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40º Encontro Anual da ANPOCS ST 22 – Pensamento Social no Brasil: novos debates teóricos-metodológicos Usos de Gramsci e a tradução do marxismo na América Latina: uma investigação sobre as revistas Presença e Pasado y Presente CAMILA GÓES Doutoranda em Ciência Política Universidade Estadual de Campinas

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40º Encontro Anual da ANPOCS

ST 22 – Pensamento Social no Brasil: novos debates teóricos-metodológicos

Usos de Gramsci e a tradução do marxismo na América Latina: uma investigação sobre as revistas Presença e Pasado y Presente

CAMILA GÓES

Doutoranda em Ciência Política

Universidade Estadual de Campinas

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1  

Introdução

Este artigo se propõe apresentar notas iniciais de pesquisa,1 de modo a

delinear os seus principais traços, hipóteses e objetivos. Deste modo, busca-se,

em maior medida levantar os principais problemas e as questões que orientarão

seu andamento. Apresentamos como tema o encontro de Antonio Gramsci com

a América Latina, a partir da sugestiva hipótese lançada por Giuseppe Vacca

em prefácio de Gramsci, le culture e il mondo (2009). Para Vacca, a

característica geral do encontro de determinadas culturas nacionais com o

pensamento de Antonio Gramsci seria a criação de novos projetos políticos e

uma nova ideia da política:

foi assim na Itália do pós-guerra, foi assim não só na Índia, tanto antes como depois do nascimento dos Subaltern Studies, mas também na América Latina, onde em alguns países, como na Argentina e no Brasil, a influência de Gramsci teve um papel fundamental na renovação da história política dos grupos intelectuais, em favor das “revoluções democráticas” (VACCA, 2009, p.13).

Em pesquisa anterior, à qual procuramos dar continuidade, investigamos

a recepção das ideias de Gramsci na Índia com os chamados Subaltern Studies

e seus principais desdobramentos ao longo dos anos 1980 e 1990 (cf. GÓES,

2015). Neste trabalho, por sua vez, assumimos a hipótese lançada por Vacca

para refletir sobre o encontro de Gramsci com a América Latina, em particular

com as culturas nacionais mencionadas – a argentina e a brasileira. Propõe-se

abordar este encontro a partir da formação de dois grupos intelectuais – no caso

brasileiro, em torno da Presença: revista de cultura e política e no caso

argentino, ao redor da revista Pasado y Presente. Além da referência mútua ao

marxista italiano como principal fonte teórica e política, tanto os intelectuais

argentinos como os brasileiros envolvidos nestas empreitadas tinham em suas

trajetórias um envolvimento crítico com os partidos comunistas de seus países e

estavam às voltas com períodos de interrupção da democracia. Contra o que

poderíamos considerar como “marxismo oficial”, estes coletivos se organizaram                                                                                                                          1 Levada a cabo no âmbito do programa de pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do prof. Alvaro Bianchi.

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através do trabalho editorial como forma de polemizar com as mais importantes

vertentes nacionais de esquerda. Além disso, propunham um centro de

elaboração cultural relativamente autônomo da estrutura partidária e um ponto

de convergência dos intelectuais comunistas com aqueles que provinham de

outros setores da esquerda (ARICÓ, 2005; NOGUEIRA, 1984).

Antonio Gramsci em revista: atividade editorial como atividade política Este movimento teórico e político concatenado a projetos editoriais não

se restringe ao Brasil e à Argentina. Em English Questions, Perry Anderson

(1992) explicita um processo análogo em meio ao contexto intelectual que

rondou as origens da revista marxista britânica New Left Review. A empreitada

como um todo, cuja iniciativa Anderson compartilha com Tom Nairn, devia

também sua principal inspiração intelectual ao pensador italiano Antonio

Gramsci – autor que ainda não era familiar à Inglaterra dos anos 1960.2

Anderson afirmava ter encontrado na obra de Gramsci dois aspectos

centrais que falavam à situação inglesa e que são fundamentais para a

compreensão da fortuna que o marxista sardo encontra em países tão distantes,

como estímulo à formação de novos “centros de pesquisa” (cf. BARATTA, 2009).

Em primeiro lugar, Gramsci havia sido o primeiro marxista a traçar as

características nacionais de sua própria sociedade capitalista em suas formas

particulares e também o primeiro revolucionário a apreender a necessidade por

uma estratégia específica para o socialismo no Ocidente industrializado, pós-

advento do sufrágio universal. Tendo isso em vista, as teses “Nairn-Anderson”

buscaram aplicar as categorias de Gramsci sobre a paisagem social e política

inglesa, consistindo numa das primeiras recepções sistemáticas do seu

pensamento fora da Itália. Para Anderson, o único episódio comparável teria

ocorrido na Argentina, com uma assimilação quase simultânea do pensamento

gramsciano pela revista Pasado y Presente.

                                                                                                                         2 Tendo pouco dos seus textos traduzidos para o inglês, os Cadernos do Cárcere não faziam parte do universo intelectual do ainda pequeno setor da cultura socialista que se definia como marxista – situação que não era peculiar à Inglaterra.

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A primeira tentativa orgânica de inserção do pensamento de Gramsci no

âmbito da América Latina de fato ocorre na Argentina, no interior do Partido

Comunista Argentino (PCA) (ARICÓ, 1985, p.27; BURGOS, 2002, p.9). Esse

esforço pode ser localizado já nos anos 1950 com as edições Latauro das

Cartas desde la cárcel e dos Cuadernos de la cárcel, que promoveram a

primeira difusão continental da obra do marxista italiano, e também com o

periódico comunista Cuadernos de Cultura, que subsistiu até o momento em

que a desagregação do peronismo levou o PCA à ilegalidade.3 Estas iniciativas

se dão em meio a um clima cultural marcado pela ascensão do peronismo, pelo

começo da Guerra Fria e pelo golpe militar de 19554 (BURGOS, 2004, p.32). Os

grupos do PCA que permaneceram ligados a Gramsci reuniram-se em torno da

revista Pasado y Presente, fundada em Córdoba no ano de 1963 (ARICÓ, 1982,

p.13).

A revista nascia em meio ao clima de crise de expectativas

transformadoras que o governo de Arturo Frondizi (1958-1962) havia criado no

espectro liberal-democrático e de esquerda e aos efeitos da Revolução Cubana

e da libertação da Argélia (BURGOS, 2004, p.69). O projeto inicial contava com a

presença, em Córdoba, de Oscar del Barco, Samuel Kieczkovsky, Héctor

Schmucler e José Aricó. Em Buenos Aires, Juan Carlos Portantiero

acompanhava o projeto. O nome do grupo foi extraído do título de algumas

notas de Gramsci nos Quaderni, deixando desde o início explícita a sua principal

fonte de inspiração teórica e política. No primeiro número da revista, que

compreendeu o trimestre de abril a junho de 1963, à apresentação feita por

Aricó precedia uma destas notas:

Passado e presente. Como e porque o presente é uma crítica do passado, bem como é sua “superação”. Mas o passado deve por isso

                                                                                                                         3 Gramsci passava a fazer parte do ambiente cultural e político dos argentinos em meio a uma “invasão italiana” no país. O marxista italiano fora introduzido nos anos 1950 junto às intervenções de Togliatti e para além da interlocução entre comunistas, através dos exilados do fascismo, que introduziram no país as obras de Rodolfo Mondolfo, Renato Treves, Benedetto Croce e Francesco de Sanctis (ARICÓ, 2005, p.94). 4 Em 16 de setembro de 1955, uma ditadura civil-militar passa a governar a República Argentina, após derrubar o presidente constitucional Juan Domingo Perón, fechar o Congresso Nacional e depor membros do Supremo Tribunal. Após mais de dois anos, o governo passou ao Presidente eleito Arturo Frondizi, em 1o de Maio de 1958, que também seria derrubado quatro anos mais tarde, em 1962.

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ser jogado fora? É de se jogar fora aquilo que o presente criticou “intrinsecamente” e aquela parte de nós mesmos à qual isso corresponde. O que isto significa? Que devemos ter consciência exata desta crítica real e lhe dar uma expressão não só teórica, mas política. Ou seja, devemos ser mais aderentes ao presente, que nós mesmos contribuímos para criar, tendo consciência do passado e do seu continuar-se (e reavivar-se) (GRAMSCI, Q1, § 156, p. 137)5.

Aplicado à realidade argentina, isto significava, segundo Aricó, partir das

exigências impostas pela nova geração à qual pertencia, sem por isso

desconhecer ou negar o que havia sido feito até então, e incorporar à análise a

“urgente e poderosa instância que nos impulsa em forma permanente a refazer

a experiência dos outros, a construir nossas próprias perspectivas” (ARICÓ,

1963, p.1). Esta era, por consequência, a expressão de um grupo de intelectuais

“que esforçando-se por aplicar o materialismo histórico e incorporando as

motivações do presente, tentará soldar-se com um passado ao qual não repudia

em sua totalidade, mas que tampouco aceita na forma na qual se oferece” (ibid.,

p.2).

Inicialmente, a revista contou com apoio do PCA, que financiou os seus

primeiros dois números como parte de um movimento de renovação partidária e

transformação interna. Nesta iniciativa, vale destacar a figura de Héctor Agosti.

Agosti, editor dos Cuadernos de Cultura, havia sido o primeiro a usar elementos

gramscianos para repensar a história argentina fora da matriz liberal, à qual a

historiografia dos comunistas argentinos estava vinculada 6 (BURGOS, 2004,

p.45). A sua obra, baseada em particular nas reflexões de Gramsci sobre o

Risorgimento (cf. AGOSTI, 1951), se tornou uma referência obrigatória para os

comunistas argentinos. Segundo a interpretação de Burgos (2004, p.48), o livro

de Agosti representou um momento relevante a partir do qual se tornou possível

uma abertura e um diálogo mais produtivo entre as diversas correntes

(marxistas ou não marxistas) da época. No entanto, esta tentativa se realizava

justamente nos anos da encruzilhada entre os governos peronistas e seu

colapso em 1955 (BURGOS, 2004, p.48).

                                                                                                                         5 Utilizaremos a edição crítica dos Cadernos do Cárcere, organizada por Valentino Gerratana e publicada em 1975 na Itália. Citaremos da seguinte forma: Q. “X”, para o número do Caderno, § “Y”, para o parágrafo, e p. “Z” para a página na referida edição. 6 Sarmiento, Allberdi e Echeverría são autores importantes desta tradição liberal-democrática argentina.

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Outro aspecto importante do surgimento da Pasado y Presente, além da

influência das ideias de Agosti, fora o debate iniciado individualmente por Oscar

del Barco ainda nos marcos dos Cuadernos de Cultura. Tratava-se de um

debate filosófico acerca da concepção de objetividade na obra de Gramsci que,

por sua vez, tinha uma motivação política clara – “forçar a abertura de espaços

para uma reflexão mais ajustada aos novos ventos que sopravam a partir da

crítica kruschoviana à era stalinista e, na América Latina, a partir da Revolução

Cubana” (ibid., p.53).

Seguindo pistas de Agosti e aprofundando a crítica de Barco, a revista

número 1 foi lançada com um editorial assinado por Aricó. O conteúdo da revista

não foi bem recebido pelo PCA e o grupo liderado por Aricó em Córdoba e por

Portantiero em Buenos Aires foi expulso do partido em 1963 (ibid., p.72).7 Sem

vinculações partidárias, a revista Pasado y Presente se formou, segundo o olhar

retrospectivo de Aricó, mais como um grupo “marcado pela dilatação extrema do

pensamento e da ação política de esquerda do que um núcleo formador de uma

tradição de pensamento” (ARICÓ, 2005, p.101). O autor acrescenta ainda que os

intelectuais vinculados à revista gramsciana se viam em um contexto intelectual

marcado pela ausência de uma tradição que não estivesse associada, por um

lado, às vertentes nacional-populares e, por outro, ao discurso marxista-

leninista. Os primeiros se fundamentavam no argumento da “excepcionalidade”

da realidade nacional e os segundos tinham no marxismo uma verdade

universal, para o qual a realidade não podia ser “senão a manifestação de tal

verdade, um mero epifenômeno” (ibid., p.99). Isto justificou, para Aricó, o

deslumbramento com o qual ele e seus pares receberam as propostas políticas

                                                                                                                         7 A expulsão se deu, segundo a síntese de Aricó – em entrevista a Horácio Crespo e Antonio Marimón em 1983 – primeiramente porque a revista criticava a posição do PCA frente ao peronismo, por não ter conseguido enxergar os elementos novos e necessários que a concepção política peronista introduzia, entendo-a como um fenômeno de “primitivismo das massas” que podia ser liquidado com a aplicação de uma “política culta” frente a estas mesmas massas. Em segundo lugar, por não ter compreendido que essa atitude errônea frente ao peronismo impediu o partido de observar, ao mesmo tempo, que uma política de conquista destas massas passava necessariamente por um reexame de toda a situação nacional e pela busca de um novo tipo de vinculação entre mundo intelectual e mundo proletário e popular (ARICÓ, 1983, p. 36).

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e estratégicas elaboradas pelos comunistas italianos – com destaque às Teses

de Lyon8:

Ali havia uma maneira de situar-se frente aos problemas, uma forma de construir a ação política que nós devíamos de algum modo adotar. É verdade que em tudo isto houve de nossa parte muita ingenuidade, limites teóricos e inexperiência política, mas devemos recordar o fato de que estávamos frente à necessidade de desandar um caminho para recorrer outros sem nenhum mestre que nos guiara, sem tradições para nos apoiar, sem uma corrente ideal ou suficientemente ampla e diferenciada como para corrigir na própria ação política uma inexperiência que nos era congênita (ibid., p.101).

Eles tinham encontrado no marxismo italiano, particularmente em

Gramsci, um ponto de apoio, uma base sólida a partir da qual podiam se

estabelecer sem abrir mão dos ideais socialistas.9 Ao longo dos anos 1960, os

argentinos gramscianos aprenderam a língua italiana, leram a obra de Gramsci

e traduziram e publicaram um abundante material interpretativo que chegou a

eles a partir da Itália – há traduções de Luporini, Della Volpe e Coletti no

primeiro número da revista, de abril-junho de 1963, por exemplo, e de Togliatti e

Banfi na revista no 2-3, de julho-dezembro do mesmo ano. Este movimento de

ideias acompanhou a observação de uma série de fenômenos que, segundo

Aricó, se encontravam anteriormente “fora de lugar” na esquerda argentina: a

questão dos intelectuais, da cultura, da relação entre Estado, nação e sociedade

e do papel do partido dentro de um bloco de forças populares (id., 1983, p. 35).

A revista Pasado y Presente seguia, assim, um roteiro sem manuais,

caracterizado pela própria experiência prática e pela conjuntura política,

marcada inicialmente pelas tensões desenvolvidas em meio ao partido

comunista, mas também em polêmica com as vertentes nacional-populares que

tinham no peronismo sua expressão mais acabada. A história do coletivo expõe,

de um determinado ponto de vista, a própria história política da Argentina;

                                                                                                                         8 Referentes ao III Congresso Nacional do Partido Comunista Italiano (PCI), em 23-26 de janeiro de 1926. 9 Gramsci acompanhou, de certa forma, a invasão do neorrealismo fílmico na Argentina, e através de algumas publicações, do Cinema Novo em especial. Aricó e seus colegas acompanharam as discussões italianas sobre estética e problemas culturais. Leram Vittorini e puderam reconstruir na Cronache di poveri amanti de Pratolini a tragédia que o fascismo significou para o mundo popular, subalterno. Traduções de Attilio Dabini lhes permitiram descobrir Carlos Levi, e seu Cristo si è fermato a Eboli lhes evocou a existência, em seu próprio país, de povos que se apegavam com dignidade a suas culturas primitivas (ARICÓ, 2005, p. 94).

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inclusive através das opções interpretativas e nas ênfases diferenciadas da obra

de Gramsci. Seguindo a argumentação de Burgos (2004), é possível identificar

três fases importantes nesse sentido.10 A primeira, que tem início em abril de

1963, é marcada pela temática gramsciana do nacional-popular e tem como

objetivo fundamental pensar o complexo fenômeno peronista (BURGOS, 2004,

p.17). A segunda, por sua vez, passa a ser delineada com o golpe de estado de

junho de 1966,11 quando os gramscianos argentinos passam a construir sua

estratégia de intervenção cultural na política – particularmente com o objetivo de

transformação da cultura marxista – consagrada em 1968 com o projeto dos

Cuadernos de Pasado y Presente.12 Nesta fase, Gramsci aparece como um

mediador de um diálogo com o universo marxista heterodoxo, que é editado e

difundido amplamente nos Cuadernos (ibid., p.17). Já em 1973, a revista passa

a se vincular ao projeto de formação de uma tendência de esquerda socialista

no interior do movimento peronista. O centro da reflexão teórica passa a se

concentrar no Gramsci dos conselhos de fábrica, em uma tentativa de fundir o

movimento revolucionário das novas organizações de esquerda com o

movimento mais avançado da classe trabalhadora (ibid., p.17-18).13

O grupo Pasado y Presente parece sintetizar muitos elementos

interessantes para pensar a relação entre intelectuais e política naquele período,

marcado por crises democráticas – desde um debate interno ao PCA e a sua

“excomunhão”, o coletivo se enveredará por um caminho heterodoxo que o

caracterizará por toda sua existência. Além disso, o grupo nasce com uma

                                                                                                                         10 Gaido e Bosh Alessio (2014) utilizam uma outra periodização para compreender o grupo Pasado y Presente através de suas orientações políticas. Para os autores, se trataria de uma primeira fase guevarista (1963-1965), uma segunda fase maoísta (1965-1969), uma terceira peronista (1970-1973) e uma quarta fase considerada radical (1976-1989). 11 Em 28 de junho de 1966, um levante militar liderado por Juan Carlos Onganía derrubou o presidente Arturo Illia. O golpe deu origem a uma ditadura autodenominada “Revolução Argentina” que se estabeleceu como um sistema de tipo permanente. 12 Foram 98 volumes Cuadernos Pasado y Presente publicados sucessivamente em Córdoba (até 1971), Buenos Aires (até 1976) e México (até 1983). Os lugares de edição dão conta de uma trajetória marcada ao mesmo tempo pela migração política e pelo exílio. 13 É interessante notar que, ao contrário da própria produção cronológica de Gramsci, os argentinos tenham chegado ao final de sua empreitada aos seus escritos juvenis – pesquisas recentes mostram que há nesta fase do pensamento gramsciano já uma intensa atividade crítica, o que matiza a divisão entre fases estanques da produção gramsciana, antes e depois do cárcere (cf. MUSSI, 2015). A despeito disto, esta mudança de enfoque pode nos dar pistas sobre a mudança de posicionamento político dos intelectuais vinculados à revista. Um exame mais detalhado das fontes utilizadas pela Pasado y Presente pode nos auxiliar a entender melhor estas opções interpretativas da obra do marxista italiano.

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vocação substantiva para o trabalho editorial, não só na revista Pasado y

Presente, mas nos Cuadernos homônimos. Com isso, buscaram a partir do

exercício da tradução, em sentido amplo, oferecer um espaço de intervenção

política e cultural (CORTÉS, 2010, p.147). É a partir da temática da tradução e da

tradutibilidade, em termos gramscianos, que propomos entender não só a

trajetória da revista argentina, como também a revista Presença. É também com

Gramsci e a tradução de sua obra que os intelectuais ligados a esta empreitada

ganharão proeminência no debate de esquerda brasileiro.

Assim como na Argentina, é a partir de meados dos anos 1950 que

ocorre o primeiro momento da expansão de Gramsci no Brasil. A chamada

“operação Gramsci” se dá em meio a um tímido processo de abertura, a partir

do relatório de Khrushchev sobre os crimes de Stalin em 1956 (cf. DIAS, 1996). A

referência ao marxista sardo, entretanto, permanece restrita aos jornais e

revistas do Partido Comunista Italiano (PCI) que chegavam ao Brasil ao longo

dos anos 1960 (SECCO, 2002, p.27). É nesse contexto que se encontram as

primeiras edições da obra gramsciana,14 reproduzindo a interpretação do PCI de

Togliatti, de Gramsci como um filósofo e crítico literário, no qual a dimensão

estritamente política tinha peso secundário.15 Estas edições esgotaram-se com

lentidão e dificuldade e a presença na produção intelectual brasileira daqueles

anos foi praticamente inexistente ou, em poucos casos, “subterrânea”

(COUTINHO, 1985, p.104).

A recepção de Gramsci foi prejudicada pela decretação, em dezembro de

1968, do AI-5. Outra razão disto encontrava-se na cultura então dominante nos

ambientes culturais de esquerda do país, principalmente no Partido Comunista

Brasileiro (PCB), fortemente influenciado pelo chamado “marxismo da III

                                                                                                                         14 Em 1966, foi publicado o primeiro dos volumes projetados (Cartas do cárcere) e, a seguir, Concepção dialética da história (1966), nome escolhido para burlar a censura; Literatura e vida nacional (1966); Maquiavel, a política e o Estado moderno (1968); e Os intelectuais e a organização da cultura (1968). Luiz Mario Gazzaneo traduziu o primeiro dos volumes dos Cadernos do cárcere e Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, os demais. Tanto o editor-proprietário da Civilização Brasileira como os tradutores dessa edição tinham vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) (BIANCHI, 2007, p.7-8). 15 A Argentina e o Brasil foram os principais centros de difusão dos escritos de Gramsci na América Latina. Neste primeiro momento, a recepção das ideias de Gramsci não entra em conflito com o paradigma clássico que emergiu com a Revolução Russa. De modo geral, Gramsci foi lido em meio aos partidos comunistas como um teórico da cultura.

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Internacional”.16 Nesta tradição, o Brasil era visto como uma formação social

atrasada, semicolonial e semifeudal, que teria necessidade de uma revolução

democrático-burguesa ou de uma libertação nacional.17

Ao longo dos anos 1960 e 1970, os conceitos gramscianos foram

utilizados para estudar diversos aspectos da cultura e da política brasileiras com

base em uma leitura livre dos Cadernos do Cárcere. Alvaro Bianchi (2015)

destaca, nesse sentido, os estudos realizados por Luis Werneck Vianna e

Carlos Nelson Coutinho. Centrados na identidade entre via prussiana e

revolução passiva, as interpretações de Vianna e Coutinho, segundo Bianchi,

“permitiram ultrapassar os esquemas dualistas que dominavam a cultura

brasileira das décadas precedentes” (BIANCHI, 2015, p.100). O declínio da

ditadura e a crise da chamada “velha esquerda”, não por coincidência, estiveram

na raiz do grande crescimento da influência gramsciana, quando em meados da

década de 1970 se deu no Brasil um fluxo de publicações de e sobre Gramsci.

Isso se explica, segundo Del Roio (2011, p.128), pelo aparecimento da

edição crítica organizada por Valentino Gerratana, pelo forte crescimento do

PCI, com a experiência eurocomunista, e também pelo crescimento da

resistência democrática no Brasil.18 A obra do marxista sardo se difunde no país

no momento em que se delineava a crise econômica dos anos 1970 e 1980 e

em que se anunciava, nas palavras de Nogueira (1985, p.134), o

“particularíssimo” processo de abertura democrática que iria demarcar toda a

experiência social brasileira. Essa abertura se configurou numa sociedade

                                                                                                                         16 Como explica Roberto Schwarz, o PCB teve o mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, mas a sua maneira de especificá-la foi seu ponto fraco, razão do desastre futuro de 1964. Como resultante, se deu “um marxismo especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução”. Este marxismo, para Michael Löwy, se enquadrava numa tendência maior latino-americana, a do eurocentrismo, que concebia o continente como uma espécie de “Europa tropical”. Combinada à tentação ao excepcionalismo indo-americano, resultava numa conclusão comum: “a de que o socialismo não está na ordem do dia na América Latina” (LÖWY, 2012, p.11). Para Schwarz, apenas na medida em que conseguiu romper com o “sistema de conciliações” então engrenado nessa perspectiva, a produção de esquerda escapou de ser “pura ideologia” (SCHWARZ, 2008, p.77-79). 17 Em meio às teses desta “cultura dominante”, se destaca o caráter pioneiro da obra de Caio Prado Jr. Vale ressaltar que desde a década de 1930, entretanto, começam a surgir análises marxistas da realidade brasileira a partir de grupos à esquerda do PCB. Vale destacar a obra dos trotskistas Mário Pedrosa e Lívio Xavier (“Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, A Luta de Classe, nº 06, fevereiro/março de 1931). 18 Os livros de Gramsci ganharam nova edição e muitos textos de dirigentes e intelectuais próximos ao PCI foram publicados no Brasil.

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impregnada de autoritarismo, excludente da participação popular, politicamente

atrasada e às voltas com uma crise econômica de caráter recessivo combinada

a uma estagnação teórico-política de esquerda (ibid., p.134). Neste quadro

instável e turbulento, o pensamento de Gramsci recebeu os mais diversos

usos19 – junto às vertentes marxistas, entretanto, isto foi decisivo para arejar o

pensamento de esquerda no Brasil (cf. NOGUEIRA, 2014).

A partir do começo dos anos 1980, os primeiros estudos brasileiros

dedicados propriamente ao pensamento do marxista sardo começam a ser

publicados. Para Bianchi, esta nova dimensão dos estudos sobre Gramsci teve

um efeito nas interpretações do Brasil estimuladas pelo seu pensamento e

permitiu uma melhor compreensão do conceito de revolução passiva em sua

especificidade (BIANCHI, 2015, p.102). É em meio a este contexto que se dá a

formação da revista Presença, que contava com Vianna e Coutinho entre os

seus principais colaboradores, e cuja “carta editorial” é assinada por Armênio

Guedes em 1983. A revista se inseria numa miríade de publicações existentes

em meio à esquerda brasileira e reunia um grupo de intelectuais comunistas

oriundos sobretudo do PCB. Para Guedes, apesar do seu espírito renovador, a

Presença queria “dar continuidade à tradição de outras publicações brasileiras

que, no passado, mantiveram laços estreitos e foram porta-vozes do movimento

operário e revolucionário, tais como Movimento Comunista, Literatura,

Diretrizes, Fundamentos, Estudos Sociais, Revista Brasiliense, etc.” (GUEDES,

1983, p.8).

Inicialmente, o centro produtor da revista Presença localizava-se na

cidade de São Paulo, sob coordenação editorial de Marco Aurélio Nogueira e

com o auxílio de Milton Lahuerta, que em 1985 passa assumir a editoria. Além

de aglutinar variados intelectuais, um grupo de artistas também se vinculou à

revista, dentre os quais se destacam César Teixeira, Jaime Prades, Zé Carratü,

Laerte Coutinho e Milton Sogabe. Em 1986, a revista se transfere ao Rio de

Janeiro, passando à editoria de Maria Alice Rezende de Carvalho. Nesse novo                                                                                                                          19 Bianchi (2007, p.9) ressalta nesse sentido que “Gramsci ocupou posições não apenas em partidos e organizações diferentes, como também em trincheiras antagônicas. Assim, é possível encontrá-lo tanto ao lado de Coutinho, que reivindicava o autor dos Quaderni como uma das fontes teóricas da renovação da esquerda e da revalorização da democracia, como junto a P. Rozemiro (1980), que, nas páginas da revista Debate, publicada no exílio, recorria ao conceito de transformismo para contestar Coutinho”.

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período, além de Rezende de Carvalho, Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna e

Luiz Werneck Vianna também assumiriam um papel central.

No sentido de esclarecer os “traços não clássicos” da história brasileira

(cf. COUTINHO, 1989), diversos autores da revista Presença recorreram à noção

gramsciana de revolução passiva,20 dentre os quais se ressaltam Coutinho,

Vianna e Marco Aurélio Nogueira. 21 Através deste conceito, foi possível

compreender melhor a modernização conservadora impulsionada pelo regime

implantado em 1964. A categoria gramsciana foi útil ao propósito de entender o

Brasil moderno, industrial e de massas – mas também autoritário, excludente e

miserável – sendo decisivo para que se resgatasse o valor e a autonomia

relativa da política e do fazer política, que já ao longo dos anos 1970 passam a

ocupar o centro mesmo das preocupações teóricas marxistas e da prática da

esquerda (cf. NOGUEIRA, 1985).

Em um esforço análogo ao da revista Pasado y Presente, a revista

Presença também nos oferece um material interessante para pensar a relação

entre intelectuais e política em tempos de crise. No primeiro número da revista,

lançado em novembro de 1983, Vianna explicitava esta questão. Para o autor, o

marxismo se origina como uma concepção de intelligentsia, de articulação entre

o movimento operário e o movimento democrático em geral (VIANNA, 1983,

p.141). Nesse sentido, a luta pelo socialismo deveria passar também pela luta

das ideias – “não há como se organizar a concepção de mundo do movimento

operário sem os intelectuais e sem uma forma superior de elaboração para o

problema da cultura” (ibid., p.145). Desta forma, Vianna localizava o terreno no

qual os intelectuais ao redor da publicação se encontravam – o texto articula um

                                                                                                                         20 É possível resumir o conceito de revolução passiva em algumas características principais, destacadas por Coutinho: “1) as classes dominantes reagem as pressões que provêm das classes subalternas, ao seu ‘subversismo esporádico, elementar’, ou seja, ainda não suficientemente organizado para promover uma revolução ‘jacobina’, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de ‘uma certa parte’ das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se modificações que abrem caminho para novas modificações. Portanto, estamos diante, nos casos de revoluções passivas, de uma complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e modernização” (COUTINHO, 2010, p.34). 21 Coutinho, Vianna e Nogueira contribuíram à Presença com um total de 30 artigos. Para uma visão geral da revista Presença, conferir “Intelectuais e a questão da democracia no Brasil: um estudo a partir da revista Presença” (cf. LUCCA-SILVEIRA, 2012).

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12  

pedido de renovação à esquerda brasileira tomada em sua totalidade e ao PCB

em especial.

Este pedido de renovação estava intimamente ligado ao contexto de

redemocratização pelo qual passava o país e o debate com a esquerda

brasileira passava necessariamente pelos dilemas impostos pela renovação

democrática. O artigo de Carlos Nelson Coutinho lançado poucos anos antes da

constituição da revista, intitulado “A Democracia como Valor Universal” (1979),

havia produzido um impacto de grandes proporções e a Presença testemunhou

seus efeitos. Assim como na revista argentina, havia entre os gramscianos

brasileiros um entusiasmo com a produção do comunismo italiano e, no Brasil,

em especial, com o chamado “eurocomunismo”. Coutinho iniciava seu texto com

uma referência a Enrico Berlinguer, então secretário do PCI, e ao seu

argumento de que a democracia possuía um valor historicamente universal

sobre o qual se deveria fundar uma sociedade socialista (COUTINHO, 1979, p.34).

Pensando o caso brasileiro, em plena ditadura, a questão da democracia

adquiria ainda outra estatura:

[...] as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja, através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo” com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional; essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões políticas (ibid., p.41).

Em seu artigo “Cultura e Sociedade no Brasil”, escrito entre 1977 e 1979,

Coutinho já afirmava a tendência objetiva de transformação social no Brasil a se

realizar por meio da “conciliação pelo alto”, marcando de vários modos o

conteúdo da cultura brasileira. Recorrendo à noção de “via prussiana” de Lênin,

Coutinho afirmou que a conciliação social e política encontrou, no Brasil, um

reflexo ideológico na tendência do pensamento brasileiro ao ecletismo, ou seja,

à conciliação igualmente no plano das ideias. Para o autor, o nacional-popular

na trajetória brasileira, tal qual descrito por Gramsci na análise do caso italiano,

é antes de mais nada a quebra do distanciamento entre os intelectuais e o povo,

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13  

que está na raiz do florescimento do que denominou cultura “intimista” ou

“elitismo cultural” e que, no mais das vezes, não resulta de uma escolha

voluntária do intelectual (COUTINHO, 1990, p.51). Essa postura configurou, para

Coutinho, um tipo de cosmopolitismo abstrato, no qual a importação cultural não

teve como objetivo responder a questões colocadas pela própria realidade

brasileira, mas visou tão somente satisfazer exigências de um círculo restrito de

intelectuais “intimistas”. A forma de quebrar definitivamente os estreitos limites

de casta em que a “via prussiana” emparedou a grande maioria dos nossos

intelectuais, para Coutinho, só seria possível com a construção de uma

democracia de massas.

A posição de Coutinho frente à questão estratégica de transformação

social no Brasil era fundamentada numa interpretação da história do país que

tinha na “via prussiana” e na “revolução passiva” sua expressão conceitual. A

aceitação plena do pluralismo, da busca de consensos, da multiplicidade de

sujeitos políticos, da alternância de poder e da institucionalidade democrática

era então posta no centro da reflexão política (NOGUEIRA, 2013, p.13). Estes

argumentos acompanharão todo o movimento teórico de Coutinho, com os quais

se deparará constantemente nos dezoito números da revista Presença lançados

entre 1983 e 1992. A afirmação da democracia, bem como o pensamento de

Antonio Gramsci e do marxismo italiano marcarão a trajetória da revista cujas

temáticas centrais perpassarão a especificidade da história brasileira e a

particularidade do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

Intelectuais em tempos de crise: tradução como atividade criativa

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14  

Interessa-nos identificar o que Bernardo Ricupero (2000) chamou de

“nacionalização do marxismo”22 e cujo debate (cf. LOWY, 2000; TAPIA, 2002) diz

respeito a uma problemática antiga na América Latina, que remonta às próprias

dificuldades que Marx e Engels demonstraram para apreender a realidade do

continente (cf. BIANCHI, 2015). Buscamos contribuir para a reflexão sobre

nacionalizações do marxismo juntamente à teorização de Gramsci sobre os

fenômenos de tradução e tradutibilidade (cf. TOSEL, 1981; FROSINI, 2003;

BOOTHMAN, 2004; IVES, 2004).23

Esta questão não aparece de modo contingente na obra de Gramsci e é

amplamente reconhecida por não ser de fácil leitura e compreensão, como

destaca Boothman (2004). A tradutibilidade deveria pressupor uma determinada

etapa da civilização que tivesse uma expressão cultural “fundamentalmente”

idêntica, mesmo que a linguagem fosse historicamente diversa, determinada

pela tradição particular de cada cultura nacional e de cada sistema filosófico

(GRAMSCI, 1975, Q 11, § 47, p.1468). Gramsci entendia que esse exercício não

deveria buscar a perfeição – “que língua é exatamente traduzível em outra? Que

palavra singular é exatamente traduzível em outra língua?” questionava – no

entanto, entendia que a tradução era possível devido a um mesmo “fundo”

essencial (ibid., p.1470). Este fundo era decorrente de um progresso real da

civilização que ocorre, para o autor, graças à colaboração de todos os povos,

por “impulsos” nacionais – “mas tais impulsos quase sempre dizem respeito a

determinadas atividades culturais ou grupo de problemas” (ibid., p.1470).

A tradução pressupõe, portanto, uma linguagem que necessita ser

traduzida a uma realidade cultural e específica mediante um esforço que exclui

toda possibilidade de aplicação ou perfeição. Propõe-se, nesta pesquisa, em

linhas gerais, investigar uma linguagem – o marxismo – traduzido às realidades                                                                                                                          22 Para Ricupero, a obra de Caio Prado Jr. seria o exemplar deste fenômeno no Brasil. Tendo traduzido o modo de abordagem da teoria marxista às condições da experiência histórico-social específica brasileira, o historiador havia proporcionado assim uma capacidade de reflexão original sobre elas (RICUPERO, 2000, p.29). Como exemplares desta perspectiva, junto ao autor de Formação do Brasil Contemporâneo, estariam Gramsci e Mariátegui (cf. KAYSEL, 2012). 23 No que diz respeito ao caso argentino, em especial a obra de Aricó tem sido apontada como um exercício de tradução em sentido gramsciano – e é através desta ótica que Cortés (2010) propõe entender também suas empreitadas intelectuais, em especial a revista Pasado y Presente. O intelectual argentino, argumenta Cortés (2010, p.151-152), propunha não uma aplicação, mas um exercício permanente de confrontação com os problemas de sua época e lugar – e é a partir desta época e lugar que suas interpretações ganham significado.

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específicas da Argentina e do Brasil a partir da hipótese de que, contra a ideia

de “aplicação”, tenha havido a produção de algo novo. A comparação entre os

dois casos nos permite inclusive dinamizar a categoria de “tradução” e apontar

seus variados sentidos. Contra uma ideia abstrata e absoluta, procuraremos nas

especificidades das experiências editoriais em questão a forma com que a

própria obra de Marx foi repensada, em especial através da interpretação de

Gramsci e de uma exploração dos temas da cultura e da política no lugar da

então preocupação primária com a economia.

Identificam-se duas questões importantes e que são compartilhadas, em

certa medida, nas trajetórias das revistas Pasado y Presente e Presença. Uma

delas diz respeito não só à recepção das ideias de Gramsci, mas ao próprio

papel que o comunismo italiano, ou o que seria chamado “eurocomunismo”,

cumpriu em ambas as iniciativas. Outro elemento para o qual chamamos a

atenção é que, em meio a contextos de transição e crise, os dois coletivos

editoriais se viram em confronto com o seu passado – os partidos comunistas –

e com o seu futuro – buscando apresentar saídas e respostas para os dilemas

que a democratização impunha ao pensamento de esquerda. Propõe-se, aqui, a

partir da ideia de nacionalização ou tradução do marxismo, investigar como os

dois grupos intelectuais se apropriaram destas grandes concepções gerais – do

pensamento de Gramsci e do comunismo italiano, em especial, mas também

das prévias vertentes nacionais marxistas – e produziram análises voltadas às

particularidades do ambiente cultural e político específico do qual participavam.

Nesse sentido, buscamos contribuir com nossa reflexão em três eixos

principais; o primeiro deles diz respeito à área mais abrangente do pensamento

político, levando-se em consideração o debate que as revistas Presença e

Pasado y Presente suscitaram a partir dos anos 1960, na Argentina, e dos 1980,

no Brasil, chamando a atenção para os aspectos históricos e políticos de

continuidade e ruptura com o passado nos processos de modernização e

democratização dos seus países, em especial a partir da segunda metade do

século XX.

Como segundo eixo, destaca-se as contribuições que os intelectuais

vinculados à Presença e à Pasado y Presente trouxeram ao pensamento

marxista contemporâneo, e aos estudos gramscianos em especial, a partir das

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16  

apropriações feitas da obra de Antonio Gramsci. De modo mais geral, buscamos

contribuir para a reflexão a respeito da recepção das ideias de Gramsci em

contextos nacionais considerados periféricos 24 e seus diversos usos. 25 Isso

porque partimos da premissa que, embora considerado como um dos principais

nomes do chamado “marxismo ocidental” (cf. ANDERSON, 1976), Gramsci era

proveniente de “outra periferia” e é quem nos oferece, como Ricupero coloca,

“as melhores indicações de como tratar países de capitalismo tardio, embora

suas indagações estivessem voltadas para a compreensão da Itália” (RICUPERO,

2000, p.71). Nesse sentido, tanto para o caso brasileiro, como para o argentino,

a temática da tradução possui um lugar de destaque porque nos possibilita

compartilhar uma importante reflexão: como ideias elaboradas originalmente no

contexto europeu comportam-se num outro ambiente social e político,

dependente e periférico?26 (cf. RICUPERO, 2011).

Por fim, ressalta-se, como terceiro eixo, a atividade política destes grupos

a partir da elaboração de projetos e orientações políticas gerais. O formato

revista é entendido enquanto modo de intervenção política e via de resistência

para escoamento das críticas aos partidos. A escolha das revistas parte da

                                                                                                                         24 Gramsci mesmo sugeriu, desde textos pré-carcerários, a distinção entre Estados capitalistas avançados e Estados capitalistas periféricos. Os primeiros se caracterizariam por ter uma classe dominante com reservas políticas e organizativas, de modo que nem mesmo as crises econômicas gravíssimas teriam repercussões imediatas no campo político. Nos segundos, as forças estatais são menos eficientes, mas verifica-se um fenômeno importante: “entre o proletariado e o capitalismo, estende-se um amplo estrato de classes intermediárias” (GRAMSCI, 2004, p.379). A partir dessas sugestões, Portantiero (1977, p.65-69) afirma ser possível afirmar dois grandes tipos de sociedades ocidentais, definidas principalmente pelas características que assumem a articulação sociedade e Estado. Nesse sentido, alguns países da América Latina, como a Argentina e o Brasil, tendo em vista seus tipos de desenvolvimento, poderiam ser entendidos como “Ocidente” periférico e tardio. 25 Em Los usos de Gramsci, Portantiero ressalta os diversos usos pelos quais a obra de Gramsci foi submetida: “existe, por exemplo, um Gramsci precursor do ‘togliattismo’, isto é, da política moderada e prudente do comunismo italiano no segundo pós-guerra, considerada por alguns como uma reedição do que levava a cabo a socialdemocracia alemã nas vésperas da primeira guerra mundial (...) outro Gramsci, no extremo oposto, alimenta desde seus ‘escritos de juventude’ uma visão espontaneísta dos processos revolucionários nos quais o papel da organização política, como instrumento da transformação social, estaria subordinado a um plano quase inexistente” (PORTANTIERO, 1977, p.11). O autor considera que o fio que outorga unidade a esses fragmentos está dado “por uma concepção sobre a revolução” e é desde esse ponto de vista (e não ao revés) que deveria ser lido o aparato conceitual gramsciano (ibid., p.17). 26 No contexto brasileiro, vale destacar o argumento de Schwarz em “A ideias fora do lugar”. Para Schwarz, “ao longo de sua reprodução social”, incansavelmente o Brasil pôs e repôs “ideias europeias, sempre em sentido impróprio” (SCHWARZ, 1992, p.24). O mais claro exemplo dessa “inadequação” entre ideia europeia e realidade brasileira era a importação do liberalismo no século XIX, revelando-se objetivamente uma “ideia fora do lugar”.

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premissa de que estas oferecem um ponto de vista privilegiado para analisar a

vida política e cultural dos períodos em questão. Isso porque constituem um

modo de abordar a trama de relações dentro das quais surgiram e se

consolidaram diversos projetos intelectuais e políticos. Ao mesmo tempo, as

revistas possuem uma linguagem própria que pode ser interpretada como um

modo concreto de intervir na conjuntura.

Propomos estudar as revistas Presença e Pasado y Presente com vistas

a destacar o quanto estimularam a conhecer melhor a história brasileira e

argentina, mas também a forma como avançaram enquanto “instrumentos”

metodológicos e políticos em um certo sentido “universais” – o que os

possibilitam ser, portanto, comparáveis. Entendemos que a singularidade

histórica de cada país não impede a reflexão proposta; bem como a referência

comum a Gramsci e à sua obra não expressa uma forma homogênea e linear no

modo com que interpretaram os processos históricos – de modernização e

democratização – pelos quais passaram a Argentina e o Brasil ao longo do

século XX. Assim, a partir de uma reflexão de fundo mais ampla a respeito de

casos distintos de tentativas de tradução do marxismo para ambientes nacionais

específicos, buscaremos apreender nas revistas Pasado y Presente e Presença

“a real identidade na aparente diferença e contradição” – em que pese as

formações sociais e dimensão temporal distintas – e encontrar a “substancial

diversidade sobre a aparente identidade” – no compartilhamento de

problemáticas, objetivos e inspirações.

Tendo isso em vista, colocam-se dois questionamentos principais: 1)

Como ambos os coletivos editoriais se posicionam no âmbito das clivagens

teórico-políticas de seus países – em especial com relação aos partidos

comunistas e às tradições nacionais de interpretação da esquerda? 2) Como as

revistas Presença e Pasado y Presente concebem as particularidades nacionais

no que diz respeito ao advento do Estado moderno no Brasil e na Argentina e

como enfrentam os dilemas da questão democrática no âmbito da ação política?

Ao redor destas questões, apresentamos como pano de fundo uma

investigação mais ampla de casos em que julgamos existir tentativas de

tradução do marxismo, como forma de resistir a certas leituras “dogmáticas” e

com especial atenção aos usos do pensamento gramsciano para atingir tal

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18  

objetivo. A partir do estudo dos casos brasileiro e argentino, buscamos destacar

os diferentes contextos nacionais nos quais o pensamento de Gramsci é

apropriado, bem como a circulação, apropriação e redefinição de suas

categorias para a compreensão destes contextos.

Esta operação em ambos os casos se dá em diálogo crítico com os

partidos comunistas e as tradições de esquerda de seus países e sob o impacto

das ideias dos italianos e do que viria a ser chamado “eurocomunismo”. Deste

modo, compreendemos que esta comparação também nos auxiliará no objetivo

particular de estudar as relações dos intelectuais vinculados a estas

empreitadas com os partidos comunistas de seus países em suas

especificidades a partir de um referencial exterior comum – o partido comunista

italiano.

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