-discrimination policies coupled with less than full reciprocity in negotiations: the calibration of disciplines in a manner commensurate with the trade, financial and development needs and capacities of developing countries; adequate flexibility with regard to inside-boarder issues and trade related agreements; greater stability; security and predictability of the special and differential treatments; preferential market access; special consideration by developed countries before the application of trade defense measures against developing countries; full consideration of development dimensions in new and emerging issues; and the provision of adequate resources to developing countries to finance the implementation cost and consequent adjustment arising from multilateral trade agreements.77

                                                            76 In: A/58/216. Parágrafo 86. 77 A/58/216. Parágrafo 90.

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Algumas das tensões entre países desenvolvidos e em desenvolvimento

que se materializariam na Conferência Ministerial de Cancun, resgatando a

clivagem Norte-Sul aparecem, portanto, claramente nesses documentos. A

centralidade das preocupações com o desenvolvimento dos PEDs que

reverberavam pelo debate sobre a coerência entre os mandatos das instituições-

chave de Bretton Woods constitui um indício importante para avaliar o impacto

do momento de transição por que passavam essas instituições sobre as

negociações do regime de comércio.

Seria a partir da não observância dessas questões pelas negociações que se

seguiriam na OMC que o impasse das negociações ocorreria. Isso permite e

autoriza o argumento de que o momento de transição da ordem internacional se

relaciona intimamente com os acontecimentos dramáticos que se seguiriam na

OMC. Sobretudo, a partir das grandes expectativas que surgiram na agenda

internacional em torno de um novo projeto de desenvolvimento que centrava os

debates sobre a integração dos PEDs nas instituições multilaterais que tornava

prioritária a sua aplicação.

4.9

Conclusão

O conteúdo desse capítulo explorou os efeitos da atuação do FMI e do

Banco Mundial a partir das políticas que elas recomendaram para o

desenvolvimento dos PEDs nos anos 90. O resultado dessa trajetória conduziu a

uma sucessão de eventos que conduziriam à gradual alteração nas bases do

consenso internacional sobre o desenvolvimento desses países que legitimava e

tornava atrativa a sua adesão às instituições de Bretton Woods.

Esse movimento traria implicações fundamentais sobre o FMI e o BIRD,

que absorveram as críticas no seu interior, chegando ao começo do novo século

vivendo uma fase de balanço que não excluiu a autocrítica e que trazia incerteza

quanto ao seu futuro papel nas Relações Internacionais. Não havia certezas quanto

à direção que as reformas tomariam a partir daquele debate.

Nesse sentido, o fim do Consenso de Washington, enquanto concepção de

desenvolvimento prevalecente, deslocava nesse movimento o tema do

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desenvolvimento do seu lócus tradicional que passava obrigatoriamente pelas

políticas não apenas recomdendadas, mas também impostas pela política de

condicionalidades perseguida por essas instituições.

Naquele momento, algumas das propostas de reforma das instituições,

como aquela do Relatório Meltzer, pretendiam que as instituições de Bretton

Woods abandonassem a política das condicionalidades, deixando de pautar sua

atuação pela instrumentalização dos interesses dos países desenvolvidos como

tradicionalmente.

Para que as ambições daquele direcionamento de reforma recomendado

pela Comissão Meltzer se concretizassem, entretanto, os países em

desenvolvimento teriam de estar profundamente integrados nas instituições de

Bretton Woods. Para esse objetivo, as etapas da reforma das instituições deveriam

consistir num processo pautado por princípios com uma atenção especial

dispensada ao tema do desenvolvimento dos PEDs.

É nesse ponto do deslocamento do tema do desenvolvimento do interior

das instituições de Bretton Woods, que o papel das Nações Unidas passou a ser

preponderante para buscar reverter as conseqüências da crise nas demais

instituições. A grande adesão dos PEDs à ONU refletia o fato de a instituição

jamais haver desempenhado o papel de instrumento político dos países

desenvolvidos pela aplicação das condicionalidades, sendo tradicionalmente

percebida como ambiente institucional propício à maior influência da ação

coletiva desses países, que no seu interior se beneficiavam do seu grande número

em certas arenas de negociação.

Nesse sentido, a contribuição das Nações Unidas para buscar amortecer os

impactos da crise se adequava formidavelmente ao projeto de reforma das

instituições prevalecente naquele momento. Aumentar a legitimidade do FMI e do

Banco Mundial para melhor integrar os PEDs no seu interior teria

necessariamente de envolver, naquele momento após as crises dos anos 90, o

abandono das condicionalidades que convertia as instituições em instrumentos de

política externa dos países desenvolvidos.

Era assim que se abria caminho para que a nova concepção do

desenvolvimento dos PEDs que já vinha florescendo no interior das Nações

Unidas desde os anos 90 entrasse forte na agenda internacional a partir dos

debates sobre a reforma das instituições. Foi isso o que ocorreu na Conferência de

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Monterrey (2002), pois a discussão central que deveria prover uma maior

legitimidade para as instituições de Bretton Woods centrada no tema do

desenvolvimento dos PEDs consistia no debate sobre a coerência entre os

mandatos daquelas instituições.

Essa complememtaridade da sua atuação conjunta, perdida desde o fim de

Bretton Woods, ressurgia na agenda internacional naquela conferência, pois ela

consistiu na primeira iniciativa a envolver a presença e os debates conjuntos entre

as três arenas ou pilares da ordem econômica internacional - FMI, BIRD e OMC-

que compareceram ao debate no âmbito das Nações Unidas diante da necessidade

de debater uma reorientação fundamental dos seus mandatos.

A hegemonia dos países desenvolvidos através das instituições deveria,

naquele momento, envolver a reformulação da atuação dessas instituições, para

responder à alteração na concepção hegemônica do desenvolvimento que vinha

pautando o comportamento dos pilares da ordem econômica até então.

O meio para essa reformulação que permitiria restaurar a legitimidade das

instituições consistia em avançar uma nova concepção do desenvolvimento que

pudesse gerar um novo consenso internacional que tornasse atrativa a participação

dos PEDs. Nesse sentido também o papel das Nações Unidas que organizavam a

Conferência de Monterrey (2002) - sobre o financiamento para o

desenvolvimento, como meio para atingir as Metas do Milênio - consistia na

ocasião perfeita para o debate daquelas reformas.

Isso acontecia graças à nova concepção do desenvolvimento que vinha

ganhando força no interior da Organização desde os anos 90, cujas cúpulas sociais

eram a manifestação mais expressiva. Afinal, esse novo conceito de

desenvolvimento passava a ser considerado um direito dos PEDs, equivalente a

um bem público global que deveria ser provido pelas instituições aos cidadãos

desses países.

Essa consistiu num momento fundamental para a retomada do

compromisso da reforma fundamental da agricultura que figurava na Declaração

de Doha (2001) já refletindo a nova concepção do desenvolvimento. Na

Conferência de Monterrey (2002), o direito ao desenvolvimento dos PEDs seria

associado à liberalização dos mercados agrícolas dos países desenvolvidos,

reforçando aquele compromisso estabelecido no ano anterior.

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Page 48: 4 A crise das instituições nos anos 90, o debate das ... · O questionamento das bases do modelo de desenvolvimento prevalecente antes das crises abria espaço no consenso internacional

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No entanto, a Conferência de Monterrey (2002) que buscava avançar esse

projeto de reforço da legitimidade das instituições de Bretton Woods, a partir

dessa nova concepção de desenvolvimento, se defrontou com muitas resistências

políticas à direção das reformas que pretendia serem encaminhadas.

Isso agravou a percepção dos prognósticos que foram traçados durante a

Conferência em relação à situação dos PEDs nas negociações da Rodada de Doha

que seriam proximamente retomadas em Cancun (2003). A Declaração de

Monterrey (2002) não foi capaz de vencer as resistências às reformas, não

aprovando as novas fontes de financiamento para o desenvolvimento que

pretendia para a concretização das Metas do Milênio. Nesse sentido, figurou,

sobretudo, como um protocolo de intenções sendo incapaz de estabelecer metas

concretas em torno de compromissos substantivos e prazos de aplicação para as

mdeidas acordadas.

Igualmente, as recomendações da Conferência sobre a situação dos PEDs

no cenário das negociações de comércio multilateral, que apontavam que aquela

situação poderia comprometer o resultado das futuras negociações naquela fase

ainda tão incipiente, já denunciavam o possível choque de interesses que poderia

se manifestar em Cancun (2003). Isso levou a que, nos encontros posteriores das

Nações Unidas, destinados a monitorar o cumprimento dos compromissos de

Monterrey (2002), a questão do comércio ganhasse relevância. Naquelas ocasiões,

demonstrou-se a preocupação de que as reformas das instituições trouxessem

algum avanço para que as negociações de comércio não fossem comprometidas.

Essa profecia de Monterrey e dos encontros posteriores sobre a

implementação daqueles compromissos antecipavam as amplas repercussões que

se manifestariam sobre a rodada, pois o momento de transição vivido pelas

instituições, desde o lançamento da rodada, terminaria permitindo que o dissenso

em torno das perspectivas do desenvolvimento dos PEDs transferisse muitas

tensões da conjuntura da ordem internacional para as futuras negociações da

OMC.

A forma como essas tensões se manifestariam sobre a trajetória da OMC,

após a instituição haver superado o desafio do lançamento da sua primeira rodada

de negociações, após o colapso da Conferência de Seattle (1999), consiste no tema

do próximo capítulo.

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