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488 ISSN 2316-6479 I DE JESUS, S. (Org). Anais do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memorias, afetos . Goiânia, GO: UFG/ Núcleo Editorial FAV, 2015. CORPO- AUTOBIOGRÁFICO NO MITO DE OPHELIA: PROCESSO DE CRIAÇÃO DA VIDEOINSTALAÇÃO METAMORPHOSIS Yasmin de Freitas Nogueira UFBA Resumo Este artigo mostra o processo de criação da videoinstalação interativa, intitulada “Metamorphosis”, apresentada como trabalho de conclusão de curso de Graduação, no Bacharelado em Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia-UFRB, pesquisa que tem continuidade no Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade- IHAC -UFBA. A obra explora a interdisciplinaridade e a sobreposição de suportes e linguagens, na interface entre arte e tecnologia, relacionando videoarte, corpo e performance, buscando relações entre a personagem Ophelia da peça Hamlet de Shakespeare e a minha pessoa, enquanto mulher com questionamentos e anseios, passando pelas relações identitárias e de gênero. Palavras-chave: Corpo- autobiográfico, Mito, Hibridismo, Ophelia, Processo de criação. A personagem Ophelia era uma jovem rodeada por dúvidas existenciais vivendo a expectativa do casamento com o príncipe Hamlet. Este cria uma repulsa pelo ser feminino após se decepcionar com a atitude de sua mãe que casa com seu tio, após a morte de seu pai. Hamlet nega o amor de Ophelia e ela vem à loucura. A jovem tem uma morte prematura, afogada no rio, envolvida pelos elementos da natureza o que a tornou um ícone da morte jovem e bela, cristalizado como um momento de beleza estética e imortalizado em obras de arte em diversos períodos na história da arte. Com o mito de Ophelia, temas como feminilidade, sexualidade, loucura e morte são expostos. A personagem ocupa o lugar da mulher subordinada ao homem e a espera do casamento. A loucura se faz presente com a não realização de seus ideais, uma espécie de destino que não se cumpre. Ophelia deu vazão a inúmeras representações visuais, especialmente no século XIX. O sucesso da imagem relaciona-se, à sua polivalência. A relação entre suicídio e morte acidental. Ophelia deu aos artistas e também ao público espectador, a oportunidade de se acercarem e contemplarem a fantasia ameaçadora da sexualidade feminina descontrolada, sobretudo quando a loucura leva à morte. Muitos artistas exploraram a ambiguidade de personagem. John Everett Millais (1852) a pintou quase toda imersa na água e com uma face pálida e assustada, foi atento aos detalhes, em especial às flores, conforme descritas na peça, diferente de Delacroix (1844), que a representou sensualmente, com o busto despido e de corpo robusto.

488 · e a arte objetual. É a obra que permite o trânsito do observador, participar do espaço de corpo inteiro através do seu deslocamento entre os dispositivos,

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ISSN 2316-6479 I DE JESUS, S. (Org). Anais do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memorias, afetos . Goiânia, GO: UFG/ Núcleo Editorial FAV, 2015.

CORPO- AUTOBIOGRÁFICO NO MITO DE OPHELIA:

PROCESSO DE CRIAÇÃO DA VIDEOINSTALAÇÃO METAMORPHOSIS

Yasmin de Freitas NogueiraUFBA

ResumoEste artigo mostra o processo de criação da videoinstalação interativa, intitulada “Metamorphosis”, apresentada como trabalho de conclusão de curso de Graduação, no Bacharelado em Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia-UFRB, pesquisa que tem continuidade no Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade- IHAC -UFBA. A obra explora a interdisciplinaridade e a sobreposição de suportes e linguagens, na interface entre arte e tecnologia, relacionando videoarte, corpo e performance, buscando relações entre a personagem Ophelia da peça Hamlet de Shakespeare e a minha pessoa, enquanto mulher com questionamentos e anseios, passando pelas relações identitárias e de gênero.Palavras-chave: Corpo- autobiográfico, Mito, Hibridismo, Ophelia, Processo de criação.

A personagem Ophelia era uma jovem rodeada por dúvidas existenciais

vivendo a expectativa do casamento com o príncipe Hamlet. Este cria uma repulsa

pelo ser feminino após se decepcionar com a atitude de sua mãe que casa com seu

tio, após a morte de seu pai. Hamlet nega o amor de Ophelia e ela vem à loucura.

A jovem tem uma morte prematura, afogada no rio, envolvida pelos elementos da

natureza o que a tornou um ícone da morte jovem e bela, cristalizado como um

momento de beleza estética e imortalizado em obras de arte em diversos períodos

na história da arte.

Com o mito de Ophelia, temas como feminilidade, sexualidade, loucura e

morte são expostos. A personagem ocupa o lugar da mulher subordinada ao homem

e a espera do casamento. A loucura se faz presente com a não realização de seus ideais,

uma espécie de destino que não se cumpre.

Ophelia deu vazão a inúmeras representações visuais, especialmente no

século XIX. O sucesso da imagem relaciona-se, à sua polivalência. A relação entre

suicídio e morte acidental. Ophelia deu aos artistas e também ao público espectador, a

oportunidade de se acercarem e contemplarem a fantasia ameaçadora da sexualidade

feminina descontrolada, sobretudo quando a loucura leva à morte. Muitos artistas

exploraram a ambiguidade de personagem. John Everett Millais (1852) a pintou quase

toda imersa na água e com uma face pálida e assustada, foi atento aos detalhes, em

especial às flores, conforme descritas na peça, diferente de Delacroix (1844), que a

representou sensualmente, com o busto despido e de corpo robusto.

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Ophelia assim como as sereias, é um personagem de feminilidade exaltada e

ao mesmo tempo frágil e sedutora, retratada muitas vezes como ninfa.

A fertilidade, a sensualidade, a flexibilidade e a instabilidade são atributos

geralmente relacionados à mulher e também presentes no elemento aquático. A água

aparece como um retorno a um local seguro, sendo uma projeção da maternidade, uma

mulher que morre pelas águas retorna a si mesma, para o lugar de seu pertencimento,

o ventre materno. A morte é retratada de maneira serena, sem sinais de sofrimento ou

deterioração biológica do corpo, a personagem se funde de maneira simbólica à água

em uma morte bela e idealizada.

Na obra a personagem rainha Gertrudes descreve a morte de Ophelia :

Há um salgueiro que se debruça sobre um riacho. E contempla nas águas suas folhas prateadas. Foi ali que ela veio sob loucas guirlandas, margarida, ranúnculo, urtiga e essa flor. Que no franco falar de nossos pastores recebe. Um nome grosseiro, mas que nossas pudicas meninas chamam pata de lobo. Ali ela se agarrava. Querendo pendurar nos ramos inclinados. Sua coroa de flores, quando um ramo maldoso. Se quebra e a precipita com seus alegres troféus No riacho que chora. Seu vestido se desfralda E a sustenta sobre a água qual uma sereia; Ela trauteia então trechos de velhas árias, como sem perceber sua situação aflitiva. Ou como um ser que se sentisse ali. Em seu próprio elemento. Mas isso durou pouco. Suas vestes, enfim, pesadas do que beberam, Arrastam a pobrezinha e seu doce canto expira numa lodosa morte. (SHAKSPEARE,1603 apud BACHELARD, 1989, p.84)1

Na contemporaneidade diversas releituras da personagem são encontradas

explicitando a atualidade do mito, relacionam a mulher do século XVII, com suas

privações e comportamentos morais da época, com a mulher de hoje nos desafios

enfrentados em diferentes momentos de sua vida: o seu lugar na sociedade, os dilemas,

as decisões quanto ao seu corpo e seus ideais.

Tem- se como exemplo o filme Elena (2013), que é o resultado do mergulho

da diretora do filme, Petra Costa, na vida de Elena, sua irmã que morreu em 1990, aos

20 anos. Sua morte acontece como desfecho na busca pelo seu sonho de ser atriz. A

personagem representa a mulher que se afoga no rio de desejos e sensações que não se

cumprem resultando na ação do suicídio. É feita uma releitura de Ophelia, reconstruindo

a morte de Elena nas águas, tal como a personagem de Shakespeare. Em Elena assim

como em “Metamorphosis”, a morte se dá como um renascimento. Petra reconstrói a

morte de sua irmã como uma forma de libertação e superação da perda.

1 Tradução de Antonio de Pádua Danesi. In: BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 84.

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Com o uso do mito, busco como uma história fantasiosa traz elementos reais

da vida e expõe situações em que conseguimos nos inserir independente da época.

Narrativa de caráter simbólico-imagética, o mito procura explicar, demonstrar

ou criticar por meio da ação e do modo de ser das personagens elementos da sociedade

uma determinada cultura.

O mito de Ophelia é repensado em “Metamorphosis” a partir da minha

posição enquanto mulher, minhas dúvidas, anseios, e como meu corpo reflete a

minha condição na sociedade. Se fazem presentes no corpo, questionamento sobre

seus limites, sobre fronteiras entre o individual e o social, masculino e feminino, vida e

morte, natureza e cultura.

Utilizo o meu próprio corpo, colocando-me como um ser em transformação

ocupando o centro da narrativa. Qualquer uma de nós pode ser uma Ophelia, partindo

deste ponto decidi me colocar na narrativa. Uma investigação pessoal com base na

metamorfose, na mudança acarretada pela busca da concretização dos sonhos,

conquista de espaço na vida profissional.

A obra “Metamorphosis” se configura como uma videoinstalação interativa

na qual é projetada a videoarte com “casulos” dispostos no espaço. A projeção de

vídeo expõe o mito “Metamorphosis” em que me encontro com o corpo submerso na

água, dividindo os vídeos nos conceitos submersão, agitação, morte, transitoriedade

e leveza. Uma webcam conectada capta o movimento do espectador ao explorar o

espaço, deslocando-se entre os objetos da instalação e somente na sua presença é

possível ouvir o som da água e frases relativas aos temas dos vídeos.

A produção artística une desde linguagens tradicionais (escultura/objeto) às

mídias digitais com a utilização de projeção e da interatividade através de software de

programação modular, abordando o hibridismo das linguagens, a união de técnicas e

materiais, na criação de um ambiente instalativo que possui o vídeo e sua relação com

o corpo como centro da obra, a partir do conceito de híbrido de Lúcia Santaella (2003,

p.135) “linguagens e meios que se misturam, compondo um mesclado interconectado

de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada.”

Para Priscila Arantes (2005, p.32), a ruptura com os valores estéticos

herdados da tradição se produziu por meio de vários fatores que deram origem a

uma série de movimentos artísticos no início do século XX e que formaram a base

da arte contemporânea, na qual se insere a produção artística que lida com as

mídias digitais. Santaella (2012, p.34) explica a aceleração das transformações dos

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meios tecnológicos de produção de linguagens e da comunicação, ressaltando que

a cultura que caracteriza o nosso tempo nasce da mistura de todas as formas de

cultura, incluindo as culturas anteriores ao aparecimento das gerações tecnológicas,

estando hoje, todas conectadas.

Sob influência dos estudos da performance e da crescente hibridização

da arte no século XX, a fotografia, o vídeo e a encenação assumiram juntas um

importante papel no processo de significação, pois a imagem passou a ser pensada

como parte constitutiva das atuações. Durante as Vanguardas da primeira metade

deste século, ocorreram experiências iniciais da produção onde o artista se coloca

como personagem, dentre as quais algumas obras autorreferentes de Marcel

Duchamp e certas performances dadaístas. O fazer interdisciplinar nas artes, se firma

naquele momento como decorrência de uma política de reinvento formal e estético

revolucionário, transformando desde então o próprio entendimento do corpo e do

modo do artista de estar presente no processo criativo.

O termo “performance” nas artes visuais é associada imediatamente à

utilização do corpo como parte da obra, tendo, muitas vezes, como principais

referências as décadas de 1960 e 1970. Na arte da performance é cada vez mais

frequente o uso da imagem e da tecnologia visual; videoprojeção, televisão,

computadores, câmeras, vídeos, fotografias, instalações, integram boa parte das

performances atuais, elementos cuja performatividade apontam para novas formas

de definir a performance no campo das artes.

A videoarte foi precursora em denunciar e abandonar a tendência do vídeo

em se deixar reduzir a simples veículo de outros processos de significação, sendo ainda

hoje usado como veículo de comunicação de massa, como mero veículo de cinema.

Segundo Arlindo Machado (1993) com a generalização da procura de uma “linguagem”

específica, o vídeo deixa de ser concebido apenas como uma forma de registro.

A videoarte no Brasil surge como um registro de performance, em que os

artistas colocam muitas vezes o próprio corpo diante da máquina. As obras do período

pioneiro indicam um ponto de partida para a arte do vídeo no país e suas interseções

entre arte e política. Artistas como Letícia Parente, possuem práticas entendidas como

ações performáticas, captadas em tempo real e criadas especialmente para o vídeo.

Para Christine Mello (2004), o resultado está no limite de saber onde termina

o corpo e começa o vídeo, ou na relação dialógica entre corpo e vídeo. Os vídeos de

Letícia Parente tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de

papéis sociais, a utilização do corpo como suporte discursivo.

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Em seu trabalho “Marca registrada” (1975), diante da câmera costura o próprio

pé, bordando “Made In Brasil”. Produzida no contexto político da Ditadura Militar, a

artista utiliza do próprio corpo por meio de uma ação, desconstruindo a noção de um

corpo meramente passivo e que apontam para a urgência de um corpo ativo. Cria um

campo nas artes em que corpo e máquina são ao mesmo tempo contexto e conteúdo,

interpenetrando-se na construção de significados.

Em “Metamorphosis” assim como nos trabalhos de Parente, colo-me diante

da câmera em uma ação destinada especialmente para o vídeo, utilizando da relação

corpo-câmera com o objetivo de transmitir a poética do corpo e o mito de Ophelia.

A instalação é uma arte do espaço tridimensional, se encontra entre a escultura

e a arte objetual. É a obra que permite o trânsito do observador, participar do espaço

de corpo inteiro através do seu deslocamento entre os dispositivos, imagens, objetos.

A instalação se dá na obra “Metamorphosis” como forma de concentrar as linguagens

utilizadas e objetivou a criação de um ambiente que proporcionasse uma maior fruição

do observador para que o mesmo pudesse ter uma experiência sensorial através da

visão, audição e tato, com os vídeos, o som da água e a minha voz e a possibilidade de

manusear os objetos dispostos no espaço.

A disposição dos objetos no processo instalativo da obra, tem referência

na Série Casulos de Ângelo Mazzuchelli, casulos confeccionados com recortes de

embalagens comerciais. Na obra, os Casulos são signos de nossas manipulações

objetuais e cotidianas. Os objetos expõem a situação de contaminação mútua entre

seu poder utópico e a resultante entrópica do consumo.

Os objetos presentes na videoinstalação têm como referência trabalhos da

mostra Fios e Tramas de Valdir Francisco, obras em que a proposta é criar objetos de

arte a partir de fios de seda. Com isso, o artista dá uma nova representação a materiais

e objetos da exposição que apresenta trabalhos com luminárias chinesas, entre tantas

referências que utilizam este material.

Os casulos em “Metamorphosis” remetem a transformação e a maturação.

Estar isolado e olhando para si, em um processo também de autoconhecimento.

Para a sua confecção, foi feita uma pesquisa de materiais e realização de protótipo

com arame, folhas de papel ofício A4, cola, água e plástico filme. Foi construída uma

estrutura de arame moldável que foi coberto com tiras de papel umedecidas em cola

branca dissolvida em água. Após a secagem do papel, o “casulo” foi embalado em

plástico filme com a finalidade de criar uma textura similar a um casulo natural.

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O uso do método autobiográfico se dá como um elemento de diálogo entre

mim e a obra. O sujeito não se constitui sozinho, está situado dentro de um mundo

sociocultural em constante mutação, do qual sofre influência de costumes, valores

e cultura. Através do eu e dos outros, o sujeito cria o significado de pertencimento

a um grupo e a sua existência adquire um significado no contexto do mundo das

relações sociais.

O percurso de criação da obra é pensado com base nas pesquisas de

Cecília Salles (1998) no campo da crítica de processos, que investiga a obra a

partir da sua construção, sempre em transformação. O processo criativo têm como

recurso metodológico básico o estabelecimento de relações, onde o importante

é compreender os movimentos do artista que o levam à obra, acompanhando seu

planejamento, execução e crescimento. Ultrapassando os limites da obra entregue ao

público, a produção é observada sob o prisma do gesto e do trabalho.

Ao questionar-me sobre o individual, sobre meu corpo, minha origem e

futuro, busco no meu interior as respostas para estes questionamentos. Penetrando na

simbologia da água como elemento fundamental para a vida, revisito o mito de Ophelia

criando conexões entre água, sexualidade, vida e morte. Meu corpo simbolicamente

como objeto de uma metamorfose, um ritual de passagem.

Pensar uma Ophelia contemporânea é refletir a histórica interdição social da

mulher e as lutas feministas pela conquista de espaço nas artes e na esfera pública,

a relação com o corpo e os padrões de beleza instituídos, a luta pela igualdade de

gênero e contra qualquer forma de opressão.

As imagens produzidas em “Metamorphosis” apresentaram momentos

distintos esteticamente, o que permitiu a divisão em conceitos que ilustram os

momentos da narrativa, que se deu então dividida em fragmentos intitulados:

Submersão, agitação, morte, transitoriedade e leveza.

O momento em que estou submergindo na água simboliza a busca interior

para os questionamentos, a procura pelo local seguro, mergulhar na água e ser

envolvido por ela, senti-la por todo o corpo assemelha-se a estar contido no ventre da

mãe, uma espécie de retorno a origem.

Um processo de autoconhecimento que se dá a partir do “eu- feminino”. Um

olhar sobre mim. A busca por quem sou eu e qual o meu papel enquanto jovem,

mulher, negra e lésbica.

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Submersão. Imagens da Videoarte. Imagem: Áquila Jamille.Jan/2014

A agitação é o momento do afogamento ocultado em Ophelia. Meu corpo

se agita em desespero e inquieto, é a passagem da submersão a calmaria ou morte,

a luta pela sobrevivência, busca pelos ideais contemporâneos que operam nas

mentes femininas.

A personagem Ophelia vive entre o silêncio e a obediência, a loucura é o

momento da sua liberdade de expressão, se desprendendo das regras que a oprimem

sentimental e sexualmente.

A agitação simboliza o momento contemporâneo feminino, a nossa constante

luta pela igualdade de gênero, o direito a decidir sobre o próprio corpo. É o ir contra,

o enfrentar. Simboliza a minha inquietude quanto a opressão feminina e toda a

manifestação de violência seja de ordem machista, racista ou homofóbica.

Agitação. Imagens da Videoarte. Imagem: Áquila JamilleJan/2014

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No momento da morte em “Metamorphosis”, esta não se dá como resultado

de desequilíbrio emocional, bela e idealizada, mas como um processo de libertação,

com a leveza do meu corpo que flutua como uma ascensão posterior a agitação de

um afogamento.

É o processo de maturação simbolizado também pelos casulos, a morte é o

momento referente à minha transformação ou evolução. Simboliza não um fim, mas

um recomeço. Morrer para renascer.

Morte. Imagens da Videoarte.Imagem: Fabíola Silva.Jan/2014

Na transitoriedade deixo-me levar pela correnteza da água, remetendo

ao aspecto transitório da vida, aos caminhos percorridos e a percorrer, aos ritos de

passagem e fechamentos de ciclos ao longo da vida. Transitoriedade é o meu ir e vir, é

a impermanência das situações, das pessoas, das opiniões etc. São as mudanças a que

todos nós estamos sujeitos.

Transitoriedade. Imagens da Videoarte. Imagem: Áquila Jamille. Jan/2014

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Para o conceito de leveza, utilizo o lento balançar do vestido submerso na

água. Meu corpo sutilmente se revela através do tecido branco, transparecendo

sensualidade e delicadeza, características atribuídas a personagem Ophelia juntamente

com a noção de fragilidade do sexo feminino.

A tradição moldou o corpo feminino com sinais de controle, manipulação e

limitações, ligados a visão de docilidade e de reprodução. Com o conceito de leveza,

proponho a fluidez como quebra da rigidez, do corpo dócil, frágil e reprimido,

criando a relação opressão X liberdade, procurando romper com essas relações

sócio/culturais cristalizadas.

Leveza. Imagens da Videoarte. Imagem: Áquila Jamille .Jan/2014

A obra foi exposta na antecâmara do auditório da Universidade Federal do

Recôncavo da Bahia, uma pequena sala com pouca iluminação e baixo pé direito. A

projeção ocupou uma parte dos casulos, projetado em uma parede perpendicular à

disposição dos objetos, de forma circular com bordas suaves, criando uma espécie de

janela por onde o observador visualizou as cenas da narrativa como uma espécie de

passagem para o mundo da Artista-Ophelia.

A videoarte alterna em cenas em tempo regular de gravação e cenas com

efeito slow motion (câmera lenta). Para o áudio foi feita uma montagem utilizando o

som gerado nos próprios vídeos submersos com a minha voz gravada externamente

no estúdio de som utilizando o efeito de eco, programado para ser lançado com a

presença do observador.

Foi observado durante os dias de exposição que o loop entre minha voz e o

barulho de água era ininterrupto, assim em nenhum momento ouve o total silêncio

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no ambiente. Os visitantes poderiam aguardar o início das falas submersão, agitação,

morte, transitoriedade e leveza, mas sempre acompanhado do barulho da água.

Não há uma teoria fechada e pronta anterior ao fazer. A construção da obra foi

se definindo ao longo do percurso. Um conjunto de princípios que colocam a obra em

criação específica e a obra como um todo em constante avaliação e julgamento. Como

cada versão contém, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado

final representa também apenas um dos momentos do processo, cai por terra a ideia

da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição (SALLES,1998) assim,

a obra continua em processo de maturação e a poética do corpo-autobiográfico no

mito de Ophelia se desenvolve buscando as relações identitárias e de gênero através

do processo criativo híbrido no Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura

e Sociedade- IHAC -UFBA.

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____________Minicurrículo

Yasmin é graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade - Pós Cultura - IHAC - UFBA. Desenvolve projetos artísticos através da fotografia gravura, performance, experimentos de hibridismo de linguagens como vídeoinstalações e videoprojeções mapeadas. Integra o Coletivo entrecho de Artes Visuais. Desenvolve pesquisa sobre corpo, gênero e identidade buscando o entendimento de sua própria trajetória na relação corpo-ambiente e corpo-autobiográfico.