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36 4 As funções do pronome lhe Neste capítulo começaremos a propor hipóteses de análise que possam justificar o porquê de preferirmos certas posições teóricas e gramaticais encontradas em algumas obras: LD, GP e GT e, ao mesmo tempo, explicar por que discordamos de tantas outras que se encontram nestas mesmas obras. Ressaltamos que nossa preocupação agora não será com as divergências encontradas entre tais obras, pois isto é um fato, conforme demonstrações presentes no capítulo 2. Procuraremos discutir mais pontualmente os principais impasses acerca das funções do pronome lhe, que costumam criar dúvidas quando aprendemos e/ou ensinamos tais funções. Afinal, o lhe nos LD e GP pode aparecer como: objeto indireto, adjunto adnominal e complemento nominal, sem que para isso haja critérios claros ou pelo menos compatíveis com as propostas sugeridas por tais obras. Assim, a partir das considerações preliminares que fizemos nos capítulos anteriores, prosseguiremos nossa viagem, objetivando, ao final do percurso, responder algumas das indagações que nos fizemos no início do trabalho. 4.1 Aspectos Diacrônicos Antes de entrarmos no mérito de cada função atribuída ao pronome lhe , vamos falar um pouco de sua história, pois acreditamos que isto dará maior suporte às análises que vamos fazer depois. Como já dissemos em outras ocasiões o lhe é um pronome de terceira pessoa e, conforme Silveira (1972, p.119), entre outros, os pronomes de 3ª pessoa (3P e 6P) provêm do demonstrativo latino ille, illa e conservaram no português vestígios de casos, isto é, há formas específicas para as diversas funções sintáticas. Observe-se o quadro a seguir: 3ª pessoa do singular (3P)

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4 As funções do pronome lhe

Neste capítulo começaremos a propor hipóteses de análise que possam

justificar o porquê de preferirmos certas posições teóricas e gramaticais encontradas

em algumas obras: LD, GP e GT e, ao mesmo tempo, explicar por que discordamos

de tantas outras que se encontram nestas mesmas obras.

Ressaltamos que nossa preocupação agora não será com as divergências

encontradas entre tais obras, pois isto é um fato, conforme demonstrações presentes

no capítulo 2. Procuraremos discutir mais pontualmente os principais impasses acerca

das funções do pronome lhe, que costumam criar dúvidas quando aprendemos e/ou

ensinamos tais funções. Afinal, o lhe nos LD e GP pode aparecer como: objeto

indireto, adjunto adnominal e complemento nominal, sem que para isso haja critérios

claros ou pelo menos compatíveis com as propostas sugeridas por tais obras.

Assim, a partir das considerações preliminares que fizemos nos capítulos

anteriores, prosseguiremos nossa viagem, objetivando, ao final do percurso,

responder algumas das indagações que nos fizemos no início do trabalho.

4.1 Aspectos Diacrônicos

Antes de entrarmos no mérito de cada função atribuída ao pronome lhe,

vamos falar um pouco de sua história, pois acreditamos que isto dará maior suporte às

análises que vamos fazer depois.

Como já dissemos em outras ocasiões o lhe é um pronome de terceira pessoa

e, conforme Silveira (1972, p.119), entre outros, os pronomes de 3ª pessoa (3P e 6P)

provêm do demonstrativo latino ille, illa e conservaram no português vestígios de

casos, isto é, há formas específicas para as diversas funções sintáticas. Observe-se o

quadro a seguir:

• 3ª pessoa do singular (3P)

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Nominativo Ïlle (masc.) > êle, el (arc.); ïlla (fem.) > ela.

Genitivo Illus (nada produziu em português).

Dativo Illi > (i)li > li > lhi * > lhe (masc. fem.)

Ablativo Illo, illa (nada produziram em português)

Acusativo Illum (masc) > (i)lu > lo > o ; illam (fem.) > la > a

*conf. Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia, p.52.

A título de complementação ou mesmo ratificação do quadro anterior,

observe-se o que Williams (1938, p.158) diz:

"Então lhe, veio a ser usado como forma dativa regular, substituindo li. E lhi, variante de lhe, brotou da influência de li, e de mi e de ti, que por essa época ainda eram usadas como formas conjuntivas do pronome."

Assim, considerando a forma imediatamente anterior ao lhe, temos o lhi.

Vejam-se um exemplo do uso desta forma, no português arcaico:

"me lhi leixe tanto dizer"

(Fernão Velho, Cancioneiro da Vaticana, publicado por E.Monaci, poesia 54)

Fica fácil entender o porquê de associarmos o lhe à função de objeto indireto.

Afinal, há uma tendência muito grande de associarmos o caso latino à função

sintática do termo em português.

• Vejamos agora, o que aconteceu com a 3ª pessoa do plural (6P):

Nominativo Illi, illae (nada produziram em português). O plural êles, elas, é

feito de êle, ela, com a desinência -s, característica do plural em

português)

Genitivo ilorum(masc.), illarum (fem.) nada produziram em português).

Dativo illis (masc. e fem.) nada produziram em português).

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Ablativo iIlis (nada produziu em português).

Acusativo illos > (i)los > los > os; illas > (i)las >las > as.

No caso da terceira pessoa do plural, podemos perceber que o dativo não

gerou nada em português, contudo como explicar a forma lhes? Na verdade o lhes,

que é chamado por Silveira (1972) "de nosso dativo", funciona sintaticamente da

mesma maneira que o lhe (singular). No entanto, sua flexão não acontece a partir da

declinação latina, mas a partir do próprio lhe, ou seja, com a inserção do morfema

desinencial indicador de plural -s, que é uma característica morfológica do português.

Se observarmos os dois quadros, notaremos que com o nominativo aconteceu

fenômeno semelhante. O nominativo illi, illae (6P), não produziu nada em português,

embora, a forma plural para eles e elas exista. Assim, observando as orientações dos

quadros, podemos verificar que o plural eles, elas, é feito de ele, ela, com a inserção

da desinência -s, morfema indicador de número.

Da mesma forma, o antigo lhe servia e ainda serve nas combinações do tipo lho,

que pode eqüivaler a lhe + o e lhes + o. Vejam-se os exemplos:

[22]- "tomando-lhe o novêllo das mãos n'um instante desembaraçou o fio e lho tornou

a entregar.

(Garrett, Viagens, 74)

[23]- "Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe: Vai para tua casa, para os

teus."

(Bíblia, Marcos, cap. 4, vers. 19)

[24]- "(...)e estas danças eram a soom dumas longas que estonce husavom, sem

curando doutro estormento posto que o hi ouvesse, e se alguma vez lho queriam

tanger, logo se enfadava dele"

(Lopes, Cap. XIV, p.17)

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Por intermédio desta rápida incursão etimológica a respeito do lhe, pudemos

verificar que tal termo vem há muito tempo se transformando e assumindo um

comportamento peculiar no corpus da língua portuguesa. Vale ressaltar que apesar do

longo período que se levou para a existência do lhes, nos termos mencionados

anteriormente, encontramos ocorrências do lhe dativo, substituto de substantivo,

porém, funcionando tanto para singular quanto para plural. Vejam-se os exemplos a

seguir do séc. XV, extraídos da Crestomatia Arcaica de J.J. Nunes:

[25]- "Em aquesta estoria, o doctor nos ensina que nom deuemos ajudar os maaos

homëes quamdo os veemos en algüus prejgos, por que, sse algüu bem lhe fazemos,

sempre d'elles aueremos maaos mereçimentos, como fez esta coobra, que deu maao

galardom áquel que a liurou do prijgo da morte"

(Fábula : O vilão que recolhe a serpente).

Neste exemplo o lhe funciona como objeto indireto e se refere aos "maaos

homëes", que está no plural.

Outro exemplo:

[26]- "per esta hestoria o douctor nos demostra que nós nom deuemos d'ajudar os

maaos homës, porque os maaos nom agradecem, nem som conhocentes do bom

seruiço que lhe outrem faz, mais muitas vezes dam maao grado a quem lhe faz bom

seruiço"

( Fábula: O lobo e a grua).

Aqui, temos duas ocorrências do pronome lhe, e ambas estão se referindo à

expressão "os maaos homës", que está no plural. A este respeito Oiticica (1926,

p.177) já afirmava que "no antigo português, a forma lhe era geralmente invariável."

O mesmo fenômeno ainda ocorre com o lhe no séc. XVII. Vieira usa o lhe

invariável com referência ao singular ou plural. Paralelamente, em outros momentos

flexiona este pronome da mesma maneira que se faz no português moderno, como se

verifica a seguir:

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[27]- "Somos como os que navegando com vento, e maré, e correndo

velocíssimamente pelo Tejo acima, se olham fixamente para a terra, parece-lhe que

os montes, as torres, e a cidade é a que passa; e os que passam são eles."

(Vieira. Sermões, V, 20, 1689).

[28]- "Não lhe fora melhor a Sichem não ver a Diana"

(Vieira. Sermões, I, 890, 1689).

[29]-"(...) e se S.M. lhes confiscar o que têm furtado, eu lhe prometo que lhe renda

mais esta confiscação de poucos sujeitos que o novo tributo de todo reino (...)"

(Vieira. Carta ao Marquês de Gouveia, 1662).

É no século XVII que se firma no português a flexão de plural deste pronome.

O que queremos demonstrar com exemplos do português arcaico e outros

mais recentes é o fato de que a utilização da forma lhes demorou a acontecer. No

entanto, isso não impediu que o lhe para singular e plural funcionasse perfeitamente.

A este respeito, veja-se o comentário de Dias (1959, p.70):

"No português arcaico médio é freqüente a forma lhe como plural, e ainda é

muito vulgar na linguagem do povo; ocorre ás vezes nos proprios escriptores modernos, nomeadamente em Bocage, e é a forma que tem de empregar-se na combinação com o pronome o "

Veja-se o exemplo citado por Dias:

[30]- "Deixão dos sete ceos o regimento / Que do poder mais alto lhe foi dado"

(Os Lusíadas, I, 21)

Note-se que Dias dá o testemunho, de que, ao seu tempo, a forma lhe como

plural é corrente na fala popular e ainda ocorre em autores modernos.

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4.2 Objeto indireto

Certamente a função sintática do lhe mais freqüente nos LD, GP e GT é a de

objeto indireto. E este fato tem uma explicação básica que já mencionamos

anteriormente, no subtítulo 4.1. O pronome lhe, foi originado do dativo latino que

tem uma espécie de função paralela à do complemento indireto do português. Do

mesmo modo o status de complemento é garantido, pois o lhe preenche perfeitamente

o espaço exigido pelo verbo. Concomitantemente, a preposição implícita no lhe

propicia que a complementação seja considerada indireta, ou seja, complemento1

indireto. Por tudo isso, não há a menor dúvida de que o lhe pode funcionar como

objeto indireto.

Vejam-se as afirmações de alguns autores a respeito desta função sintática:

1- "Como complementos indiretos átonos empregam-se: me, te, lhe, nos, vos, lhes

e se(reflexo)"

(Dias, 1959, p.69)

2- " O pronome pessoal oblíquo lhe (lhes) funciona como objeto indireto"

(Paschoalin, 1989, p. 195)

3- "Lhe com seu plural é a forma de dativo (objeto indireto)"

(Said Ali. 1964, p.94)

4- "Objeto indireto é o complemento que representa a pessoa ou coisa a que se

destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ele se realiza. Aponte-se-lhe os

seguintes caracteres típicos: a) o ser encabeçado pela preposição; b) o

1Rocha Lima fala também do termo "complemento relativo". O que poderia aumentar a

quantidade de classificações para o lhe. No entanto, em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa ( RJ, 9ªed., 1963, p.244), ele descarta esta possibilidade: "Complemento relativo é o complemento que, ligado ao verbo por uma preposição determinada (a, com, de, em, etc.), integra, com valor de objeto direto, a predicação de um verbo de significação relativa. Distingue-se nitidamente do objeto indireto pelas seguintes circunstâncias: a) não representa a pessoa ou coisa a que se destina (...); b) não corresponde, na 3 ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe, lhes, mas às formas tônicas ele, ela, eles, elas, precedidas de preposição.

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corresponder, na 3ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe, lhes; c) o não

admitir - salvo raríssimas exceções - passagem para a voz passiva".

(Lima, 1963, p.240)

5- "Exemplo: Entreguei-lhe a encomenda(...) Nesse exemplo, o objecto indireto é

expresso pelo pronome lhe pessoa a quem entreguei, a ele, a ela. O mesmo ocorre

com os pronomes me, te, se, nos, vos, quando equivalem a mim, a ti, a ele, a nós,

a vós, a êles"

(Oiticica, 1926, p.177)

6- "a forma lhe é privativa daqueles verbos ativos em que a ação culmina num

objeto, dito indireto"

(Câmara Jr., 1976, p.108)

Observem-se alguns trechos em que o lhe funciona como objeto indireto, e

verifique-se que tal uso é muito antigo, observando os primeiros exemplos:

[31]- "(...) queria tolher sua caça e disselhe: "tornadeuos, senam sodes morto."E

Glifet nom se quis tornar por el, ca mujto desejaua dar cima aaquela caça."

(Episódio: "Besta Ladrador"- Demanda do Santo Graal- Manuscrito do séc. XIII)

[32]- "(...) e ali lhe disse o pobre, se escapar quiria, que vestisse os seus fatos rotos, e

assi de pee andasse quanto podesse ataa estrada que ia pera Aragom (...)"

(Lopes, Crônica de D. Pedro I, Séc. XV, Cap. XXXI)

[33]- "(...) Falsas manhas de viver, / muito por sua vontade, / senhor, que lhe hei-de-

fazer?"

(Vicente. Auto da Feira, Séc. XVI)

[34]- "Aos avarentos, não lhes devo nenhuma gratidão."

(Sarmento, 2000, p.348)

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Assim, concordamos com os LD e GP que afirmam que o lhe é um objeto

indireto e acreditamos que esta afirmação poderia ser introduzida já no momento em

que se estivesse tratando o lhe como pronome pessoal e substantivo. Posteriormente,

esta afirmação poderia ser retomada quando o assunto objeto indireto fosse tratado, e

não em parte estanque desvinculada do assunto, como às vezes acontece. Pode

parecer irônico, mas acreditamos que o esquema apresentado por Oiticica

(1926, p.26) , em seu Manual de Análise, serviria para este fim, apesar de ter sido

apresentado no início do século XX. Ele coloca ao mesmo tempo categoria gramatical

e sua possível função. Observemos a reprodução do quadro:

PRONOMES PESSOAIS PRONOMES SUBJETIVOS PRONOMES OBJETIVOS ADVERBIAIS 1 ª Pes. eu, nós

2ª Pes. Tu, vós

3ª Pes. 1- Com quem se

fala: você, o senhor, V. Ex., etc.

2- De quem se fala: ele, ela, eles, elas.

DIRETOS: 1ª pess.: me, nos 2ª pess.: te, vos 3ª pess.: . com quem se fala: você, o senhor, V. Ex. . de quem se fala: se, o, a, os, as.

INDIRETOS:me, mim, te, ti, se, si, lhe, lhes, a ele, a ela, a eles, a elas, a você, etc.

comigo, contigo, consigo, conosco, convosco.

Vale ressaltar que o ponto que nos interessa especificamente é a tentativa que

Oiticica faz de associar as categorias gramaticais às suas possíveis funções. Assim, o

aluno já poderia fazer algumas inferências antes mesmo de trabalhar com as funções

sintáticas propriamente ditas. Não podemos esquecer, no entanto, que a aplicabilidade

mais efetiva do quadro depende de algum tipo de contextualização dos pronomes que

nele aparecem.

Acrescentamos que a decisão dos LD, GP e GT classificarem o lhe como

objeto indireto, ocorre provavelmente porque tais obras recorrem à norma da língua

para fazer tal opção. E isto é bastante compreensível. No entanto, como já pudemos

perceber, através das transformações morfológicas e da vulnerabilidade do lhe diante

do uso, nem sempre as orientações do registro culto o determinam. Em outras

palavras, nossa hipótese parte do fato de que existe um conjunto de regras propostas

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pela norma culta que controlam e determinam o que é correto ou não. Porém, por

vezes, o uso, a necessidade, são capazes de sobrepujar tais regras. Nesse sentido,

podemos parafrasear o que é dito por Alves (1990, p.6), pois não acreditamos que a

língua, "patrimônio de toda uma comunidade lingüística", despreze a capacidade

criativa do falante, que em busca de comunicar-se pode dar às estruturas gramaticais

funções novas.

4.2.1 "Lhe-ismo"

Pelo que concluímos até aqui ninguém discute que o lhe é dativo, logo, objeto

indireto. Porém, o que fazer diante de construções como:

[35]- "Olha, seu Laio, eu lhe chamei para lhe aconselhar"

(fala de um personagem, Guimarães Rosa, Sagarana, p. 81)

[36]- "Senão é, diga. Ou lhe amasso."

(fala de um personagem, Jorge Lima, O Anjo, 141)

[37]-"Aquilo ia-lhe roendo por dentro.(p.20)

Como mudaste meu bem! mirava-lhe" (p.23)

(Marques Rebelo, Oscarina)

[38]-"(...)o dono está na frente lhe esperando e, se você não enxerga o dono, o dono

lhe enxerga e o azar é seu"

(Raquel de Queiroz, Passeio a Mangaratiba, em "Diário de Notícias", 11.4.1954, p.1)

Certamente, nestas construções que não são raras, o lhe, embora continue

sendo um complemento, passa a responder a pergunta de um verbo transitivo direto.

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Logo, assume papel acusativo e não dativo. Então, o que fazer diante deste fenômeno

lingüístico?

Os espanhóis chamam de leismo o emprego da forma le do pronome de

terceira pessoa, como única no acusativo masculino singular (Dicionário da Real

Academia). E, por analogia, conforme Nascentes (1990), criamos a palavra lheismo

para designar, no português do Brasil, o emprego da forma lhe como objeto direto2.

Para o espanhol também há uma distinção: la e lo como formas regulares para o

acusativo, e le para o dativo. Mas observe o que diz a Gramática Histórica

Espanhola, no parágrafo 94:

"En el uso las funciones del dativo y acusativo, aparecem bastante confundidas; el leismo domina en Castilla, atribuyendo a le funciones del acusativo, masculino lo, y aün se extiende al plural diciendo les por los."

A própria Gramática de la lengua esnpañola por la Real Academia Española,

parágrafo, 219 e 246, admite le como acusativo, confirmando assim a possibilidade

do leismo.

Na mesma direção, Nascentes (1990) afirma que o le espanhol é um

correspondente do lhe português e que o funcionamento do lhe como acusativo é

bastante recorrente aqui no Brasil. Para ele, na linguagem corrente, o emprego de lhe

dativo se atenuou, usando-se de preferência as expressões a ele, para ele, a você,

para você, que é uma tendência analítica da língua. Este foi um ponto que contribuiu

para o enfraquecimento do lhe como exclusivo dativo. Ao mesmo tempo, por conta

da analogia, que é uma das grandes necessidades da língua, foi sendo utilizado o lhe

para completar a uma série, ao lado de me e te.

"me e te servem para acusativo e dativo. A lhe, da terceira pessoa, dativo, corresponderia o, a, para acusativo. Que fez a língua? Para uniformizar, deu a lhe a função de acusativo e assim ficou: me acusativo e dativo e lhe, também, acusativo e dativo."3

2 GÓIS, Carlos, in: Sintaxe de Regência, 4ª ed., p.149, classifica estes casos como solecismo de regência: "d) o emprego do pronome pessoal oblíquo lhe por o, a: Eu 'lhe' vi - por - eu o vi - Nós 'lhe' admiramos muito - por - Nós o admiramos muito" 3 NASCENTES, Antenor. Estudos Filológicos, Vol. II,RJ, 1990, p.172

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É compreensível que o uso coloque no mesmo patamar lhe, me, te, apesar de

suas diferenças semânticas e morfológicas, pois em termos sintáticos eles

desempenham papéis semelhantes se levarmos em consideração os exemplos

demonstrados: [35], [36], [37] e [38]. Portanto, se o me e o te podem ser acusativo e

dativo, por que o lhe também não o pode, se suas diferenças não comprometem o seu

aspecto funcional ?

Assim, o aspecto acusativo do lhe é característico do português do Brasil e

atinge na linguagem formal os falantes das camadas mais cultas. Tal fato foi

observado por estudiosos que se ocuparam do português do Brasil, entre os quais

destacamos: Antenor Nascentes, Clóvis Monteiro, Gladstone Chaves de Melo, Sílvio

Elia entre outros. Do mesmo modo, Paiva Boléo4, português, e Paul Teyssier5,

francês, registram essa característica do português brasileiro.

De acordo com o exposto, podemos dizer que a língua, despreocupada com a

norma gramatical, ajustou-se ao uso e permitiu que o aspecto funcional do lhe fosse

mantido. Veja o que diz a Real Academia Española, no parágrafo 246:

"pero el uso, que procede siempre, no a capricho, sino seguiendo certas leyes que no es del caso exponer aquí, assimiló la forma le a sus análogas me y te, y empleó como dativo y como acusativo indiscriminadamente..."

Nascentes (1990, p.173) traz um exemplo magistral a respeito disto, através de

um trecho de obra de Machado de Assis:

[39]- "Machado de Assis, em sua crônica de A Semana, de 5 de Agosto de 1894,

conta um caso referente a uma tal Martinha. A folhas tantas diz: Martinha,

indignada, mais ainda prudente, disse ao importuno: 'não se aproxime, que eu

lhe furo'. Mais adiante, à guisa de comentário, acrescenta: palmatória dos

gramáticos pode punir esta expressão, não importa, o eu lhe furo traz um valor

natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucrécia."

4 BOLÉO, Manuel de Paiva. Brasileirismos (Problemas de Método). Coimbra Editora, 1943. 5 TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1987.

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Diante das considerações feitas, não podemos negar a possibilidade do lhe ser

objeto direto, no português brasileiro, sobretudo na linguagem coloquial. Pois, às

vezes, o usuário da língua faz as escolhas que considera mais eficientes para obter

comunicação, mesmo que isso contradiga a gramática normativa.

Assim, duas questões estão em jogo: primeiro o fato de um pronome poder

funcionar com função sintática não prevista nos LD, GP e GT; e a outra é verificar se

tal modificação é motivada por uma vontade implícita do falante de contradizer as

regras (o que nos parece um exagero), ou se o uso faz as alterações independente das

regras pré-estabelecidas pela norma.

De fato, independentemente do pronome lhe receber o nome de objeto direto

ou objeto indireto, seja com esta ou aquela classificação, ele ainda funcionará como

um complemento. E, por isso, não deixa de desempenhar seu papel no discurso:

responder à pergunta feita pelo verbo. Graças ao apelo funcional e comunicativo do

discurso, o falante vai preenchendo os espaços solicitados pelo verbo de acordo com

as exigências comunicativas, sem que para isso tenha que observar as regras

normativas específicas de cada pronome.

O que estamos querendo sustentar, na verdade, é que o motivo de chamarmos

o lhe de objeto direto ou indireto, seria uma análise centrada num aspecto

classificatório do termo, procedimento muito recorrente nos LD e GP. No entanto,

esta atitude deveria atenuar-se em favor de uma análise funcional das estruturas.

Contudo, para que nossa posição diante do fato não pareça indecisa, esclarecemos:

apesar de aceitarmos a classificação do lhe como objeto indireto e objeto direto,

temos a convicção de que sua função decisiva é desempenhar o papel de

complemento.

Acreditamos piamente que o reconhecimento do desempenho do lhe como

dativo ou acusativo nos mostra que classificá-lo como objeto indireto ou direto é um

procedimento secundário, pois esta distinção não acrescenta quase nada, em termos

práticos. Principalmente quando se pensa em ensino e aprendizagem. Portanto, antes

de nos preocuparmos com a classificação objeto indireto ou direto, devemos

reconhecer que o pronome lhe é um complemento.

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Ratificando nossa posição, afirmamos que seja o lhe objeto direto ou indireto,

o que interessa realmente é que sua função e sua importância estão garantidas se

considerarmos que antes de tudo ele é um complemento exigido por um termo

regente. Isto é, o lhe é um complemento.

4.3 O suposto lhe Adjunto Adnominal

Antes mesmo de entrar no mérito da questão, um ponto deve ser lembrado:

alguns podem achar que a utilização do pronome lhe como possível adjunto

adnominal seja um fato recente na língua, ou mesmo que este uso esteja ligado à

modernidade. No entanto, na verdade, esta ocorrência é muito mais antiga do que se

possa imaginar - Vale explicar que estamos falando da ocorrência do fenômeno na

língua e não da classificação que é dada a tal fenômeno. Observe os exemplos:

[40]- "Sem que nisso a desgoste ou desenfade,

Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,

Eu vejo-a, com real solenidade,

Ir impondo Toilettes complicadas!..."

(Cesário Verde,Séc.XIX)

[41]- "Deixa-lhe os calos, deixa-lhe a catinga;

Eis entre os lusos o animal sem rabo

Prole se acalma da rainha Ginga"

(Bocage, Séc. XVIII ).

Quanto ao aspecto cronológico que mencionamos acima, estes dois exemplos

são suficientes para mostrar que o uso do lhe nestas condições não é algo novo. E, se

estes trechos aparecessem em alguns dos LD ou GP pesquisados, provavelmente a

classificação do lhe, enquanto função sintática, seria adjunto adnominal. Do mesmo

modo, se estes trechos fossem submetidos à análise de Oiticica(1926), provavelmente

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o tratamento seria semelhante ao dos LD e GP em questão. Para ele os pronomes

objetivos indiretos: lhe, lhes (conforme quadro apresentado no subtítulo 4.2), quando

puderem ser substituídos por pronomes possessivos vão constituir adjuntos

denotativos dos nomes com os quais se relaciona. Estes adjuntos denotativos

pertencem a uma categoria considerada por ele de função adjetiva, e,

consequentemente, muito mais próxima da classificação dos LD e GP que

denominam os pronomes com tais características de adjuntos adnominais. Vejamos o

exemplo trazido por Oiticica (1926):

[42]- "Arranquei-lhe o capacete da cabeça"

Observemos agora o comentário do exemplo [42], feito pelo próprio Oiticica (1926):

"Nesse exemplo o pronome lhe não é objeto indirecto; é empregado idiomàticamente como adjunto atributivo de cabeça e corresponde a: arranquei o capacete da cabeça DELE. O mesmo se pode dar com os pronomes me, te, nos, vos."

Muitos LD e GP tratam deste assunto, e a maioria considera o lhe um adjunto

adnominal, em certas construções, sem explicação convincente, comprometendo a

fixação dos conteúdos assimilados pelos alunos.

Um esclarecimento faz-se determinante neste ponto de nosso trabalho: não

estamos essencialmente preocupados com a classificação "adjunto adnominal" para o

pronome lhe. O que de fato nos interessa e preocupa é a forma como isto acontece.

Afinal, não temos como último veredicto a certeza de que tal função sintática jamais é

desempenhada pelo lhe, mas o que nos incomoda é a falta de aprofundamento e a

inconsistência de justificativa para tal ocorrência. Neste sentido, tentamos neste

capítulo do trabalho promover tal aprofundamento. Objetivando, principalmente,

trazer um conjunto de pontos para serem analisados e entendidos principalmente

pelos profissionais que lidam com o ensino de gramática de língua portuguesa.

Assim, não há incoerência em não aceitarmos, totalmente, o lhe adjunto

adnominal e admitirmos o lhe objeto direto (Cap.4.2.1, p.47). Pois o que está em

questão não é o que o uso pode fazer com uma estrutura gramatical, afinal, como já

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afirmamos anteriormente, o uso é fator determinante no processo de interação através

da língua. A questão é: quais os subsídios e motivações que "autorizam" os LD e GP

classificarem o lhe como adjunto adnominal ?

Não há discussão quanto às divergências existentes entre LD, GP e as GT

porque enquanto algumas obras nomeiam o lhe como adjunto adnominal, outras

classificam-no como objeto indireto.

Neste sentido, existe um ponto obscuro, se pensarmos que não há nenhuma

semelhança, em termos de funcionamento, entre estas duas categorias sintáticas:

adjunto adnominal e objeto indireto. Mesmo desconsiderando a questão funcional das

estruturas, a própria nomenclatura gramatical, que distingue o adjunto adnominal do

objeto indireto, este como termo integrante e aquele como termo acessório, dando-

lhes importância diferente na construção e estruturação sintática e semântica do texto,

podemos afirmar que tal aproximação ou compatibilidade coloca no mesmo patamar

adjunto (acessório) e complemento (integrante). Fato que deve ser considerado, pelo

menos, um despropósito. Cunha(1992, p.158) fala a este respeito:

"Chamam-se acessórios os termos que se juntam a um nome ou a um verbo para precisar-lhes o significado. Embora tragam um dado novo à oração, não são eles indispensáveis ao entendimento do enunciado. Daí sua denominação."

É interessante verificar que muitos e diversificados são os motivos que fazem

com que o lhe pareça tão multifacetado, desde as definições mais básicas até a

própria exemplificação. Observemos as frases a seguir:

[43]- Quiseram roubar-lhe o rádio. (Luft, 1993: 19).

[44]- Quiseram roubar-lhe a bússola. (Maria Helena, 2000: 21)

Apesar da distância cronológica de 7 anos entre os LD que trazem tais

sentenças, verificamos que as frases são praticamente as mesmas, especialmente no

que diz respeito à estrutura, ao verbo e à função do lhe. Este fato provoca uma

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impressão enganosa de que o lhe, nestas condições sintáticas, ocorra pouco em nosso

idioma.

Assim, quando a frase não é idêntica, podemos perceber a constância dos

mesmos verbos e suas flexões, dando-nos a impressão de que o lhe com acepção de

adjunto adnominal, por eles atribuída, seja incomum, ou mesmo rara. A este respeito

faremos algumas considerações: primeiro, quanto à existência de outros exemplos de

frases com o suposto lhe adjunto adnominal ; e depois quanto à nossa concepção do

papel do verbo nessa relação com o lhe.

No que se refere à utilização de exemplos diferentes nos LD e GP, achamos

por bem trazer exemplos - não todos, pois seria impossível - para apagar a sensação

de que estaríamos diante de uma ocorrência rara. Neste sentido, na verdade, temos a

impressão de que os autores vão reproduzindo e copiando os exemplos de outros

livros. Por isso, não conseguimos perceber uma preocupação efetiva de se evitar que

tenhamos a sensação de que o lhe (como suposto adjunto adnominal) tenha

possibilidade remota de ocorrer. Ou seja, se intuirmos que estamos diante de algo raro

em nossa língua, ótimo, pois parece que esta é a intenção. Contudo, vejamos que os

exemplos são muitos e podem ser encontrados em vários tipos de texto e contexto (os

07 primeiros exemplos foram selecionados do CETEMNILC/São Carlos):

[45]- "Não lhe passa pela cabeça gravar um disco ao lado desses brasileiros ?"

(par8883)

[46]- "A entrada para a cavalaria se fazia por cerimônia especial: o senhor concedia

arma ao jovem e lhe batia na nuca com a palma da mão para demonstrar que o

cavaleiro seria capaz de resistir aos golpes do inimigo" (par 1277)

[47]- "Ele desmentiu a versão de Emanuel, de que o tiro que lhe acertou o rosto foi

acidental, causado por um solavanco." (par 9854)

[48]- "Partia para a briga sempre que alguém lhe atirava na cara a lembrança de seu

olho cego." ( par 15725)

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[49]- "O cara de cachorro está contratando estes dois para que lhe seqüestrem a

própria mulher." (par 16377)

[50]- "Ouve, submisso, o sogro lhe jogar na cara que é um inútil e deixa a vida

seguir." (par 16377)

[51]- "Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era

entre ambos como a senha da vida futura." (Assis, Machado de. OC, I, 813.)

Esta constatação nos faz acreditar que os LD preferem repetir os exemplos e

dar nome às ocorrências, demonstrando claramente a despreocupação com o

fenômeno lingüístico propriamente dito.

4.3.1 O pronome lhe e a noção de valência verbal

Em nossa trajetória de pesquisa sobre o pronome lhe, tivemos como um dos

pontos básicos de nossa análise a noção de valência do verbo. Vejamos o que Neves

(2002, p.105) diz sobre valência verbal:

"O verbo tem, pois, a propriedade de reger actantes. Ele é comparável a um átomo, exercendo atração sobre um determinado número de actantes, mantidos sob sua dependência. O número de actantes que um verbo pode reger constitui o que Tesnière chama de valência do verbo. A valência consiste no conjunto de relações que se estabelecem entre o verbo e seus actantes, ou argumentos obrigatórios, ou constituintes indispensáveis."

Concordamos que o verbo tem uma valência que pode indicar quais os

complementos que devem existir para que sua realização se dê a contento. O verbo

traz implícito em sua significação uma quantidade x de espaços que deverão ser

preenchidos por argumentos pertinentes àquela dada situação frásica.

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"Aliás qualquer verbo transporta consigo - por força de seu significado - a informação acerca do modo como se manifestam na frase os participantes (ou actantes) e qual a função semântico-sintáctica que desempenham esses participantes no estado de coisas implicado no significado do verbo"6

Neste trabalho, os argumentos que nos interessam são o complemento direto

(A2) e principalmente o complemento indireto (A3)7. Assim, conforme afirmações

anteriores, acreditamos que o lhe é um complemento capaz de ser um argumento

exigido pelo verbo e preencher eficientemente um espaço. Por isso, ao encontrarmos

em certos LD e GP a afirmação de que o lhe é um adjunto adnominal temos a

convicção de que estamos diante de um problema que caracteriza muito bem o que

geralmente ocorre nestas obras. Ou seja, o problema não é apenas a questão do

excesso de nomenclatura, - e sobre isto já sabemos que há uma busca por atribuir-se

"apelidos", nomes e classificações - mas a difícil identificação do aspecto funcional

das estruturas. Afinal, é sabido que um elemento, enquanto adjunto adnominal,

dificilmente será um argumento, indispensável, exigido pelo verbo. Aliás, o adjunto

adnominal tem como característica básica a dependência do substantivo, sem

necessariamente ser um termo imprescindível à significação do mesmo. Conforme

Lima (1963, p.247), "é um termo de natureza acidental":

"Além dos termos essenciais, podem figurar na oração outros elementos accessórios, de natureza acidental. São de três espécies: 1 adjunto adnominal, adjunto adverbial, apôsto"

Mas, por que será que alguns LD e algumas gramáticas acreditam que o lhe

pode ser adjunto adnominal ? De acordo com a gramática de Maia (1994, p.197)

temos a seguinte informação:

"em algumas construções, os pronomes pessoais oblíquos podem constituir adjunto adnominal. Tomemos o exemplo: a) respeite-lhe a inocência. Observamos que o pronome não está relacionado com o verbo, mas a um nome. O pronome lhe acompanha o substantivo, indicando a idéia de posse. É portanto, um adjunto adnominal. Reescrevendo de outro modo, teríamos: respeite a sua inocência"

6 VILELA, Mário. Gramática de Valências: Teoria e Aplicação. Coimbra, 1992, p.43. 7 A2 e A3 são argumentos do verbo (conforme capítulo 3, subtítulo 3.2).

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O Autor diz que ao reescrevermos uma frase podemos resgatar-lhe algum tipo

de função não verificada na frase original. Entretanto, não acreditamos que a

paráfrase seja um procedimento muito eficiente para identificação das funções

gramaticais, pois uma paráfrase nunca será igual à original, como ele mesmo diz:

"Reescrevendo de outro modo." Assim, recorrer-se à paráfrase para justificar-se o

lhe como adjunto adnominal, parece-nos, no mínimo, reduzir ou abandonar, a função,

o preenchimento e a regência dos verbos aos quais se relaciona. Sem contar que,

conforme Garcia (1988, p.185), "a paráfrase consiste no desenvolvimento explicativo

ou interpretativo de um texto", logo, ao ser analisada como um "clone" da frase

original demonstrará resultado sintático diferente. Afinal, o "clone" pode parecer com

a versão primeira, porém não é a versão inicial.

Entretanto, na afrirmação de Maia surge um dado novo que não encontramos

em nenhum LD consultado: a noção possessiva expressa pelo pronome lhe. Isto é,

dos 15% dos LD (conforme gráfico, capítulo 2) que falam sobre o lhe com função de

adjunto adnominal, nenhum deles deixa explícita esta noção possessiva do pronome.

O que ocorre normalmente é a associação aos pronomes possessivos provocada pela

apresentação da paráfrase como estrutura eqüivalente à frase original. As GT de

Bechara (1999) e Cunha (1995) e as GP de Hildebrando (1982) e Sarmento (2000)

concordam, em certa medida, com Maia no que diz respeito a este pronome com

papel possessivo diante de verbos transitivos diretos: "pronome átono com valor

possessivo" (Cunha, 1985, p.301). Exemplos:

[52]- Cruzara-lhe as mãos. (Sarmento, 2000, p.357);

[53]- Não lhe conheço os defeitos. (Hildebrando, 1982, p.232);

[54]- Minha mãe apalpava-lhe o coração. (Cunha, 1985, p.301).

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indícios de terem a mesma opinião que Maia quanto à presença de noção de posse

no pronome lhe, todavia, eles não comungam da mesma idéia quanto à classificação

do lhe como adjunto adnominal. Ou seja, as GT de Bechara (1999) e Cunha (1985)

não associam a função de adjunto adnominal ao pronome lhe. Em contrapartida,

Sarmento e Hildebrando são categóricos em dizerem que o lhe é adjunto adnominal:

1- "O adjunto adnominal pode ser representado por um pronome pessoal átono,

com valor possessivo, quando o verbo for transitivo direto"

(Sarmento, 2000, p.357)

2- "Os pronomes átonos me, te, lhe, nos, vos, lhes, podem funcionar na frase com

valor possessivo (...) Em tal caso os pronomes átonos são analisados como

adjuntos adnominais dos substantivos a que se referem".

(Hildebrando, 1982, p.232)

Cunha e Bechara não concordam com tal posição. Aliás, Bechara acrescenta

que o traço [ + possessivo] presente em certas ocorrências do objeto indireto, nada

mais é do que uma construção especial de objeto indireto. Vejamos a posição de

Bechara (1999, p.423 -26):

"Os chamados 'dativos livres' - Os objetos indiretos (...) são argumentos sintático-semânticos extensivos da função predicativa do conteúdo comunicado nas respectivas orações (...) remanescentes de construções, algumas das quais da sintaxe latina, aparecem sob forma de objeto indireto, nominal ou pronominal, alguns termos estão direta ou indiretamente ligados à esfera dos predicados."

Por isso, acreditamos que o lhe seja um complemento, mesmo nestes casos em

que há noção possessiva, tendo em vista que nos parece, como dizíamos nos capítulos

iniciais deste trabalho, que há uma busca incansável de se dar nome a tudo, sem se

levar em consideração o aspecto funcional do fenômeno lingüístico.

Na mesma direção, Kury (1991, p.47) afirma que enquanto objeto indireto:

"o lhe pode representar o ser a quem se destina o objeto direto; o ser em benefício ou em prejuízo de quem se realiza a ação; o ser em que se manifesta a

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ação; o ser a que faz referência especial o conjunto verbo de ligação + predicativo, verbo transitivo direto + objeto, ou um verbo intransitivo; o possuidor de alguma coisa; como expletivo o ser vivamente interessado na ação expressa pelo verbo".

Por isso, em frases como "beijou-lhe as mãos", o lhe é considerado por Kury

um objeto indireto, logo, um complemento. Afinal, "beijei as mãos dela ou dele" é

uma paráfrase, e, como tal, terá análise sintática diferente da oração original. Nestas

circunstâncias textuais, "dele" ou "dela" não funciona sintaticamente da mesma

maneira que o "lhe".

Veja-se o que já dizia Moreira (1907), em seus Estudos da Língua

Portuguesa: "A forma lhe, lhes, substitue muitas vezes, com elegância, o pronome

possessivo ou a expressão possessiva d'elle, d'elles. No português do Brasil este uso é ainda mais extenso (...)"

Baseados na citação de Moreira podemos afirmar que em termos de

interpretação, tradução, paráfrase, podemos aceitar que lhe pode ser entendido como

"dele", "deles", etc., porém, em termos sintáticos isto não é possível, pois tal

substituição modifica o aspecto sintático da frase.

Henriques (1997, p.52), em concordância com Kury, considera imprópria a

equivalência entre "dela" e "a ela", numa frase como: afaguei-lhe os cabelos, tendo

em vista que "afaguei os cabelos dela" e "afaguei os cabelos a ela, podem ser

parecidas se levarmos em consideração a interpretação que o receptor da mensagem

faz da oração, no entanto, "dela" e "a ela", desempenham papéis sintáticos diferentes:

adjunto adnominal e objeto indireto, respectivamente. Sem contar com o fato de que

esta suposta equivalência coloca no mesmo patamar preposições como de e a que

costumam ter funções semântico-sintáticas bem distintas. Vejam-se os exemplos:

[55]- "Ele desmentiu a versão de Emanuel, de que o tiro que lhe acertou o rosto foi acidental, causado por um solavanco". (par 9854, CetemPúblico, Folha SP) Como objeto indireto.

Substituição correta e apropriada do "lhe" pelo seu equivalente "a ele":

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[55]'- "Ele desmentiu a versão de Emanuel, de que o tiro que acertou o rosto a ele foi acidental, causado por um solavanco." Como adjunto adnominal:

Paráfrase: [55]'' - "Ele desmentiu a versão de Emanuel, de que o tiro que acertou o rosto dele foi

acidental, causado por um solavanco."

Talvez o fato de haver uma forte motivação de posse em frases como "Maria

acaricia-lhe as mãos", estimule alguns autores de LD e de algumas gramáticas

atribuírem ao lhe o papel de adjunto adnominal. No entanto, essa característica não é

estranha ao objeto indireto, conforme diz Kury, "enquanto objeto indireto o lhe pode

representar o ser possuidor de alguma coisa".

Concomitantemente, ao pesquisarmos obras de autores como Faria (1958) e

Climent (1945), estudiosos da língua latina, vemos confirmado este caráter de posse

do objeto indireto que seria o dativo de posse latino que significa "o caso de la

atribuicion". Mediante ele são expressas geralmente a pessoa a que se atribui ou dá-se

algo. O dativo de posse é uma extensão do dativo de interesse, significando

propriamente que algo existe para ou em proveito de alguém.

Vilela & Koch (2001, P.342), falam do dativo de posse que seria aquele que

"designa elementos que são uma 'parte do corpo' de pessoa, ou que são 'algo' ligado a

um ato ou seu resultado". Exemplos:

[56]- "Amos Mosea brincava no meio de um milharal, sexta-feira, numa quinta perto

de Underberg, a 200 quilómetros da cidade portuária de Durban, no Oceano Índico,

quando foi atropelado pela ceifeira-debulhadora e lhe cortou as pernas abaixo dos

joelhos" (Ext 419 -soc, 95a, CETEMPúblico);

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[57]- "A entrada para a cavalaria se fazia por cerimônia especial: o senhor concedia

arma ao jovem e lhe batia na nuca com a palma da mão para demonstrar que o

cavaleiro seria capaz de resistir aos golpes do inimigo."

(par 1277, CETEMPúblico, Folha SP)

[58]- "Os seus olhos doem-lhe."

(Vilela &Ingedore, 2001,p.340).

[59]- "O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe

tinha grandes saudades (...)"

(Assis, Relíquias de Casa Velha, p.97)

Assim, observando os exemplos e levando em consideração posição defendida

por gramáticas de valência, podemos supor que dependendo do papel do lhe no

preenchimento de espaços na oração, ele pode ser um actante, isto é, o complemento

correspondente ao lugar vazio aberto pelo verbo. Neste sentido, o termo actante já era

utilizado por Tesnière (1959, p.108), para definir os complementos centrais:

"Os actantes são complementos centrais (plenos), correspondentes aos tradicionais sujeito, complemento direto, complemento indireto e os circunstantes são os complementos periféricos ou adverbiais"

Vilela & Koch (2001) dizem, também, que há complementos que apresentam

uma preposição como marca "a + N" (conforme capítulo 3), e que estes

complementos podem ser anaforizados por lhe (me, te, se). Assim, o lhe, enquanto

dativo de posse, não seria exatamente um actante, mas um complemento indireto com

características diferentes, como sugere Vilela (2001, p.342):

" São em grande medida semelhantes aos verdadeiros actantes A3. Contudo, não são verdadeiros actantes, Estes complementos indiretos são designados tradicionalmente por 'datiuus possessiuus (...)"

Tendo em vista o que foi exposto até aqui sobre o dativo (objeto indireto), faz-

se necessário esclarecer que a noção desta categoria já há muito suscita pesquisas e

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discussões a respeito de uma sistematização e delimitação que fosse capaz de colocar

em um mesmo grupo, aspectos e características, por vezes, tão díspares. As próprias

descrições tradicionais do objeto indireto dão conta apenas de certos traços

semânticos, ou apenas consideram os dados sintáticos, sem considerar o aspecto do

próprio texto onde eles aparecem. Na mesma direção, Vilela (1992, p.117) afirma:

"Na verdade até hoje, não se conseguiu atribuir uma só categoria semântica ao que normalmente se designa por complemento indireto ou mesmo uma categoria semântica que seja específica do Dativo."

No caso do lhe como possível adjunto adnominal podemos fazer algumas

inferências sobre o dativo. Estas inferências mostram que não é possível afirmar que

o pronome em questão seja um objeto indireto com as características das definições

tradicionais. Ou melhor, não é possível afirmar que o lhe seja objeto indireto porque a

própria definição de objeto indireto ainda demanda muitas discussões. Por outro lado,

temos a certeza de que ele jamais será um adjunto adnominal, pois, dentre as

características semântico-sintático-textuais do dativo encontramos aquelas em que

repousa o lhe chamado adjunto adnominal. O pretendemos afirmar é que o lhe com

noção de posse não precisa "virar" ou ser classificado como adjunto adnominal para

ter um traço [+ possessivo].

Assim, como já foi afirmado através de Kury, Bechara, Cunha, Vilela & Koch

há um aspecto de posse característico em certas construções de lhe (objeto indireto).

Contudo, devemos observar que há uma diferença entre o lhe presente em frases

como:

Tipo I : "dei-lhe total atenção";

e para o lhe de frases como:

Tipo II (mordi-lhe a língua).

Para melhor delimitarmos estas diferenças, vamos propor uma sistematização

das funções do lhe, via Gramática de Valências de Vilela, utilizando como exemplo

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aproximadamente 500 frases do CETEMPúblico onde o lhe aparece. Eis as

observações iniciais:

1. Em aproximadamente 70 % dos casos o lhe funciona semelhantemente às frases

do Tipo I. E os verbos mais comuns são: dar, garantir, permitir, obedecer, pedir,

dizer, conceder, perguntar, proporcionar, perdoar, entregar. Portanto, pode-se

afirmar que é mais comum, em termos proporcionais, o lhe comportando-se como

nas frases do Tipo I, acompanhando verbos com transitividade indireta ou verbos

com transitividade direta e indireta. Estes pronomes são argumentos genuínos

(A3), exigidos pelo verbo. Logo, são realmente actantes.

2. Os verbos que mais participam de frases do Tipo II são: passar, bater, acertar,

atirar, seqüestrar, jogar, acariciar, cortar, valer, suportar, cair. E, em primeira

análise, podemos garantir que a transitividade destes verbos é bem diferente

daquelas encontradas nos verbos presentes no Tipo I.

Quanto aos exemplos de verbos presentes no Tipo I, estes possuem transitividade

e todos pedem um Ci (complemento indireto). A valência desses verbos pode exigir

dois ou três argumentos. Vejamos alguns exemplos:

Dois argumentos: o sujeito e o Ci, = A1 e A3).

[60]- "Sua leitura de Nietzsche, consolidada em Nietszche e a filosofia - livro que

publicado em 1962 foi grandemente responsável pela recepção do pensador alemão

na cultura francesa -, propõe que o filósofo alemão intenta substituir a «negação da

negação» de Hegel, etapa crucial do processo dialético, por uma filosofia da

afirmação que lhe interessa" (par 28909).

Observação: o verbo interessar, de acordo com Vilela pertence a um grupo de verbos

que designam impressões (ou valores ligados a impressões) e que pedem um Ci.

[61]- Desde bem pequeno, aquela bicicleta lhe pertence.

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Observação: O verbo pertencer, de acordo com Vilela, faz parte do grupo de verbos

que exprime dominação (relação de), ou seja, uma pessoa, possui ou domina algo. Do

mesmo modo, pede um Ci.

Nos dois exemplos [61] e [62] o papel desempenhado pelo lhe é Ci, e de acordo

com as orientações da gramática de valências são complementos obrigatórios e

imprescindíveis para que a frase não se torne agramatical.

3 argumentos: o sujeito, o complemento direto (Cd), e o Ci = A1, A2 e A3.

[62]- "Se alguém lhe perguntar qual o formato da Terra, você não deve ter nenhuma

dúvida ao responder que ela é redonda (esférica)."( par 1895)

[63]- "Se ninguém lhe der um pontapé ou se o vento não deslocá-la, ela permanecerá

imóvel." (par 2890)

Observação: os verbos perguntar e dar possuem 3 espaços a serem preenchidos. Nos

exemplos [62] e [63], o lhe preenche o espaço do A3, sendo um elemento obrigatório

para que a frase não se torne agramatical.

Verifiquemos agora o comportamento do lhe diante de verbos que participam

de frases do Tipo II:

[64]- "Neste dia, Eurico foi atacado por um segurança da Suderj conhecido como

Maninho, que lhe atirou um walkie-talkie no rosto." (par 27943)

[56]- "Amos Mosea brincava no meio de um milharal, sexta-feira, numa quinta perto

de Underberg, a 200 quilómetros da cidade portuária de Durban, no Oceano Índico,

quando foi atropelado pela ceifeira-debulhadora e lhe cortou as pernas abaixo dos

joelhos." 419(soc, 95a)

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Como havíamos dito no início desta tentativa de sistematização das funções

do lhe, os verbos que aparecem no Tipo II têm transitividade diferente dos verbos do

tipo I. Na verdade, se pensarmos no verbo atirar que é considerado intransitivo na

"Lista de regência" de Bechara (1999, p.572), não poderíamos imaginar mais do que

um espaço exigido pelo verbo, no caso o sujeito (A1). Entretanto, como explicar tal

ocorrência na língua ? O verbo mudou sua regência? Passou a ser transitivo ?

Quanto à regência, no que diz respeito a possíveis alterações, precisamos

considerar o seguinte: é dogma importante o estudo da regência para que se observe

que o uso coloquial por vezes contraria o uso culto. No entanto, as transformações da

língua e o próprio uso podem ir modificando a regência dos termos. Por isso, a

regência tida hoje como indevida, pode com o passar dos anos ser considerada

prevista no uso culto. Conforme Henriques (1997, p.49), "O bom senso didático (ou o

do usuário competente) determinará até que ponto as regências cultas indicadas

devem ou não ser adotadas à risca". Carlos Góis (1938, p.12) traça alguns

comentários sobre o assunto:

"(...) é a séde do genio da língua, de sua psiquía, - com todas as rebeldias, ansias e crises, deante das quais a Gramática se quéda estarrecida e perplexa; com todos os caprichos e veleidades de sua fantasia despeada; com as pequenas deformações (que a Gramática , por eufemismo, denomina 'idiotismos, 'anacolutos', 'anomalias gramaticais' e quejandos), que, si por um lado desalinham a estrutura gramatical e a despem do espartilho, com que traz extremamente alizadas as suas fórmas plásticas - por outro imprimem-lhe a graça e o imprevisto das atitudes, em que a fantasia e a espontaneidade cedem à craveira comum de rígidos estalões."

Agora, consideremos as colocações de Nascentes (1967, p.16):

"Cada época tem sua regência, de acordo com o sentimento do povo, o qual varia, conforme as condições novas da vida. Não podemos seguir hoje exatamente a mesma regência que seguiam os clássicos; em muitos casos teremos mudado. Por este motivo falharam completamente todos aqueles que, sem senso, lingüístico, estudaram o problema somente à luz dos hábitos clássicos de regência"

Assim, a modificação da regência de um verbo pode acontecer, mesmo que

isso só se dê no uso coloquial, e tal transformação costuma possibilitar o surgimento

de complementos que antes não existiam, ou não eram exigidos.

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4.3.2 Os Dativos Livres

Em relação aos próprios complementos, podemos levar em consideração o

que é dito por Vilela a respeito dos dativos livres, os quais seriam uma espécie de

complementos indiretos da GT.

Primeiro vejamos as características gerais dos dativos livres. Eles designam

pessoas que estão numa relação especial (não apenas numa relação mediata, mas

sobretudo relação especial): de interesse, de participação ou responsabilidade. Dentro

de uma subvariedade de dativos, vamos considerar apenas aquelas que podem ser

tomadas como mais importantes e mais bem caracterizados: dativus

commodi/ethicus/pertença.

No que se refere ao que estamos tratando no momento, vamos nos concentrar

no dativus pertença, que no geral inclui um elemento que indica parte do corpo,

"pertença imediata", estabelecendo-se uma relação de pertença entre o dativo e o

membro frásico que indica a parte do corpo. Assim, retomemos alguns exemplos:

[65]- "(...)que lhe atirou um walkie-talkie no rosto".

Pelo que pudemos observar no caso do verbo atirar, ocorreu uma alteração na

regência do verbo que aqui passou a exigir dois argumentos, "atirou algo (A2) / em

alguém (A3)". No entanto, este lhe (Ci), na verdade exemplifica o dativo pertença,

pois "atirou" A2 " no rosto" de A3 (onde o A3 é o lhe que está ligado à expressão

"no rosto").

[56]- "e lhe cortou as pernas abaixo dos joelhos."

O mesmo ocorre com o verbo cortar que pode ser transitivo, mas não está

previsto que ele seja transitivo direto e indireto. Assim, ocorre fenômeno semelhante

ao exemplo anterior, há uma relação entre a expressão "as pernas" e o dativo pertença

lhe.

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Contudo, vejamos mais uma ponto intrigante. De fato, podemos perceber que

os dativos de posse lhe, dos exemplos [65] e [56], estão combinados com um nome

(N). No exemplo [65] o lhe liga-se ao circunstante ("no rosto") e, no exemplo [56]

liga-se ao A2 ("as pernas"). Este comportamento difere do que se viu nos exemplos

das frase do Tipo I, em que o lhe é um efetivo actante. Vale acrescentar que conforme

Vilela (1992, p.123), "o N em questão deverá, para ser aceitável, possuir o traço

[+ humano], [+ ser vivo] ou [+ animado]". Por exemplo, a frase "doem-lhe os

brincos", vista denotativamente não seria aceitável por causar agramaticalidade.

Atente-se que estamos tratando do lhe em situações do Tipo II, afinal, em frases do

Tipo I: "entregaram-lhe os brincos" é absolutamente aceitável, pois não provoca

incoerências gramaticais.

Os verbos presentes em frases do Tipo I exigem o pronome lhe, enquanto que

os verbos de frases do Tipo II não deixam muita clara esta exigência. Assim,

podemos intuir que os dativos de posse apesar de estarem sob a influência da valência

dos verbos, não são de fato complementos que possam ser considerados obrigatórios.

Retomemos o exemplo [65]:

[65]- "Neste dia, Eurico foi atacado por um segurança da Suderj conhecido como

Maninho, que lhe atirou um walkie-talkie no rosto." (par 27943)

Caso retirássemos deste contexto o pronome lhe, certamente notaríamos que

sua participação no período não é essencial. Em contrapartida é interessante perceber

que sua presença além de trazer a noção de posse, também faz com que retomemos o

termo anterior que com ele se relaciona (como é costume dos pronomes, em especial

os pronomes substantivos).

Como vimos anteriormente, além do dativo de posse (pertença), temos o

commodi e o ethicus. Quanto ao último não vamos entrar no mérito de suas

caraterísticas, pois elas estão muito mais voltadas ao aspecto externo da frase, ou seja,

ele representa um actante que está fora da frase e, por causa disto, nos parece um

pouco desfocado de nosso objetivo, tendo em vista que estamos tratando do

funcionamento de uma estrutura no interior da frase: o pronome lhe.

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Todavia, chamaram-nos a atenção as características do dativo commodi,

também chamado de datiuus commodi/incommodi. Primeiro pela sua realização que

pode se dar por "a + N", como no dativo de posse, ou por "para + N". Depois

porque a pessoa implicada no dativo commodi tem o proveito/detrimento da ação

referenciada no verbo, podendo, também, transportar a idéia de interesse,

responsabilidade e etc.

Quanto à preposição para, em frases com tal construção o lhe assemelha-se

muito com o que chamamos de complementos adverbiais. Por exemplo:

[66]- "levei-lhe a mala à estação" (Villela &Koch, p.343)

Alguém poderia imaginar que seria "a mala dela", no entanto, não está

prevista, neste tipo de dativo, a presença da preposição de, diferente dos dativos de

posse que a admitem. Sendo assim, o mais próximo seria "levei para ela".

Observemos que os termos "ela" ou "ele" não representam o que foi levado(a), mas "a

mala" que é o segundo argumento (A2 ). Nestes casos, o lhe se aproxima do que

Villela chama de A4 (complemento preposicional), que tem como características:

preposição (dentre elas para); e como interrogação, de/ a/para... que /quem (é que) +

A1 + V ? Vejamos com nossa frase:

Interrogação: para quem é que eu levei ?

Resposta: lhe (para ela ou para ele), no interesse, em proveito, etc.

Outra característica interessante do dativo commodi é que o verbo não rege,

em termos de valência, o elemento que faz o papel de dativo commodi. Na verdade,

conforme Vilela (1992, p.124) este tipo de "dativo é regido pelo complexo verbal, em

que se inclui, portanto, o verbo e os complementos apensos ao mesmo verbo". Por

exemplo:

[67]- "A criança caiu-lhe no colo." (Vilela, 1992, p.124)

Observação: neste exemplo o lhe depende de "cair no colo."

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66

[68]- O professor deixou-lhe uma interrogação no coração.

Observação: agora o lhe depende de "deixar uma interrogação no coração"

Após as considerações que fizemos sobre os Dativos Livres, propomos o

quadro a seguir, como tentativa de sistematizar as funções do lhe. Esta sistematização

consiste, de forma despretensiosa, numa organização das funções do lhe, enquanto

complemento indireto (Ci):

Observação: o complemento obrigatório (Cio), está presente no quadro para que

se possa fazer a comparação com os outros complementos indiretos que realmente

provêm dos dativos livres. Assim, como vimos anteriormente, o complemento

obrigatório não é remanescente dos dativos livres.

Quadro de sistematização das funções do pronome lhe

a partir das orientações da Gramática de Valências de Mário Vilela

Frases Comentários Função

O mestre pediu-lhe ajuda.

O réu não lhe disse verdades.

Perdoei-lhe prontamente.

Devemos garantir-lhe o futuro.

Neste tipo de frase o lhe participa

ativamente do processo de valência do

verbo, sendo um genuíno A3. Argumento

indispensável.

Complemento

indireto

obrigatório

[Cio]

Roubei-lhe as jóias

Respeite-lhe a inocência

Não lhe tinha grandes

saudades

Seqüestraram-lhe a esposa

O lhe é um exemplo de dativo de posse e

sua relação com a valência do verbo se

dá por intermédio do nome (N) que

funciona como argumento (A2). O lhe,

nestes casos, tem importância menor que

os (Cio), porém não são totalmente

dispensáveis, pois seu caráter de

especificidade tira a generalização

provocada pela relação do verbo com o

A2, eliminando, às vezes, ambigüidades.

Complemento

indireto com

noção de posse

[Cip]

Doem-lhe os olhos O lhe é um exemplo de dativo de posse Complemento

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67

Ela amarrou-lhe os cabelos

Ataram-lhe os pés.

Beijou-lhe as mãos.

com características semelhantes aos

(Cip), porém, o N (A2) com o qual ele se

relaciona tem como sema característico

indicar "partes do corpo". Sua presença é

facultativa.

indireto com

noção de posse

facultativo

[Cipf]

Atirei-lhe um livro na cara

A criança caiu-lhe no colo

Exemplo de dativo commodi. Sua relação

com o verbo é muito mais física do que

regencial, pois liga-se na verdade ao

todo. Note-se que normalmente sua

ligação mais estreita é com um

complemento adverbial (C.adv.).

Geralmente o lhe nestes casos é

facultativo.

Complemento

indireto

commodi

[Cic]

A título de exemplificação e colocando em prática a sistematização proposta,

vamos verificar quais os tipos de complementos indiretos8, representados pelo

pronome lhe, aparecem nos exemplos utilizados neste capítulo:

Frase Função (siglas)

Quiseram roubar-lhe o rádio. Cip

Não lhe passa pela cabeça gravar um disco ao lado desses brasileiros ? Cic

A entrada para a cavalaria se fazia por cerimônia especial: o senhor

concedia arma ao jovem e lhe batia na nuca com a palma da mão para

demonstrar que o cavaleiro seria capaz de resistir aos golpes do inimigo

Cic

Ele desmentiu a versão de Emanuel, de que o tiro que lhe acertou o rosto

foi acidental, causado por um solavanco.

Cipf

Partia para a briga sempre que alguém lhe atirava na cara a lembrança de

seu olho cego.

Cic

8 Utilizamos as mesmas siglas (Cio, Cip, Cipf e Cic) para os respectivos complementos indiretos sugeridos no quadro de sistematização das funções do lhe.

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68

O cara de cachorro está contratando estes dois para que lhe seqüestrem a

própria mulher.

Cip

Ouve, submisso, o sogro lhe jogar na cara que é um inútil e deixa a vida

seguir.

Cic

Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome

era entre ambos como a senha da vida futura.

Cipf

Cruzara-lhe as mãos. Cipf

Não lhe conheço os defeitos Cip

Amos Mosea brincava no meio de um milharal, sexta-feira, numa quinta

perto de Underberg, a 200 quilómetros da cidade portuária de Durban,

no Oceano Índico, quando foi atropelado pela ceifeira-debulhadora e lhe

cortou as pernas abaixo dos joelhos

Cipf

Os seus olhos doem-lhe. Cio

O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já

então lhe tinha grandes saudades ...

Cip

Sua leitura de Nietzsche, consolidada em Nietszche e a filosofia - livro

que publicado em 1962 foi grandemente responsável pela recepção do

pensador alemão na cultura francesa -, propõe que o filósofo alemão

intenta substituir a «negação da negação» de Hegel, etapa crucial do

processo dialético, por uma filosofia da afirmação que lhe interessa

Cio

Desde bem pequeno, aquela bicicleta lhe pertence. Cio

Se alguém lhe perguntar qual o formato da Terra, você não deve ter

nenhuma dúvida ao responder que ela é redonda (esférica).

Cio

Se ninguém lhe der um pontapé ou se o vento não deslocá-la, ela

permanecerá imóvel.

Cio

Neste dia, Eurico foi atacado por um segurança da Suderj conhecido

como Maninho, que lhe atirou um walkie-talkie no rosto.

Cic

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69

Vejam-se agora outros exemplos do CETEMPúblico e NILC/SãoCarlos que

ainda não tínhamos utilizado no corpo deste trabalho. Estes exemplos também serão

analisados a partir do "Quadro de sistematização das funções do pronome lhe":

Frase Função

[69]- "É verdade que os métodos não lhe abrilhantam a biografia"

(par 21253)

Cip

[70]- "Os médicos abriram o tendão rotuliano direito, logo abaixo do

joelho, não tiveram trabalho para remover a calcificação que lhe

dificultava os movimentos, mas ainda assim Ronaldo ficará internado

por mais dois dias."

(par 28070)

Cip

[71]- "Nos ímpetos suicidários de Juan Pablo Castel já encontramos as

preocupações que lhe corroíam o espírito".

( par 39078)

Cip

[72]- "O sorriso daquele jovem corroía-lhe a sua velhice".

( par 39097)

Cip

[73]- "Uma formiga lhe penetrara na tromba."

(par 40459)

Cic

[74]- "E para Baudelaire, um dos melhores exemplos desse cômico

grotesco absoluto, «cômico feroz, muito feroz» ele o viu numa

pantomima inglesa levada num teatro parisiense, que lhe marcou fundo a

lembrança."

(par 41619)

Cip

Vale acrescentar que nossa tentativa de sistematizar as funções do lhe (como

dativos livres) é uma forma de provar que não estamos diante de uma questão apenas

de classificação do lhe. Não temos o desejo de que os LD e GP ampliem suas listas

com mais estes nomes ou siglas que apresentamos em nosso quadro. Afinal,

verificamos que muitas são as questões em jogo e que muito há ainda para se discutir

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70

em torno destes complementos indiretos. No entanto, temos a certeza que, ao nos

determos sobre algumas destas questões, somos capazes de nos opor à tendência dos

LD e GP que se valem de uma lista de nomes para, num terrível engodo, dar ao aluno

a sensação de que quanto melhor eles conhecem os nomes e/ou classificam as

estruturas gramaticais, mais eles conhecem a língua e seus fenômenos.

Não queremos aqui abolir o ensino de gramática ou desprezar as

classificações, o que queremos é a valorização daquilo que realmente tem utilidade e

fundamento para vida prática do aluno. Assim, se ele sabe o nome, mas não entende

para que serve, de que vale saber o nome ?

4.3.3 Algumas considerações preliminares

Assumimos uma posição contrária aos preceitos gramaticais e explicações que

acreditam que o lhe possa ser um adjunto adnominal apenas por que possua, em

certas construções, um traço [+possessivo]; ou porque a análise de uma paráfrase

possa ser feita no lugar da original; ou ainda pela preferência de se escolher caminho

mais fácil, isto é, a tendência de interpretar as estruturas, desprezando-se as relações

sintáticas que as mantém (recção).

Portanto, o lhe de frases como "o treinador torceu-lhe o braço" é um

complemento indireto, um argumento ou, se a gramática normativa preferir, um

objeto indireto, porém, jamais um adjunto adnominal.

4.4 O lhe complemento nominal

É bem verdade que em termos proporcionais a quantidade de obras que

consideram o lhe complemento nominal não é muito grande. O que a grosso modo

poderia representar índice de poucos problemas no que se refere à sala de aula. No

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71

entanto, o número de obras, em termos absolutos, que classificam o pronome lhe

como complemento nominal é suficiente para colocar uma quantidade razoável de

alunos expostos a mais uma função do lhe.

Antes de entrarmos no mérito do que consideramos possível ou não de ser

realizado pelo lhe, vejamos o que se fala a respeito da função sintática complemento

nominal.

Hauy (1986), fez uma pesquisa muito interessante sobre vários termos da

sintaxe, dentre eles o complemento nominal. Nesta obra ela demonstra, através de um

estudo comparativo, utilizando as informações de gramáticas diversas, que ainda há

necessidade de uma revisão nos estudos sobre a teoria do complemento nominal.

Meyer (1994), faz também considerações muito pertinentes sobre a teoria do

complemento nominal, em especial sua conceituação.

Podemos dizer que vários teóricos e gramáticos discutem a respeito dos

complementos verbais, dedicando espaço e pesquisas vastos (sem chegarem, muitas

vezes, a um denominador comum), no entanto, no que se refere ao complemento

nominal não percebemos a mesma atenção. Vejamos o que Mayer (1994) diz neste

sentido:

" A tradição gramatical deteve-se com muito cuidado na descrição dos complementos do verbo, provavelmente por ser ele o núcleo do predicado. Ocupou-se, então, largamente da classificação dos complementos verbais. (...)"

No caso dos nomes, a tradição gramatical registra a existência de transitividade em alguns. Não dedica a este fenômeno, porém, o mesmo cuidado e espaço dedicados à transitividade verbal."

Esta questão é complicada não só no âmbito da conceituação, como também

no da própria nomenclatura, posto que esta função já teve várias denominações. Fato

que vem a corroborar, mais uma vez, com aquele princípio, do qual discordamos, que

o nome, a classificação vem antes da função propriamente dita. Vejamos alguns

destes nomes apresentados por Lima (1963, p.l6), já em meados do século XX:

"Tais complementos (complementos nominais) têm recebido várias denominações: objeto nominal (Maximino Maciel), adjunto restritivo (Alfredo Gomes), complemento restritivo (Carlos Góis), complemento terminativo (Eduardo Carlos Pereira, Souza Lima)"

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Desta feita, a escolha da denominação complemento nominal dá-se aqui não

por uma questão de preferência teórica, mas, pela recorrência desta nomenclatura nos

LD, GP e GT.

Já se pode imaginar, pelo que foi dito até aqui sobre o complemento nominal,

que as divergências vão além da nomenclatura, afinal, muito há ainda para pesquisar-

se sobre esta função. Aliás, temos o intuito de buscar um melhor entendimento do que

seria complemento nominal para só depois verificar se o pronome lhe pode

desempenhar tal função.

Assim, para mostrar que é preciso primeiro determinar linhas gerais que

caracterizem o complemento nominal, transcrevemos a seguir, a título de ilustração, o

que uma GP (Sarmento, 2000, p.360) apresenta sobre tal função (primeiro vem o

conceito, depois um dos exemplos que o autor usa para justificar a definição):

"Conceituando. Complemento nominal é o termo da oração que completa o sentido

de um nome, isto é, de um substantivo, adjetivo ou advérbio (...) Exemplos:

Referiram-se convenientemente aos fatos. "

Advérbio complemento

nominal.

Primeiramente, ficam-nos algumas indagações: "aos fatos", no contexto

apresentado, realmente é um complemento nominal ? Será que basta ser precedido de

um advérbio para garantir uma relação de transitividade ? Ou ainda, basta vir depois

de um advérbio para desempenhar papel de complemento nominal ? Dizemos não a

todas as perguntas. Dificilmente a expressão grifada poderia ser complemento

nominal, simplesmente porque o termo que transita o sentido não é o advérbio (que

neste caso é mero circunstante), mas o verbo "referir-se". O que significa dizer que

além de não ser um bom exemplo, também confunde conceitos sintáticos

apresentados pelo mesmo livro, em páginas anteriores, quando tratava de objeto

indireto. Assim, se, algumas vezes, a própria fixação do que seria a função

complemento nominal não está clara, imagine fazer o aluno entender que o pronome

lhe desempenha tal função.

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Portanto, diante do que foi exposto até o momento, partiremos da

conceituação dos gramáticos, buscando, especificamente, o que há de recorrente em

suas posições, para que possamos, então, estabelecer um ponto de partida na

discussão do lhe enquanto possível complemento nominal. Afinal, é preciso definir-se

primeiro o que é ou como funciona o complemento nominal, para, posteriormente,

verificar-se a possibilidade do pronome lhe exercer tal função.

Os LD, GP, GT normalmente comungam da mesma idéia de que o

complemento nominal é o termo que preenche um espaço exigido por um

substantivo, adjetivo ou advérbio de base nominal. Por vezes, ele é comparado, no

que diz respeito ao seu aspecto funcional, aos complementos verbais. Isto é,

assemelham o desempenho sintático dos complementos nominais ao dos

complementos verbais. Especialmente no que se refere à transitividade de certos

nomes.

1- "(...) o complemento nominal representa o alvo para o qual tende um

sentimento, disposição ou movimento, e desempenha em relação ao nome o

mesmo papel que o complemento verbal em relação ao verbo."

(Cunha, 1992, p.150)

2- "É o termo da oração que completa a significação transitiva dos nomes"

(Hildebrando, 1982, p.228)

3- "A transitividade não é privilégio dos verbos: há também nomes (substantivos,

adjetivos e advérbios) transitivos. Isso significa que determinados substantivos,

adjetivos e advérbios se fazem acompanhar de complementos. Esses

complementos são chamados de complementos nominais".

(Pasquale & Infante, 1998, p.376)

4- "Não apenas verbos, mas substantivos e adjetivos podem necessitar de

complementos(...) Tais termos recebem o nome de complementos nominais e

designam a pessoa ou coisa como objeto da ação ou sentimento que os

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substantivos ou adjetivos significam (...) (do mesmo modo) advérbios de base

nominal"

(Bechara, 1999, p.210)

Alguns autores afirmam que esta po+tencialidade dos nomes serem transitivos

tanto quanto os verbos, deve-se principalmente pelo fato destes nomes (substantivo,

adjetivo e advérbio) serem predominantemente derivados de formas verbais. Por

isso, a força predicativa dos verbos se estende aos nomes, garantindo-lhes certo grau

de transitividade. Vejam-se alguns exemplos do paralelismo entre a forma verbal (e

seus objetos) e a forma nominalizada de tais verbos (e seus complementos).

Forma Verbal / Objeto

Forma Nominalizada / Complemento

a- amar a Pátria. amor pela pátria

b- combater contra a fome. combate contra a fome

c- confiar em Jesus. confiança em Jesus

d- desagradar aos idosos. desagradável aos idosos

e- gostar de chocolate. gosto pelo chocolate

f- obedecer aos pais. obediência aos pais

g- resistir ao cerco resistência ao cerco

No entanto, há palavras que não se aparentam com verbos correntes no

idioma, o que pode às vezes confundir esta relação dos nomes transitivos aos seus

"originais" verbais. Observemos o que Oiticica (1926, p.189) diz a respeito:

"Muitos substantivos, adjectivos ou advérbios, embora hajam perdido seus equivalentes verbais, mantêm a fôrça verbal (...) ex.: Útil à nação (de utilidade a nação). A fôrça verbal de útil vem do latim utilis derivado de uli ou do arcaico utëre;[estas duas formas podiam ser formas regentes]"

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Obviamente não precisaremos buscar a etimologia das palavras que não têm

um paralelo verbal na linguagem corrente, para que possamos verificar a capacidade

transitiva destas palavras (nomes). Verifiquem-se alguns exemplos:

[75]- O governo continua bondoso com os inadimplentes;

[76]- Deni é ávido por mulher de cabelos compridos;

[77]- O verdadeiro cristão é avesso a preconceito de qualquer espécie;

[78]- Aquele ordinário só é caridoso com o sexo oposto;

[79]- Tenho fobia do escuro.

[80]- Algumas pessoas têm ganância de dinheiro;

[81]- Eu sou leal aos meus amigos;

[82]- Os mais velhos costumam ter ojeriza por carnaval de rua.

Nesta mesma direção, Nascentes (1967) fala da semelhança do português ao

latim, no que diz respeito aos elementos que admitem regência, além do verbo. Ou

seja, para ele, o substantivo, além do adjetivo e do advérbio, podem desempenhar o

papel de termo regente.

Aliás, sendo o substantivo o núcleo do sintagma nominal, fica fácil pressupor

que outras classes de palavras relacionem-se com ele de forma muito íntima e

dependente. Por exemplo, na frase "a camisa vermelha". A expressão "vermelha" vai

flexionar-se de acordo com a determinação do substantivo "camisa". Do mesmo

modo, em "o meu carro novo", as expressões "o", "meu" e "novo" não poderiam ser

substituídas por "a", "minha" e "nova" sem que antes, o substantivo, que sinaliza o

número, o gênero, e a referencialidade semântica, determine tal substituição. Por

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exemplo, se o substantivo "carro" fosse substituído pelo substantivo "casa",

poderíamos ter: "a minha casa nova".

Assim, é razoavelmente claro entender o porquê de os gramáticos admitirem que

um substantivo ou expressão substantivada possa exigir complementos. Conforme

Meyer (1994), do mesmo modo que o verbo, o substantivo pode ter seu significado

completo em si mesmo, ou seja, dispense complemento (intransitivo), mas pode,

também, como o verbo, não ter o seu significado completo nele mesmo, e necessitar

de um complemento (transitivo). Exemplo:

[83]- A moça tinha pavor de avião. (Sarmento, 2000, p.360)

Imagine-se a frase: "a moça tinha"; uma pergunta seria feita: "o que a moça

tinha?". Para completar o verbo "tinha", responderíamos "pavor". Agora, imagine-se

a frase: "a moça tinha pavor"; outra pergunta será feita: "de que a moça tinha pavor?"

Assim, "de avião" estaria respondendo à pergunta que o substantivo deixou em

aberto, completando-lhe o sentido. Logo, exercendo o papel de complemento

nominal.

Portanto, como diz Nascentes (1967, p.17-18), podemos estender este caráter

de termo regente ao adjetivo e o advérbio, pois, se a regência dos substantivos é

normalmente a dos verbos que lhes são cognatos, a regência dos adjetivos se prende

aos substantivos ou verbos cognatos, enquanto a regência dos advérbios se liga à

regência dos adjetivos. Por isso, em certos contextos adjetivos e advérbios assumem,

também, tal funcionamento

: exigir complemento para que seu sentido se complete. Exemplos:

[84]- A caminhada diária é aconselhável a todas as pessoas. (Sarmento, 2000, p..360)

adjetivo ( vem do verbo aconselhar)

[85]- Agiu favoravelmente ao réu. (Terra, 2001, p.113)

Advérbio (vem do adjetivo favorável que vem do verbo favorecer)

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Tanto o adjetivo "aconselhável", quanto o advérbio "favoravelmente" pedem

um complemento nominal, caso contrário teríamos alteração ou comprometimento do

sentido.

Por conta desta participação no sistema de transitividade, a tradição

gramatical confere ao complemento nominal o status de termo integrante, ao lado

dos complementos verbais, pois faz parte da oração, sendo elemento não dispensável.

Assim, fica garantida ao complemento nominal uma característica básica que

é a sua participação no fenômeno da transitividade.

Neste ponto em que estamos estabelecendo os parâmetros de funcionamento

do complemento nominal, vale analisar um comentário feito por Oiticica (1926,

p.188):

"A fôrça predicativa do verbo se conserva geralmente nos substantivos, adjetivos e advérbios dêles derivados ou seus cognatos. Assim, êsses substantivos, adjetivos e advérbios continuam a exigir um complemento, verdadeiro objecto directo ou indirecto a que os gramáticos chamam, impropriamente, complementos ou adjuntos terminativos."

Temos a impressão que Oiticica ao garantir que os termos que completam a

transitividade dos nomes são verdadeiros objetos está considerando o aspecto

funcional destas estruturas. Na verdade, o fato de completarem o sentido de nomes e

não de verbos, não lhes tira o caráter central da transitividade, logo, poderiam ser

compreendidos como complementos semelhantes aos objetos.

Para que não tenhamos dúvida sobre o que Oiticica afirma a este respeito,

observem-se os exemplos que ele apresenta, entendo-os como exemplos de objeto

indireto (encontramos nos LD e GP exemplos semelhantes, porém com uma

classificação diferente, isto é, complemento nominal):

[86]- "A sentença favorece aos adversários";

[87]- "A sentença é favorável aos adversários.";

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78

[88]- "Deu a sentença favoravelmente aos adversários".

Verifiquem-se os comentários que Oiticica faz após os exemplos [86], [87] e

[88]:

"No primeiro exemplo o verbo favorece pede objecto indireto expresso por aos adversários.(...) Nos outros exemplos o adjectivo favorável e o advérbio favoravelmente pedem o mesmo objeto indireto: aos adversários, que é o objecto do favor"

Acreditamos que esta concepção certamente ajudaria muito a diminuir a

quantidade de nomes presentes nos LD e GP, dando notoriedade àquilo que

consideramos essencial para o aprendizado das estruturas gramaticais: o seu

funcionamento e não a sua classificação. Isto é, acreditar que o aluno seja capaz de

entender, reconhecer e identificar a estrutura, antes mesmo de saber-lhe o nome. Há

um excesso de detalhes, nomes (e suas ramificações) as quais só ajudam a tornar o

aprendizado e/ou ensino de gramática (língua portuguesa) algo enfadonho e cada vez

mais distante da vida prática do aluno. Afinal, o domínio e compreensão do

funcionamento das estruturas de nossa língua é muito mais útil do que o

conhecimento limitado de listas de nomes e conceitos.

Ressaltamos que não desprezamos os estudos sobre as estruturas da língua; o

aspecto normativo e regrado da gramática (inclusive suas nomenclaturas); ou o

aprofundamento nas questões gramaticais, caso contrário, seria um despropósito

nossa pesquisa. Todavia, não acreditamos na eficácia deles durante os períodos

fundamental e médio do ensino, principalmente se eles chegam aos alunos através de

LD e GP que, como vimos, apenas costumam reproduzir os conceitos, e, às vezes, os

reproduzem de forma truncada ou incorreta.

Além da transitividade, outra característica recorrente nas conceituações do

que seria o complemento nominal é a questão da obrigatoriedade da existência de

preposição. É assegurado a esta função sintática o fato de vir regida de preposição.

Melo (1970, p. 214) diz: "O complemento nominal vem regido de preposição e

refere-se a substantivos e adjetivos de sentido relativo, incompleto."

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Portanto, já podemos definir de forma genérica o que seria um complemento

nominal:

Característica básica: nome que participa do fenômeno da transitividade.

Característica físico-estrutural: termo regido de preposição.

Característica secundária: completa o sentido de um nome (substantivo, adjetivo

ou advérbio).

Exemplos:

[89]- "O menino tem necessidade de ajuda". (Prates, 1990, p.111)

Observação: a reprodução e/ou repetição de conceitos, às vezes, é tão gritante que

podemos encontrar uma mesma frase em vários LD diferentes. No caso desta frase

especificamente, a encontramos em 8 LD, como exemplo de frase que possui

complemento nominal.

[90]- "Castro era apaixonado por Mercedes" (Nicolla, 1995, p.11)

[91]- "A preocupação com a floresta era passageira" (Bourgogne, 1999, p.80)

[92]- "Ela está tão longe de mim" (Nicolla, 1995, p.11)

[93]- Os jovens europeus obedecem cegamente aos pais.

A partir da nossa definição genérica de complemento nominal, faremos o

Teste de Confirmação, com os 5 exemplos anteriores ([89], [90], [91], [92], [93]).

Teste de Confirmação:

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80

Característica básica

Característica

físico- estrutural

Característica

secundária

Compl.

Nominal:

S ou N ?

Necessidade de que? Ajuda De Substantivo Sim

Apaixonado por quem? Mercedes Por Adjetivo Sim

Preocupação com o que? a floresta Com Substantivo Sim

Longe de quem ? mim De Advérbio Sim

Cegamente não é um nome transitivo A Advérbio Não

Vejamos agora que relação têm estas conclusões com a suposta função

complemento nominal atribuída ao lhe9:

♦ O lhe pode ser complemento se levarmos em consideração tudo que já foi dito

antes mesmo de falarmos de complemento nominal. Isto é, acreditamos que o

pronome lhe tem status de complemento;

♦ O lhe pode ser complemento nominal, pois em outras ocasiões já confirmamos

que ele pode participar do fenômeno lingüistico denominado regência. Ou seja, é

capaz de completar o sentido de um termo regente, participando do sistema de

transitividade.

♦ Com relação à preposição, é indiscutível a existência de uma preposição implícita

no pronome lhe.

A partir destas afirmações teóricas, podemos pressupor que realmente o

pronome lhe pode desempenhar a função de complemento nominal. Vejamos então

na prática se isto é possível. Para tal utilizaremos nosso "Teste de Confirmação":

[94]- "Um dia, isto lhe será útil." (Henriques, 1997, p.52).

Observação: este exemplo (único) é utilizado na obra de Henriques (1997), para

comprovar que em tal frase o pronome lhe funciona como complemento nominal.

Vejamos se após o "Teste de confirmação", nós concordaremos com ele.

9 As conclusões estão relacionadas às afirmações feitas no capítulo 3, subtítulo 3.1 e 3.2.

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81

[95]- "Não posso ser-lhe fiel" (Pasquale & Infante, 1998, p.376).

Teste de Confirmação com os exemplo [94] e [95]:

Característica básica

Característica

físico- estrutural

Característica

secundária

S ou

N

Útil a quem ? lhe A (implícita) Adjetivo sim

Fiel a quem ? lhe A (implícita) Adjetivo sim

Realmente estamos diante de exemplos incontestáveis do pronome lhe com

função de complemento nominal.

A seguir, são apresentados outros exemplos que foram selecionados de um

total de aproximadamente 800 frases, constantes no CETEMPúblico e

CETEMNTSC/ S.Carlos, nos quais o pronome lhe aparece desempenhando a função

de complemento nominal :

[96]- "Bernd é um cidadão alemão e, assim que lhe foi possível, viajou na limusine à

prova de balas do embaixador alemão até ao aeroporto onde o aguardava um jacto

privado" (Ext 1230 pol,)

[97]- "Que a posição do Vaticano possa ser entendida deste modo por um intelectual

desta craveira - sobretudo a ideia de um malvado voluntarismo de Deus que lhe está

subjacente - deveria fazer refletir os argumentadores oficiais da doutrina da Igreja."

(Ext 282 -nd, 94b).

[98]- "Bernd é um cidadão alemão e, assim que lhe foi possível, viajou na limusine à

prova de balas do embaixador alemão até ao aeroporto onde o aguardava um jacto

privado." (Ext 1230 -pol, 98a).

[99]- "Segundo António Lopes, para além do Governo se deve preocupar com o

pagamento da dívida que lhe diz respeito, podia ter em consideração que uma grande

empresa, que empregue muitos trabalhadores e que por essa via alivie o sistema, não

devia ter exactamente os mesmos encargos que as «empresas de capital intensivo»,

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que produzem enormes lucros especulativos mas que criam poucos postos de

trabalho" (Ext 1825- pol, 96a).

[100]- "Os que lhe são próximos dizem que a insistência em apertar a mão a todos os

que lha estendem, por cima da muralha de guarda-costas, e um genuíno desejo de

contacto humano são a causa dos atrasos. (Ext 1421 -pol, 94a).

[101]- "Mais tarde, ao chegar ao útero, implanta-se no endométrio, de cujas células

passa a retirar os alimentos que lhe são necessários" (par 411)

[102]- "No segundo trimestre, se a gravidez evoluir normalmente, por volta do quarto

mês a mulher sentirá os movimentos fetais, experiência que lhe será muito

gratificante" (par 421).

[103]- "Nelson Rodrigues, acompanhando as filmagens de Bonitinha, mas ordinária,

me repetia, entre uma baforada e outra do cigarro que lhe era proibido, que o bom

ator tinha que ser burro." (par 14562).

[104]- "Discretamente, o presidente Fernando Henrique vem estimulando o trabalho

de um grupo especial de estudos, sobre um conjunto de problemas brasileiros, que lhe

poderá ser útil não só neste governo, mas principalmente se houver um próximo."

(par 14940).

[105]- "O Flamengo lhe é tão estranho quanto o Vasco da Gama." (par 17209).

"Vivíamos então no Brasil -- e vivemos ainda -- sob o império das patrulhas

ideológicas, fenômeno que não lhe é estranho: um homem pensa com a própria

cabeça e logo se vê entre dois fogos." (par 39004)

[106]- "Pretendia apenas pesquisar a doença presente da Europa e determinar, caso

lhe fosse possível, os remédios a aplicar." (par 39197)

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[107]- "(...) é preciso dizer que a mulher se descative de uma dependência que lhe é

mortal que não lhe deixa muita vez outra alternativa entre a miséria e a devassidão."

(par 40326)

[108]- "Um controle estatístico verifica qual a relação entre consultas e solicitações

de exames subsidiários, mas isso não é feito com o objetivo de cercear a liberdade de

qualquer médico em solicitar os exames que lhe pareçam necessários, mas visa tão-

somente a estabelecer melhores padrões de atendimento". (par 41231).

4.4.1 Considerações finais sobre o complemento nominal

A título de conclusão podemos afirmar que realmente o lhe é um

complemento nominal. Contudo, ao observarmos todos os exemplos que

apresentamos, durante a própria seleção das frases, ficou-nos uma impressão: em

todos os exemplos, excetuando o exemplo [99], o pronome lhe se relaciona, ou

melhor, completa o sentido apenas de nomes com categoria de adjetivo ("necessário",

"possível", "estranho", "mortal"). Sendo nula a sua relação com advérbio e rara com o

substantivo. Outra característica do lhe como complemento nominal é o fato deste

adjetivo, com o qual o pronome se relaciona, sempre ter função de predicativo. Para

finalizar, provavelmente por conseqüência da presença do termo predicativo,

pudemos constatar também que sempre há a presença de um verbo de ligação.

Em suma, embora o pronome lhe corresponda às características genéricas que

estabelecemos para delimitar a função complemento nominal, certamente este

pronome possui algumas peculiaridades que o colocam em um subgrupo. Contudo, o

ponto decisivo é constatar que realmente o pronome lhe funciona como um elemento

que completa o sentido de outro.

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4.5 Pronome lhe como adjunto adverbial ? Na verdade não vamos discutir esta possibilidade. De fato, só a trouxemos a

título de curiosidade, pois o que mais fizemos neste trabalho foi verificar as faces

funcionais do lhe, logo, não poderíamos deixar de comentar que existem autores que

acreditam nessa outra face, agora circunstancial, do pronome lhe.

Vale dizer que poderíamos até começar uma discussão em torno do assunto,

pois certamente muito há para dizer. Todavia, essa discussão seria apenas mais uma a

questionar uma função sintática. O queremos dizer é que nenhum dos LD ou GP

pesquisados trouxe à tona esta função do lhe, por isso consideramos improdutivo,

pelo menos por enquanto, discutir esta possibilidade funcional do pronome lhe, tendo

em vista que durante toda nossa pesquisa também pretendíamos analisar o modo

como os conceitos e normas gramaticais (especialmente no que se refere ao lhe)

chegam até o aluno via LD e GP.

De qualquer forma reproduzimos abaixo uma frase em que o lhe é um suposto

adjunto adverbial:

[109]- "Sozinho, pego o prato e ponho-lhe comida". (Henriques, 1997, p.52).

Esta frase é apresentada por Henriques (1997) que a utiliza para justificar a

função adverbial do pronome lhe. Ele sugere que o lhe neste contexto é igual a "nele",

sugerindo então que o pronome desempenha a função de adjunto adverbial de lugar.

Talvez seja prematuro afirmar que o lhe é um adjunto adverbial, pois

acreditamos que há necessidade de um aprofundamento maior, principalmente porque

temos a impressão de que a frase é ambígua, pois pode ser "nele" ("no prato"), como

também "para ele" ("para alguém"). Contudo, algo é certo, na interpretação da frase

feita por Henriques não há a menor dúvida de que exista uma idéia, um sema novo,

expresso pelo pronome lhe.

Entretanto, como já dissemos no início, vamos esperar para ver como esta

suposta função do lhe chega até os LD e GP. Talvez, nesta ocasião, consigamos

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verificar não só como elas se reproduzem e se propagam de uns para os outros, mas

também de que maneira elas surgem nestas obras.

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