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    O ROTEIRO NO CINEMA DOCUMENTRIO

    por Patricio Guzmn

    INTRODUO

    Muita gente acredita sinceramente que o roteiro de um documentrio na verdade no existe,que uma simples pauta, uma escrita momentnea que se faz no caminho e que no tem nenhumvalor em si mesmo. Provavelmente, tem razo no que diz respeito ao ltimo ponto. Mas o roteiro deum documentrio to necessrio como na fico. certo tambm que um estado transitrio como disse Jean-Claude Carrire, ao referir-se aos roteiros de fico uma forma passageiradestinada a desaparecer, como a lagarta que se converte em mariposa (...). Com frequncia diz ao final de cada filmagem se encontram os roteiros nas papeladas do estdio. Esto amassados,sujos, abandonados. Poucos so os que conservam um exemplar, menos ainda os que mandamencadernar e os colecionam. No entanto, um documentrio precisa, sem dvida, da escrita de umroteiro com desenvolvimento e desfecho com protagonistas e antagonistas, com cenrios pr-determinados, uma iluminao calculada, dilogos mais ou menos previstos e alguns movimentos

    de cmera ajustados de antemo. Se trata de um exerccio to aberto e arriscado como necessrio; como a partitura de um concerto de jazz; quase como um acordo comum do geral e doparticular; uma pauta que pressupe todo tipo de mudanas. Mas continua sendo um roteiro.

    PRIMEIRAS REFLEXES

    Roteiro fechado ou roteiro aberto?

    De todas as pr-condies que a produo pede, a escrita do roteiro de um documentrio amais difcil de cumprir satisfatoriamente. Se muito fechado, anula o fator surpresa e os achados

    espontneos da filmagem. Se muito aberto, supe um importante risco de disperso. Entre osdois, o/a diretor/a est obrigado/a a encontrar um ponto de equilbrio, junto de explorar os lugaresde filmagem e fazer uma investigao temtica exaustiva. A nica vantagem do gnero que oroteiro de documentrio se reescreve mais tarde na montagem (porque se mantm aberto at ofinal). Na realidade, a montagem do documentrio no pressupe somente juntar os planos, masconcluir o trabalho do roteiro feito inicialmente de uma maneira prospectiva.

    O valor de uma escrita to demorada

    1) Encontro da idia e da histria. Sinopse (1 ms).

    2) Investigao prvia. Roteiro imaginrio (2 meses).3) Localizao dos cenrios e personagens (1 ms).

    4) Preparao da filmagem. Terceira verso (1 ms).

    5) Montagem em moviola ou no programa de edio (2 meses?)

    Este longo perodo de trabalho no roteiro sete meses ou mais estabelece com clareza sua enormeimportncia frente aos nove meses que dura a realizao completa de um filme documentrio (de 52min).

    A IDIA, A HISTRIAA busca e o encontro de uma idia so a causa frequente e ponto de partida de um filme

    documentrio. A idia original desencadeia todo o processo. Para mim, uma boa idia se reconhece

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    porque prope um relato ou o desenvolvimento potencial de uma histria. Se a idia original notem esta propriedade, no significa nada para ns. Uma idia original deve estar grvida de algumacoisa, deve conter no fundo uma fbula, um conto. Ao contrrio, um enunciado, uma simplesenumerao temtica, no tem nenhuma utilidade para nosso trabalho. Antes de mais nada, umfilme documentrio deve propor-se a contar alguma coisa; uma histria o melhor articulada possvele alm disso, construda com elementos da realidade. Uma histria bem narrada com a exposio

    clssica do argumento, s vezes com a aplicao do plano dramtico que todos/as conhecemos(exposio, desenvolvimento, pice e desfecho), o mesmo que utiliza a maior parte das artesnarrativas.

    A SINOPSE

    A sinopse tem uma importncia decisiva. Conta o mais destacado da histria em poucaspginas. Concretiza a idia. Visualiza alguns elementos. Faz possvel a execuo de uma idia.Permite fazer circular o projeto entre os/as interessados/as (os/as produtores/as independentes e oschefes das unidades de produo dos canais de TV). s vezes, a sinopse nunca superada poroutras verses. Contm toda a energia do primeiro passo. Permite sonhar mais que as versesdefinitivas. Apresenta a idia em tom mais aberto, de forma que cada leitor/a possa imagin-la sua maneira. Representa um importante primeiro passo e por sua vez um perigo... poderemosmelhorar ou piorar com a investigao que vem em seguida?

    CINCO CATEGORIAS DE IDIAS

    Vejamos alguns dos tipos de idias mais comuns que, com frequncia, empregamos no cimemadocumentrio (usando uma lista de ttulos conhecidos):

    Idia n1 Escolher um personagem

    Nanook of the north (1922) de Robert FlahertyO mistrio de Picasso (1956) de Henry-Georges ClouzotLos belovs (1992) de Victor Kossakovsky

    Idia n2 Escolher um acontecimento

    Olimpia (1936) de Leni RiefensthalWoodstock (1970) de Michael Wadleigh

    Idia n3 Escolher uma situao concreta

    Drifters (1929) de John GriersonMein kampf (1960) de Erwin Leiser

    Morir en Madrid (1963) de Frderic RossifIdia n4 Fazer uma viagem

    El Sena ha encontrado Pars (1957) de Joris IvensAmrica inslita (1958) de Franois ReichenbachRuta nmero uno (1989) de Robert Kramer

    Idia n5 Voltar ao ponto de partida

    Homem marcado para morrer (1984) de Eduardo CountinhoShoah (1986) de Claude LanzmannRminicences d'un voyage en Lituanie (1990), de Jonas Mekas

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    A INVESTIGAO PRVIA

    O/a realizador/a deve converter-se em um/a verdadeiro/a especialista amateurdo tema queescolheu: lendo, analisando, estudando todos os pormenores do assunto. Quanto mais profunda ainvestigao, mais possibilidades o/a realizador/a ter para improvisar durante a filmagem, gozandode uma maior liberdade criativa quando chegue o momento. No se reduz a uma investigao deescritrio e solitria. Quase sempre preciso mover-se: localizar especialistas, visitar bibliotecas,arquivos, museus ou centros de documentao. No entanto, um filme documentrio precisolembrar no um ensaio literrio. No contm necessariamente uma exposio, anlise econcluso (tese, anttese, sntese) como o gnero ensastico exige no mundo da literatura e dascincias. Pode aspirar a ser. Mas, regra geral, um documentrio geralmente um conjunto deimpresses, notas, reflexes, apontamentos, comentrios sobre um tema, abaixo do valor terico deum ensaio, sem que por isso deixe de ser um bom filme documentrio. possvel afirmar que umfilme documentrio se situa acima da reportagem jornalstica, e abaixo do ensaio cientfico, aindaque frequentemente use recursos narrativos de ambos e esteja muito prximo de seus mtodos. Ainvestigao tem como resultado uma segunda verso do roteiro, mais extensa e completa, muitasvezes um trabalho que ningum l (muitos executivos esto sempre bastante ocupados). Mas de

    grande utilidade para o/a realizador/a e os/as colaboradores/as mais prximos/as. uma forma dedetectar as falhas da histria e do tratamento. Essa segunda verso tambm um trabalhoprospectivo. Falta ainda conhecer a maioria dos envolvidos. Se trata de um roteiroimaginrio (completamente inventado s vezes). Um roteiro ideal que substitui a verdadeirarealidade, onde se escreve o que se deseja encontrar.

    LOCALIZAO DOS CENRIOS E PERSONAGENS

    Esta fase comea quando o/a realizador/a conhece todos/as personagens e lugares, quandovisita pela primeira vez o lugar dos acontecimentos e pode respirar, observar, passear por dentroda histria que deseja narrar. Aqui tudo muda. A realidade se encarrega de confirmar o trabalho

    previamente escrito ou o supera, o nega e o transforma. As premissas tericas passam para umsegundo plano quando aparecem, pela primeira vez, os personagens reais de carne e osso, e osagentes narrativos autnticos. Comea um processo bastante rpido para reacomodar situaes,

    personagens, cenrios e os demais elementos no previstos. s vezes, a obra previamente concebidase transforma em uma coisa totalmente diferente.

    OS RECURSOS NARRATIVOS

    Os agentes narrativos so os elementos que o roteiro utiliza para contar a histria. Alinguagem original do/a autor/a sem dvida o primeiro e o mais bvio. Mas h muitos tipos de

    recursos narrativos a lista pode ser interminvel e por isso mesmo convm classific-los porordem de importncia e descartar os secundrios. Estes so os que eu utilizo: os personagens, ossentimentos, as emoes, a ao, a descrio, a voz do/a narrador/a, a voz do/a autor/a, asentrevistas, as imagens de arquivo, as ilustraes fixas, a msica, o silncio, os efeitos sonoros, aanimao, os truques ticos, e como j foi dito: a linguagem do/a autor/a.

    Os personagens, os sentimentos

    A maior parte das emoes, nos filmes de fico, provm do trabalho que os atores e asatrizes fazem. No entanto essa difcil tarefa dos/as intrpretes um trabalho ensaiado e planejadominuciosamente segundo as ordens do diretor no existe, no tem lugar nos filmes documentrios.

    Nos documentrios, a nica maneira de transmitir sentimentos aproveitando as condiesespontneas dos/as personagens reais que aparecem. De modo que se estas personagens se limitama expor e repetir de maneira mecnica nosso tema, no podemos extrair nenhuma emoo para os/as

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    espectadores/as. So insubstituveis: quase todos os filmes documentrios hoje em dia seestruturam com a interveno de personagens. Elas articulam a histria, expem a idia econcretizam o tema. So os agentes narrativos mais necessrios. Portanto, sua seleo fundamental. preciso no s ir buscar os sujeitos que mais conheam o tema, mas tambm os/asmelhores expositores/as; aqueles/as que sejam capazes de transmitir uma vivncia, envolvendo-se,oferecendo um testemunho pouco comum. Se os personagens no so capazes de mostrar

    sentimentos diante da cmera, se convertem imediatamente em personagens secundrios. Obrigamos outros recursos narrativos fazerem um trabalho dobrado: contar a histria corretamente semseus apoios naturais. A ausncia de protagonistas desequilibra o relato. preciso repetir uma e outravez: um filme documentrio raras vezes funciona sem emoo.

    Escolher os e as personagens

    talvez a tarefa mais importante do/a diretor/a quando explora seus cenrios. No a buscaacumulativa de algumas pessoas vinculadas ao tema, mas o rduo trabalho de detectar, descobrirverdadeiros personagens e constru-los cinematograficamente. preciso localiz-los, fotograf-los e depois retrat-los em muitas dimenses da sua vida: monologando, dialogando, trabalhando,viajando ou guardando silncio. Os e as personagens principais constituem o corpo dinmico daidia central. So os e as porta-vozes do roteiro e quase sempre so muito melhores que o roteiro.

    preciso jogar com protagonistas e antagonistas, quer dizer, localizar pessoas que entrem em conflitoe se contradigam diante de ns, buscando sempre o contraponto, para que o tema flua por si mesmo.Assim nos separamos de incio e para sempre dos documentrios explicativos que tem umnarrador onipoderoso. Uma ltima observao. Os e as personagens do cinema documentrio noso pagos. Para tomar-lhes algo preciso previamente convenc-los/as, persuadi-los/as. Muitoraramente se constri um personagem com suas imagens roubadas. Ainda quando o diretor oudiretora diverge de algum, tem a obrigao de respeitar seu ponto de vista. O e a autor/adocumentarista deve ter um olhar que compartilhe com eles/as. Esta generosidade em ambos

    sentidos no se d na fico. No cinema documentrio, se estabelece um compromisso tico do/aautor/a com seus e suas personagens. Naturalmente, isto no quer dizer que o/a diretor/a assumacomo suas as opinies alheias. Mas cada personagem tem o direito de ser o que dentro da tela (eno fora). O diretor pode exercer presso, discutir, calar, mostrar desconfiana, ironia, sarcasmo,etc., com eles/as, mas sempre dentro do quadro, jamais fora, e portanto, diante do/a espectador/a.

    A ao

    Nem sempre os personagens principais oferecem uma rica ao para mostrar na tela. Muitasvezes narram sua histria sem abandonar seu assento, estticos, sem mover-se um centmetro.

    Nestes casos deve-se tomar nota das aes implcitas que esto nos contando aes no passado ou

    no presente para visualiz-las mais tarde com ajuda de imagens complementares ou fotos,desenhos, ilustraes fixas em geral, ou com imagens de arquivo. Desta maneira o e a personagemabandona o assento e comea a viajar pelo interior do relato, criando assim um pouco de ao

    para o nosso filme. Precisamente, uma forma de avaliar a qualidade do personagem anotando asaes, feitos e situaes que nos apresenta. uma forma de medir sua eloquncia cinematogrfica.Um sujeito com muita parcimnia ou que se cala o tempo todo pode converter-se em algointeressante, singular, mas o habitual que fale pouco ou muito do assunto, mesmo quandotenha dificuldades de expressar-se. Os e as personagens mais desejveis so aqueles/as que no slembram e evocam uma determinada histria, mas que comeam a reconstru-la, a reviv-la diantede ns, diante da equipe, deslocando-se de um lugar a outro, movendo-se e, portanto, gerando aes(e reforando sua credibilidade). Em uma oportunidade, Chris Marker me confessou que, para ele,no existia nada to importante, dentro de um documentrio, como a ao; por exemplo, dizia ele,se estamos fazendo um filme sobre o corpo de bombeiros temos que mostrar com detalhes umincndio completo, no mnimo. Nunca ter o mesmo efeito para os/as espectadores/as filmar a

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    posteriori os restos de uma casa destruda. A equipe de documentaristas deve saber estar prximados acontecimentos, das aes. Entretanto, no somos jornalistas. Estamos dispostos/as a trabalharmuito tempo em uma determinada histria, sem a urgncia, superficialidade ou rapidez a que estoobrigados/as os/as jornalistas. Interessam-nos as emoes e sentimentos que emanam das pessoas

    junto de suas aes, acompanhando-os/as durante semanas, meses ou anos se for necessrio.

    PREPARAO DA FILMAGEM

    Aqui chegamos na terceira verso do roteiro, que surge imediatamente depois da viagem delocalizaes. Muitas vezes nem sequer se escreve esta verso, mas ela aparece de formafragmentada: pequenas anotaes no canto das pginas, tpicos rpidos manuscritos em papisseparados, cadernos de viagem com observaes, pranchas com novas sequncias. So os primeirossintomas de uma improvisao eficaz apoiada pela investigao j feita. Com esses papis na mose pode comear a filmagem de maneira mais ou menos controlada, sempre atentos/as para oaparecimento de qualquer surpresa. Manter o olhar aberto um requisito indispensvel. Sealgum trabalha apegado/a demasiadamente ao roteiro inicial, corre o risco de abandonar aenergia dos acontecimentos inesperados que a filmagem nos propicia. Um filme documentrio seconstitui em uma busca uma expedio onde os imprevistos so to importantes como as idias

    pr-concebidas. Essa a essncia da criao do documentrio (como ocorre tambm na execuodo jazz). Manter o equilbrio entre o novo e o j previsto uma habilidade que o documentaristadeve aprender a exercer o tempo todo, tanto como o operador da luz ao domin-la nas condiesmais inesperadas e o operador de som ao buscar a acstica e evitar os rudos incmodos. Tudo issosem renunciar ao nvel tcnico. Abrir-se a realidade no significa renunciar boa feitura nem

    justificar as falhas artesanais que possam ocorrer. Mesmo assim, preciso respeitar a fronteiraeconmica o oramento que o resultado das verses anteriores do roteiro. Temos de jogar comos nmeros, mudando as necessidades econmicas iniciais por outras novas, mas do mesmo valor(movendo as peas), sem asfixiar os meios previstos ou comunicando imediatamente o/a

    produtor/a quando ocorrem mudanas justificadas que superem todas as previses. Ainda que primeira vista possa parecer complicada a relao dinheiro-improvisao, no documentrio no tanto assim. Os documentrios podem tomar vrios caminhos sem trair seu significado. Diferente dafico, a estrutura do roteiro de um documentrio permanece aberta todo o tempo. O trabalho deroteiro continua na montagem. Isto permite muitas alteraes e adaptaes do filme (do roteiro) e deseu oramento. Pelo menos mais que na fico.

    O ROTEIRO FINAL SE ESCREVE NA MESA DE MONTAGEM

    A verso nmero quatro e definitiva do roteiro se faz no escuro da sala de montagem. aquionde pela primeira vez se colocar prova os diferentes mtodos de filmagem e a eventual eficcia

    dos roteiros anteriores. Ao chegar na sala de montagem, em primeiro lugar, preciso considerar quea obra continua aberta. Est aberta por uma razo poderosa: porque os resultados da filmagemforam ligeiramente (ou mesmo profundamente) diferentes dos propsitos que estavam previstos noroteiro. Sempre o resultado diferente. Isso normal. Nunca as premissas estabelecidas podemtransladar-se intactas aos planos filmados. Mas, neste gnero, inclusive numa filmagem quemodifica (pouco ou muito), o roteiro prvio uma garantia para ser visto como uma boa cola.Acontece sempre assim. Pode citar-se muitos exemplos: alguns personagens que eram chaves seconverteram em secundrios e vice-versa; certos cenrios resultaram melhores que o planejado;aquela sequncia explicativa ficou na verdade muito confusa; etc. Isso nos obriga, na sala demontagem, a buscar uma estrutura nova (ou vrias estruturas novas), reescrevendo com estasimagens o filme definitivo. No que a montagem nos fabrique o filme, ao juntarmilagrosamente algumas poucas (ou muitas) imagens soltas ou improvisadas. O que realmenteocorre que tanto a montagem como a escrita do roteiro unidas na busca comum de uma estruturanova avanam juntos na escurido da sala. H um momento em que a montagem se apropria do

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    filme e avana alm do seu prprio terreno (o ritmo, a continuidade, a sntese) entrando em outrafase, abraando-se com o roteiro. Mas h outros momentos em que a montagem sucumbe, quando afora das imagens com seu tempo real no admite mais manipulao; quando a energia dos

    planos da vida real se situa acima do ritmo convencional. Ou seja, quando a realidade supera ocinema. O mesmo se passar ao diretor-roteirista quando lhe passe pela cabea impor mudanasinesperadas, giros bruscos, falsas relaes, dentro de uma histria real, cuja lgica muitas vezes

    escapa ao seu ofcio de cineasta. Em todo caso, buscar uma estrutura nova ao p da moviola ou doprograma de edio no significa rechaar integralmente o que foi feito na filmagem. Muito pelocontrrio, a maioria dos acertos se mantm. Se estes elementos da obra no fossem conservados sua fora, sua energia original no poderamos mont-la com nenhuma estrutura nova. Ossentimentos, as emoes, por exemplo, que alguns personagens projetam, se mantm; ascontradies que h entre eles tambm; o efeito de realidade que emana das principais situaestambm, assim como a eloquncia e extenso de alguns planos; etc, etc. Esses materiais de boaqualidade nos conduziro a uma montagem de boa qualidade. A montagem de um documentrio no milagrosa. Planos ruins daro como resultado uma montagem mediana. Raras vezes a montagemde um documentrio altera a substncia primitiva do material.

    O narrador, as entrevistas

    Sem abandonar a sala de montagem, oportuno falar de outros agentes narrativos jmencionados na lista anterior: a entrevista e a voz do/a narrador/a, esta ltima bastante fomentada

    pela escola inglesa de John Grierson no incio da histria de gnero. No incio dcadas de 1920 e1930 tudo era imagem. No havia nada que diminusse a grandeza da imagem. Todos osdocumentrios na poca da fundao eram pura imagem, desde Nanook (Flaherty) at Terra sem

    po (Buuel). Depois, com o advento do som, foi a vez dos documentrios cobertos de palavras.Eram filmes narrados, explicados, frequentemente gritados pela voz dos/as narradores/as. Durantemuitas dcadas, os documentrios puderam ser escutados em vez de serem vistos, como nos

    programas de rdio. A voz em Off invadia e fazia p do significado das imagens. Afortunadamente,hoje estamos atravessando um perodo intermedirio. Com a inveno da sincronia de adio, nosanos de 1960, gradualmente apareceu uma tendncia nova: alguns documentrios conseguiramexpressar-se por si mesmos (sem texto em Off ou letreiros escritos); por exemplo, as obras deMarker, Haanstra, Rouch, Weisman, Malle, Van Der Keuken, etc. O sincrnico, no entanto, trouxeuma nova calamidade: as entrevistas convencionais que hoje ocupam tanto espao quanto o antigonarrador. Muitos filmes se encheram de rostos, figuras e bocas falantes que botou por terra toda aevoluo alcanada. Creio que j disse antes: uma entrevista deixa de ser convencional quando a

    partir dela passa a surgir um personagem autntico, de carne e osso, que nos comove e nos leva atuma outra dimenso da comunicao uma dimenso mais profunda. Deixa de ser convencionalquando se alternam os cenrios onde aparece; quando a iluminao e os movimentos de cmera se

    colocam a seu servio; quando a linguagem cinematogrfica supera o busto falante; quando seexercita uma mise en scene. As entrevistas rpidas e convencionais ficam reduzidas aospersonagens secundrios, dosando sua utilizao. As entrevistas mais brilhantes so reservadas paraos/as protagonistas e continuaro chamando-se entrevistas, na gria do cinema, mas s de um

    ponto de vista tcnico. Na realidade se trata de sequncias. A voz em Off evoluiu da mesmamaneira? O narrador tambm recuperou seu verdadeiro lugar. Agora se emprega quando preciso:

    para explicar ou complementar alguns detalhes necessrios histria ou sintetizar outros. A maioriados/as realizadores/as utiliza desta maneira ou mais amplamente. Hoje, assim como ontem,continuam existindo grandes cineastas das palavras (Chris Marker na Frana e Pierre Perrault emQubec, os exemplos mais clssicos) e tambm continuam existindo realizadores que escrevem mal.Uma importante quantidade de filmes cientficos, educativos e de divulgao seguem ancorados na

    voz Off dos anos 1940.

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    A voz do autor

    Antes do aparecimento do 'ao vivo', um grande nmero de diretores utilizou sua prpria vozpara contar a histria que nos propunham: Franois Reichenbach em "Amrica Inslita", Henri-Georges Clouzot em "O mistrio de Picasso", e mesmo Perrault em "Cabea de Baleia". Outros

    utilizaram textos de grande intensidade, lidos por atores, controlados pelo realizador, como "Morrerem Madrid" de Frderic Rossif. Eram as vozes dos autores, que buscavam uma comunicao maisdramtica ou mais de acordo com sua prpria linguagem. Na realidade passavam a formar parte domaterial do documentrio. Mais tarde com a implantao definitiva da subjetividade nos anos de1980 e 1990 a voz do autor ocupou um espao cada vez mais protagnico. Barbara Kopple,Robert Kramer, Susan Meiselas, Johan Van Der Keuken e muitos outros/as relatam suas obras.Tambm surgiram documentrios contados em Off por seus diferentes personagens. Significa dizerque, enquanto vamos alguma ao, suas vozes em Off nos falavam de qualquer coisa, s vezes semnenhum vnculo com o que estavam fazendo, anulando desta maneira o que h de lugar comum noadio sincrnico ("Only the Brave" e "Lgrimas Negras", de Sonia Herman Dolz; "Moscow X", deKen Kobland, etc.). Todo o anterior nos indica que o emprego da voz Off como recurso superou o

    abuso e maneirismo a que foi submetido durante tanto tempo como as lentes angulares ou o zoomno campo da ptica e que hoje em dia est mais livre, mais prximo dos autores (e da forma) paraque contem sua histria.

    Patricio Guzmn

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    Story Line

    Por J. C. Carrire

    O roteiro, arte e tcnica da escrita para cinema e televiso

    Doc Comparato Eudeba 1998

    Story Line o termo que usamos para designar, com o mnimo de palavras possveis oconflito original de uma histria. No dedicaria mais de cinco ou seis linhas aostory, pois

    justamente a sntese da histria. Umastory line deve conter o essencial da histria, isto :

    A apresentao do conflito;

    O desenvolvimento do conflito;

    A soluo do conflito.

    Ou seja, deve corresponder aos elementos da narrativa tradicional: exposio, n (ou os ns

    desenvolvidos) e desfecho. So trs pontos chaves da histria, durante os quais: Ocorre algo.

    H de fazer alguma coisa.

    Se faz alguma coisa.

    A diviso em trs blocos uma constante em quase todas as atividades criativas. A regra temsua correspondente oriental: Na Idade Mdia -conta Jean-Claude Carrire-, um professor japonsdele no definiu a famosa regra de Jo-Hai-Kiu: diviso em trs movimentos no s de toda a obramas de cada cena da obra, de cada frase da cena e, s vezes, de cada palavra. Estes trs temposfundamentais, que se encontrariam em todos os nveis e que no pode traduzir-se exatamente para

    nenhum idioma (digamos: 'preparao, desenvolvimento, clmax'), so ainda mais teis quando nose sabe muito bem como escrever, ou como representar isso ou aquilo. Trata-se talvez de umaconstante secreta que prefervel conhecer, ainda que seja para viol-la.

    Assim, inicio, meio e fim, estado das coisas, conflito e resoluo, exposio, n edesfecho, preparao, desenvolvimento e clmax guardam certos paralelos metodolgicos ecertas diferenas conceituais. Em sua universalidade deve haver algo de razo. Se seguimos estaordem, teremos uma story line; se boa ou ruim depender do talento do autor. Com isso noqueremos dizer que devemos deixar de lado totalmente o que havamos imaginado no incio. Muitasvezes, ao avanar sobre outras etapas do roteiro, a histria muda de rumo, e inclusive tudo podeacabar de maneira diferente. Na realidade, um story line serve de base, de ponto de partida; no

    deve ser rgido no seu desenvolvimento. O conceito destory line no unvoco. De acordo com asEscolas de Dramartugia, possvel trocar com o termo plotprincipal ou story sinopse; e os/asroteiristas devem saber adaptar-se a todos os contextos.

    Neste livro, definimos a story line como a mnima expresso do conflito e a sinopse maisbreve. Tratando-se somente da explicitao do conflito original no preciso falar do tempo, nemdo espao, nem da composio dos personagens. Insisto que a story line representa qual dos

    possveis conflitos humanos escolhemos para dar fundamento ao drama ou comdia que contaremosou desenvolveremos no roteiro.

    Fazer uma story line pode parecer uma histria difcil, mas na realidade um processomental muito fcil. Se na sada do cinema ou do teatro perguntamos a um espectador o que que

    viu, ele seria capaz de contar-nos em poucas palavras o conflito bsico da histria. O processo decriao da story line esse mesmo, mas ao contrrio: contar o resumo de uma histria que aindano existe. Agora quero especificar o que no umstory line:

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    No unicamente uma declarao sobre a vida;

    No unicamente uma questo sobre a vida;

    No unicamente uma moral da nossa histria.

    Vejamos um exemplo de story line oferecido por Graham Greene, o famoso novelista eroteirista ingls:

    Idia - Fui ao enterro de um amigo. Trs dias depois, ele caminhava pelas ruas de NovaYork. Da surgiu o seguinte story line, que deu lugar ao filme O terceiro homem. Jack vai aoenterro de seu amigo em Viena. No se resigna, investiga e termina descobrindo que seu amigo nomorreu; est vivo e fingiu seu prprio enterro porque era procurado pela polcia. Descoberto pelacuriosidade de Jack, o amigo abatido pelas balas da polcia. No so necessrias maisexplicaes, pois, do contrrio, em vez de uma story line teramos um argumento. O desenho doconflito deve ser muito conciso. Para pr prova um story line podemos responder mentalmente auma srie de perguntas:

    realmente umastory line? Qual o conflito?

    Que produtos audiovisuais que vimos anteriormente contm este mesmo conflito original? Quais so as possibilidades dramticas de nossa story line em comparao com outros

    audiovisuais com temtica parecida ou idntica?

    Qual a tese? O que queremos dizer com essestory line?

    J. C. Carrire, Prctica del guin cinematogrfico, Barcelona, Paids, 1991, pp. 34-35.

    No preciso entrar em polmica, porque uma situao inevitvel. Parece razovel usar

    um termo para cada conceito, e as definies deste livro so to vlidas como as de qualquer outro ese apresentam como uma forma coerente. Vejam algumas variaes, por exemplo em GeraldKelsey, Writing for Television, Londres, A.& C. Black, 1990, pp. 67 y ss.