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4 DO DISCURSO MÍSTICO Pressiono um desentupidor na pia da cozinha e vêm à tona grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de sabão e gordura e, sem avisos, um estado de sentir, ou de ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas de manequins posando em paisagens de inverno e outras mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que prazer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão transitório, desafadiguemo-nos. É a unidade de tudo num relance apanhada. É: tem pleno sentido ir até São Paulo atrás de um novo cosmético. É que pura bobagem tomar banho todos os dias. Está lá a coisa, o ser, o deus, fora de mim, completamente outro, mas em intensa comunhão comigo 1 . La red del pescador existe debido al pez; una vez atrapado el pez, uno se pude olvidar de la rede. La trampa de conejos existe debido al conejo; una vez cazado el conejo, se puede olvidar la trampa. Las palabras existen debido a su significado; una vez obtenido el significado, se pueden olvidar de las palabras. ¿Dónde encontraré a un hombre que pueda olvidarse de las palabras para poder hablar con él? 2 4.1 Questões iniciais Qual a pretensão de verdade do discurso místico? Do que fala quando fala e do que cala, quando se cala? Á quem se dirige, quais são seus interlocutores, suas intenções, sua efetividade, seu conteúdo? Essas são questões a que esse capítulo se propõe a tematizar, mais do que responder, na medida em que nos deteremos agora em analisar o que se oferece sobre o nome genérico de discurso místico, pois é importante assinalar que não é a experiência mística que nos interessa nessa tese, e sim aquilo que vem após a mesma, fruto provocado e estimulado por ela, mas elaborado a posteriori, exigindo uma atitude e postura totalmente diversa daquela do momento da experiência. Entendemos que a fala do místico, ainda que prenhe do vigor e da stimmung 3 da experiência mística, é um ato do discurso altamente elaborado, artifício literário e filosófico não-espontâneo, reflexivo e esteticamente organizado. Á princípio há o paradoxo de que o discurso da mística é uma fala que se confessa impotente, fracassada em seu mérito de linguagem produtiva, inútil até. Entretanto, se o fim da experiência mística é o silêncio – lembremo-nos o já tão citado epigrama de Wittgeinstein “Daquilo que não se pode falar deve-se calar” – 1 PRADO, Adélia. Os componente da banda. Prosa Reunida., p. 229. 2 Sabedoria taoísta, apud ARNAU, Juan. Lenguaje y silencio em las tradiciones budistas., p. 93. 3 “Disposição anímica”, termo usado por Staiger para caracterizar uma certa disposição ou atmosfera a que somos conduzidos pelo poeta no gênero lírico. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética., 1972.

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4 DO DISCURSO MÍSTICO

Pressiono um desentupidor na pia da cozinha e vêm à tona grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de sabão e gordura e, sem avisos, um estado de sentir, ou de ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas de manequins posando em paisagens de inverno e

outras mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que prazer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão transitório, desafadiguemo-nos. É a unidade de tudo num relance

apanhada. É: tem pleno sentido ir até São Paulo atrás de um novo cosmético. É que pura bobagem tomar banho todos os dias. Está lá a coisa, o ser, o deus, fora de mim, completamente outro, mas

em intensa comunhão comigo1.

La red del pescador existe debido al pez; una vez atrapado el pez, uno se pude olvidar de la rede. La trampa de conejos existe debido al conejo; una vez cazado el conejo, se puede olvidar la

trampa. Las palabras existen debido a su significado; una vez obtenido el significado, se pueden olvidar de las palabras. ¿Dónde encontraré a un hombre que pueda olvidarse de las palabras para

poder hablar con él?2

4.1 Questões iniciais

Qual a pretensão de verdade do discurso místico? Do que fala quando fala e

do que cala, quando se cala? Á quem se dirige, quais são seus interlocutores, suas

intenções, sua efetividade, seu conteúdo? Essas são questões a que esse capítulo

se propõe a tematizar, mais do que responder, na medida em que nos deteremos

agora em analisar o que se oferece sobre o nome genérico de discurso místico,

pois é importante assinalar que não é a experiência mística que nos interessa nessa

tese, e sim aquilo que vem após a mesma, fruto provocado e estimulado por ela,

mas elaborado a posteriori, exigindo uma atitude e postura totalmente diversa

daquela do momento da experiência. Entendemos que a fala do místico, ainda que

prenhe do vigor e da stimmung3 da experiência mística, é um ato do discurso

altamente elaborado, artifício literário e filosófico não-espontâneo, reflexivo e

esteticamente organizado.

Á princípio há o paradoxo de que o discurso da mística é uma fala que se

confessa impotente, fracassada em seu mérito de linguagem produtiva, inútil até.

Entretanto, se o fim da experiência mística é o silêncio – lembremo-nos o já tão

citado epigrama de Wittgeinstein “Daquilo que não se pode falar deve-se calar” –

1PRADO, Adélia. Os componente da banda. Prosa Reunida., p. 229. 2Sabedoria taoísta, apud ARNAU, Juan. Lenguaje y silencio em las tradiciones budistas., p. 93. 3“Disposição anímica”, termo usado por Staiger para caracterizar uma certa disposição ou atmosfera a que somos conduzidos pelo poeta no gênero lírico. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética., 1972.

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poucos gêneros discursivos foram tão produtivos quanto esse, pois o que os

místicos mais fazem é falar: na mística fala-se (e muito) para confessar-se mudo,

emudecido, enfanti. Então,confessar-se-ia a impotência da voz para conquistar

novamente as palavras, o mundo, o sentido?

Místicos simplesmente não têm sido silenciosos. Muitos têm falado sem restrição, e outros têm escrito volumosamente. O gênero de literatura mística é não somente quantitativamente vasto, mas lingüisticamente luxuriante. No discurso místico, a linguagem se desenfreia: ela pula, ela salta, ela canta. Ela fala em prosa e poesia; ela dá descrições objetivas da experiência e voa nas asas do êxtase; ela guia iniciantes com um gentil cuidado e corta a ilusão com argumentos de lâmina afiada. [...] Além disso, certos místicos têm tido suas experiências místicas na e através da linguagem. Com isso eu quero dizer não somente que a linguagem evoca e molda essas experiências, mas que as formas lingüísticas participam na revelação do domínio transcendente. Nesse sentido, pode existir uma mística da linguagem4.

Em uma linguagem simbólica repleta de oxímoros, paradoxos e contradições

o discurso místico intenta descrever uma experiência a qual MeisterEckhart se

refere como um non intelligendointelligere. Aliás, é bastante corriqueira a

afirmação de uma obscuridade intrínseca ao discurso místico, daí os abundantes

símbolos de trevas e escuridão para caracterizar essa linguagem como negação do

inteligir. Segundo Juan Martín Velasco5, essa tradição remonta a Gregório de

Nisa, para quem o itinerário espiritual seguiria os passos de Moisés, quando

chamado em presença da sarça ardente até o momento chave em que pede a Deus

que veja Seu rosto e Deus, após ter ordenado que Moisés se escondesse atrás de

uma rocha, se manifesta naquele local, tendo tido antes a precaução de tampar

com Suas mãos a rocha onde Moisés estava escondido, pois “um homem não pode

ver o rosto de Deus e sobreviver” (Ex. 33: 18-23). Para Pseudo-Dionísio Deus é

raio de treva luminosa e misteriosa treva do não-saber; para São João da Cruz a

noite escura é ao mesmo tempo lugar de perda e encontro entre a Alma e seu

Amado (Deus); e MeisterEckhart assim afirma: “A luz que é Deus emana e

escurece toda luz”6. De acordo com Javier Meloni é tema presente em várias

tradições místico-religiosas a obscuridade luminosa que é ao mesmo tempo

conhecimento do divino:

4COUSINS, Ewert H. 1992. apud SHOJI, Rafael. Condições de significado na linguagem mística., p. 60. 5VELASCO, Juan Martín. El fenómeno mistico em la historia y em la actualidad. In: La experiencia mistica: estudio interdisciplinar. 6Sermão 71.ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart.

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A mística sufi iraniana reflete sobre esse aspecto: no principio do caminho se tropeça na escuridão do eu autocentrado, no encobrimento dos próprios desejos, enquanto que a Escuridão Luminosa dos montes não é outra coisa que a explosão da proximidade do Ser Supremo que deslumbra. O conhecimento torna-se desconhecimento porque Deus deixa de ser objeto a conhece e se converte no Fundamento a partir do qual tudo se conhece. Para poder chegar a isso, há que passar pela Noite Escura, etapa que se faz presente em todas as tradições espirituais7.

Um tratado místico do século XIV, de autor anônimo, exemplifica bem essas

trevas luminosas e o longo percurso realizado pelo místico até que o mesmo

aprenda a permanecer na escuridão, ou seja, que todo seu querersaber se

transforme em um querer amar:

É natural que no começo não sintas mais que uma espécie de escuridão sobre tua mente ou, se assim quiseres, uma nuvem de não-saber ..... Faças o que fizeres, esta obscuridade e esta nuvem se interporão entre tu e Deus .... Porém aprende a permanecer nessa escuridão. Volte a ela quantas vezes que possas, deixando que teu espírito grite naquele a quem amas. Pois se nesta vida esperas sentir e ver a Deus tal como es, há de ser dentro desta escuridão e desta nuvem8.

Entretanto, deve-se tomar cuidado em concluir com demasiada pressa que a

confissão de inefabilidade da experiência implique: a) uma ‘presença’ objetiva

comum a todas as experiências místicas e conseqüentemente a identidade de todas

essas experiências místicas; b) que o discurso místico seja “neutro”, ou purgado

de pressupostos culturais e religiosos; c) a impossibilidade de interpretar os

discursos resultantes dessa experiência. A esse respeito, são prudentes as

considerações de Terrin, ao estudar a declaração de inefabilidade do transe e do

êxtase místico:

7No original: “La mística sufí iraniana ha reflexionado al respecto: al principio del camino se tropieza con las oscuridades del yo auto centrado, el velo de los propios deseos, mientras que la Oscura Luminosidad de las cimas no es otra cosa que el estallido de la proximidad del Ser Supremo que deslumbra. El conocimiento deviene desconocimiento porque Dios ha dejado de ser un objeto a conocer y se ha convertido en el Fondo desde todo se conoce. Para poder llegar a ello, se ha de pasar por la Noche Oscura, etapa que se halla presente en todas las tradiciones espirituales”. MELLONI, Javier. La mística, ou-topos del dialogo interreligioso. Selecciones de teología. 8No original: “Es natural que al comienzo no sientas más que una especie de oscuridad sobre tu mente o, si se quiere, una nube del no-saber... Hagas lo que hagas, esta oscuridad y esta nube se interpondrán entre tú y tu Dios... Pero aprende a permanecer en esa oscuridad. Vuelve a ella tantas veces como puedas, dejando que tu espíritu grite en aquel a quien amas. Pues si en esta vida esperas sentir y ver a Dios tal como es, ha de ser dentro de esta oscuridad y de esta nube”. ANÓNIMO INGLÉS DEL SIGLO XIV: La nube del no-saber y el libro de la orientación particular. Ed. Paulinas. Madrid, 1981. 3, p.69, apud DE MOINE, Inês Riego. Hombre y filosofia: una mirada desde la Mística.

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Os fenômenos de transe e êxtase são off limits, mas não são “vazios” de sentido”, pelo menos na medida em que uma comunidade lingüística e uma cultura orientada religiosamente reconhecem ao menos o horizonte global de valor dentro do qual esses fenômenos podem ser colocados em nível religioso, sem com isso pretender dar-lhes explicação. Em outras palavras, é a hermenêutica religiosa de uma comunidade de crentes que é chamada a ser sentinela desse mundo presumidamente “transcendental”9.

Apesar do recorrente postulado, nos estudos clássicos da religião, de que há

na experiência mística uma presença objetiva e transcendente, ainda que inefável,

é possível pensar a mística em outros termos, como por exemplo o faz Bataille.

Em Bataille a mística aparece não como o espaço privilegiado do encontro entre

um Eu humano e um Tu divino que será nomeado de acordo com sua inscrição

cultural, e sim como o embate entre o humano – e aqui a humanidade será

basicamente aquela configuração sócio-cultural que “arranca” o homem de si

mesmo, levando-o sim à transcendência de sua animalidade, mas também ao

mundo do trabalho, marcado pelo interdito – e o sagrado, entendendo-se sagrado

justamente como esse locus obscuro e perigoso, aquém-homem. Falando sobre a

experiência interior (termo usado por Bataille para descrever experiências que

poderiam também ser chamadas místicas)questiona sobre a possibilidade de uma

mística não-religiosa:

Não se poderia retirar desses antecedentes religiosos a possibilidade, que permaneceria aberta, apesar das aparências, ao descrente, de uma experiência mística? Separá-la da ascese do dogma e da atmosfera das religiões? Separá-la, em uma palavra, do misticismo – a ponto de ligá-la à nudez da ignorância?10

Carlos Peixoto Júnior faz o seguinte comentário acerca da espécie de místico que

Bataille poderia ser:

Tudo o que na sua obra, por exemplo, para abalar a segurança do saber discursivo, parece estar próximo de uma experiência mística, encontra-se na verdade para além da oposição entre o místico e o racional. Como atesta Derrida, Bataille não é de maneira alguma um místico. O que ele indica como experiência interior não é exatamente uma experiência porque não se relaciona com nenhuma presença ou plenitude mas apenas com a impossibilidade que ela experimenta no suplício. Essa experiência, sobretudo, também não é interior na acepção comum do termo. Ainda que pareça sê-lo, por não se relacionar com nada do outro, com nenhum fora, de outro modo que a não relação do segredo e da ruptura, ela também é inteiramente

9TERRIN Aldo Natale. A experiência religiosa off limits: para uma interpretação dos fenômenos de transe e êxtase. In: O sagrado off limits: a experiência religiosa e suas expressões., p. 142. 10BATAILLE, Georges. A experiência interior, p. 180.

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exposta ao suplício, nua e aberta ao de fora. Sem reserva nem foro interior ela é, em última instância, profundamente superficial11.

Assim, para Bataille a mística torna-se interessante para o pensamento na medida

em que seja uma experiência limítrofe entre saber e não-saber, linguagem e

silêncio, sagrado e profano.

Mas outra linha de pesquisa interessante que se abre contemporaneamente

para os estudos da mística são as manifestações de uma mística da imanência ou

secularizada (estética), nascida com a modernidade12. Eduardo Guerreiro Losso

cita os estudos pioneiros de Martina Wagner- Egelhaaf, e a partir dessa autora

esclarece algumas distinções preciosas entre essa mística secularizada e a outra,

religiosa:

Ao contrário da mística anterior que proporia a união mística com o absoluto, a indistinção de sujeito e objeto, a mística na modernidade procura o contato com o outro já em si mesmo. Em vez da humilhação que é também um sentimento de elevação, da autodiminuição que também é auto-engrandecimento, o artista moderno duvida desse modelo de aniquilamento do eu e inventa outro. Seu modo de aniquilamento é fazer da incapacidade da linguagem e de sua negação uma chance artística, idéia estética e mística que desenvolve uma exigência de verdade ainda maior, fundamentada pela própria incerteza e reflexão individual emancipada de religião e ideologias13.

Conforme Guerreiro Losso, a mística contemporânea (de cunho estético) leva a

negatividade às últimas conseqüências, através de uma rigorosa crítica da

linguagem e do saber discursivo. Não obstante, para ele parece mais acertado

“diagnosticar o conflito próprio da negatividade da transcendência do que seu

abandono absoluto”14, bem como o convite aberto, a esse sujeito descentrado e

impotente, a uma atitude crítica e consciente:

A ascese do artista ou do teórico moderno, que aspira à experiência de embriaguez através de uma imersão no universo da linguagem, contém muito mais do que efeito divertido ou terapêutico. Seu choque existencial aumenta e desafia a razão (como disse Certeau, a mística é realista), convida o sujeito a se superar e a desejar

11PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Bataille e a linguagem como experiência transgressiva, 22-23. 12Eduardo Guerreiro Losso cita como exemplo dessa mística da imanência nomes como os de Novalis, Friedrich Schlegel, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé; movimentos estéticos como o simbolismo, o decadentismo e o surrelismo; escritores e pensadores pré-modernos como Rilke, Stephan George, Hofmannsthal, T.S. Eliot, James Joyce, Simmel, Gustav Landauer, Fritz Mauthner. Ver: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia negativa e Theodor Adorno, p. 281-282. 13LOSSO, Eduardo Guerreiro, op. Cit., p. 287. 14LOSSO, Eduardo Guerreiro, op. Cit., p. 287.

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a possibilidade do impossível, quer dizer, a fazer sua parte para mudar algo do ofuscamento e culpabilização universal. Desejando algo mais que o existente, o sujeito transforma a si mesmo, transgride seus próprios limites, produzindo atividade crítica. Assim tal indivíduo não se resigna ao status quo existente e descobre no cerne de sua experiência a verdadeira objetividade de algo maisque o existente. Ao mesmo tempo, em concordância com Spörl e Egelhaaf, não há remissão auma transcendência positiva ilusória, pois a ascese artística ou teórica busca a transcendênciana fragilidade profana da imanência. Portanto, tal experiência místico-estética é um verdadeiro antídoto contra o niilismo moderno e sua conseqüência lógica: os mais diversos fundamentalismos. A mística da arte moderna dá mais do que um “sentido” à vida: ela extrai força da impotência à qual o sujeito foi reduzido, em outras palavras, e num sentido bem “alquímico”, tira vinho da água e ouro de pedra. 15

Para Guerreiro Losso a mística, e não apenas a contemporânea, é simultaneamente

descontrutora e metafísica, possuindo força emancipatória na medida em que é

tanto uma defesa da ortodoxia quanto um convite ao esclarecimento.

Outro campo de interesse, afastado da dogmática, que começa a surgir para

os estudos da mística é a neuroteologia, que se refere ao estudo da neurologia do

sentimento religioso e da espiritualidade através do mapeamento das atividades do

cérebro durante momentos de meditação e/ou outras práticas religiosas. Estudos

como os do radiologista Andrew Newberg e do psiquiatra Eugene D’Aquili, da

Universidade da Pensilvânia, têm demonstrado que no estado de meditação

profunda se desativam regiões do cérebro reguladoras da construção do

sentimento de identidade, de modo que o sujeito que medita sente que as

fronteiras entre o eu individual e o mundo que o cerca se desintegraram em uma

totalidade única e transcendente. Essas pesquisas suscitam o debate sobre se a

existência de uma configuração cerebral específica relacionada ao sentimento

religioso e à espiritualidade provam a existência de Deus ou se, pelo contrário, são

a constatação de que a religiosidade humana nada mais é do que mais um produto

da atividade cerebral. Newberg e D’Aquili postulam a existência de uma “mente

mística” (mysticalmind), nome que designa “o modo de captação do mundo

presente em todas as culturas e em todos os seres humanos, exatamente porque

obediente a necessidades inseridas no próprio processo evolutivo”16. Em seu

artigo “Neurociências e Religião”, o prof. Edênio Valle explica o feito dos

pesquisadores:

15LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna,p. 304. 16VALLE, Edênio. Neurociências e religião: interfaces.

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Sublinhemos dois aspectos que os autores vêem como importantes para se compreender o que pretendem ao postularem uma "mente mística". Após minuciosa descrição do funcionamento do cérebro e da mente (que para eles, na prática, acabam sendo dois nomes para uma só e mesma coisa), eles passam a fundamentar aquele conceito com dois argumentos. Baseiam-se, primeiro, no fato de as funções exercidas pelo cérebro/mente levarem, por si mesmas, a experiências de tipo místico, construídas sobre uma percepção espontânea e natural do maravilhoso que transcende. D'Aquili e Newberg descem a pormenores neurofisiológicos de como isto se dá. Como segundo ponto de partida tentam demonstrar que o cérebro e a mente têm condições intrínsecas para gerar estados místicos e para nos fazer vivenciá-los. Assim sendo é válido usar o adjetivo "místico" para caracterizar algo que a mente/cérebro possibilitam e fazem de fato. Não é de uma especulação de filósofos e teólogos e sim uma realidade biológica humana que precisa ser reconhecida em todas as suas reais dimensões e aspectos17.

De forma bastante lúcida Rafael Shoji chamará a atenção para o perigo desses

saltos de descrições neuronais a padrões de comportamento religiosos, que é o que

os estudos de D'Aquili e Newberg parecem fazer, e para a necessidade de critérios

externos (a tradição e o contexto no qual tal experiência se insere, o campo

hermenêutico dos envolvidos, etc):

Para tornarmos essa contraposição clara podemos imaginar o seguinte experimento do pensamento: suponha, como em uma estória de ficção científica, que seja possível induzir artificialmente um estado cerebral a partir do modelo de d'Aquili e Newberg, ativando partes cerebrais determinadas e definindo valores e parâmetros tais que essa experiência seja a mesma, em termos de estados neurológicos, daquela medida em um transe místico no Candomblé. Qualquer ser humano pode sofrer essa experiência à distância com um apertar de botões e também podemos escolher seres humanos em outras épocas históricas. Indivíduos de diversos tipos sofrem essa intervenção secreta, digamos um ateu, um bebê, um caçador na pré-história, um cristão no século XVI e um praticante do Candomblé. Todos eles sofrem os mesmos processos neuronais e pré-lingüísticos, mas todas as experiências serão consideradas religiosas? O que é mais próximo do que originou os dados que serviram de parâmetro para a intervenção? A intervenção produz um estado pré-lingüístico e sensações neuronais comuns mas que não precisam ser tratados como experiências religiosas e, muito menos, como experiências do Candomblé. Só um conjunto de critérios externos e um contexto que dão um significado a esse estado pré-lingüístico podem resultar no que foi o parâmetro de entrada da intervenção, a experiência mística no Candomblé18.

E Francisco M. Teruel, após afirmar que no cérebro de cada ser humano haveria

substratos capazes de conduzir qualquer um à experiência mística através das

práticas de concentração, meditação, oração, afirma com a mesma cautela de

Shoji que a única conclusão a que se pode chegar no momento é que “as

experiências dos místicos e as experimentadas na meditação, depois de muitos

17VALLE, Edenio. Neurociências e religião: interfaces, op. Cit., p. 34. 18 SHOJÏ, Rafael. Condições de significado na linguagem mística., p. 68.

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anos e aprendizagem, são processos que ocorrem no cérebro e que podem ser

ativadas como processos fisiológicos”19. Tais experiências são semelhantes as que

alguns tipos de epiléticos – as chamadas epilepsias do lóbulo temporal,

conhecidas como do tipo “extático” ou “psíquicas” - descrevem: grande

emotividade e sentimentos de exaltação, alegria e prazer, sentimento de diluição

espacial e integração com o todo universal ou com Deus, percepção de que as

palavras são incapazes de descrever o que lhes ocorreu, etc. Nessas situações há

uma singular privação de estímulos externos de modo a interromper o

funcionamento da mente lógico-analítica e ativar outro tipo de consciência

característica dos estados místicos20, entretanto, é precipitado, se não incorreto,

afirmar que tais experiências são idênticas a uma experiência mística.

19 No original: “las experiencias de los místicos o las experimentadas en la meditación, tras muchos años de aprendizaje, son procesos que ocurren en el cerebro y que pueden ser activados como procesos fisiológicos”. TERUEL, Francisco Mora. Cerebro y experiencia mística. In: VELASCO, Juan Martín. La experiencia mistica: estudio interdisciplinar, p. 180. 20O autor cita os estudos de Rubia como exemplodessalinha investigativa. RUBIA, F. La conexión divina. Barcelona, 2002, apud TERUEL, Francisco Mora. Cerebro y experiencia mística. In: VELASCO, Juan Martín. La experiencia mistica: estudio interdisciplinar, p. 180 e 182.

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4.2 A experiência mística

Muito embora o interesse principal de nosso trabalho seja o discurso da

mística e não a experiência da mística, é importante tecer algumas considerações

sobre esse fenômeno que culminará em uma fala, em um discurso que tem como

marca maior a pretensão de dirigir-se do e para o inefável. Na verdade são muitas

as formas de compreensão desse fenômeno, de modo que mesmo a simples

conceituação implica em adesões filosóficas e ideológicas, sendo já um extenso

tema de discussão. Ficaremos aqui com definições mais ou menos clássicas, com

certo grau de unanimidade, as quais não serão consistentemente problematizadas,

dado os limites desse estudo. Para começar iniciemos com uma abordagem que

valoriza o aspecto extraordinário da experiência, do estudioso das religiões Juan

Martin Velasco, para quem as experiências místicas (...) poderiam ser descritas

como “episódios mais ou menos breves nos quais um sujeito entra em relação

com uma realidade que lhe supera absolutamente, ou, melhor, com dimensões e

aspectos do real que superam absolutamente as dimensões e aspectos com os

quais entra em contato em sua vida ordinária”21. A afirmação de que na mística há

uma espécie de epifania do real, com uma conseqüente desautomatização dos

modos de ver e perceber o mundo, é ponto importante que será mais bem

examinado a seguir, no momento nos interessa apenas enfatizar o aspecto não-

ordinário do evento, sua aura de acontecimento revelador e transformador.

Em uma abordagem psicológica do fenômeno religioso, William James nos

legou uma definição hoje clássica da experiência mística, na qual são ressaltadas

quatro marcas da mesma, quais sejam: a) a inefabilidade: para W. James essa

experiência traz em si a marca da negatividade, “cuja qualidade precisa ser

experimentada diretamente: não pode ser comunicada nem transferida a outros”;

b) qualidade noética: ainda que semelhantes aos sentimentos (isto é, inefáveis),

“os estados místicos parecem ser também para os que os experimentam, estados

de conhecimento, estados de visão interior dirigidas a profundezas de verdade não

sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações, revelações cheias de

significado e importância, por mais inarticuladas que continuem sendo (..)” ; c)

21 No original: “episódios mas o menos breves em los que um sujeto entra em relación com una realidad que le supera absolutamente, o, mejor, com dimensiones y aspectos de lo real que superan absolutamente las dimensiones y aspectos com los que entra en contacto em su vida ordinária”. VELASCO, Juan Martín. La experienciamistica: estudio interdisciplinar, op. Cit, p. 24.

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transitoriedade: não podem perdurar por muito tempo, ainda que possam se

repetir em momentos posteriores; d) passividade: “se bem que a aproximação de

estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como a

fixação da atenção, a execução de certos gestos corporais, ou outras maneiras

prescritas pelos manuais de misticismo, todavia, depois que a espécie

característica de consciência se impôs, o místico tem a impressão de que a sua

própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e

seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos

a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, como

o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico.”22 Para clarear a

compreensão desses estados místicos James recheia seu texto com extensos e

curiosos exemplos de relatos, vejamos um deles:

De repente, escreve Symonds, na igreja, ou estando em companhia de outras pessoas, ou enquanto lia, eu sentia a aproximação desse estado de espírito. Irresistivelmente, ele se apoderava de minha mente e da minha vontade, durava o que me parecia uma eternidade e desaparecia numa série de rápidas sensações que se diriam o despertar de uma influência anestésica. Uma razão por que eu não gostava desse tipo de transe era por não poder descrevê-lo para mim mesmo. Não conseguia sequer encontrar palavras que a tornassem inteligível. Consistia numa obliteração gradativa, mas rapidamente progressiva, do espaço e do tempo, da sensação e dos múltiplos fatores de experiência que pareciam qualificar o que nos apraz chamar o nosso Eu. Na proporção em que essas condições de consciência comum eram subtraídas, o sendo de uma consciência subjacente ou essencial adquiria intensidade. Finalmente, nada mais existia senão um Eu puro, absoluto, abstrato. O universo tornava-se informe e vazio de conteúdo. Mas o Eu persistia, formidável em sua vívida profundeza, sentindo a dúvida mais pungente acerca da realidade, pronto, segundo parecia, para ver a existência estourar, como estoura um bolha de sabão. E então? A apreensão de uma próxima dissolução, a sinistra convicção de que esse estado era o derradeiro estado do Eu consciente, o sentido de que eu seguiria o último fio do ser até a borda do abismo e chegara à demonstração da eterna Maya ou ilusão, agitava-me ou parecia agitar-me de novo. A volta às condições normais de existência senciente começava com a recuperação da sensibilidade tátil e, a seguir, com o influxo gradual, se bem rápida, de impressões familiares e interesses cotidianos. Finalmente, eu me sentia outra vez um ser humano; e conquanto o enigma da significação da vida permanecesse não resolvido, eu me sentia grato pelo regresso do abismo – a libertação de uma iniciação tão pavorosa nos mistérios do ceticismo. Esse transe foi-se repetindo com freqüência cada vez menor até que cheguei à idade de vinte e oito anos. Serviu para impressionar minha natureza em desenvolvimento com a irrealidade fantasmal de todas as circunstâncias que contribuem para uma consciência meramente fenomênica. Tenho-me perguntado reiteradas vezes, com angústia, ao acordar desse estado de ser informe, desnudado, agudamente senciente: Qual é a realidade? – o transe do Eu feroz, vazio, apreensivo e cético do

22JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana., p. 237-8.

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qual estou saindo, ou esses fenômenos e hábitos circunstantes que envolvem aquele Eu interior e constroem um eu de convencionalidade carnal? Por outro lado, são os homens fatores de algum sonho, cuja insubstancialidade semelhante ao sonho compreendem em tais momentos memoráveis? Que aconteceria se se atingisse o estádio final do transe?23

O relato possui algumas ressonâncias com a filosofia oriental budista, o que

parece confirmar a afirmação anterior de Aldo Terrin de subsistir em todo relato

de experiência mística a marca hermenêutica de uma comunidade de fé que

constrói os sentidos em potencial desse discurso. Esse exemplo interessa na

medida em que podemos detectar nele todas as marcas que anteriormente William

James havia apontado como discerníveis da experiência mística: a inefabilidade

(“Uma razão por que eu não gostava desse tipo de transe era por não poder

descrevê-lo para mim mesmo”); o conteúdo noético (“A apreensão de uma

próxima dissolução, a sinistra convicção de que esse estado era o derradeiro

estado do Eu consciente, o sentido de que eu seguiria o último fio do ser até a

borda do abismo e chegara à demonstração da eterna Maya ou ilusão, agitava-me

ou parecia agitar-me de novo”); a passividade (“eu sentia a aproximação desse

estado de espírito. Irresistivelmente, ele se apoderava de minha mente e da minha

vontade”); e a transitoriedade (“{...} durava o que me parecia uma eternidade e

desaparecia numa série de rápidas sensações que se diriam o despertar de uma

influência anestésica”).

Outras características dessa experiência serão apontadas por estudiosos

diversos da mística, as quais podem ser também percebidas no relato acima, quais

sejam: a) a descontinuidade completa entre a experiência vivida e todas as outras

cotidianas; b) lucidez e certeza na narrativa, isto é, apesar de dificuldade de se

encontrar palavras para narrar a experiência não se demonstra hesitação quanto à

vivência da experiência; c) presença amorosa e transformadora daquele que

irrompe na experiência mística - aqui penso que tal característica seja mais

pertinente em relação às místicas cristãs - ; d) suspensão do escoamento do tempo;

e) simultaneidade de percepções sensíveis que normalmente seriam dissociadas,

por exemplo, arrebatamento e gozo que é também dor e angústia; f) inefabilidade

da experiência24.

23JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana,p. 240-241. 24DICIONÁRIO CRÍTICO DE TEOLOGIA. Verbete Mística, p. 1162-1169.

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Guerreiro Losso ao analisar o fenômeno da mística enfatiza seu caráter

gratuito e improdutivo:

A experiência mística não se restringe a nenhuma prática social e cultural, mas pode impregnar muitas delas; muita coisa pode motivá-la ou contribuir para nela chegar; contudo, ela, em si mesma, não está em lugar nenhum. Isso mostra o cerne simultaneamente prático e improdutivo da mística, que se choca com a ligação epistemológica entre atividade e produtividade. Lá onde essa ligação a princípio não existe, no reino ético, há interesse racional e social; mas na busca mística – ascética – há uma sorte de “finalidade sem fim”, à semelhança do plano estético, mas sem produto específico. A nudez da experiência, em sua improdutividade e desinteresse fundamental, é o objeto da mística25.

E o também psicólogo Carlos Dominguez Morano chama atenção para uma

característica praticamente onipresente em diferentes tradições místicas: o desejo

de unidade, de plenitude totalizante:

A experiência mistica, qualquer que seja sua expressão e inclusive considerando a possibilidade de uma experiência mística meramente profana, parece ter como objetivo essencial a busca de uma união que rompe os limites do eu e se submerge em uma realidade vivida como plenificante. Desse modo, a experiência mística parece guardar em seu seio um intuito de recuperação das origens mesmo da existência, aquelas que não existia ainda a distancia nem a diferença que nos constitui como sujeitos26.

Henrique de Lima Vaz, priorizando a mística cristã, irá repetir definição de

J. Maritain, para quem essa é uma experiência fruitiva do Absoluto. Tendo pois

como singularidade um objeto de fruição absoluto, Lima Vaz situa a experiência

mística em um triângulo “místico-mística-mistério”:

A experiência mística, em seu teor original, situa-se justamente no interior desse triângulo: na intencionalidade experiencial que une o místico como iniciado ao Absoluto como mistério; e na linguagem com que, num segundo momento, rememorativo e reflexivo, a experiência é dita como mística e se oferece como objeto a explicações teóricas de natureza diferente”.27

25LOSSO, Eduardo Guerreiro.Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna, p. 178. 26No original: “La experiencia mística, cualquiera que sea su expresión e incluso considerando la posibilidad de una experiencia mística meramente profana, parece tener como objetivo esencial la búsqueda de una unión que rompe los limites del yo y se sumerge en una realidad vivida como plenificante. De ese modo, la experiencia mística parece guardar en su seno un intento de recuperación de los orígenes mismos de la existencia, aquellos en los que no existía aún la distancia ni la diferencia que nos constituye como sujetos”. MORANO, Carlos Dominguez. La experiencia mística desde la psicologia y la psiquiatria. In: La experiencia mistica: estudio interdisciplinar., p. 206. 27LIMA VAZ, Henrique C. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental., p. 17.

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Para melhor compreensão do fenômeno, Lima Vaz distingue didaticamente

três grandes formas pelas quais a experiência mística é vivida pelos místicos e

pensada pelos teóricos no Ocidente: a mística especulativa, a mística mistérica e a

mística profética. Caracteriza-se a mística especulativa por ser uma espécie de

prolongamento da experiência metafísica, cuja origem remonta a Platão, e tem

seus prolongamentos na mística neoplatônica (Plotino, Porfírio, Proclo) e na

mística cristã (Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio, São Boaventura, Tomás de

Aquino, Mestre Eckhart, São João da Cruz e outros). Se na metafísica a

inteligência procede pela via discursiva em seu intento de intuir o divino ou

Absoluto,

Na mística especulativa a inteligência é elevada como que acima de si pelo ímpeto profundo de atingir em si mesmo o Absoluto na sua plenitude absoluta de ser. Mas como atingi-lo desta sorte sem identificar-se, de alguma maneira, com ele e sem descobrir em si mesma uma identidade original com o Absoluto? Tal é, fundamentalmente, o roteiro desenhado pela mística especulativa para seu itinerário, e que será a fonte de todos os problemas que sua prática e sua expressão teórica encontrarão ao serem recebidos pela tradição cristã.28

Na análise de Lima Vaz, o declínio da mística especulativa na modernidade

relaciona-se ao declínio da inteligência espiritual, “órgão próprio da

contemplação metafísica e da contemplação mística”. A partir de Descartes a

mística é secularizada e transforma-se em filosofia especulativa, secularização que

avança de Espinoza até Hegel, e deste até Heidegger, que desenvolve uma espécie

de pensamento místico-poético do Ser29.

Por mística mistérica Lima Vaz define aquela “forma de mística que se

distingue da mística especulativa, na medida em que o espaço intencional onde se

desenrola a experiência de Deus não é o espaço interior do sujeito ordenado

segundo a estrutura vertical do espírito, mas o espaço sagrado de um rito de

iniciação (....) ou de um culto.”30 Se a experiência da mística especulativa é uma

experiência reflexiva, na mística mistérica ela é litúrgica, voltada para a vivência

objetiva do mystérion. Os primeiros cultos de mistério são encontrados nos cultos

de mistério da tradição religiosa grega, os mais importantes sendo os mistérios de

Elêusis, de Dionísio e o orfismo; já a mística mistérica cristã se organiza em torno

28LIMA VAZ, Henrique C. Experiência mística e filosófica na tradição ocidental, op.cit., p. 33. 29LIMA VAZ, Henrique C., p. 43-44. 30LIMA VAZ, Henrique C., p. 47.

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das categorias do Batismo, Ressurreição e Vida Nova, e tem entre seus principais

representantes Orígenes, Gregório de Nissa, São João Crisóstomo e Santo

Agostinho. Finalmente, há a mística profética, a qual Lima Vaz define como

aquela que se constitui em torno da Palavra da revelação, e é a forma original da

mística cristã, encontrando seu arquétipo na doutrina e na prática dos primeiros

discípulos cristãos.

Uma outra forma de distinguir a especificidade da experiência mística é

sugerida por Javier Meloni, que inicialmente fala de duas grandes tradições

religiosas, as quais irão deflagrar experiências místicas específicas: nas religiões

teístas, de caráter subjetivo, “a personificação de Deus nos preserva da angústia,

do vazio e possibilita um universo de relações”, e entre essas estão o judaísmo, o

cristianismo, islanismo, o sikismo e algumas correntes do hinduismo; já naquelas

que ele denomina religiões oceânicas (outras correntes do hinduismo, budismo,

jaminismo e taoísmo) “estão estruturadas a partir de outro paradigma. Não se trata

da relação com a alteridade do Tu Divino, mas da percepção de pertencer ao

Todo, ao qual se chega através de um processo de interiorização que conduz à

extensão do eu”31As tradições religiosas teístas originariam experiências místicas

marcadas pela alteridade, pela radical transcendência do Totalmente Outro: “É a

radical alteridade de Deus transcendente que libera o ser humano de seu

solipsismo. Por isso as experiências místicas das tradições monoteístas são

extáticas: tiram o indivíduo de si mesmo, resgatando-o do seu auto-

centramento”32. Em contrapartida, as religiõesoceânicas, orientais, “se

caracterizam por assinalar o ponto contrario: a Realidade última não é a

Alteridade radical, e sim a mais profunda identidade. Entre elas a

experiênciaenstática”33. Assim, na distinção de Meloni, são duas grandes

correntes místicas, que se desdobrarão em muitas outras, de acordo com tradições

religiosas distintas: as místicas da alteridade, para as quais o apelo à

31 No original, respectivamente: “la personificación de Dios nos preserva de la angustia del vacío y posibilita un universo de relaciones”; están estructuradas a partir de otro paradigma. No se trata de la relación con la alteridad de Tu Divino, sino de la percepción de pertecener al Todo, al cual se llega a través de un proceso de interiorización que conduce a la extención del yo”. MELLONI, Javier. La mística, ou-topos del dialogo interreligioso, p. 30. 32 “No original: Es la radical alteridad del Dios trascendente la que libera al ser humano de su solipsismo. Por eso las experiencias místicas de las tradiciones monoteístas son extáticas: sacan a la persona de si mismo, rescantándola de su autocentramiento” MELLONI, Javier., op. cit., p. 35. 33No original: “se caracterizan por señalar el polo contrario: la Realidad Última no es la Alteridad radical, sino la más profunda identidad. En ellas la experiencia enstática”. MELLONI, Javier., op. cit.,p. 35.

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transcendência do Totalmente Outro “outorga aos indivíduos a consciência de

serem amados em uma forma única e irrepetível”34; e as místicas de identidade,

onde o fim máximo é o aniquilamento do eu subjetivo e a percepção (e adesão a )

de uma unidade essencial entre todas as coisas, gerando um estado de não-

diferenciação ao qual o místico descobre-se pertencente35. Meloni menciona ainda

as religiões dos aborígines, a laicidade e as místicas sem religião, formas extremas

da mística da imanência, onde o místico “é aquele que descobre, na raiz de sua

imanência, uma alteridade que lhe transcende”.36

A taxinomia de Meloni, apesar de rentável, tem seus problemas, afinal,

apenas como um dos exemplos possíveis, muito já se falou sobre as semelhanças

entre o cristão, e portanto representante da mística da alteridade, MeisterEckhart e

o budismo, clássico caso de uma mística da identidade. Mais do que uma

classificação rígida entendemos que os termos místicas de alteridade e místicas de

identidade contribuem para se pensar dois movimentos inerentes à experiência

mística: o “desejo do Outro” e o desvelar-se do Eu para si mesmo. Identificar-se

com o Um é um desejo recorrente em místicas das mais diversas tradições, e sobre

o tema assim se pronuncia W. James:

Essa superação de todas as barreiras usuais entre o indivíduo e o Absoluto é a grande consecução mística. Nos estados místicos nos tornamos um com o Absoluto e nos tornamos conscientes dessa unidade. Essa é a perene e triunfante tradição mística, escassamente alterada por diferenças de clima ou credo. No Hinduismo, no Neoplatonismo, no Sufismo, no misticismo cristão, no Whitmanismo, encontramos sempre a mesma nota, de modo que existe a respeito dos pronunciamentos místicos uma eterna unanimidade que deve fazer o crítico deter-se e pensar, e que faz com que os clássicos místicos não tenham, como já se disse, nem dia aniversário nem terra natal. Falando perpetuamente da unidade do homem com Deus, o discurso deles precede as línguas e eles não envelhecem37.

W. James toca aqui em um ponto bastante polêmico dos estudos de mística: a

pretensão de universalidade dessas experiências, que seriam não apenas inerentes

ao humano como também idênticas entre si, ainda que atravessadas por tradições

culturais e religiosas próprias. Ou seja, místicas tão distintas como a de um São

João da Cruz e uma Teresa D’Ávila, o sufismo, o budismo, e mesmo os transes

34No original: otorga a las personas la consciencia de ser amadas de uma forma única e irrepetible” MELLONI, Javier. La mística, ou-topos del dialogo interreligioso, p. 30. 35MELLONI, Javier., p. 29-30. 36No original: “es aquel que se descubre, en la raiz de su inmanencia, una alteridad que le trasciende” , MELLONI, Javier., op. cit,p. 30. 37JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana, p.261.

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teopáticos das religiões afro-brasileiras seriam iguais em sua centralidade de

experiência objetiva do Mistério. Outra afirmação importante dessa corrente

interpretativa é o caráter a-lingüístico, portanto inefável, da experiência mística.

Essa tese ficou conhecida pelo nome de filosofia perene ou perenealismo, e agrega

nomes de estudiosos das religiões como Aldous Huxley, William James, Rudolf

Otto, Mircea Eliade, Gershon Scholem e Joseph Campbell. Em artigo sobre o

atual estado epistemológico dos estudos sobre mística Sílvia Schwartz assim

define essa perspectiva:

Para os perenealistas, a experiência mística representa um contato direto, imediato, com um princípio absoluto, definido de forma variada, e somente após esse contato imediato com “algo mais” é que essa experiência seria interpretada, de acordo com a linguagem e crenças da tradição do indivíduo em questão. Uma vez que as categorias interpretativas não entrariam nessa experiência da realidade transcendente, a mística seria transculturalmente homogênea, possuindo um pequeno número de características básicas, comuns a todos os místicos – sejam judeus, taoístas, muçulmanos, católicos ou protestantes – que podem ser analisadas independentemente de qualquer filosofia mística especificamente ou culturalmente delimitada. Como conseqüência, esses estudiosos dedicaram-se a discernir e a catalogar os padrões comuns dessa experiência nas distintas tradições38.

Em reação a essa linha de estudos surge nos anos 70 um grupo de teóricos -

influenciados pela filosofia kantiana, o estruturalismo lingüístico e a sociologia do

conhecimento - que enfatiza que o contexto sociocultural, político e religioso não

apenas condiciona a interpretação da mística como também a própria experiência:

Na visão desse grupo, a experiência mística é significativamente modelada e formada pelas crenças, por conceitos e pelas expectativas dos indivíduos, ou seja, a experiência mística está sujeita aos processos formativos e construtivos da linguagem e da cultura do indivíduo. Indivíduos de tradições diferentes terão experiências diferentes, condicionadas e modeladas de maneira diferentes39.

Um dos nomes mais importantes do contextualismo é Steven Katz que, em

sintonia com os estudos culturais que foram ganhando força a partir dos anos 80,

enfatiza o caráter mediado e lingüístico de toda experiência, inclusive a mística, e

chama atenção para as diferentes “verdades” presentes nos discursos dos místicos,

em clara contraposição a afirmação dos perenealistas de que haveria um núcleo

central e comum, ainda que inefável, na experiência mística. Rafael Shoji, em

artigo onde investiga as condições para a construção de interpretações

significativas do discurso místico, enfatiza: 38SCHWARTZ, Sílvia. O estado atual das discussões epistemológicas sobre a mística. In: TEIXEIRA, Faustino (org.) No limiar do mistério: mística e religiões., p. 418. 39SCHWARTZ, Sílvia., op. cit., p. 419.

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Colocando a mediação como pressuposto epistemológico para qualquer experiência, a ênfase metodológica recai na importância do contexto na experiência mística e não em um caráter inexprimível. Como a base do raciocínio de Katz é a afirmação de que quaisquer experiências são mediadas, não existe algo que possa ser chamado de uma experiência mística universal, devendo cada estudo da mística estar associado a um estudo de uma época e tradição espiritual específica. Nesses estudos está subentendida a afirmação de que toda experiência é lingüística, ou pelo menos toda mediação que se pode estudar. A linguagem representa totalmente a mística, já que em seu tratamento da experiência não existe espaço para o inexprimível40.

E Guerreiro Losso complementa:

Não há, para Katz, uma experiência imediata: toda experiência é mediada pelo seu contexto e aculturação. A meditação budista leva a uma experiência completamente diferente da oração cristã. Se um acredita numa aproximação íntima da alma com Deus e numa relação de amor e outro pretende aniquilar o Eu sem nenhuma crença num Deus monoteísta, então as duas experiências precisam ser essencialmente diferentes. Até no nível mais individual não há como encontrar denominadores comuns, pois quando alguém alega que foi sujeito de uma experiência, esse sujeito não pode ser separado de sua própria experiência41.

As posições distintas dos perenealistas e dos contextualistas são resumidas por

Juan Arnau em artigo no qual aborda o significado do silêncio nas tradições

místicas:

Entre os filósofos e psicólogos das religiões do último século tem se estabelecido duas posturas opostas que explicam o misticismo e a linguagem em termos que são aparentemente incompatíveis. Um declara que as afirmações dos místicos são concessões à linguagem ordinária, que qualquer descrição ou formulação verbal da experiência mística é ipso factouma traição ou uma distorção de uma experiência cultural e inefável. O lado oposto afirma que não existe experiência que seja fora da esfera da linguagem (freqüentemente considerada sinônimo de cultura e história), e que essa experiência mística é gerada e definida (ao contrário de frustrada) por formulações doutrinárias e verbais.42.

Nas últimas décadas do século XX surgiu uma posição intermediária entre

contextualismo e perenealismo, em uma tentativa de garantir a possibilidade de

um diálogo entre as diferentes tradições místicas e ao mesmo tempo resguardar as 40SHOJI, Rafael. Condições de significado na linguagem mística, op. Cit., p. 56. 41LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna, p. 237. 42 No original: “Entre los filósofos y psicólogos de la religión del último siglo se han establecido dos posturas enfrentadas que explican el misticismo y el lenguaje en términos aparentemente incompatibles. Un declara que las afirmaciones de los místicos son concesiones renuentes al lenguaje ordinario, que cualquier descripción o formulación verbal de la experiencia mística es ipso facto una traición o una distorsión de una experiencia cultural y inefable. El lado opuesto afirma que no existe tal experiencia fuera de la esfera del lenguaje(a menudo considerado sinónimo de cultura e historia), y que esa experiencia mística es generada y definida (en lugar de frustrada) por formulaciones doctrinales y verbales”. ARNAU, Juan. Lenguaje y silencio em las tradiciones budistas, p. 95.

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especificidades de tradições tão díspares quanto o sufismo e a mística cristã

medieval, por exemplo. Estamos falando da posição teórica de Robert Forman,

que propõe uma nova espécie perenealismo (de psicologia perene), agora não em

bases ontológicas e sim psico-biológicas, que ora é chamado de

descontextualismo, ora de desconstutivismo, ora de pós-construtivismo. Em linhas

gerais o descontextualismo ataca a premissa de Katz de que a experiência mística

já é mediação da linguagem e tradições religiosas, argumentando que muitos

místicos tiveram sua primeira experiência sem qualquer contato com uma doutrina

específica ou interpretação da mística.

O argumento básico que utilizam é que a capacidade de transformação para as dimensões místicas da consciência é inata aos seres humanos e que essa capacidade fornece o fundamento crítico de uma análise transcultural. A hipótese de trabalho, que eles acreditam merecer uma maior unvestigação, é simplesmente que, enquanto os sistemas simbólicos e as construções culturais podem varias através das culturas, os padrões dinâmicos da consciência humana constituem uma capacidade “inata” transcendental. Dessa maneira, os padrões de consciência operativos num ser humano no século XV, em Flandres, são potencialmente os mesmos que os operativos num ser humano na Índia do século VI.43

Se nos estados de consciência cotidianos há a pressuposição de um objeto ao qual

a consciência se volta, nos estados místicos há um estado de consciência “puro”,

ou PCE (PureConsciuosnessEventé a terminologia usada por Forman), no qual a

consciência volta-se para si mesma, sem apoiar-se em nenhum conteúdo cultural

ou lingüístico. Comentando esses posicionamentos de Forman, Guerreiro Losso

afirma que, na experiência mística, a consciência se volta para si mesma, sem

qualquer outro objeto para se fixar

(...) de modo que a própria consciência não se perceba como separada de qualquer outra coisa, e portanto tenha uma experiência de introversão que rapidamente encontra uma qualidade de extroversão, isto é, sente-se parte do todo sem que se definam seus próprios limites. Daí a sensação de união com a totalidade dos entes - em linguagem cristã a criação - e com Deus - a fonte da bem-aventurança e da graça, da felicidade proporcionada – em uma palavra: a uniomystica

44. Nos estados PCE a consciência entraria em contato consigo mesma, isto é, com a

própria capacidade de ser consciente. Esse seria um estado de consciência atípico,

porém inato ao ser humano, e independente de cultura e história, sem quaisquer

43SCHWARTZ, Sílvia. O estado atual das discussões epistemológicas sobre a mística, 423-424. 44LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna, p. 241.

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mediações. Nas experiências místicas a consciência alcançaria um estado em que

já não dependeria mais de nenhum objeto e poderia “concentrar-se em si mesmo”,

alcançando um “saber por identidade” em oposição ao saber-por-conhecimento

(aquele adquirido pelos sentidos) e o saber-sobre (reflexão conceitual e

representacional). Enfatiza Guerreiro Losso:

Não há como descrever a experiência simplesmente porque ela não se dá a partir de um objeto, antes, de uma reflexividade não-representativa. Por isso, trata-se de um fenômeno não pluralístico que se coloca frontalmente contra a intencionalidade da consciência a favor de um estado não intencional e puro da mesma45.

Robert Forman assim descreve esse estado atípico da consciência:

Essas alterações à longo prazo na estrutura epistemológica muitas vezes tomam a forma de dois saltos quânticos na experiência, e normalmente se desenvolvem seqüencialmente. O primeiro é uma experiência de quietude interior permanente, mesmo quando há envolvimento em pensamento e atividade – a consciência continua a ser consciência da própria consciência, ao mesmo tempo em que permanece consciente de pensamentos, sensações e ações. Devido à sua dualidade fenomenológica- por ser um conhecimento acrescido da própria consciência, mais a consciência de pensamentos e objetos - eu chamo de estado místico dualista (DMS). A segunda mudança é descrita como uma unidade percebida da própria consciência perse com os objetos em torno, como sensação imediata de uma unidade semifísica entre si, os objetos e as outras pessoas. Estados parecidos com esse têm sido chamados de misticismo extrovertido - ou então de mística ‘natural’, mas eu prefiro chamar esse estado de mística unitiva, UMS.46

Assim, de forma resumida o PCE pode ser definido como uma experiência de

vigíliana qual não há conteúdo (ou seja, é não-intencional), onde, embora o sujeito

da experiência permaneça acordado e alerta há a sensação de continuidade

ininterrupta de modo que ele não percebe as ações externas à experiência47.

45LOSSO, Eduardo Guerreiro, Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna, p.242. 46 No original: “These long-term shifts in epistemological structure often take the form of two quantum leaps in experience; typically they develop sequentially. The first is an experience of a permanent interior stillness, even while engaged in thought and activity — one remains aware of one’s own awareness while simultaneously remaining conscious of thoughts, sensations and actions. Because of its phenomenological dualism — a heightened cognizance of awareness itself plus a consciousness of thoughts and objects — I call it the dualistic mystical state (DMS). The second shift is described as a perceived unity of one’s own awareness perse with the objects around one, an immediate sense of a quasi-physical unity between self, objects and other people. States akin to this have been called ‘extroversive’ - or sometimes ‘nature-’ mysticism; but I prefer to call it the unitive mystical state, UMS”. FORMAN, Robert. What does mysticism have to teach us about consciousness?, p. 186. 47 No original: “(...) the PCE may be defined as a wakeful but contentless (non-intentional) experience. Though one remains awake and alert, emerging with the clear sense of having had ‘an unbroken continuity of experience’, one neither thinks, nor perceives nor acts”. FORMAN, Robert., Op cit., p. 190.

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Forman nota que em diversas tradições místicas há um processo de abandono

conceitual, no qual o místico precisa “esvaziar” a mente, com a conseqüente

cessação dos processos mentais e lingüísticos, o que o conduz a um si-mesmo

inerente ao ser humano em um processo de remoção do repertório cognitivo e

“destruição”de imagens do místico48. De acordo com Forman, esse é um processo

irredutível à cultura ou tradições religiosas, e inato ao ser humano.

Segundo Scwartz é comum a diversas tradições místicas a experiência desse

estado de consciência vazio, que seria apenas um “estar cônscio” no qual a

consciência não se fixa em nenhum objeto, quer seja ele conteúdos cognitivos,

sensações, sentimentos ou emoções. Acompanhando essa experiência de

esvaziamento e aniquilação encontra-se um sentimento de profunda identificação

com o mundo que nos rodeia, a sensação de ter atingido uma realidade mais

profunda e, ao mesmo tempo, um forte sentimento de bem-aventurança, alegria ou

êxtase.

Na verdade tais afirmações de Forman soam semelhantes às de William

James, em seu clássico estudo sobre a mística. Para James, a consciência desperta

e voltada para um objeto de percepção é apenas um tipo de consciência, não a

única:

É que a nossa consciência desperta normal, a consciência racional como lhe chamamos, não passa de um tipo de consciência, enquanto que em toda a sua volta, separadas dela pela mais fina das telas, se encontram formas potenciais de consciência inteiramente diferentes. Podemos passar a vida inteira sem suspeitar-lhes da existência; basta, porém, que se aplique o estímulo certo para que, a um simples toque, elas ali se apresentem em sua plenitude, tipos definidos de mentalidades que têm provavelmente em algum lugar seu campo de aplicação e adaptação. Nenhuma explicação do universo em sua totalidade poderá ser final se deixar de lado essas outras formas de consciência. A questão resume-se em como observá-las – pois não há muita continuidade entre elas e a consciência ordinária. No entanto, podem determinar atitudes se bem não possam fornecer fórmulas, e abrir uma região embora não consigam dar um mapa. De qualquer maneira, impedem um fechamento prematuro de nossas contas com a realidade49.

Nesse trecho W. James menciona uma questão de grande relevância para

nosso trabalho, que é o tipo de percepção de realidade oferecida pela experiência

mística, questão que estaremos discutindo agora. Quanto à polêmica entre

perenealistas, contextualista e descontextualistas, a amplitude e complexidade dos

48SCHWARTZ, Sílvia. O estado atual das discussões epistemológicas sobre a mística, 427. 49JAMES, William. As variedades de experiênciareligiosa, op. Cit., p. 242, grifo nosso.

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argumentos mereceria um estudo exclusivo para esclarecer os pontos mais

significativos das referidas argumentações. Não é esse o intuito de nossa tese,

apenas sinalizamos esse debate porque o mesmo toca em um ponto nefrálgico das

discussões teóricas sobre a experiência mística, que é o postulado, contestado

pelos contextualistas, da inefabilidade e não mediação da mesma.

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4.3 O que a mística pode nos dizer sobre a realidade?

No decorrer do capítulo estaremos abordando mais apuradamente a

existência (ou não) da inefabilidade mística, entretanto nesse momento adiamos

essa discussão para centralizar nossos esforços na compreensão da experiência

mística como um evento limite, caracterização que tem grande probabilidade de

unir divergentes posições teóricas sobre a mística. Um evento limite que, como

nos recorda Carlos Dominguez Morano, possui a interessante propriedade de nos

mostrar nossos próprios limites:

Considerada em todas as épocas e culturas como uma experiência de santidade nas religiões, de loucura com o advento da psiquiatria, ou de emergência da totalidade do ser na sociedade secularizada e romântica da Nova Era, em qualquer que seja a categorização que possamos utilizar, a experiência mística cumpre uma função indicadora fundamental: a de mostra-nos o limite de nossa experiência, o limite de nosso conhecimento, ao sinalar para uma realidade que transcende (em sentido profano ou religioso) os limites de nosso eu. O místico aparece assim como o indicador de Outro, como expressão do que nos excede. É o testemunho do que nos ultrapassa, a recordação de que vivemos envoltos na densidade do mistério e de que o real segue estando mais além do que nos é dado conhecer50.

A mística, nessa perspectiva, é didática: ensina-nos que não sabemos, não

podemos saber, tudo. Há interstícios, há brechas, há escuros nos quais se esbarra

nossa linguagem. Há, em linguagem batailliana, a noite do não-saber à qual não

podemos atravessar incólumes, pois nessa experiência de fechar os olhos51 o vazio

estrutural da nossa linguagem/realidade é-nos desvelado. Silvia Scwartz tece

considerações sobre os diferentes estágios da experiência mística fazendo por fim

50No original: Considerada segundo las épocas y las culturas como experiencia de santidad en las religiones, de locura en el advenimiento de la psiquiatría, o de emergencia de la totalidad de ser en la sociedad secularizada y romántica de la New Age; siempre y cualquiera que sea el modo de categorización que podamos utilizar, la experiencia mística cumple una función indicadora fundamental: la de mostrarnos el limite de nuestra experiencia, el limite del nuestro conocimiento, al señalar hacia una realidad que trasciende (en sentido profano o religioso) los limites de nuestro yo. El místico aparece así como el indicador de Otro, en tanto expresión de lo que nos excede. Es el testigo de lo que nos sobrepasa, el recordatorio de que vivimos envueltos en la densidad del misterio y de que lo real sigue estando más allá de lo que se nos ha dado a conocer.” MORANO, Carlos Dominguez. La experiência mística desde la Psicologia e la Psiquiatria. In: VELASCO, Juan Martín. La experiência mística: estúdio interdisciplinar., p. 217, grifo nosso. 51A etimologia da palavra mística atesta esse caráter de “revelação” característico dessa experiência. O termo grego mystikós tem em sua raiz o verbo myo, que significa ‘fechar’ e, em particular, ‘fechar os olhos’. As mais diversas tradições místicas pressupõem o mistério e a possibilidade de seu desvelamento: por trás do mundo das aparências resta um conhecimento e uma verdade não passível de apreensão cognoscível/sensível, realidade a qual apenas é possível enxergar quando se “fecha os olhos” da razão e se salta para essa alteridade absoluta.

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afirmações sobre a relação entre mística e conhecimento que se complementam

com a declaração de Morano, vejamos:

Quando nos debruçamos sobre relatos místicos de distintas tradições, três tópicos sobressaem. Primeiramente é sugerido um processo de transformação que vai desde um estado de ligação às coisas do mundo a um estado de liberação dessas ligações. Num segundo momento, já suficientemente libertos dessas ligações, tem lugar um processo de descoberta de algo sobre o próprio si-mesmo – algo sendo revelado dentro de nós, um contato direto com Deus, seja ou não consciente. Finalmente, há a constatação de que esse contato espiritual não é resultado de um processo de aprendizagem através de livros ou de exercícios da razão, mas é uma possibilidade inata, realizada através de um processo de transformação, de esquecer (Vergezzen) aquilo que a oculta. Esse esquecimento pode ser entendido no sentido de desconsiderar intencionalmente, de propositalmente ignorar. Pode-se ser capaz de pensar em algo, mas por alguma razão, propositalmente, esse conhecimento ou capacidade são deixados de lado. Nesse processo, os místicos preconizam a auto-imolação de seus próprios sistemas conceituais. Como resultado de todo esse processo de descobrir e revelar algo inato e interno, os místicos afirmam que o que está dentro de nós, o que é encontrado nesses momentos silenciosos é a própria qualidade de estar cônscio ou a consciência

52.

É comum a muitas tradições místicas a compreensão de que há na mística

um esvaziamento da consciência, que se vê despojada de conteúdo, operação que

culmina com a percepção de uma espécie de vazio intrínseco ao mundo e à

linguagem, ou seja, à realidade. Uma análise interessante desse processo de

esvaziamento é dada por Juan Arnau em seu artigo, já citado, onde o mesmo

analisa a relação entre palavra e silêncio no budismo. Há no budismo uma crítica

da linguagem convencional que parte do princípio de que todas as palavras,

incluindo os ensinamentos do Buda, são designações convencionais, vazios de

referencialidade. Compreender essa verdade é liberar a mente dos conceitos e

poder aceder a uma realidade extralingüística onde se encontra a verdadeira

realidade do mundo. Arnau defende que não há no budismo, apesar dessa crítica à

discursividade, um rechaço à linguagem pura e simplesmente, pois “A linguagem

não é necessariamente falsa, não se desvia em todas as circunstâncias, porque

pode ser usada como um meio de liberação”53. Desta forma, da crítica budista à

linguagem não advém que devamos rejeitar a linguagem como falsa e aquietarmo-

nos em silêncio: é preciso ir além da linguagem, mas através da linguagem.

52 SCHWARTZ, Sílvia. O estado atual das discussões epistemológicas sobre a místic, p. 427-428, grifo da autora. 53No original: “El lenguaje no es necesariamente falso, no extravia bajo todas las circunstancias, porque puede usarse como ummédio de liberación”. ARNAU, Juan. Lenguaje y silencio em lastradiciones budistas, p. 87.

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Arnaufaz a análise de distintas estratégias, nas tradições budistas, que intentam

realizar esse feito de ultrapassar a linguagem e aceder à verdadeira realidade das

coisas: nos rituais tântricos há os mantras, espécie de sons sagrados e vazios de

sentido que representam todos os sons e, portanto, a vacuidade de todos os sons;

já no zen-budismo têm-se os koans, que são considerados pelos seguidores do zen

como um meio de liberação da consciência. Vamos nos deter um pouco sobre os

koans, tentando perceber como essa forma específica de linguagem opera no

intuito de ‘liberar’ a mente da linguagem.

Segundo observa Arnau, o uso dos koans é uma forma de meditar ‘olhando

dentro das palavras’, com o objetivo de interromper o processo cognitivo lógico-

racional e preparar o discípulo para uma experiência não-verbal da realidade. Os

koans são enigmas verbais, à primeira vista sem sentido, que não podem ser

resolvidos pelo raciocínio. Outra característica é a impossibilidade, como em um

poema, de paráfrase, e os aspectos irônicos, paradoxais ou absurdos e, por que

não, bem-humorado dos mesmos. D. T. Suzuki, um dos grandes divulgadores do

zen-budismo no ocidente assim define o koan:

O koan não é nem um enigma nem uma observação misteriosa. Ele tem o objetivo mais definido: o levantamento da dúvida, impulsionando-a até os limites últimos. Uma afirmativa construída sobre bases lógicas é aproximável somente por sua racionalidade. Qualquer dúvida ou dificuldade que possamos ter a seu respeito dissolve-se quando continuamos com o fluxo natural das idéias. Os rios desembocam no oceano, mas o koan é uma parede de ferro barrando o caminho e ameaçando subjugar o nosso esforço intelectual, ao tentarmos superá-lo. Quando Joshu diz: ‘O cipestre do pátio’, ou quando Hakuin mostra uma das suas mãos, não há forma lógica possível para o entendimento. Sentimos como se fosse subitamente parada a marcha do pensamento. Hesitas, duvidas, estás perturbado, não sabendo como romper a parede que parece intransponível. Quando este clímax é atingido, tua personalidade inteira, tua vontade mais profunda, resolve conseguir uma saída para o caso, arremessa-s a si mesma, sem cogitar do ser ou não-ser, contra a parede de ferro do koan. Esse arremesso inesperado de todo o ser contra o koan abre uma região da mente até então desconhecida. Intelectualmente, é um transcender dos limites do dualismo lógico. É, ao mesmo tempo, uma regeneração, o despertar de um sentido interno, que permite ao indivíduo uma visão do autêntico funcionamento das coisas. 54

Novamente aqui aparece a questão dos limites da consciência cotidiana e o

postulado de uma experiência de liberação do modo de operação discursivo, com

um conseqüente ganho cognitivo em relação à compreensão da realidade

circundante. Tais afirmações não são surpreendentes, quando se trata da mística.

54 SUZUKI, D. T. Introdução ao zen-budismo., p. 133.

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William James já afirmava que “(...) o sentido vivo da sua realidade só vem no

estado artificial da mente”55. Sobre os koansArnau afirma ainda que os mesmos

são uma espécie de antídoto para aliviar os sintomas da enfermidade da

linguagem, e uma terapia para combater os vícios do pensamento discursivo56.

Chega-se então a questão exata que interessa à tese examinar: haverá um outro

modo de pensamento/linguagem que não o discursivo? A mística abriria caminho

para encontrar esse caminho? È possível que a mística contribua para a

percepção/compreensão da realidade como um todo orgânico, em oposição ao

pensamento lógico-racional, que opera de forma analítica e fragmentada?

Sílvia Velloso Rocha, em um pequeno e precioso artigo no qual faz uma

análise filosófica do discurso místico, nos oferece pistas interessantes para pensar

esses problemas. Para a autora, a dificuldade que há para a descrição dos êxtases

místicos é a mesma que encontramos quando tentamos descrever um objeto sem

representação prévia. Dessa premissa a autora deriva que o que há na mística não

é a experiência de uma presença objetiva transcendente, “não é apenas a

experiência de alguma coisa que não se pode representar, mas a percepção da

impossibilidade de se representar todas as coisas”. Assim, no êxtase, é a própria

existência sensível que é “percebida subitamente como intensamente desejável e

sobretudo como intensamente real”57. O êxtase místico, fim último da experiência,

seria uma espécie de revelação do caráter intrinsecamente incognoscível do

mundo quando despido da capa modeladora das representações. O poeta Octávio

Paz descreve com perfeição esse momento:

Às vezes, sem causa aparente — ou como dizemos em espanhol: porque sì —, vemos de verdade o que nos rodeia. E essa visão é, a seu modo, uma espécie de teofania ou aparição, pois o mundo se revela para nós em suas dobras e abismos como Krishna diante de Arjuna. Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de ladrilho e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: são assim as coisas ou são de outro modo? Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós

55 JAMES, William. As variedades de experiência religiosa, p. 242. 56 ARNAU, Juan. Lenguaje y silencio em lastradiciones budistas, p. 94. 57ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. A escritura silenciosa: uma análise filosófica do discurso místico, p. 03

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também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel. Adivinhamos que somos de outro mundo. É a “vida interior”, que retorna. 58

Como nas tradições místicas analisadas por Juan Arnau e discutidas em

parágrafos anteriores, há o entendimento de que o saber que se alcança na mística

é negativo, ou seja, é a compreensão de que as representações usuais de mundo

que temos escondem o vazio semântico desse mesmo mundo, por isso são

ilusórias, sendo o caminho místico uma disciplina ascética por meio da qual

podemos purgar o pensamento de seus vícios lógico-discursivos e alcançar um

conhecimento mais profundo sobre o mesmo. Esse mesmo processo de ascese é

mencionado em um pequeno koan abaixo transcrito:

Antes de compreendermos o zen, as montanhas são montanhas e os rios são rios; ao nos esforçarmos para compreender o zen, as montanhas deixam de ser montanhas e os rios deixam de ser rios; quando finalmente compreendemos o zen, as montanhas voltam a ser montanhas e os rios voltam a ser rios59.

Retomamos aqui a linha argumentativa de Velloso Rocha sobre a relação

entre mística e conhecimento que pode ajudar na compreensão do que exatamente

queremos dizer quando falamos em vazio estrutural. Para essa autora, o saber

alcançado mediante a experiência mística é a não-referencialidade da linguagem, e

a falta de sentido do mundo, que é devolvido a si mesmo:

Desta perspectiva, o que distingue o êxtase místico da experiência cotidiana não é um acréscimo, mas uma diminuição: não há aí a intervenção de qualquer instância transcendente ao real, mas apenas a dissipação temporária das representações que mediam nossa percepção cotidiana do mundo. O que torna essa experiência inefável não é a intervenção de qualquer instância transcendental ou supra-sensível, mas a ausência temporária daquilo que habitualmente medeia e estrutura nossa percepção do real: a linguagem. O que se revela a partir desta experiência é o próprio real, despojado da camada de linguagem e sentido que habitualmente o recobre. O que ela dá a ver não é uma além do mundo, mas o próprio mundo – percebido subitamente como insignificante e impossível de ser apreendido pelo pensamento60.

A análise de Sílvia Velloso parece não dar devida atenção ao marco hermenêutico

dos próprios vivenciadores da experiência mística e/ou daqueles que aderiram a

58 PAZ, Octávio. O arco e a lira., p. 161. 59 HERRIGEL, Eugen. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. 60 ROCHA, Sílvia Pimenta Velloso. A escritura silenciosa: uma análise filosófica do discurso místico., p. 02.

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seu conteúdo de fé61, pois é bem verdade que, para a maior parte das tradições

místicas - pelo que me consta o budismo é uma rara exceção -, há uma presença

objetiva e transcendente assediada pelo místico, tanto que a mística cristã é

caracterizada por J. Maritain como experiência fruitiva do Absoluto. Não

obstante, ainda assim nos interessa essa análise na medida em que a mesma

propõe um modelo explicativo que pode abranger místicas diversas: teístas, não

teístas e até mesmo místicas imanentes – como a que advoga Bataille - , unindo-as

naquilo que é o interesse central desse trabalho: a possibilidade - factível ou

utópica - de uma linguagem que vá além (ou aquém) dos mecanismos discursivos

na aspiração de tocar o cerne duro do real.

***

Na mística a linguagem falta, mas, talvez, não porque se esbarre com uma

presença inefável, mas porque encontre um real despojado de linguagem, logo,

impronunciável. Uma experiência próxima a essa é descrita pelo poeta Hugo Von

Hofsmannsthal, na fictícia carta de Lord Chandos a Lord Bacon. A personagem

Lord Chandos é um jovem poeta de talento promissor que na Inglaterra do século

XVI decide se retirar para o campo. Os amigos e conhecidos londrinos esperam

que Lord Chandos lhes envie uma grande e fantástica obra literária, mas o tempo

vai passando e só o que recebem é o silêncio do poeta. Após um longo tempo sem

se manifestar Lord Chandos decide responder a carta que um dos amigos lhe

escreveu, explicando a razão de seu silêncio literário. Esse amigo é Francis Bacon,

um dos precursores do método indutivo nas ciências, e tal carta é uma reflexão

sobre a incapacidade de as palavras, mesmo a palavra literária, dizerem o real e

uma apaixonada narrativa da descoberta da realidade como estranheza e

incognoscibilidade.

LordChandos vai da romântica confiança no poder da língua – a língua dos

poetas, é claro – construir metáforas unificadoras do mundo à total descrença na

capacidade de as palavras comunicarem alguma ‘verdade’ sobre o mundo. Veja-se

as seguintescitações, que exemplificamesses extremos:

Em poucas palavras: perdido em uma espécie de embriaguez, toda a existência me aparecia naquele momento como uma grande unidade: entre o mundo espiritual e o

61Entenda-se conteúdo de fé como doutrinas ou dogmas mais ou menos institucionalizados e também princípios ético-filosóficos subjacentes à experiência.

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mundo físico não via nenhuma contradição, da mesma forma entre a natureza civilizada e a animal, a arte a falta de arte, a solidão e a companhia: em tudo sentia a natureza, nas aberrações da loucura tanto como nos refinamentos extremos do cerimonial espanhol (....) o intuía que tudo era uma metáfora e que cada criatura era uma chave de outra, e sentia que seria afortunado quem fosse capaz de segurar umas depois das outras e abrir com elas tantas outras que pudesse abrir.62.

Em comparação a

Meu caso é, em resumo o seguinte: eu perdi por completo a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre qualquer coisa. Á principio foi ficando impossível comentar um tema profundo ou geral e empregar sem vacilar essas palavras que costumam servir habitualmente a todas as pessoas. Sentia um incompreensível mal-estar na hora de pronunciar mesmo as palavras “espírito”, “alma”, ou “corpo”. Em meu interior tornou-se impossível emitir um juízo sobre os assuntos da corte, os acontecimentos do parlamento ou sobre o que quiseres. (...) porque as palavras abstratas, das que, conforme a natureza, dispõe a língua para manifestar qualquer opinião, se desintegravam em minha boca como flechas mofadas.63

Afastado de seu mundo familiar, Chandos progressivamente vai perdendo a

confiança na existência de algum lastro para as palavras, se inicialmente são

apenas os termos abstratos que o incomodam, por fim “até na conversação

familiar e cotidiana se tornaram duvidosos todos os juízos que costumamos emitir

com simplicidade e segurança sonâmbula (....)” 64.

Os jogos de linguagem parecem pressupor um alto nível de confiança, ainda

que não-consciente, em certa referencialidade das palavras, e é essa confiança que

Chandos perde. Tal qual um cientista curioso que põe sob um poderoso

microscópio o mais ínfimo pedaço de pele, Chandos “vê” de perto de mais as

62No original: “En pocas palabras: sumido en una especie de embriaguez, toda la existencia me aparecía en aquella como una gran unidad: entre el mundo espiritual y el mundo físico no veía ninguna contradicción, como tampoco entre la naturaleza cortesana y animal, el arte y la carencia de arte, la soledad y la compañía: en todo sentía la naturaleza, en las aberraciones de la locura tanto como en el refinamiento extremos del ceremonial español (….) o intuía que todo era una metáfora y cada criatura una llave de la otra y sentía que seria afortunado quién fuese capaz de empuñar unas tras otras y abrir con ellas tantas otras como pudiese abrir.” HOFFMANSTAL, Hugo Von. La carta de Lord Chandos., p. 8-9; 9-10. 63No original: “Mi caso es, en resumen, el siguiente: he perdido por completo la capacidad de pensar o hablar coherentemente sobre ninguna cosa. Al principio se me iba haciendo imposible comentar un tema profundo o general y emplear sin vacila esas palabras de las que suelen servirse habitualmente todas las personas. Sentía un incomprensible malestar a la hora de pronunciar siquiera las palabras “espíritu”, “alma”, o “cuerpo”. En mi fuero interno me resultaba imposible emitir un juicio sobre los asuntos de la corte, los acontecimientos del parlamento o lo que usted quiera. (….) porque las palabras abstractas, de las conforme a la naturaleza, se tiene que servir la lengua para manifestar cualquiera opinión, se me desintegraban en la boca como saetas mohosas.” 64No original: “hasta en la conversación familiar y cotidiana se me volvieron dudosos todos los juicios que suelen emitirse con ligereza y seguridad sonámbula (…)” HOFFMANSTAL, Hugo Von., op. cit., p. 11.

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pessoas e suas ações, de tal maneira que não consegue mais pôr o mundo em

perspectiva e realizar as operações básicas da linguagem conceitual:

sistematização, simplificação e redução de complexidade:

(....) já não conseguia apreendê-las com o olhar simplificador do hábito. Tudo se desintegrava em partes, as partes por sua vez em outras partes e nada se deixava abarcar em um conceito. As palavras isoladas, flutuavam ao redor de mim, congelavam-se em olhos que me olhavam fixamente e dos quais não posso desviar os olhos: são redemoinhos que me dão vertigem quando me aproximo, que giram sem cessar e através dos quais se chega ao vazio.65.

E é nesse espírito de renúncia ao dizível que Chandos encontra o indizível, após

uma espécie de ascese onde o pensamento é purgado dos ‘vícios’ da nomeação ele

descobre o estranho e inominável onde antes só existiam rótulos e nomes:

Um regador, um ancinho deixado no campo, um cachorro deitado ao sol, um cemitério pobre, aleijado, uma pequena fazenda, tudo o que pode se tornar o destinatário da minha revelação. Cada um desses objetos, e em outros mil semelhantes sobre os quais os olhos percorrem com natural indiferença, pode me conduzir, de um modo que não sou capaz de fazer, uma singularidade sublime e comovedora, para expressá-la todas as palavras me parecem demasiado pobres.66.

Tentando ainda explicar ao amigo Bacon o que estava acontecendo consigo,

Chandos narra uma curiosa experiência que lhe ocorrera recentemente: após ter

dado ordem aos empregados para que pusessem veneno para ratos nos sótãos de

suas granjas, ele sai para cavalgar pelos campos. Inesperadamente, sem que nada

o anunciasse, ele tem a visão dos ratos morrendo em agonia no escuro dos porões.

Mas a visão que mais o impressiona é a de uma ratazana acompanhada de seus

filhotes:

65 No original: (…) ya no lograba aprehenderlas con la mirad simplificadora de la costumbre. Todo se me desintegraba en partes, las partes otra vez en partes y nada se dejaba ya abarcar con un concepto. Las palabras aisladas, flotaba alrededor de mí; cuajaban en ojos que me miraban fijamente y de los que no puedo apartar la vista: son remolinos a los que me da vértigo asomarme, que giran sin cesar y a través de los cuales se llega al vacío”. HOFFMANSTAL, Hugo Von. La carta de Lord Chandos, p. 10. 66No original: “Una regadera, un rastillo abandonado en el campo, un perro tumbado al sol, un cementerio pobre, un lisiado, una granja pequeña, todo eso puede convertirse en el recipiente de mi revelación. Cada uno de esos objetos, y los otros mil similares sobre los que suele vagar un ojo con natural indiferencia, puede de pronto adoptar para mi en cualquier momento, que de ninguno modo soy capaz de propiciar, una singularidad sublime y conmovedora; para expresarlas todas las palabras me parecen demasiado pobres”. HOFFMANSTAL, Hugo Von., op. cit., p. 12.

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Ali estava uma mãe que tinha ao redor de si os filhotes moribundos e trêmulos, e que se dirigia seus olhos não aos muros implacáveis, mas ao ar vazio ou, através do ar, ao infinito, e que acompanhava esse olhar com um relinchar de dentes!67

Entretanto Chandos se apressa em corrigir a impressão de que esse sentimento que

o tomara seria compaixão:

Era muito mais e muito menos que compaixão; uma enorme participação, um fundir-se naquelas criaturas ou um sentimento de que um fluido da vida e da morte, do sono e da vigília havia passado por um instante a ela .... porém de onde? Portanto se relaciona com compaixão, com uma associação de idéias humanas compreensível, se em outro entardecer encontro debaixo de uma nogueira um regador esquecido ali por um jardineiro, e se esse regador, e a água dentro dele, escurecida pela sombra da árvore, e um escaravelho bóia na superfície dessa água escura de uma borda à outra, se essa combinação de insignificância me estremece com tal presença do infinito, me estremece desde a raiz dos cabelos até os pés de maneira que desejaria romper em palavras que, se as encontrasse, subjugariam a esses querubins que não creio... 68

É interessante notar que a narrativa dos eventos vividos por Chandos possui

diversas semelhanças com relatos de místicos de tradições diversas. O sentimento

de profunda comunhão que o mesmo experimenta em relação aos ratos

envenenados no celeiro, a profunda alegria que lhe advém das mais ínfimas

circunstancias e, por fim, a convicção de ter alcançado um conhecimento sobre a

realidade que é inexprimível em linguagem profana são típicos da experiência

mística. Veja-se a notável semelhança no trecho abaixo transcrito:

Tudo, tudo o que existe, tudo o que toca meus pensamentos mais confusos, me parece ser algo. Também meu próprio aborrecimento, e o restante embotamento de meu cérebro, me parece ser algo; sinto em mim e ao redor de mim uma equivalência maravilhosa, absolutamente infinita e entre as matérias que jogam contrapondo-se não há nenhuma na qual não pudesse transfundir-me. Então é como se meu corpo estivesse composto de códigos que o revelassem todo para mim. Ou como se pudéssemos estabelecer uma nova e premonitória relação com toda a existência, se começássemos a pensar com o coração. Porém, quando me abandona

67No original: “Alli estaba una madre que tenía alrededor a sus crías moribundas y temblorosas, y que dirigía sus miradas no a los muros implacables, sino al aire vacío o, a través del aire, al infinito, y que acompañaba esas miradas con un rechinar de dientes!” HOFFMANSTAL, Hugo Von. La carta de Lord Chandos, p. 12. 68No original: “Era mucho y mucho menos que compasión; una enorme participación, un transfundirse en aquellas criaturas o un sentimiento de que un fluido de la vida y la muerte, del sueño y la vigilia había pasado por un instante a ella… pero ¿de dónde? Pues que tiene que ver con la compasión, con una asociación de ideas humanas comprensible, si otro atardecer encuentro bajo un nogal una regadera medio llena que ha olvidado allí un jardinero, y si esa regadera, y el agua dentro de ella, obscurecida por la sombra del árbol, y un ditisco que rema en la superficie de esa agua de una oscura orilla a la otra, si esa combinación de nimiedades me estremece con tal presencia de lo infinito, me estremece desde las raíces de los pelos hasta los tuétanos del talón de tal manera que desearía prorrumpir en palabras que, si las encontrase, subyugarían a esos querubines en los que no creo….”. HOFFMANSTAL, Hugo Von., op. cit., p. 12.

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esse estranho encantamento, não sei dizer nada sobre ele; e então não poderia escrever em palavras razoáveis em que havia consistido essa harmonia que me invade e ao mundo inteiro ou como se tornaram perceptíveis a mim, do mesmo modo que não poderia dizer algo concreto sobre os movimentos internos de minhas entranhas ou sobre os movimentos de minhas veias69.

Entretanto, se não há palavras, pelo menos não palavras razoáveis, para dizer

uma tal experiência isso não significa que a mesma não possa ser pensada, pois

Chandos afirma que a própria experiência que descreve impõe uma “nova e

premonitória relação com a existência” que revoluciona os modos ordinários do

pensamento, o qual se desloca para o coração, essa conhecida metáfora que indica

a centralidade das paixões humanas. Chandos prossegue ainda sua carta dizendo

que “um algo inominável me obriga a pensar de uma maneira que me parece

completamente insensata no momento em que trato de expressá-lo em palavras”70.

A esse pensamento Chandos chama de pensar febril: “um pensar com um material

que é mais direto, liquido e ardente que as palavras. São também redemoinhos.

porém não parecem conduzir, como os redemoinhos da linguagem, a um fundo

sem limite mas, de algum modo, a mim mesmo e ao mais profundo sono da

paz”71.

Um pensamento que prescinde de palavras razoáveis e que conduz o homem

a si mesmo e a uma tranqüilidade que muito lembra o nirvana budista. Um

pensamento que exige uma nova linguagem, a linguagem das coisas

mudasdefinida por Chandos como: (…) uma língua, em que talvez me estaria

dado não apenas escrever mas também pensar, não é nem o latim, nem o inglês,

nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua cujas palavras não conheço nem

69No original: “Todo, todo lo que existe, todo lo que tocan mis pensamientos más confusos, me parece ser algo. También mi propia pesadez, el restante embotamiento de mi cerebro, se me parece como algo; siento en mí y alrededor de mí una equivalencia maravillosa, absolutamente infinita y entre las materias que juegan contraponiéndose no hay ninguna en la que yo no pudiese transfundirme. Entonces es como si mi cuerpo estuviese compuesto de claves que me lo revelasen todo. O como si pudiésemos establecer una nueva y premonitoria relación con toda la existencia, si empezásemos a pensar con el corazón. Pero cuando me abandona ese extraño embelesamiento, no se decir nada sobre ello; y entonces no podría escribir palabras razonables en qué había consistido esa armonía que me invade a mi y al mundo entero o como se me había hecho perceptible, del mismo que tampoco podría decir algo concreto sobre los movimientos internos de mis entrañas o los estancamientos de mi sangre”. HOFFMANSTAL, Hugo Von. La carta de LordChandos, op. cit., p. 14. 70No original: “un algo innombrable me obliga a pensar de una manera que me parece completamente insensata en el momento en que trato de expresarla en palabras”. 71No original: “un pensar con un material que es más directo, líquido y ardiente que las palabras. Son también remolinos, pero no parecen conducir, como los remolinos del lenguaje, a un fondo sin limite sino, de algún modo, a mí mismo y al más profundo seno de la paz”. HOFFMANSTAL, Hugo Von., op. cit., p. 15-16.

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uma somente, uma língua na que me falam as coisas mudas e na qual talvez um

dia, no túmulo, prestarei contas ante um juiz desconhecido”72.

Em razão da ausência de uma tal linguagem Chandos abandona a literatura e

a pretensão de construir mundos mais reais que a própria realidade. Á outro poeta,

também fictício, surge idêntico problema, porém a resposta adotada será diversa.

Alberto Caieiro, o poeta-místico e mestre dos demais heterônimos de Fernando

Pessoa, incluindo aí o próprio Pessoa, não abandona a poesia, antes, faz dela a

trincheira onde a linguagem da razoabilidade é atacada.

72 No original: “(...) la lengua, en que tal vez me estaría dado no sólo escribir sino también pensar, no es ni el latín, ni el inglés, ni el italiano, ni el español, sino una lengua de cuyas palabras no conozco ni una sola, una lengua en la que me hablan las cosas mudas y en la que quizá un día, en la tumba, rendiré cuentas ante un juez desconocido.” HOFFMANSTAL, Hugo Von. La carta de Lord Chandos., p. 16.

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Do discurso místico

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4.4 Um pensamento que incomoda como andar na chuva

Alberto Caieiro é um dos heterônimos de Fernando Pessoa, aquele que é

chamado Mestre pelos demais heterônimos e que se autodenomina místico das

sensações. Veja-se o poema abaixo:

Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, eu tenho-o. Sou místico, mas só com o corpo. A minha alma é simples e não pensa. O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso. Não sei o que é a Natureza: canto-a. Vivo no cimo dum outeiro Numa casa caiada e sozinha, E essa é a minha definição73.

O misticismo de Caieiro é peculiar, pois não é o desejo de transcendência

que o arremessa em direção ao mistério, mas antes o mergulho radical na

imanência acompanhado do empenho cuidadoso de um asceta que procura despir-

se de pressupostos e saberes, aprendendo a ‘desaprender’74. Na linha da

interpretação de Velloso Rocha discutida anteriormente, o misticismo de Caieiro

surge de um dar-se conta de que as coisas não são susceptíveis de interpretação,

ou, em outras palavras, que o real, quando despido de nossas conjecturas sobre o

mesmo, é incognoscível, ou inefável, se preferirmos.

Tu místico, vês uma significação em todas as coisas. Para ti tudo tem um sentido velado. Há uma cousa oculta em cada cousa que vês. O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa. Para mim, graças a ter olhos só para ver, Eu vejo ausência de significação em todas as cousas; Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada. Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação75.

Caieiro faz apologia de um pensar-sentir que seja todo superfície, sem

interioridade, um pensamento de tal modo imanente que seja “como se não tivesse

73PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro., Poemas inconjuntos, p. 151. 74PESSOA, Fernando., Poema XXIV, op. cit.,p. 49. 75PESSOA, Fernando., Poemas inconjuntos, op. cit.,p. 135.

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alma” e “como se fosse apenas olhos”76; submerso em corporalidade e

temporalidade. O pensar-sentir de que nos fala Caieiro é aquele que procura

driblar as dicotomias nas quais o pensamento ocidental se vê preso: sujeito-objeto,

interior-exterior, superfície-profundidade, essência-existência, etc... O Mestre

porá em suspeita a própria possibilidade de um Eu sujeito do conhecimento

“olhar” para dentro de si mesmo e formular juízos de razão sobre esse si-mesmo:

Eu não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro. Não acredito que eu exista por detrás de mim77.

E na medida em que se está sob suspeita o acesso irrestrito e isento a essa

interioridade subjetiva, Caieiro propõe-nos olhos novos com os quais possamos

olhar pela primeira vez as coisas e o mundo que nos cerca, sem pressupor

conceitualmente essas coisas e esse mundo, “Porque conhecer é como nunca ter

visto pela primeira vez,/e nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido

contar”78. Um olhar de superfície não é exatamente um olhar superficial, mas

antes um olhar que desiste da soberania do logos totalizante, que abre mão da

arrogância de querer estar ao mesmo tempo fora e dentro de toda ação de

conhecimento. “Vale mais ver uma coisa pela primeira vez do que conhecê-la”79

porque o conhecimento é sempre a ficção de um Eu que se arvora senhor de si

mesmo e do mundo que se dispõe a ele enquanto objeto passível e pacífico a sua

ação.

Mas essa pretensa superioridade humana é atacada por Caieiro na medida

em que ele não apenas faz um movimento cético de duvidar do alcance e do

âmbito da razão, mas também questiona a eleição da razão como parâmetro de

valoração em relação a outras características de outros entes, como o perfume da

flor, por exemplo. Em um poema bastante instigante ele questiona:

Para quê me comparar com uma flor, se eu sou eu E a flor é flor?

Ah, não comparemos coisa nenhuma: olhemos. Deixemos analogias, metáforas, símiles. Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa. Nenhuma coisa lembra outra se reparmos para ela.

76PESSOA, Fernando., op. cit., Poemas inconjuntos, p. 151. 77PESSOA, Fernando., op. cit., Poemas inconjuntos, p. 147. 78PESSOA, Fernando., op. cit., Poemas inconjuntos, p. 131. 79PESSOA, Fernando., op. cit., Poemas inconjuntos, p. 131.

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Cada coisa só lembra o que é E só é o que nada mais é. Separa-a de todas as outras o abismo de ser ela. (e as outras não serem ela). Tudo é nada sem outra coisa que não é. O quê? Valho mais que uma flor porque ela não sabe que tem cor e eu sei, porque ela não sabe que tem perfume e eu sei, porque ela não tem consciência de mim e eu tenho consciência dela? Mas o que tem uma coisa com a outra para que seja superior ou inferior a ela? Sim, tenho consciência da planta e ela não tem de mim. Mas se a forma da consciência é ter consciência, que há nisso? A planta, se falasse, podia dizer-me: e o teu perfume? Podia dizer-me: tu tens consciência porque ter consciência é uma qualidade humana. E eu não tenho consciência porque sou flor, não sou homem. Tenho perfume e tu não tens, porque sou flor.....80

O poema aborda o modo de operação do pensamento representacional

lógico-abstrato que tem sido hegemônico no Ocidente, e discute a naturalidade

dessas relações de similitude-dessemelhança que estão na base de todo

conhecimento produzido pela nossa razão, pois que a mesma funciona na busca de

identidades e diferenças entre coisas e entes e na transformação dessas coisas e

entes em conceitos abstratos que serão assimilados pela consciência e

representados na linguagem, estabelecendo a relação entre a consciência e a

realidade externa. A constatação de Caieiro de que “Nenhuma coisa lembra outra

se repararmos para ela/ Cada coisa só lembra o que é”, sugere que todo esse

edifício lógico-abstrato a partir do qual construímos nossos conceitos, inclusive os

conceitos de homem e flor, são artificiais, no sentido em que são construções

humanas, e não imanentes à própria coisa. Nossas noções de ‘superioridade’ e

‘inferioridade’ dos entes são questionadas por Caieiro a partir do pressuposto de

que cada coisa é um mistério irredutível em si mesmo, e que a consciência, legado

inegável dos homens, não os autoriza a pensar o mundo a partir de parâmetros

exclusivos a eles, pois se a flor pudesse falar ela talvez nos perguntasse pelo nosso

perfume, e teríamos de confessar envergonhados que não temos perfume, porque

não somos flor... Se cada coisa é o que é, há que se permitir que cada coisa seja o

que seja, sem imputar ao mundo nosso olhar viciado de conceitos e de

pressupostos.

80PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, Poemas inconjuntos, p. 130.

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De forma semelhante à experiência mística, a poesia elabora espaços

(perspectivas) de produção de conhecimento/verdade outros que aqueles

legitimados pela ciência e pelo senso comum. Entendida no sentido grego de

poiésis, produção criadora, a linguagem poética é lócus onde a epifania do real se

dá, em oposição a uma pretensa neutralidade e opacidade do real percebido pela

linguagem do senso comum e da ciência não especulativa81. Assim, se a

linguagem cotidiana aparentemente apresenta-se como uma relação estável entre

palavras e coisas, o mesmo não se dá com a poesia, linguagem tensionada que

promove essas núpcias dos contrários de que nos falou Paz, e não aponta para

nenhum referente externo:

O poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a não significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo do idioma, das explicações, da história. Mais além, abrem-se as portas do real: significação e não significação tornam-se termos equivalentes. Tal é o sentido último da imagem: ela mesma82.

Para o poeta e filósofo argentino Santiago Kovadloff a poesia é um espaço

transacional entre duas margens: o silêncio da linguagem preposicional, na qual o

espanto foi expurgado definitivamente, e o silêncio que o poema procura

preservar como presença, mistério que não é outro senão o próprio real não

domesticado por nossos esforços de cognição:

Existe, creio, uma trajetória do poema. Vai do silêncio ao silêncio. De um silêncio a outro silêncio. O silêncio do qual o poema parte, o silêncio do qual se arranca ao constituir-se como poema, é fruto de uma trama verbal, de uma linguagem: aquela que reina onde a aglutinação disseminada pela obviedade extenuou o dom do estranhamento; linguagem que impera onde o sentimento superlativo do real, quer dizer, a experiência do extraordinário, cede subjugada e se dissolve na maré ascendente da rotina. E o que é rotina, não ser essa opacidade do coração que aniquila toda relevância? Agora, por que chamar esse silêncio de linguagem? Porque constitui um corte interpretativo no campo total do inteligível. Pode nomear algo de certo modo, somente com a condição de que silencie alguma coisa, também de certo modo. Na linguagem do hábito jaz — justamente silenciada — uma dimensão de sentido do real que, como matiz, é decisiva para a compreensão do valor da existência. Em

81Parece-me relevante essa distinção entre ciência/filosofia especulativa e instrumental, pois a filosofia e ciência especulativa são inegavelmente poéticas, no sentido em que partem de um desejo de articulação do mistério, e não de sua instrumentalização, o que será realizado pelo que podemos chamar de ciência e filosofia “técnicas”. Sobre o tema são bastante interessantes as considerações do filósofo tcheco Vilém Flusser em seu livro Língua e realidade. 82PAZ, Octávio. ‘A imagem’. In: O arco e a lira., p. 48-49.

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virtude de sua função encobridora, proponho chamar esta modalidade do silêncio de silêncio da oclusão. Porém existe, além do mais, outro silêncio. Um segundo silêncio. É aquele ao qual chega o poema: o silêncio onde ele desemboca. Trata-se, neste caso, de um silêncio que o poema ajuda a preservar como presença. É o silêncio que, sem dúvida, o nutre, e ao mesmo tempo ele próprio alenta e promove. Esse no qual a vivência

domistério — que não é outra coisa além da do real suportado como derradeira imponderabilidade — subtrai o homem do solo petrificado do hábito: o liberta. Trata-se portanto de outro silêncio, que não o da oclusão (...)83

A esse segundo silêncio Kovadloff chama epifania, que não é exatamente um

emudecimento da palavra, antes, parece ser uma revigoração da mesma:

Já não é, conforme podemos ver, o silêncio do que, forçado a se recolher na falsa relevância, o silêncio do que, emudecido e encoberto, se supõe que não inquieta. Estamos, pelo contrário, diante do silêncio altivo daquilo que, sem recusar-nos seu contato, resiste a deixar-se limitar pelos recursos da lógica usual. Estamos, em suma, diante do extraordinário — palpável e simultaneamente inalcançável; tangível e, no entanto, informe. É graças, portanto, à sua intensa função reveladora que proponho chamar essa modalidade do silêncio de silêncio da epifania84.

Do ‘excesso’ de palavras ao silêncio ritual, o poema percorre os limites da

palavra, e, sem se fixar em uma ou em outra margem, toma para si esse encargo

insustentável de habitar o inabitável, de arrancar dessa linguagem ruidosa e

profana uma palavra que seja tão vazia e silenciosa como a prece do místico que

afirma, paradoxalmente, “(...) estar vazio de toda criatura significa estar pleno de

Deus e estar pleno de toda criatura significa estar vazio de Deus”85. Da mesma

forma poderíamos dizer que a linguagem, quando plena de silêncio, é vazia de si

mesma, mas é desse vazio que ela se alimenta, tornando-se poiésis, rito

enunciador que rememora e atualiza um dizer inaugural, que reintegra à

linguagem seu caráter litúrgico, e por isso mesmo devolve-a a si mesma para que

novamente ela seja lançada à fala cotidiana, revitalizada.

***

83 KOVADLOFF, Santiago. ‘A palavra no abismo: poesia e silêncio’. In: O silêncio primordial.,p. 23-24. 84 KOVADLOFF, Santiago., op. Cit., p. 25. 85

MeisterEckhart. Sobre o desprendimento. In: ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart., p. 12.

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***

Retomando os ensinamento de Caieiro poderíamos afirmar que esse pensar-

sentir requer de nós um “despir a alma” e “uma aprendizagem de desaprender”

que é justamente aprender a ver sem os óculos que os modos de operação da

linguagem produtiva nos oferece.

(...) O essencial é saber ver, sabe ver sem estar a pensar, saber ver quanto se vê, e nem pensar quando se vê nem ver quando se pensa Mas isto (triste de nós que trazemos a alma vestida!), isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender (....) 86

Em outro poema Caieiro continua,

(....) Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu, e não Alberto Caieiro, mas um animal humano que a Natureza produziu. (...)87

A impossibilidade inerente a essa empreitada de esquecer o que somos —

seres da e de cultura — e desencaixotar-nos de dentro de nós mesmos para sermos

novamente (já o fomos um dia?) seres ‘naturais’ não nos deve confundir. Procurar

despir-se não é já se ter despido, procurar esquecer não é já ter se esquecido, ou

mesmo, que tal desnudamento ou esquecimento seja efetivamente possível. Mas é

suspeitar de si mesmo, em uma suspensão do juízo que resulta da dúvida (que os

gregos chamavam epoché) mas não culmina em ignorância cômoda, e sim em um

movimento de pensamento que tenta encontrar outras estratégias para pensar

aquilo que mais se cabe pensar: o próprio pensamento. E não é sem razão que o

86PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro., Poema XXIV, p. 49. 87PESSOA, Fernando., op. cit., Poema XLIV, p. 72.

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poeta se denomina como um Guardador de rebanhos, muito embora nunca os

tenha guardado, pois os rebanhos que ele guarda são os seus pensamentos88. Mas

essa afirmação vem junto com outras, que precisam ser vistas em conjunto, para

serem mais bem compreendidas. Esse que se autodenomina Guardador de

rebanhos é aquele mesmo que afirma que “Pensar é estar doente dos olhos”, e que

“Pensar incomoda como andar à chuva”89. A figura do guardador de rebanhos nos

fala da dimensão de não-ação e não-subjetividade de um pensamento que não

fratura a extensão pensar-sentir: “(...) os meus pensamentos são todos

sensações”90. O guardador de rebanhos é aquele que se põe no limite entre ação e

não-ação, atividade-passividade: ele cuida, vela, vigia, conduz o rebanho

resguardando a ele a liberdade de ser o que é, com um ritmo e necessidades

idiossincráticas próprias a ele, e não ao pastor. Ao contrário de outros guardadores

de animais, como por exemplo os cuidadores de aves ou de porcos, que pelo

próprio modo de ser desses animais possuem uma participação mais ativa, posto

que mais ausente junto aos animais, os pastores, em especial os pastores de

ovelhas, se põem como presença constante, vigilante, ainda que não-impositiva. O

guardador de rebanhos guarda os rebanhos (os pensamentos) a partir de um

esforço para liberá-los de si mesmo e da ação controladora do sujeito da razão, a

vigia do pastor é amorosa e cuidadosa como a de uma mãe ao pé do berço de seu

filho recém-nascido: há que se estar ali mas como se não tivesse ali, da mesma

forma que a presença do guardador não pode inibir o modo de ser e estar próprio

do rebanho, o guardador de pensamentos deve resguardar os pensamentos de si

mesmo, desse Eu cartesiano que teima em arvorar-se senhor da razão e conceder à

ela privilégios irrestritos em toda ação de pensamento/conhecimento.

Se o homem é esse ente que é atraído pelo que se retrai, como nos garante

Heidegger, sendo o que se retrai justamente o que mais cabe pensar(que é tanto o

não-ainda-pensado quanto o im-pensável), é preciso criar outras estratégias de

pensamento que não aquelas baseadas na representação do objeto para a

subjetividade pensante. O que se retrai ao homem é o que mais cabe pensar

porque é ali que o pensamento encontra resistência a esse modo de operação do

pensamento/linguagem que liquida todo espanto e faz da realidade um conjunto

88PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, Poema IX, p. 34. 89PESSOA, Fernando.,op. cit., Poemas I e II, pps. 17-19. 90PESSOA, Fernando., op. cit., PoemaIX, p. 34.

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de fenômenos passíveis de conhecimento. Em direção àquilo que se retrai o

pensamento reencontra um mundo não etiquetável onde as coisas são devolvidas a

si mesmas, inquietantemente reticentes a nosso olhar “científico”. Heidegger já

nos alertou para as conseqüências dessa atitude:

Enquanto representarmos o pensamento segundo o que sobre ele a lógica nos informou, enquanto não levarmos a sério o fato de a lógica ter se fixado num modo particular de pensamento — enquanto imperar este estado de coisas, jamais poderemos considerar com atenção que e em que medida o poeta funda o pensar da lembrança91.

É preciso uma “aprendizagem de desaprender”, e Caieiro propõe que essa

nova estratégia de pensamento seja um pensar que cure os olhos (metáfora dos

órgãos que apreendem o sensível e que são o veículo de apreensão do mundo) de

sua doença antropológica. Em outro de seus poemas Caieiro desmonta o edifício

de nossas categorias conceituais para perceber o mundo, inclusive uma das

intuições a priori de Kant (tempo), e defende um modo de ver/perceber a

realidade que possa dispensar tudo (conceitos, abstrações, categorias, filosofias...),

tudo, menos o que se está a ver:

Vive, dizes, no presente; vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; quero as cousas que existem, não o tempo que as mede. O que é o presente? É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu esquema. Não quero pensar nas cousas como presentes, quero pensar nelas como cousas. Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes. Eu nem por reais as devia tratar. Eu não as devia tratar por nada. Eu devia vê-las, apenas vê-las; vê-las até não poder penar nelas, vê-las sem tempo, nem espaço, ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta ciência de ver, que não é nenhuma92.

91HEIDEGGER, Martin. O que quer dizer pensar. Ensaios e conferências., p. 118. 92PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, Poemas inconjuntos, p. 152.

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É notável no poema citado o uso dos verbos dever e querer, abrangendo os

sentidos de negação de um estado de coisas (“Mas eu não quero incluir o tempo

em meu esquema”), de afirmação de um desejo (“Eu quero só a realidade das

cousas sem presente”), e de um dever-ser a que o poeta anuncia (“Eu devia vê-

las, apenas vê-las”). A tensão entre o que se tem e o esforço de construção de um

novo olhar é evidente. O pensar-sentir as coisas e o mundo se localiza exatamente

na fissura que se abre quando da suspeita de que as coisas não podem ser exiladas

delas mesmas e tornadas objetos de pensamento, as coisas simplesmente “estão

aí”, e precisamos aprender a vê-las, mas essa ciência, que não é nenhuma ciência,

é a mais difícil, pois atenta contra todas as pressuposições nas quais se apóia o

Ocidente.

Retomemos então a última citação de Heidegger, que nos adverte de modos

diferenciados de pensamento, dos quais a lógica é apenas a fixação de uma dessas

formas:

Enquanto representarmos o pensamento segundo o que sobre ele a lógica nos informou, enquanto não levarmos a sério o fato de a lógica ter se fixado num modo particular de pensamento — enquanto imperar este estado de coisas, jamais poderemos considerar com atenção que e em que medida o poeta funda o pensar da lembrança.

Em contraposição ao modo de operação lógico-abstrato Heidegger menciona

o pensar do poeta, que é fundado na lembrança e na presentificação de mundos e

coisas que encontram em sua fala seu lugar. Por essa última citação percebemos

como Heidegger relaciona poesia e pensamento, pensamento e realidade,

realidade e verdade, verdade que ele pensa, à moda grega, como alethéia: palavra

formada pelo alpha privativo grego, acoplado como sufixo ao radical lethe, com

significado de véu. Assim, a tradução literal de alethéia é des-velamento, des-

cobrimento, retirada do véu. Alethéia é presentificação e manifestação do ser dos

entes, e não adequação do olhar ao objeto, ou correspondência entre o modo de

ver e a natureza da coisa. A verdade é entendida por Heidegger como pré-

predicativa ou pré-adjetiva, ela é esse mover entre o encobrimento e o

desencobrimento da phisys, movimento que não é um dispositivo humano e sim

uma dinâmica do real93. E por real entenda-se mais do que esse conjunto de

93As notações etimológicas sobre o termo alethéia foram retiradas de MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittegenstein.

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fenômenos passíveis de serem re-presentados e (mais ou menos, de acordo com a

teoria epistemológica) conhecidos pela ratio humana. Melhor seria esquecermos

esse conceito tão problemático94 e retomarmos o termo physys95

, com o qual os

gregos pensaram a experiência de realidade, entendendo o real como physys:

aquilo que encontra re-pouso na linguagem, pois essa, em seu poder ontofânico

(poder de dar presença ao ser das coisas), é poética, isto é, ela tece realidades que

abrangem, além daquelas do senso-comum e do conhecimento técnico-científico,

a realidade do mito e da poesia.

E é na poesia que vamos encontrar um permanente pôr-se e dispor-se do

real, que é problematizado enquanto referente imóvel para nossa linguagem e

produção de saberes. A poesia recupera uma concepção de real que não pode ser

pensado em separado da linguagem, compreendida como ‘sítio escuro’96 de onde

brota não apenas a palavra mas também a própria coisa. A linguagem poética

recupera o poder ontofânico, ou sagrado, de nomear e dar anima ao ser da coisa

nomeada.

Para melhor entender a relação entre verdade como desocultação (alethéia) e

linguagem poética vejamos as observações de Torrano sobre a compreensão grega

arcaica da linguagem, para a qual a linguagem era a responsável por trazer o

mundo à vigência do real:

A linguagem, que é compreendida e experienciada por Hesíodo como uma força múltipla e numinosa que ele nomeia com o nome de Musas, — é filha da Memória, ou seja: deste divino Poder de trazer `a Presença o não-presente, coisas passadas ou futuras. Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alethéia), e a aparição se

94Afinal, a realidade do nosso senso comum, que não duvida em nenhum momento da concretude da mesa na qual apoiamos nosso livro, não é idêntica a do físico, que, em proferindo discurso da ciência, nos dirá que a materialidade e imobilidade dessa mesa é ilusória, pois se ‘ a olharmos de muito perto’ veremos que ela é composta de partículas infinitamente pequenas (prótons, elétrons e nêutrons) em permanente movimento. 95 Ver nota 28 do capítulo primeiro onde são tecidas considerações etimológicas sobre o termo. 96Aqui faço menção ao poema Antes do nome, de Adélia Prado, in: PRADO, Adélia. Poesia Reunida.

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, Os sítios escuros onde nasce o “de”; o “aliás”, O “o”, o ”porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender A palavra é disfarce de uma outra coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrenqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.

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dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória. O ser-aparição portanto dá-se através da linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. O ser-aparição é o desempenho (= função) das Musas. E o desempenho das Musas é ser-aparição. È na linguagem que se dá o ser-aparição — e é também o simulacro, as mentiras (v. 27). É na linguagem que impera a aparição (alethéia) — e também o esquecimento (lesmosyne, v. 55). O ser se dá na linguagem porque a linguagem é numinosamente a força-de-nomear. E a força-de-nomear repousa sempre no ser, isto é, tem sempre força de ser e de dar ser. Não se trata porém de uma relação mas de uma imanência recíproca: o ser está na linguagem porque a linguagem está no ser (e vice-versa)97.

A experiência grega da qual nos fala Torrano é a da linguagem como numem, um

deus. Um deus que tem por função resguardar o mundo na dupla articulação entre

velamento-desvelamento. Função das Musas, a linguagem poética guarda em si a

presença (alethéia) e o esquecimento (lesmosyne), guarda em si um modo de

operação que é, insistimos, sagrado, no sentido em que possamos entender

sagrado como esse Contínuo de que nos fala Bataille, como o Inarticulado em

palavras de Vilém Flusser98, ou ainda como o Aberto na acepção de Heidegger99.

E finalmente, como uma palavra grega antiga: kryptestai,o sagrado como aquilo

que está oculto e que não se revela, mas que se articula em permanente tensão

com a physis (totalidade de tudo o que se manifesta, de tudo que é).

Em vez da medida da objetividade científica, que desde já implica uma

subjetividade articuladora do conhecimento, há na poesia a construção de um

habitar poético (no sentido de um criar inaugural) que tem no divino-sagrado, isto

é, nesse âmbito do inominado e incognoscível, sua medida. O poeta seria aquele

que resguarda a realidade de nossas pretensões megalomaníacas de domesticação,

transformando realidade em physis, metafísica em corporalidade, certezas em

inquietações, conhecimento em espanto.

Retornemos à Caieiro, que ao se auto afirmar um guardador de rebanhos-

pensamentos confessa:

Sim: Existo dentro do meu corpo. Não trago o sol ou a lua na algibeira.100

97TORRANO, J.A.A. O mundo como função de musas. In: Teogonia: a origem dos deuses., p. 29-30, grifo nosso. 98 Sobre o conceito de Inarticulado em Vilém Flusser ver: Língua e realidade. 99 A metáfora unificadora tem seus perigos, não pretendo afirmar que os conceitos mencionados possuem semelhança para além do fato de apontarem para uma incognoscibilidade intrínseca ao sagrado e ao real. 100 PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, Poemas inconjuntos, p. 144.

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Em assumir o corpo em sua realidade visceral e concreta o poeta também

desiste de forjar o mundo a sua imagem e semelhança, de guardá-los em sua

algibeira, e da ilusão de domesticá-lo por meio de um conhecimento redutor que

insiste em postular uma ontologia de valoração assimétrica para homens e demais

seres. O corpo, mistério insondável que se nos vela-desvela é paradigma desse

pensamento que ruma para o espanto: todas as explicações bio-psíquico-sociais

não podem expurgar o irredutível estranhamento que nos vem do experienciar o

nascer-morrer como algo que não acontece “fora” de nós, mas que se desenrola

invisível e incessante nos meandros escuros de nosso ser. A dor, a alegria, os

afetos, a esperança e o desespero não são “apenas” condições neurológicas

causadas, em última instância, por eventos bioquímicos passíveis de serem

sintetizados em antidepressivos e/ou estimulantes. As explicações da ciência não

podem suplantar a realidade pungente de sabermo-nos mortais, mas sedentos de

deuses. Se estas são afirmações com as quais o próprio senso-comum concordaria,

porque então porque não assumir a fala do mestre Caieiro, aquele Argonauta das

sensações verdadeiras, que diz:

A espantosa realidade das coisas é minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é. E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, e quanto isso me basta. Basta existir para ser completo. (....).101

Cada coisa é o que é, e sua realidade não está nos muitos olhares que

possamos lançar sobre ela. E o que cada coisa é continua sendo um mistério digno

de espanto para todo aquele que um dia se deteve e apenas olhou, sem tentar

impingir a coisa olhada algo de seu olhar. Talvez, em um mundo dominado pela

técnica, onde as coisas se transformaram em instrumentos, a função da poesia seja

justamente nos ensinar a olhar o mundo com olhos novos, nos trazer de novo o

espanto pelas coisas serem o que são:

O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais que eles, que sei disso?

101PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, Poemas inconjuntos, p. 91.

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Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, Rio como um regato que soa fresco na pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum. E mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada a compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos; As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. 102

***

O que os fictícios poetas Lord Chandos e Alberto Caieiro podem nos ensinar

sobre as relações entre mística e poesia e, mais ainda, sobre a articulação de

ambos discursos com nosso sentimento de realidade?

Poderíamos dizer com oreal, mas o termo acabaria por se tornar, na tese, de

delimitação confusa, já que a mesma palavra abrange a percepção do senso

comum do que seja o real, o discurso científico sobre o mundo físico e as

ambições místico-metafísicas de dizer ‘aquilo que é’. Penso que ‘sentimento de

realidade’, ‘realíssimo’ ou ainda ‘fome de realidade’ (expressão de Octávio Paz

que consta no primeiro capítulo) são mais adequadas às ambições da tese,

definição que fica mais clara quando retomamos a afirmação de Mircea Eliade –

já citada – de que o homem religioso deseja viver sempre no real, e que real, para

aquele atormentado pelo desejo de transcendência, é aquela parte do mundo que

foi tocada e cosmogonizada pelos deuses. Eliade nos afirma que na história das

religiões é possível perceber que a diferença entre sagrado/profano traduz-se

muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real103. È

desnecessário complementar que Eliade está se referindo àquilo que ele chama de

homem arcaico, pertencente às sociedades pré-modernas, mas em seu estudo ele

advoga a permanência de uma consciência mítica, própria desse homem arcaico,

em todos nós. Para Eliade, se “o mundo profano na sua totalidade, o Cosmos

totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito

102PESSOA, Fernando.Poesia completa de Alberto Caieiro, op. cit., Poema XXXIX, p. 65. 103 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 18.

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humano”104, é bastante claro que “(...) uma tal existência profana jamais se

encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que

tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir

completamente o comportamento religioso”105. Em nossa dissertação de mestrado

é discutida permanência do imaginário religioso no homem contemporâneo, e

apenas como um exemplo possível para confirmar essa hipótese citamos o estudo

de François Gauthier106, que analisa as raves — festas cosmopolitas que misturam

cultura e música tecno, drogas e uma multidão de jovens adolescentes ansiosos

por emoção — como um ritual que possibilita o acesso ao sentimento sagrado por

meio da transgressão da ordem cultural107.

A tese aposta na continuidade dessa relação entre o sentimento de realidade

e a experiência do sagrado. E aqui aparece a semelhança entre os discursos da

mística e da poesia: ambos seriam formas de linguagem que aspiram o acesso ao

núcleo duro do real, seja ele Deus (nas tradições teístas) o Nada ou o Tao (nas

tradições orientais); já na literatura e arte contemporânea a proximidade com o

discurso místico se faz sentir na denúncia da falência da linguagem em relação a

nossas expectativas de que ela espelharia o real (como bem mostram os poetas até

agora analisados: Clarice Lispector, Paulo Henriques Britto, Hugo Von

Hofsmannsthal e Alberto Caieiro) bem como na constatação de que a linguagem

que franqueia nossa percepção do real é esvaziada de lastros que garantam a

nossas palavras um sentido externo a essa mesma linguagem. E, assim

entendemos, boa parte de nossas realizações estéticas são articulações desse luto,

vivenciado ora com nostalgia, ora com ironia, ora com esperança108.

104ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano., p. 19. 105 ELIADE, Mircea., op. Cit., p. 27. 106GAUTHIER, François. Le rave, une pensée de lanuitRave, ritualité, religion. 107Ver o capítulo “Experiências limites em tempos pós-modernos”, in: OLIVEIRA, Cleide Maria de. Do corpo à Palavra, da palavra ao corpo: algumas reflexões sobre o complexo erotismo-mística e poesia. 108Não estamos sozinhos nessa afirmação, George Steiner, por exemplo, entende que toda arte pressupõe uma “presença”que garanta a possibilidade de que “haja alguma coisa dentro do que dizemos”. Tal presença pode ser a idéia de Deus, as idéias platônicas, a essência aristotélica ou tomista, a consciência cartesiana, a lógica transcendental de Kant ou mesmo o “Ser” de Heidegger. Toda criação estética seria, para Steiner, uma imitação daquele evento mítico em que o Verbo é pronunciado, rompendo com o caos primordial e construindo o nosso cosmos. Segundo ele: “A atribuição de beleza à verdade e ao sentido ou é uma flor de retórica ou uma declaração teológica. É uma teologia, explicita ou recalcada, mascarada ou confessa, substantiva ou figurada, que garante o pressuposto da criação e do sentido nos nossos encontros com os textos, com a música e com a arte. O sentido do sentido é um postulado transcendente.” STEINER, George. Presenças reais: as artes do sentido., p. 28.

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Para demonstrar essas afirmações até o momento analisamos alguns

discursos poéticos, e em relação à mística apenas nos detivemos na discussão da

sua teoria, prescindindo da análise textual. No próximo capítulo estaremos

analisando textos produzidos a partir de experiência mística de tradição

apofática109. O que se pretende é entender as convergências entre mística e poesia

na articulação de um certo modo de pensar marcado pela negatividade,

pensamento que na obra de Georges Bataille é caracterizado como não-saber. Um

pensamento que seja noite, abismo e deserto, como veremos a seguir.

109A escolha de místicos exclusivamente de tradições cristãs justifica-se por uma limitação nossa, e não por questões valorativas.

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