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5. Do ouro à fama As apropriações de aspectos românticos estão presentes na obra de Gilberto Braga desde sua estreia na televisão em 1973. Logo em seu primeiro texto, um roteiro para o programa Caso Especial, da Rede Globo, ele adaptou o romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Quatro casos especiais depois, o autor – já alçado à condição de novelista – não deixou de recuperar traços do Romantismo em seus trabalhos. Assim, Corrida do Ouro (1974) – sua primeira novela – tinha a traição aos próprios valores em função do dinheiro como tema principal. Entretanto tudo na trama exibida às 19h era tratado de forma ajustada ao estilo leve e divertido que passou a caracterizar o horário depois da saída de Glória Magadan da emissora carioca. Escrita em parceria com Lauro César Muniz 28 , Corrida do Ouro era inspirada nas comédias sofisticadas do cinema americano dos anos 1930 e 1940 e contava a história de cinco mulheres que recebiam inesperadamente uma herança à qual só teriam direito se cumprissem os desejos do milionário excêntrico que as escolheu como herdeiras. Todas as cláusulas do testamento contrariavam a personalidade das moças. Uma delas, atriz, deveria abandonar a carreira, outra, que morava no exterior há 20 anos, precisava fixar residência no Brasil, uma terceira tinha que se casar com um homem ao qual não amava. Ou seja, os obstáculos que cada uma encontrava para cumprir o testamento – e, desta forma, receber o dinheiro – forneciam os ganchos da novela. Essa corrida pelo dinheiro viria a ser, num registro mais melodramático, uma recorrência nas novelas de Gilberto Braga. Em outras palavras, seja nas obras originais que ele criou para o horário das 20h, seja nas adaptações literárias com as quais ajudou a fixar o horário das 18h 29 a partir de 1975, o dinheiro envolvendo 28 A trama de Corrida do Ouro é uma idéia de Daniel Filho. Gilberto Braga e Lauro César Muniz foram reunidos pelo diretor para desenvolver a novela. 29 A primeira novela do horário das 18h foi Meu Pedacinho de Chão (1971), de autoria de Benedito Ruy Barbosa. A trama ia ao encontro da intenção da Globo de que as novelas das seis seguissem uma linha pedagógica. Portanto, o tom dos textos era educativo, fosse apresentando a vida no campo ao homem urbano ou ensinando a língua portuguesa ao matuto da terra. Porém essa incursão da emissora em novelas mais educativas não obteve boa audiência. As tramas do horário foram então substituídas por desenhos animados e seriados americanos. Até que, em 1975, pelas

5. Do ouro à fama

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5. Do ouro à fama

As apropriações de aspectos românticos estão presentes na obra de

Gilberto Braga desde sua estreia na televisão em 1973. Logo em seu primeiro

texto, um roteiro para o programa Caso Especial, da Rede Globo, ele adaptou o

romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Quatro casos

especiais depois, o autor – já alçado à condição de novelista – não deixou de

recuperar traços do Romantismo em seus trabalhos. Assim, Corrida do Ouro

(1974) – sua primeira novela – tinha a traição aos próprios valores em função do

dinheiro como tema principal. Entretanto tudo na trama exibida às 19h era tratado

de forma ajustada ao estilo leve e divertido que passou a caracterizar o horário

depois da saída de Glória Magadan da emissora carioca.

Escrita em parceria com Lauro César Muniz28, Corrida do Ouro era

inspirada nas comédias sofisticadas do cinema americano dos anos 1930 e 1940 e

contava a história de cinco mulheres que recebiam inesperadamente uma herança

à qual só teriam direito se cumprissem os desejos do milionário excêntrico que as

escolheu como herdeiras. Todas as cláusulas do testamento contrariavam a

personalidade das moças. Uma delas, atriz, deveria abandonar a carreira, outra,

que morava no exterior há 20 anos, precisava fixar residência no Brasil, uma

terceira tinha que se casar com um homem ao qual não amava. Ou seja, os

obstáculos que cada uma encontrava para cumprir o testamento – e, desta forma,

receber o dinheiro – forneciam os ganchos da novela.

Essa corrida pelo dinheiro viria a ser, num registro mais melodramático,

uma recorrência nas novelas de Gilberto Braga. Em outras palavras, seja nas obras

originais que ele criou para o horário das 20h, seja nas adaptações literárias com

as quais ajudou a fixar o horário das 18h29 a partir de 1975, o dinheiro envolvendo

28 A trama de Corrida do Ouro é uma idéia de Daniel Filho. Gilberto Braga e Lauro César Muniz foram reunidos pelo diretor para desenvolver a novela. 29 A primeira novela do horário das 18h foi Meu Pedacinho de Chão (1971), de autoria de Benedito Ruy Barbosa. A trama ia ao encontro da intenção da Globo de que as novelas das seis seguissem uma linha pedagógica. Portanto, o tom dos textos era educativo, fosse apresentando a vida no campo ao homem urbano ou ensinando a língua portuguesa ao matuto da terra. Porém essa incursão da emissora em novelas mais educativas não obteve boa audiência. As tramas do horário foram então substituídas por desenhos animados e seriados americanos. Até que, em 1975, pelas

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corruptores, arrivistas e românticos numa complexa teia de relações sociais,

profissionais e afetivas aparece como força propulsora da ação em tramas

paralelas ou centrais das histórias desenvolvidas pelo autor.

Após adaptar Helena, de Machado de Assis, e reativar com sucesso o

horário das 18 horas, Gilberto Braga adaptou Senhora30, romance de José de

Alencar. O livro conta a história de Aurélia Camargo, uma moça pobre que, ao

enriquecer, arma uma vingança contra Fernando Seixas – arrivista que a trocara

no passado por uma mulher rica. Tal trama, publicada em 1875, ao deslizar do

suporte impresso para a televisão cem anos depois, representou o ápice do tema

romântico da conspurcação pelo dinheiro não só entre as novelas das seis da Rede

Globo nos anos 1970, mas também entre as histórias que Braga escreveu para esse

horário31.

A adaptação mantém a mesma fórmula capital do romance oitocentista

europeu que serviu de modelo à criação de José de Alencar. Ou seja, Braga

transpôs para a espinha dorsal da novela o mesmo processo de educação

sentimental presente no original, que transforma a jovem pura e sonhadora

Aurélia Camargo (Norma Blum) em alguém mais embrutecido em virtude da

engrenagem do dinheiro e do interesse racional – representado por arrivistas como

Fernando Seixas (Cláudio Marzo).

Como o romance, a novela também possui quatro etapas distintas: Preço,

Quitação, Posse e Resgate, que correspondem ao processo de transformação em

decorrência do dinheiro pelo qual passam Aurélia e Seixas. A fase Preço, que

culmina com a noite de núpcias na qual Aurélia declara a Seixas que o comprou,

estende-se por 66 capítulos. Nessa parte da trama, Gilberto Braga recorre a várias

reuniões sociais que o livro possibilita – festas, missas e ópera – para apresentar

personagens, mas, ao longo da novela, o autor usa esses mesmos eventos

caracterizados pela ostentação permitida pelo dinheiro, a fim de criar peripécias

que avancem a narrativa. mãos do diretor Herval Rossano, o horário das 18h foi redimensionado para as adaptações literárias. 30 O romance de José de Alencar ganhou outras versões televisivas. Menos de um ano depois da inauguração da televisão brasileira, a adaptação do livro era atração na TV Paulista em 1952. Em 1971, a história serviu como base para a novela O Preço de um Homem, escrita por Ody Fraga e exibida na TV Tupi. Em 2005, Senhora, Diva e Lucíola, também de autoria de Alencar, inspiraram as tramas de Essas Mulheres, novela de Marcílio Moraes, exibida pela TV Record. 31 A versão de Gilberto Braga inaugurou as cores no horário das 18h na Rede Globo.

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Aurélia Camargo é mostrada, logo no início, como a grande novidade dos

salões, sobre quem personagens periféricos, sobretudo, as mulheres da sociedade,

fazem uma série de especulações, já que a heroína surgiu como uma nova estrela

na Corte, mas ninguém sabe sobre seu passado. Sabe-se que vive com uma

parenta – Dona Firmina Mascarenhas (Zilka Salaberry) – e nada mais. Essa opção

do autor por apresentar uma heroína sob uma aura de mistério pode ser

relacionada, adotando-se a perspectiva de Marlyse Meyer (1996), a um uso

modernizado de um muito antigo matricial procedimento de narrativa escrita – o

do Decameron.

Nesse procedimento, não há uma exposição que, de saída, defina a

situação a partir da qual vai se desenvolver o enredo, mas é apresentado um

elemento de intriga essencial que, nesse caso, é o mistério do passado. Esse

elemento recorrente já era parte da espinha dorsal de Sinclair das Ilhas e

continuou como um dos motivos preferidos da telenovela.

Mas além da aura de mistério, Aurélia atiça os comentários porque se

comporta de uma forma que fere determinadas convenções às quais as moças da

época deviam se submeter. Estabelece cotações para os rapazes do tipo: “Alfredo

Moreira é distinto. Vale bem como noivo uns cem contos de réis. Mas eu tenho

dinheiro para pagar um marido de maior preço”. E, repreendida por D. Firmina,

emenda: “Eu não me preocupo em absoluto com a opinião que têm a meu

respeito” (Braga, 1975).

Portanto, logo no início da trama, a personagem é caracterizada em seu

individualismo romântico que, de acordo com Campbell, privilegiava a

peculiaridade da pessoa em detrimento dos modelos de conduta. Tal

comportamento de Aurélia, aliado às falas que denotam seu desencanto com a

quantificação do mundo, permite alinhá-la aos personagens que, nos romances de

Balzac, são os tipos radicais dos quais fala Lukács, ou seja, seres para quem os

medianos olham com olhos medusados (Schwarz, 1992).

Na mesma festa em que Aurélia é apresentada, o público conhece Adelaide

Amaral (Fátima Freire), a noiva de Seixas. Conhece também o pai de Adelaide, o

funcionário da alfândega – Manuel Tavares do Amaral (Felipe Wagner) – e sua

mãe, Maria do Carmo (Cleyde Blota). Ao contrário do romance que, na análise de

Roberto Schwarz (1992), exclui os pais dos personagens tratando-os apenas como

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ornamento, na telenovela, os parentes ganham uma participação bem maior em

relação às discussões centrais da história sobre a mercantilização da vida e a

importância dada às aparências.

O pai de Adelaide, por exemplo, aparece como um ambicioso homem

remediado que deseja ver a filha casada com Seixas por se identificar com o

arrivismo do futuro genro. “Não é um rapaz de posses. Mas é um batalhador. Veio

do nada, como eu. E, por isso, conhece o valor de cada vintém” (idem). Tal

opinião é compartilhada pela mãe de Adelaide, Maria do Carmo – personagem

submissa constantemente humilhada pelo marido. Ela acredita que o genro

vencerá graças a sua inteligência e ao seu garbo.

Além dessa certeza de uma trajetória promissora, o interesse dos pais de

Adelaide por Seixas passa também por um desejo de se apropriar da postura

refinada do candidato a genro. Afinal, ao mesmo tempo em que o rapaz é um

jornalista emérito, com um bom emprego público e disposto a fazer carreira

política, é também um dândi no sentido de seguir e conhecer profundamente o que

a aristocracia do dinheiro adotou como referência de bom gosto da aristocracia de

sangue. Então, sob esse aspecto, a união de Seixas com Adelaide era também um

investimento do burguês enriquecido Amaral na busca de distinção social, já que

um genro elegante era um signo exterior de riqueza.

Outra família que ganha mais destaque na adaptação é a de Seixas. Assim

como no romance, esse núcleo é composto por Camila (Mirian Pires),

Mariquinhas (Lúcia Alves) e Nicota (Elisa Fernandes), respectivamente mãe e

irmãs do jornalista. Da mesma forma que acontece no livro, elas moram na Rua

do Hospício e enfrentam problemas financeiros, mas as dificuldades apresentadas

na telenovela são bem maiores. No livro, Camila e as filhas, além de trabalharem

como costureiras auxiliadas por duas serviçais, têm como rendimentos uma

caderneta de poupança e dois escravos de aluguel. Já na trama televisiva, as irmãs

costuram para viver e sofrem com a penúria. Sacrificam-se para que Seixas possa

levar uma vida de luxo em sociedade e, assim, consiga fazer um bom casamento.

Segundo Antônio Cândido, assim como na relação entre Seixas e a família,

há nos romances de Alencar um impudor muito romântico de ostentar e acentuar

sentimentos óbvios. Desta forma, mães, pais, irmãos, são amados com uma

veemência que anula as penumbras da afetividade, como se o romancista quisesse

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pagar tributo à instituição da família pela hipertrofia de suas relações básicas

(Cândido, 1993). Entretanto Braga não só mantém como amplia a veemência

desse amor da família por Seixas. Pode-se identificar nessa veemência – tanto de

Alencar, quanto de Braga – traços daquele exagero que, já convertido numa

“categoria” do melodrama teatral, tornou-se uma marca na novela de folhetim

(Oroz, op.cit.).

Tal exagero pode ser relacionado ainda ao amor-sacrifício que, ao lado do

amor homem-mulher, são os dois tipos de amor, na perspectiva da mitologia

judaico-cristã, sobre os quais o melodrama está estruturado. De acordo com Sílvia

Oroz, na cultura ocidental, o amor permite alcançar o perdão divino e produz uma

purificação celestial na Terra. Convertido então num valor universal que

pressupõe a bondade em quem ama, para além das diferenças culturais e de classe,

esse sentimento dá ao pobre a chance de ser “rico”, uma vez que qualquer pessoa

passa a valer mais por amar.

O amor-sacrifício é então importantíssimo para a conquista do céu. Na

novela, o sentimento erige a família de Seixas como síntese de que qualquer

sacrifício é justificável em prol do bem-estar de um filho ou irmão, entendendo-se

esse bem-estar como ascensão social. Por isso, mesmo Camila e as filhas tendo

um discurso que valoriza o casamento por amor, elas se sacrificam para que

Seixas siga em frente com seus planos de fazer boa figura em sociedade e, assim,

suba na vida.

Esse amor incondicional das três é bem marcado no início da novela,

quando Seixas está fora do Rio de Janeiro há um ano. Braga ressalta que o

jornalista envia dinheiro por ser um bom filho e um bom irmão. Entretanto elas

não gastam essa quantia, sendo inclusive obrigadas a colocar as joias da família

no prego para poderem sobreviver.

Ao voltar de Recife, Seixas pede que a mãe e as irmãs usem os adornos

numa ocasião social. Tem-se nesse entrecho uma atualização das relações das

classes médias do século XVIII com a aristocracia, pois temendo que sua família

seja rechaçada pelos aristocratas do dinheiro, Seixas sucumbe ao padrão de

aceitabilidade social assim como faziam os burgueses da Era da Sensibilidade ao

adotarem os procedimentos de conduta determinados pela nobreza. Mas de nada

adiantam as joias que o jornalista pede para as mulheres de sua família usar, já

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que, tanto sua mãe, como suas irmãs são motivo de chacota por usarem vestidos

visivelmente reaproveitados e por não saberem se portar numa ópera em razão de

não estarem acostumadas a circular em eventos sociais.

Além de serem motivo de chacota, essa ida à ópera gera outro problema

para a família de Seixas. Sem querer preocupar o rapaz contando-lhe a verdade –

em outra demonstração do amor-sacrifício de que fala Oroz, análogo à

benevolência, cujo culto, segundo Campbell, levava a um hedonismo altruísta

marcado pela alegria, mas também pelo compadecimento com os problemas

alheios – a família, através de Mariquinhas, acaba por recorrer ao agiota Lemos

(Alberto Perez). Este, ao perceber que se trata de uma boa e inocente moça, cobra

20% de juros ao mês pelos 10 contos de réis que a ela empresta, sendo que

habitualmente ele costuma cobrar 10%.

A partir do capítulo 16, a fase Preço passa a ser intercalada por flashbacks

que, no livro, equivalem à segunda fase chamada de Quitação. Desta forma, são

explicadas ao público as razões do rancor de Aurélia por Seixas e também como

ela enriqueceu graças à herança que lhe é deixada por seu avô paterno, Lourenço

Camargo. Trata-se de uma sequência de reconhecimento típica do melodrama que

aparece na novela Senhora com a mesma função que tinha no gênero teatral, ou

seja, ocorre para que os enganos sejam corrigidos e as famílias, restabelecidas.

No caso da novela, o reconhecimento de Aurélia como neta por Lourenço

vem coroar o processo de correção dos erros do avô paterno da heroína no que diz

respeito a sua avaliação sobre a legitimidade da união dos pais da moça, Emília

(Ida Gomes) e Pedro (Roberto Murtinho). No passado, ele – valendo-se do poder

econômico – havia separado o casal. Ou seja, antes mesmo de sua decepção com

Seixas, Aurélia já havia tido uma mostra da força do dinheiro como elemento

transformador das pessoas, já que – ao recontar sua história para o amigo

Torquato Ribeiro (Osmar Prado) – ela descreve o avô como sendo “dessas pessoas

que se sentem donas do mundo por terem muito dinheiro” (Braga, 1975).

Essas pessoas que, por serem ricas, acham-se no direito de humilhar e de

dispor da vida dos outros de forma desumana são figuras recorrentes na obra de

Gilberto Braga. Um deles, Felipe Barreto (Antônio Fagundes), chegou inclusive a

protagonizar a novela, não sem razão, batizada de O Dono do Mundo (1991).

Entretanto, embora Lourenço, assim como Felipe, use o dinheiro para fazer da

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vida das pessoas o que bem entende, em relação a essa novela das oito da década

de 1990, o avô de Aurélia está mais próximo do personagem Herculano Maciel

(Stênio Garcia) – o sogro de Felipe. Isso porque, da mesma forma que Herculano,

embora este tenha um comportamento mais benevolente, Lourenço é o grande

dono do dinheiro, cujo patrimônio funda ou amarra as principais intrigas das

novelas do autor.

Em comum, esses personagens poderosos têm o fato de personificarem a

ambiguidade inerente ao dinheiro. Assim, ao mesmo tempo em que agem com

arrogância por acreditarem que o poder econômico tudo permite, também são

capazes de verdadeiramente ajudar os outros. Há também situações nas quais

esses tipos justificam o uso do dinheiro em nome do amor.

Isso acontece, sobretudo, quando, munidos do que creem ser uma boa

intenção, interferem sem pedir licença na vida das pessoas, sobretudo, dos filhos,

mas tal “ajuda” é sempre um grande equívoco. Um dos exemplos disso na obra de

Braga está na novela Brilhante (1981), na qual a personagem Chica Newman

(Fernanda Montenegro) – antes de se modificar graças ao seu romance com o

chofer vivido por Cláudio Marzo – é a riquíssima e equivocada mãe que resolve

comprar uma esposa para o filho homossexual. Já em Senhora, o equívoco de

Lourenço é afastar Pedro da mãe de Aurélia por acreditar que ela é uma perdida e,

portanto, responsável pelo desvio de seu filho do bom caminho.

Esse entrecho da novela no qual Lourenço aparece é bem semelhante ao

que acontece no livro. Mas, sem o mesmo grau de exagero amplificador que

caracteriza, por exemplo, a narrativa de Terrail – autor que se valia da

redundância à pilhagem para esticar ao máximo as aventuras de Rocambole e,

assim, saciar os anseios do público e atender ao mercado –, Gilberto Braga, a fim

de que a adaptação de Senhora para a televisão tivesse os 79 capítulos

estabelecidos pela emissora, acrescentou à trama principal do romance novos

entrechos também atravessados pela oposição entre o amor e o dinheiro. Nesses

dois campos antagônicos, Braga distribuiu os personagens segundo a pedagogia

moral que o folhetim herdou do drama burguês e do melodrama clássico.

Por isso, com o objetivo de mostrar que o amor é mais importante do que o

cálculo racional, o autor apresentou os personagens do bem como sendo aqueles

identificados à sensibilidade romântica, tal qual definida por Löwy e Sayre, ou

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seja, são tipos desencantados com a quantificação do mundo, partidários da ideia

de que o que deve reger a vida são os bons sentimentos e não o dinheiro. Em

contrapartida, os personagens do mal são os preocupados com aparências,

pragmáticos, ambiciosos e arrivistas, guiados pelo desejo de ascensão social nem

que para isso seja necessário um casamento de conveniência.

Dois tipos exemplares dessa divisão maniqueísta são os personagens

Lemos e Mariquinhas. O tio de Aurélia conserva na novela o traço anedótico que

tem no livro por meio de características como, por exemplo, trocar uma palavra

por outra e também através do cinismo e da dissimulação com os quais reage às

humilhações que lhe são impingidas por Aurélia. O tutor suporta tudo porque,

além do trabalho com a sobrinha ser uma fonte de renda, administrando os bens da

moça, ele aproveita sempre para roubá-la um pouco.

Entre as razões que a sobrinha tem para castigá-lo com pequenas

crueldades como, por exemplo, servir-lhe um chá com sal, está o fato de que

Aurélia tem em seu poder uma carta dos tempos em que era pobre, na qual Lemos

se oferece para cafetiná-la ou, em suas palavras eufêmicas, transformá-la de modo

que ela pudesse ser transportada para o seio do luxo, já que, no entendimento do

tio, uma moça com os atributos físicos da heroína é uma mercadoria que poderia

render muitos dividendos. Assim, ao se dirigir por escrito à sobrinha, ele pede:

“Deixe-me ser o empresário desta metamorfose lucrativa para ambos” (idem).

Esse entrecho da carta também está presente no romance de modo a

assegurar a Aurélia o controle sobre o tio. Entretanto, na novela, o mau-caratismo

de Lemos é ampliado, já que – além de candidato a cafetão – Gilberto Braga

transforma-o em agiota, ou seja, no signo máximo da corrupção dos valores pelo

dinheiro. Por meio dessa opção, de conferir ao personagem do tio a prática da

agiotagem, o novelista resgata o aspecto tenebroso presente, segundo Marlise

Meyer, no folhetim oitocentista, cujas criaturas do tecido ficcional circulam por

um mundo que:

[...] oferece a imagem de uma luta agônica pela vida, opondo os fracos, os virtuosos, as vítimas da sociedade, os perseguidos, as mulheres abandonadas, estupradas, viúvas, esposas-mártires, as crianças espancadas, seviciadas, os pobres, todos os injustiçados, enfim, aos poderosos, aos fortes, aos hábeis, aos luxuriosos, aos ricos, aos perversos, aos patrões, aos contramestres, aos agiotas, ao destino adverso, aos maus, em suma. (MEYER, 1996, p. 415).

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Como praticante da usura, o tio da heroína assume na novela um caráter

ainda mais central do que possuía no livro porque, ao emprestar dinheiro a juros

para Mariquinhas, ele deixa de ser apenas o mediador da negociação do

casamento às escuras para gerar o endividamento que piora as condições da

família do jornalista, ou seja, Lemos dá o tiro de misericórdia para que Seixas

capitule ao plano secreto de Aurélia.

No plano diametralmente oposto à ambição de Lemos, Mariquinhas

representa o amor abnegado que o Romantismo herdou da ética da sensibilidade,

isto é, ela personifica o sentimento que eleva as coisas do espírito em detrimento

da matéria. Apresentada como uma ávida leitora de romances, a irmã mais velha

de Seixas acaba sendo a principal porta-voz do discurso romântico, no qual o

amor aparece como a única garantia de felicidade.

Tal pensamento é reiterado em grande parte das cenas da personagem,

sobretudo, em seus diálogos tentando convencer o jornalista a desistir do

casamento arranjado. Por meio de seu insistente discurso com frases como, por

exemplo, “Veja bem, meu irmão, porque o que rege este mundo não é o dinheiro.

São os sentimentos” (ibidem), Mariquinhas torna-se uma importante influência

para que Seixas opte pelo amor.

Essa rigidez maniqueísta que demarca em campos opostos Lemos e

Mariquinhas não se estende a todos os personagens da novela, pois, assim como

no romance de José de Alencar, a sensibilidade romântica na adaptação de

Gilberto Braga assume uma feição complexa, não se apresentando de forma

homogênea. Desta forma, a heroína Aurélia Camargo, ao mesmo tempo em que é

vítima do dinheiro, compreende o império da fortuna e o carreirismo a ponto de

manobrá-los em proveito próprio. Ou seja, ela se beneficia da engrenagem social,

confiando aos mesmos mecanismos do dinheiro que considera odiosos a obtenção

de sua felicidade, esta traduzida na realização de sua vingança contra Fernando

Seixas.

Por isso, a fim de levar adiante seus planos, Aurélia é capaz tanto de dar

condições econômicas ao advogado Torquato Ribeiro (Osmar Prado) de desposar

Adelaide Amaral (Fátima Freire) no lugar de Seixas, quanto de permitir que seu

tio Lemos explore Mariquinhas (Lúcia Alves), a irmã de Seixas, de modo que

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este, sabendo das dívidas de sua família, fique vulnerável a ponto de ser obrigado

a aceitar o dote de 100 contos de réis a ele oferecido. Ou seja, para a versão

eletrônica da heroína de Alencar também cabe a análise de Antônio Cândido

(1993), segundo a qual Aurélia seria um personagem capaz de fazer com que as

noções de bem e mal percam a conotação simples, cedendo lugar à complexidade

humana.

A Aurélia de Gilberto Braga tem em comum com a de Alencar essa

mesma complexidade de que fala Cândido e, exceto pelo fato de deixar

Mariquinhas ser enredada por Lemos – atitude pela qual, como boa heroína, pede

perdão –, a personagem em sua versão televisiva é tão romântica quanto a do livro

no sentido de que falam Löwy e Sayre, ou seja, naquilo que o Romantismo tem de

reabilitação do amor de modo a confrontar o cálculo racional. Assim, embora

Meyer (1996) aponte que nos folhetins o dinheiro permitia à mulher exercer um

forte papel que geralmente cabia ao homem na sociedade, o grande objetivo de

Aurélia após receber a herança do avô passa a ser vingar o amor, como diz a Dona

Firmina na cena 17 do capítulo 45: “Deus me enviou esta arma para dar combate a

esta sociedade corrompida e vingar o sentimentos nobres escarnecidos pela turba

de oportunistas” (Braga, op.cit.).

Mas mesmo no papel de vingadora ferida, Aurélia é bem menos

embrutecida pelo dinheiro do que outras heroínas folhetinescas. Por isso, ao

compará-la com Cora, uma das Mulheres de Bronze32 da história escrita por

Xavier de Montepin, ou seja, com a heroína filha de escrava e de um rico

plantador das Antilhas, cuja herança lhe permite se fazer de justiceira e vingar

humilhações antigas, Meyer diz: “É também o caso de Aurélia, com a diferença de

que a heroína de Montepin não cede sentimentalmente. Ela é mais dura, não se

dobra, como o fará finalmente Aurélia diante de Seixas. Mais romântico, Alencar”

(1996, p. 312).

Esse traço sentimental de Aurélia é mantido na novela. Assim, na fase do

Resgate, quando Seixas consegue resgatar sua liberdade graças a negócios com

32 Em 1966, Ivani Ribeiro se baseou nesse romance para escrever a novela Almas de Pedra exibida pela TV Excelsior. Na trama, Cristina (Glória Menezes) passa-se por homem para vingar a morte do pai. Mas, em meio a tanto ódio, havia lugar para o amor. Cristina, transformada em Cristiano, acaba se apaixonado por Danilo (Tarcísio Meira), seu professor de masculinidade (Fernandes, 1994).

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carruagens de aluguel e ao investimento em libras esterlinas, a heroína revela ao

jornalista que havia feito um testamento consagrando o rapaz seu herdeiro

universal. Ou seja, ela nunca deixou de amá-lo mesmo quando mais cruelmente o

ofendia.

No lado oposto a esse sentimentalismo de Aurélia, Fernando Seixas, tanto

no romance, quanto na novela, aparece pragmático na etapa Quitação, ou seja, no

tempo passado, quando troca o amor da heroína pelo dote de 50 contos de réis

oferecido por Amaral. Nessa fase, ele é o intelectual elegante e pobre que, incapaz

da ascese comercial, resolve o problema da posição social trocando o amor da

pobre Aurélia pelo dote de Adelaide.

Seixas justifica sua atitude dizendo à irmã Mariquinhas que, além de amar

mais a si próprio, não deixará de frequentar a sociedade, de fazer figura entre a

gente do tom, de ter por alfaiate o Raunter, por sapateiro o Campos, por camiseria

a Cretten, por perfumista o Bernardo. Ou seja, por meio desse apreço de Seixas

pelos luxos, exposto na fase Quitação, Alencar e Braga mostram como homens de

sensibilidade tal qual o jornalista eram obrigados a agir no limiar da competição

burguesa, quando o gosto estético e o senso de beleza expressos nos padrões de

consumo, além de denotarem uma posição moral, faziam parte do mecanismo de

ascensão, já que abriam portas para ambições maiores como, por exemplo, a

carreira política que Seixas almejava seguir.

Um visual adequado também era fundamental para que uma mulher fizesse

um bom casamento. Esse é outro argumento que Seixas usa para justificar sua

decisão de abandonar Aurélia, já que só ascendendo socialmente ele poderia dar

às irmãs não apenas condições de oferecer um dote, mas também de se

apresentarem de forma decente em sociedade, de modo a conseguirem um bom

partido.

Conhecedor das exigências da vida em sociedade, o rapaz sabe – como

afirma Gilberto Braga por meio da fala da personagem Lísia Soares (Maria do

Rocio), uma das espirituosas anfitriãs do folhetim – que tais eventos são um

verdadeiro terreno de batalha no qual o que importa é ver e ser visto. Logo,

melhorando o visual das irmãs na medida do possível, Seixas tem a intenção de

conseguir um marido pelo menos para a irmã mais nova, pois a mais velha já está

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com 28 anos e essa idade “avançada” – mais a falta de dote – diminui

consideravelmente as chances que a moça tem de se casar.

Do modo semelhante ao que ocorria nos folhetins da terceira fase, o

casamento reaparece nesse entrecho como uma forma de transformação da

condição social feminina. Por isso, da mesma maneira, o dote como requisito ao

enlace matrimonial assume importância igual à que tinha nos romances de vítima,

nos quais as mulheres se casavam por dinheiro, motivadas por uma ambição

própria ou familiar.

A equivalência da personalidade entre o Seixas da novela e o do romance

detectada na etapa da obra que corresponde ao passado não permanece nas demais

etapas relacionadas ao tempo presente, pois Braga atenua a ambiguidade do

jornalista, heroicizando-o na perspectiva maniqueísta do melodrama. Assim, em

sua versão televisiva, o personagem – ao contrário do que ocorre no livro –

começa a se modificar antes mesmo de ser enredado pela vingança engendrada

graças ao poder do dinheiro.

Além disso, enquanto no romance é o gosto pelos luxos e o pânico da

pobreza que levam Seixas a romper o compromisso com Adelaide para se meter

num casamento às escuras em troca de 100 contos de réis, na novela, ele termina

com a filha de Amaral ao re-encontrar Aurélia e perceber que ainda a ama. Ele só

capitula ao acordo para o casamento com a noiva misteriosa porque descobre que

a irmã está endividada com um agiota. Ou seja, na trama televisiva, sua motivação

para aceitar o dote é menos a ambição do que o amor-sacrifício.

Às vésperas de assinar o acordo, Seixas ainda tenta procurar Aurélia para

confessar o seu amor e pedir perdão. Porém Gilberto Braga faz o personagem

literalmente cair do cavalo no final do capítulo 24, isto é, o autor recorre a um

coup de théâtre típico dos dramas românticos de Alexandre Dumas e, desta forma,

além de criar um gancho no final do capítulo, adia as negociações por uma

semana no tempo diegético.

Com o acordo já assinado, ao saber que a noiva secreta é Aurélia, o

jornalista tenta abrir mão do dote de 100 contos de réis, mas Lemos – além de não

permitir – como vingança à sobrinha pelas humilhações às quais ela lhe submete,

esconde dela o gesto do rapaz. A atitude de Seixas – que não existe no livro – de

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tentar descartar o dote –, além da motivação fraternal para aceitá-lo e da tentativa

de pedir perdão interrompida pela queda – entrechos que também não existiam no

romance –, corroboram para o argumento de que, na ficção televisiva, o

personagem torna-se menos pragmático para assumir uma coloração romântica

mais próxima do entendimento de Lowy e Sayre, uma vez que o jornalista se

modifica pela força transformadora do amor.

Ou seja, na novela, a noite de núpcias na qual Aurélia humilha Seixas,

revelando-lhe o seu plano de vingança para puni-lo da degradação moral em

função do dinheiro – atitude que ela classifica como um crime – é o golpe fatal no

pragmatismo do jornalista, pois este, antes mesmo da vingança, já passava por um

processo de transformação. A partir desse ponto desenrolam-se os 13 capítulos

finais da trama televisiva que, no romance, correspondem às etapas Posse e

Resgate.

Humilhado, mas disposto a reaver o apreço de sua amada, Seixas aceita

com rigor o papel de mercadoria que lhe é imposto, mas romanticamente rejeita os

luxos que o cercam: vai a pé para o trabalho, usa as roupas que trouxe de casa,

dispensa o valet de chambre que Aurélia contratou e, por fim, deixa transparecer

fisicamente seu sofrimento romântico, emagrecendo e deixando a barba por fazer.

Tais atitudes passam a incomodar a heroína, acabando por revelar assim mais um

traço de ambiguidade da personagem, pois aquela que, antes tripudiava das

convenções sociais, cobra de Seixas outra postura com medo de ser a chacota da

Corte.

Outra atitude de Seixas que causa estranhamento em Aurélia nessa fase é

que o rapaz se transforma num funcionário exemplar. Em ambos os suportes, o

jornalista – antes de se modificar por amor à heroína – é um péssimo servidor

público. Mas, na adaptação, em consonância com a pedagogia do drama burguês e

do melodrama clássico, Seixas ganha um contraponto na figura de Torquato

Ribeiro (Osmar Prado) que, na trama, passa a ser seu colega de repartição graças à

influência de Aurélia. Enquanto Seixas tem uma atitude debochada em relação ao

serviço público, Torquato é um funcionário exemplar. A certa altura da trama, já

noivo de Adelaide, ele vive o dilema ético de ter de entregar o pai de sua amada à

Justiça. Amaral, ao lado de Gabriel Abranches, é acusado de ter facilitado a

entrada ilegal de uma grande quantidade de casimira inglesa no país.

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Com o apoio da noiva, Torquato acaba agindo de acordo com a lei. Esse

desafio de Adelaide à autoridade paterna é um elemento que a aproxima das

heroínas dos romances sentimentais do século XVIII, ou seja, de personagens que

também costumavam firmar sua integridade desafiando o pai. Mas Adelaide

também guarda semelhanças com as leitoras daquele tipo de romance acusado de

gerar sentimentos contra as convenções. A personagem de Fátima Freire é

apresentada como uma amante da literatura romântica e, ao longo da trama, vai

progressivamente opondo-se aos tradicionalismos. E, assim, de inicialmente

apenas questionar por que não pode ir sozinha ao baile, ela acaba fugindo para se

casar secretamente com seu grande amor, já que, quando dele é afastada, sofre

prostrada no melhor estilo do período do Romantismo classificado como “mal do

século”.

Já no personagem de Torquato, tem-se um desenho mais definido de como

as ideias burguesas encontram-se deslocadas em relação ao modelo do romance

europeu. Embora seja apresentado como um rapaz honesto, republicano,

abolicionista, com fortes convicções liberais, Torquato não questiona o

favorecimento que obteve de Aurélia. Em outras palavras, os valores burgueses de

Torquato, nesse caso – ao contrário do que acontece em relação ao suposto crime

cometido por seu futuro sogro – não entram em choque com a prática do favor,

que aparece em vários entrechos da novela como, por exemplo, quando Seixas

esconde um processo contra Amaral por ele ser o pai de sua noiva Adelaide,

quando o mesmo Amaral pede a um deputado para conseguir a demissão de

Seixas do jornal, a fim de se vingar do rapaz por ele ter desistido de se casar,

quando Aurélia usa de sua influência para que Seixas seja readmitido etc.

O liberalismo de Torquato entra mais fortemente em choque com a

escravidão. Outro ponto de tensão em sua relação com o pai de Adelaide é que o

futuro sogro é contra a abolição. Desta forma, de acordo com a perspectiva

pedagógica, os valores abolicionistas são encarnados nos personagens de boa

índole, enquanto os valores escravocratas a serem rejeitados estão ligados a

personagens de natureza perversa ou conservadora.

Aurélia é proprietária de escravos, mas, ao contrário do romance, no qual

isso não é uma questão, a novela atualiza esse ponto dando à heroína ideias

abolicionistas. Esse aspecto da personagem é também uma forma de aproximá-la

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de Seixas – um abolicionista na trama – e contrapô-la a Adelaide quando esta é

sua “rival”, já que a filha de Amaral é caracterizada como alguém que não discute

política.

A única escrava que tem fala na novela chama-se Anastácia. Apesar de não

ser livre, essa personagem age como se assim o fosse, o que a torna mais próxima

da figura de uma empregada doméstica – personagem de apoio muito comum

desde as radionovelas, nas quais costumava ser identificada por uma forma de

falar gramaticalmente considerada incorreta. Tal estratégia de distinção

comumente utilizada pelos autores de rádio para melhor separar o mundo dos

patrões e o dos empregados era um recurso já bastante utilizado no teatro do

século XIX por Martins Pena. Gilberto Braga repete esse procedimento nos

diálogos de Anastácia e a personagem acaba funcionando como um contraponto

cômico ao refinamento de Aurélia que, permanentemente, corrige o linguajar e os

modos da escrava. Mas, como boa heroína, nunca a castiga.

Anastácia (Cléa Simões), que não existe no livro, tem na novela a mesma

função de determinados tipos presentes no romance, a de conferir à obra o que

Roberto Schwarz classifica, em sua análise da Senhora de Alencar, como o tom

mais desafogado, ou seja, é um personagem engraçado que representa um respiro

em relação ao drama central. A utilização desse tipo de personagem também por

Gilberto Braga vem ao encontro do receituário corrente na teledramaturgia

expresso por Daniel Filho (2001) em seu livro O Circo Eletrônico – Fazendo TV

no Brasil.

Para o diretor, uma novela é centrada em poucos personagens sobre os

quais o público se interessa e esses tipos principais devem ser mostrados durante

pelo menos 60% do capítulo, mesmo que eles estejam separados. Em segundo

plano, ainda de acordo com a visão de Filho, aparecem as tramas paralelas vividas

por personagens secundários com histórias próprias, mas menos expressivas. São

essas criaturas que, em geral, ficam responsáveis por trazer um pouco de comédia,

para aliviar a trama dramática. Em outras palavras, os personagens periféricos

entram na novela como o comic relief, aliviando a tensão e suavizando a história

ao trazerem um pouco de riso, pois, caso contrário, segundo o diretor, seria

impossível para o público aguentar apenas a emoção dramática.

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Assim como Anastácia, aparece na novela com a mesma função de respiro,

a informante de Aurélia e mendiga por opção Bernardina (Darcy de Souza).

Depois de verificar que pedindo esmolas ganhava mais do que trabalhando, essa

personagem decidiu nunca mais parar de mendigar. Presente no romance apenas

como informante, mas sem o lado de atualização do Rocambole em tom de

comicidade que possui na novela, Bernardina – permite na trama televisiva uma

leitura crítica por apontar como o trabalhador é mal remunerado, mas também dá

margem à visão conservadora de que muitos mendigos são pessoas avessas ao

trabalho.

Na novela, além de Anastácia e Bernardina, outros personagens

secundários comentam ou dialogam de forma direta ou indireta com a trama

principal, conferindo à adaptação seu caráter pitoresco. Nesse aspecto, a trama

televisiva guarda semelhanças com o romance, pois era por meio desses tipos e de

suas anedotas cotidianas que, além de conferir o respiro necessário à trama,

Alencar imprimia a cor local. Em outras palavras, era desta forma que o autor

fazia, segundo Schwarz (op.cit.), as modificações necessárias para que o modelo

do romance europeu pudesse ser ajustado à realidade brasileira, isto é, tais

criaturas é que tornavam povoado o romance ao comporem o traçado social

fluminense em que circulam as figuras centrais, de cuja importância são a medida.

Se esses tipos fossem eliminados, restaria apenas um romance francês.

Entretanto, esses seres que circundam o casal principal não apresentam, no

livro, discussões acerca da quantificação da vida ou da importância dada às

aparências em sociedade. Na novela, ao contrário, isso acontece, por exemplo, no

registro cômico de Bernardina, mas também no discurso de Mariquinhas que,

assim como Aurélia, entende a divinização do dinheiro como um estado de coisas

a recusar.

Outra diferença da novela em relação ao romance é que o tom mais leve

não fica restrito aos personagens periféricos que circundam a mocidade casadoira,

a novela – por sua própria extensão – exigiu que Gilberto Braga criasse entrechos

engraçados também no círculo mundano representado pelos jovens à procura de

suas almas gêmeas em festas, óperas e saraus. Assim, há o divertido triângulo

formado por Nicota – a bela irmã caçula de Seixas – apaixonada pelo bronco

Afonso (Ivan Setta) – filho de Fagundes (Nestor de Montemar), o dono do

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armarinho –, mas encantada com o refinamento representado pelo galanteador

rapaz de sociedade Alfredo Moreira (Fausto Rocha Jr.). Nicota, assim como

Adelaide e Mariquinhas, tem traços que remetem às jovens da Era da

Sensibilidade. Entretanto, ao contrário das outras duas, Nicota é uma leitora de

revistas cujo material a conduz a devaneios mais ajustados às convenções sociais.

Por isso, embora ame Afonso, Nicota deseja frequentar saraus para aprender

hábitos finos e repassá-los ao namorado.

A fim de ajudar o filho a ser o par ideal que Nicota deseja, Fagundes

decide transformar Afonso num gentilhomme. Entretanto o professor contratado

para o filho acaba por se demitir, pois pai e aluno não conseguem entender o que

lições de literatura possam ter a ver com refinamento. A transformação do

personagem fica restrita à nova aparência de Afonso proporcionada pelo dinheiro

que o dono do armarinho revela ter quando vê o filho perdendo a briga por Nicota.

Nessa brincadeira, por meio da qual Gilberto Braga retoma num registro

cômico a importância às normas e às convenções que está no centro de outras

tramas da novela, há ecos do burguês de Moliére que contrata professores

almejando a fidalguia. Mas esse novo entrecho acrescido à trama original de

Senhora também remete ao processo de ilustração dos burgueses ricos e sem

cultura que se dava pela mediação dos profissionais liberais, técnicos e cientistas

também burgueses, mas sem tanto dinheiro.

Na outra ponta do triângulo, aparece Alfredo Moreira, um eterno

apaixonado por todas as raparigas da Corte. As demonstrações exageradas de

sentimento desse personagem permitem uma relação com o pensamento de

Campbell sobre quanto determinadas expressões românticas guardam do

sentimentalismo que caiu em desuso, entre outras razões, justamente porque

começaram a surgir dúvidas quanto à sinceridade de emoções tão visivelmente

demonstradas.

Além disso, por meio do comportamento excessivamente romântico de

Alfredo, Braga, na linha de Ponson du Terrail, utiliza a paródia como forma de

atualização. Para isso, ele se vale, por vezes, de uma metalinguagem distanciadora

que expõe os clichês associados ao Romantismo. Um exemplo disso está num

diálogo entre Alfredo e Nicota que acontece no capítulo 67:

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Nicota: – Não sei por que tanto entusiasmo em minha companhia se é o senhor que fala o tempo todo.

Alfredo: – Falo porque tenho de tentar ao menos exprimir o que eu estou sentindo...

Nicota (gozadora): – Ah, tentar eu não tenho dúvida de que o senhor está tentando...

Alfredo: – Sinta o bater de meu coração. Como bate forte por estar ao seu lado!

Batidas à porta.

Alfredo (ouve as batidas): – Mesmo eu não sabia que estava batendo tão forte.

Nicota (gozadora): – Não é o seu coração que estamos ouvindo, senhor Moreira. Estão batendo à porta (BRAGA, 1975).

O contraponto de Moreira é o personagem de Eduardo Abreu, que encarna

aspectos profundamente identificados com o Romantismo como “mal do século” e

a “boemia”. Trata-se do rapaz rico que sofre por ter seu amor rejeitado por Aurélia

e dilapida o patrimônio num processo autodestrutivo. Vale-se do dinheiro e das

influências também, tanto para ajudar as pessoas, como para tentar afastar Seixas.

No romance, é insinuado que a degradação o levaria ao suicídio. Na novela, isso

sequer é mencionado, mas a degradação é mantida.

Além dessa atenuação em relação à questão do suicídio, a novela tem

outras soluções consoladoras de forma que nada aconteça a ponto de preocupar

alguém. Assim, por exemplo, Torquato descobre que o pai de Adelaide é inocente

e que o verdadeiro culpado é Gabriel Abranches, ou seja, seu rival na disputa do

amor pela moça.

Essa estrutura de consolação fica mais evidente na manutenção do happy

end que, já no romance, segundo Antônio Cândido, significa uma atenuação das

consequências do forte conflito entre a condição econômica e social e a virtude

que a história traz. A novela termina com todos os casais devidamente formados e

até a irmã mais velha de Seixas consegue se casar. Aurélia usa o dinheiro para

presentear todos os amigos e perdoa até o agiota Lemos. Entretanto – sentimental

sim, ma non troppo – a heroína tem o cuidado de retirar o tio da administração de

seus bens.

Após Senhora, Gilberto Braga, ainda no horário das 18h, adaptou A

Escrava Isaura (1976), romance de Bernardo Guimarães, e a peça Dona Xepa

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(1977), de Pedro Bloch. A luta da escrava branca (Lucélia Santos) para se libertar

do cruel senhor Leôncio (Rubens de Falco) tornou-se um sucesso mundial. Já a

história da feirante interpretada por Yara Cortes obteve a maior audiência entre as

novelas das seis da emissora até então. Esse bom resultado credenciou o autor

para o horário nobre, no qual estreou com Dancin’ Days.

Essa trama, que tinha a onda disco como pano de fundo e trazia Sônia

Braga no papel de uma ex-presidiária, lutando para conquistar o amor da filha

adolescente, virou uma febre nacional em 1978. Já na década de 1980, Braga

continuou a escrever novelas das oito que também tiveram excelente repercussão,

mas o ponto alto na carreira do autor nesse período foi Vale Tudo, em cuja trama o

dinheiro, assim como na adaptação de Senhora, ocupa o lugar central.

Vale a pena ser honesto no Brasil? Esse questionamento era a premissa da

novela, que estreou em 16 de maio de 1988, quando no país, há três anos sob a

Nova República, ou seja, recém-saído da ditadura – repercutiam na imprensa

escândalos sobre corrupção em todos os níveis e instâncias. Ao se apropriar

melodramaticamente desse quadro, que pôde vir à baila graças ao afrouxamento

da censura que havia no regime militar, Gilberto Braga encontrou um terreno fértil

para uma atualização do tema romântico da força dissolvente do dinheiro, já que

este é o elemento catalisador da trama central, na qual mãe e filha são colocadas

didaticamente em campos opostos de modo a responder o dilema ético contido na

pergunta inicial.

Então, assim como em Senhora, temos em Vale Tudo o maniqueísmo de

caráter pedagógico, cujos polos em oposição se dividem entre os que valorizam o

amor e aqueles que divinizam o dinheiro. Contudo, em razão do tema central da

novela da década de 1980 ser uma discussão sobre honestidade, Gilberto Braga

enfatiza nos marcadores de romantismo e de arrivismo herdados do romance

folhetim europeu a ideia de que os bons são os honestos e de que os maus são os

corruptos.

Além disso, se na adaptação do romance de Alencar, Braga já trabalhara

com personagens ambíguos, que davam às noções de bem e mal contornos

flexíveis, em Vale Tudo, a rigidez do posicionamento dos tipos na demarcação dos

campos antagônicos é ainda menor. Desta forma, nem os corruptos deixam de ter

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momentos sentimentais e nem todos os bondosos abrem mão do “jeitinho

brasileiro”.

Em meio a essa maleabilidade de caráter, a grande exceção é a heroína

Raquel Acioly (Regina Duarte), cuja honestidade é um valor que ela aprendeu a

cultuar com o pai Salvador (Sebastião Vasconcelos), funcionário incorruptível da

Receita Federal, a quem a neta Maria de Fátima (Glória Pires) pede que deixe

passar – em troca de dinheiro sem cobrar imposto – meia dúzia de videocassetes

do modelo César (Carlos Alberto Riccelli), em quem estava interessada. Ou seja,

Gilberto Braga volta a abordar a questão do bom e do mau funcionário público

como havia feito em Senhora, mas de modo diferente.

Na adaptação, o dinheiro dá lugar à felicidade amorosa no entrecho do

favorecimento que gera o dilema ético de Torquato Ribeiro, pois o processo em

suas mãos é contra o pai de sua noiva. Já em Vale Tudo, o sentimentalismo não

está em cena nessa questão e o suborno proposto para a entrada ilegal de

mercadorias no país serve a uma discussão33 entre Salvador, Raquel e Fátima que

sintetiza o embate moral que permeia toda a novela:

Fátima: – Ah! Será que se o meu avô livrar a cara de um amigo meu pra pagar a micharia de um imposto vai levar o país à falência, poxa?!

Salvador: – O país já foi a falência econômica, moral [...]

Fátima: – Ótimo, vovô! O último homem honesto do Brasil. Isso dava até reportagem pro Fantástico. Agora, vai conseguir o que com isso, vovô? Chegar na sua idade com uma mão na frente e outra atrás e uma porcaria de casa no fim do mundo! [...]

Fátima: – Isso aqui é um país de trambiqueiro, gente! Vocês tão pensando que eu não leio jornal. Vai conseguir o que com sua honestidade, vovô? [...] Vai conseguir acabar com os assaltantes, com os pivetes, com os marajás, com político ladrão, com os colarinhos brancos que tão aí dando golpes de milhões e milhões de dólares?

Raquel: – Nem todo mundo é ladrão nessa terra não, dona Fátima.

Tem muita gente nessa terra aqui que trabalha e que é honesta!

33Essa cena de Vale Tudo reproduz uma discussão familiar que, segundo Gilberto Braga, inspirou a criação da novela: “Eu estava jantando com meus parentes mais próximos e alguém chamou meu padrinho de medíocre e babaca. Disseram: – Ah, ele foi delegado em Foz do Iguaçu e Belém e poderia estar rico. Todo mundo que foi delegado nesses lugares tem apartamento na Vieira Souto e ele não tem nada, é pobre. Eu questionei: – Mas que critério é esse? Isso não é ser babaca. Ele tem uma vida digna. Tenho muito orgulho de ele não ter se corrompido. Vale Tudo nasceu dessa discussão, da figura do meu padrinho e da distorção – presente em praticamente todo o país – dos que acham que quem não é corrupto é babaca” (BRAGA, 2008, p. 388).

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Fátima: – Ninguém presta, ninguém vale nada, ninguém cumpre lei nenhuma, tá! De uma maneira ou de outra, todo mundo aqui nessa terra é corrupto.

Salvador: – De uma maneira ou de outra, todo mundo aqui nessa terra é corrupto, porque você aceita isso de forma natural. A corrupção é uma bola de neve.

Raquel: – Quem não tem moral, hoje rouba, amanhã mata. [...]

Salvador: – Quem é conivente também é responsável, Fátima! (BRAGA, 1988).

Como se vê, por meio da argumentação de Salvador e Raquel, baseada em

valores como dignidade e honra, que para Fátima não passam de conceitos

abstratos, Gilberto Braga dá vazão ao Romantismo no registro reformador de que

falam Lowy e Sayre, porque os personagens apontam a não conivência à

corrupção como uma forma de aperfeiçoamento da realidade. Dito de outra forma,

a valorização da honestidade é uma solução moral sem, contudo, propor uma

alternativa ao capitalismo que está na base das desigualdades sociais que

conduzem ao querer levar vantagem em tudo.

Em contrapartida, a fala de Fátima revela outro tipo de ajuste ao sistema

que remete ao circuito de ódio identificado por Meyer no universo de Rocambole.

Isso porque, assim como a personagem criada por Ponson du Terrail, a filha de

Raquel justifica – não só seu pedido ao avô – mas também suas ações futuras para

se dar bem no fato de que todos estão inseridos numa sociedade competitiva e

corrompida, na qual a trapaça é a lei.

Movida por tais convicções, Fátima, após a morte do avô, vende “a

porcaria de casa no fim do mundo” que este lhe deixou por meio de uma

negociação que faz escondida da mãe. A personagem tem então nesse entrecho a

primeira de uma série de ações rocambolescas no que essa adjetivação carrega do

sentido apontado por Meyer como sendo algo planejado friamente com o objetivo

de conseguir dinheiro.

Com o valor que consegue obter pela casa, Fátima deixa Foz do Iguaçu e

parte para o Rio de Janeiro almejando para si a vida que vê em revistas caras e

novelas de TV. Esse material de sonho que a personagem cresceu consumindo

num processo de hedonismo autoilusivo contribuiu para seu descontentamento

com sua posição social originado quando ela, ainda criança – como é mostrado na

primeira cena da novela – presenciava discussões violentas dos pais motivadas

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pelas dificuldades financeiras do casal. A partir de então, a personagem passa a

nutrir o firme propósito de fazer o que for preciso para subir na vida, dando início

a um movimento no sentido de romper com a figura materna oposta ao que ela

deseja para si mesma, pois Raquel é uma mulher modesta, sem grandes ambições,

que trabalha como guia turístico para sobreviver.

Raquel acredita que esse gosto de Fátima por coisas sofisticadas tenha sido

herdado do pai da moça – Rubens (Daniel Filho), um pianista boêmio, sonhador,

que vive além de suas possibilidades e que, por não vencer como artista, tenta

conseguir dinheiro em jogos e apostas. Contudo, tomando como parâmetro a

separação que Campbell faz dos burgueses em filisteus e românticos, constata-se

que pai e filha são semelhantes apenas no descontentamento advindo da

discrepância entre seus sonhos e a realidade que os cerca. Isso porque os

devaneios de Rubinho em relação ao dinheiro estão completamente atrelados a sua

arte, enquanto os prazeres ilusórios que Fátima experimenta ao ler as revistas têm

a ver com os bens duráveis luxuosos restritos àqueles que gozam de uma

excelente condição financeira. Isto é, sua perspectiva é completamente utilitária

em oposição à do pai, essencialmente romântica.

No Rio de Janeiro, Fátima – ancorada no gosto sancionado pelas elites

presente no material de sonho que a vida inteira consumiu – segue a cartilha de

Seixas sobre a importância das aparências como passaporte para a ascensão social.

Entretanto, de modo diferente ao do arrivista de Senhora, a filha de Raquel aplica

golpes rocambolescos, a fim de ficar próxima de pessoas do jet set. Por acreditar

que frequentando o grand monde terá mais chances na carreira de modelo que

almeja a princípio, ela finge ser rica, hospeda-se no Copacabana Palace e até

simula um incêndio na revista Tomorrow, para roubar uma agenda na qual estão

os contatos de profissionais capazes de adequarem seu visual ao que é de rigueur.

Paralelamente a essas ações de Fátima, Raquel – acreditando todo

momento que a filha vendeu a casa porque foi influenciada por César – também

parte para o Rio de Janeiro atrás dela, a fim de resgatá-la. Esse movimento da

personagem revela o quanto ela é o protótipo da mãe – um dos desdobramentos do

mito judaico-cristão da mulher sobre o qual o melodrama foi estruturado (Oroz,

1999). Por isso, assim como a mãe de Seixas, Raquel define-se pela bondade, pela

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capacidade de se sacrificar pelos filhos e também pelo exagero característico do

gênero teatral do qual a telenovela não abriu mão.

Desta forma, apesar dos indícios de que a filha tem um péssimo caráter, a

personagem de Regina Duarte – nessa altura da trama – continua a acreditar que

Fátima é uma pessoa boa. Nem a chegada conturbada de Raquel ao Rio de

Janeiro, quando ela tem a carteira com todo seu dinheiro roubada por um pivete

em meio a uma discussão com o taxista por este tentar cobrar a mais pela corrida,

abala suas certezas otimistas, entre elas a de que o Brasil – como a personagem

defendeu na discussão de Fátima com o avô – é também um país de gente boa,

honesta e que trabalha.

Corrobora para o pensamento de Raquel o apoio que ela recebe dos

moradores do Catete, para onde vai à procura de Rubinho, a fim de que o pai de

Fátima lhe dê uma pista da filha ou lhe ajude a encontrá-la. Mas, embora ao

ajudarem a heroína, esses tipos estejam em consonância com a sensibilidade

romântica tal qual apontada por Lowy e Sayre no que esta tem de recuperação dos

valores qualitativos como a solidariedade, a maioria deles é flexível ao “jeitinho

brasileiro” que a personagem de Regina Duarte condena.

Assim, por exemplo, a personagem Aldeíde Candeias (Lilian Cabral) que

acolhe Raquel em sua casa – apesar de trabalhar duro como secretária da TCA, a

empresa de aviação de Odete Roitman, e de ser “boa praça” – comete pequenos

delitos que vão desde embolsar os rolos de papel higiênico da empresa até trocar

as etiquetas dos produtos no supermercado. Como contraponto, ela tem seu

honesto irmão Aldálio (Pedro Paulo Rangel), apelidado de Polyana por sempre

procurar ver o lado bom das coisas. Esse personagem permite uma dupla leitura,

já que sua postura de vida pode tanto significar uma visão otimista e esperançosa

em relação ao país, quanto uma atitude de conformismo e aceitação do lado

devorador do sistema capitalista.

Por meio desses e de outros tipos anedóticos do núcleo do Catete, Gilberto

Braga retoma a estratégia adotada por José de Alencar, a fim de adequar o modelo

europeu do folhetim romântico à cor local. Por isso, em Vale Tudo, há a mesma

variação de tom da periferia para a trama central que Roberto Schwarz (op.cit.)

identifica em sua análise do romance Senhora e mantida por Braga na adaptação.

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Logo, o Catete passa a ser uma esfera em que até pode haver conflito e

sofrimento, mas esse lugar na vida cotidiana ocupado pelos personagens

periféricos não é colocado em questão. Assim, nesse núcleo, além de Aldeíde e

Polyana, há um conjunto de seres dotados de uma simpática e natural propensão à

sobrevivência rotineira, como a solteirona moralista Consuelo (Rosane Gofman),

o porteiro Vasco (Paulo Rezende), chegado a uma fofoca, o motorista Jarbas

(Stepan Nercerssian), que torce pelo Fluminense e a impagável diarista espaçosa

Lucimar da Silva (Maria Gladys), praticamente uma doutora em sabedoria

popular.

Mas, a despeito de esses personagens periféricos servirem ao comic relief,

eles não deixam de estar relacionados à premissa da novela, seja por meio de

ações como as de Aldeíde, por exemplo, seja por meio de comentários sobre como

vários aspectos da corrupção no país afetam suas vidas. Desta forma, a novela

acaba por guardar relações com o melodrama no que este tem de reverência à

tragédia clássica, já que o núcleo do Catete – de modo ao semelhante ao coro no

teatro grego – comenta e dá informações sobre a trama central.

Portanto, em relação à topografia do enredo, tanto na adaptação de

Senhora, quanto em Vale Tudo o dinheiro aparece como critério definidor, ou

seja, essas novelas seguem o modelo alencariano, no que se refere a conferir ao

universo dos pobres, apesar das dificuldades, tintas felizes e fazer do mundo dos

ricos um tecido ficcional pelo qual circulam personagens conturbados. Contudo,

Gilberto Braga não fecha exatamente com a máxima de que o dinheiro não traz

felicidade, já que – como contraponto a esta ideia – apresenta personagens ricos

de bem com a vida como, por exemplo, o proprietário da revista Tomorrow,

Renato Felipelli (Adriano Reys).

Entre o núcleo rico – mais problemático – e o Catete feliz, está a classe

média, representada na novela pelo personagem Ivan Meireles (Antônio

Fagundes) e sua família envolta em seus problemas no país do vale tudo. Por meio

desse conjunto de tipos, Gilberto Braga – no tom exagerado ao qual o melodrama

recorre para intensificar o didatismo na abordagem das questões – fala da inflação,

dos preços na feira que estão pela hora da morte, das roupas que na etiqueta

indicam ser de um tecido, mas são de outro, da mensalidade do colégio das

crianças que aumenta sem parar e de profissionais qualificados obrigados a se

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submeterem a subempregos. Esse último ponto passa a ser o caso de Ivan, cuja

empresa na qual acabara de conseguir uma colocação, após ser encampada pelo

grupo Almeida Roitman, demite-o, obrigando-o a ingressar na TCA como

operador de telex.

Consoante com o pensamento da pesquisadora Anna Maria Balogh (2001)

em sua análise de Vale Tudo, na qual ela aponta Ivan como um tipo que passa por

grandes modulações e tem condutas ambíguas, pode-se estabelecer uma ponte

entre o personagem de Antônio Fagundes e o universo de Rocambole e o do anti-

heroísmo de Beto Rockfeller. Isso porque, apesar de agir a maior parte do tempo

de acordo com os valores éticos, Ivan, movido pela ambição e pelo carreirismo,

adere à trapaça para se dar bem.

Em suas ações, no melhor estilo dos personagens de Ponson Du Terrail e

de Bráulio Pedroso, ele se apropria de relatórios, envia memorandos falsos e, por

fim, passa-se por um executivo que havia faltado a uma reunião da TCA.

Infiltrado, impressiona Odete Roitman (Beatriz Segal) ao desvendar a sabotagem

em um charter da empresa de aviação na Polinésia Francesa e é promovido a

assessor. Essa ascensão de Ivan, de acordo com o didatismo que permeia toda a

discussão sobre corrupção exposta na trama, aparece como uma via intermediária

entre os caminhos opostos de ascensão social percorridos por Raquel e Fátima.

Raquel representa a via honesta. Suas ações mostram como é possível

crescer por meio de um trabalho do qual se goste e que traduza um talento

pessoal. No caso da personagem de Regina Duarte, esse dom é a culinária. A cada

passo que galga, a cozinheira é movida menos pela ambição do que pelos

sentimentos românticos, que variam do amor ao desejo de vingança. Mas é este

último que determina sua grande virada na trama, quando ela descobre que foi

separada de Ivan – o amor de sua vida – graças a um ardil da própria filha. A

partir desse ponto, Raquel passa a querer muito dinheiro para poder negar ajuda a

Fátima, quando esta fracassar.

Portanto, em Vale Tudo, Gilberto Braga volta a recorrer ao tema romântico

da vingança presente em Senhora. Entretanto, enquanto Aurélia se vale do

dinheiro como uma arma em seu plano contra Seixas, Raquel em nenhum

momento usa seu poder econômico de forma ardilosa para alcançar sua meta. Ou

seja, na personagem de Regina Duarte, não há espaço para a ambiguidade, já que

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ela ancora sua lição moral sobre a filha na certeza de que o bem triunfa sobre o

mal e na tranquilidade de que o caminho honesto propicia à consciência. Em

outras palavras, como heroína típica do melodrama em consonância com o caráter

pedagógico do gênero teatral, Raquel – que age em prol da justiça e confia na

bondade alheia – acede ao conhecimento de que existe maldade no mundo depois

de ser enganada por Fátima. No entanto continua sendo boa e incorruptível para

mostrar que pode enfrentar essa maldade e vencer na vida.

Então, em comparação com Aurélia, o embrutecimento de Raquel ao se

deparar com a força corruptora do dinheiro é mais ameno. Contudo, a mulher

simples e sentimental também passa a compreender o valor da riqueza e das

aparências em sociedade. Muda o visual e, internamente, de uma pessoa

exageradamente cautelosa em seus investimentos, transforma-se numa capitalista

empreendedora e que se arrisca mais.

Essa mudança na visão de mundo de Raquel fica mais evidente, sobretudo,

em seus diálogos com o sócio Polyana, a quem ela carrega consigo em seu

processo de ascensão. O personagem de Pedro Paulo Rangel traz a marca do

investidor acuado pelo capitalismo selvagem. Desta forma, a cada etapa do avanço

de seu negócio com Raquel, ele propõe medidas mais cautelosas – como, por

exemplo, comprar móveis de segunda mão – devidamente recusadas pela heroína,

que, agora, em consonância com os modelos burgueses de aspiração de vida,

adere a máximas do discurso liberal, tais como: “não se pode pensar pequeno no

mundo dos negócios”, “o dinheiro tem que circular”, “uma boa apresentação é

fundamental para atrair o cliente” etc.

Mas, embora a ascensão de Raquel siga uma espécie de atualização da

cartilha do bom capitalista, que orientava os mercadores de Londres no drama

burguês, tal processo é atravessado por um caráter mágico, próprio do melodrama,

segundo Sílvia Oroz, que acaba por simplificar as contradições reais enfrentadas

por quem opta em subir na vida honestamente. Assim, de vendedora de seus

próprios sanduíches na praia, Raquel passa a fornecer comida para o botequim de

Polyana, arrenda o restaurante de um clube e, por fim, acaba dona da Paladar,

uma rede de restaurantes industriais que tem, entre outros clientes, a TCA, para a

qual passa a fornecer comida nos aviões. De uma etapa para outra, ela é ajudada

por uma vitória no jogo do bicho, pela conquista de uma cozinha industrial num

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concurso de culinária e por duas reportagens que, ao destacarem sua trajetória e

seu tempero, aumentam a sua clientela e atraem investidores como o milionário

Laudelino (Ivan de Albuquerque), que lhe propõe sociedade na cadeia de

restaurantes.

Alçada à condição de capitalista vitoriosa, Raquel é uma das personagens

de Vale Tudo por meio das quais é possível identificar na obra de Braga a

democracia sentimental característica dos folhetins de Emile Richebourg, já que,

no comando de seus negócios, a heroína re-edita a figura do bom patrão, que se

mostra sempre justo e a quem todos consideram um amigo. Além dela, os

personagens de Afonso Roitman (Cássio Gabus Mendes) e Renato Felipelli atuam

nesse mesmo diapasão.

O primeiro – como membro da diretoria da TCA – propõe uma gestão

ancorada na justiça social. Já Renato, no comando da revista Tomorrow, paga

salários acima do mercado para seus jornalistas e se envolve com os problemas

deles. Como contraponto aos três, aparece o personagem Marco Aurélio

(Reginaldo Faria), que, na vice-presidência da TCA, exerce a tirania sobre seus

subordinados e prega o corte de pessoal como solução para os momentos de crise.

Além dessas diferentes posturas na relação patrão-empregado, Afonso e

Renato são didaticamente contrapostos a Marco Aurélio e Odete também no que

se refere à honestidade na esfera da elite, já que Gilberto Braga procura não

identificar a corrupção como algo exercido apenas pelos ricos, para afastar a

crença de que só quem rouba enriquece no Brasil e, ainda, reforçar a ideia do

trabalho honesto como mecanismo de ascensão. O autor se porta da mesma forma

no que concerne à postura da classe alta em relação ao país.

Assim, enquanto Odete apresenta um desprezo absoluto pelo Brasil com

um discurso que reforça velhos preconceitos como, por exemplo, de que o país

não vai para frente porque o povo é preguiçoso, seu filho resgata o romantismo de

Gonçalves Dias, na medida em que é um “exilado” saudoso das coisas boas da

terra que ama. O personagem se ressente por ter tido seus laços com o país

cortados ao ser obrigado por sua mãe a estudar fora. Esses conhecimentos

adquiridos no exterior são outra fonte de atrito, porque Afonso se recusa a viver

novamente em Paris e Odete não admite a ideia do herdeiro querer investir

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intelectual e financeiramente num lugar de terceiro mundo. Ela, assim como

Marco Aurélio, é adepta da evasão de divisas.

O fato de Afonso detestar a ideia de morar novamente fora do Brasil acaba

sendo uma moeda na troca de favores entre Fátima e Odete, que possibilita enfim

a ascensão social tão desejada pela filha de Raquel. Assim, após ter feito intrigas

para separar Afonso de Solange (Lídia Brondi), a personagem de Glória Pires

ganha o apoio da milionária para se casar com o herdeiro desde que consiga

convencê-lo a morar em Paris e, além disso, promova a separação de Raquel e

Ivan, já que Odete – percebendo o interesse de Heleninha Roitman (Renata

Sorrah) no personagem de Antônio Fagundes – quer vê-lo casado com sua filha.

Esse entrecho da novela pode ser destacado na trama como um exemplo

através do qual Gilberto Braga retoma as relações regidas pelo mecanismo do

favor já presentes tanto no romance Senhora quanto na adaptação como uma

forma de adequação dos grandes temas do romance-folhetim europeu – entre eles,

a força dissolvente do dinheiro e o antagonismo entre o amor e a conveniência – à

realidade brasileira. Em Vale Tudo, o favor como forma de acesso à vida social e

aos bens aparece atravessado pela temática da corrupção que dá o tom da novela.

Por isso, Fátima separa a sua mãe de Ivan, fazendo a personagem de

Regina Duarte crer que seu ambicioso companheiro havia roubado os 800 mil

dólares desviados da TCA por Marco Aurélio – dinheiro que foi parar na mão do

casal graças a um coup de théâtre no qual as malas de Rubinho e do vice-

presidente da empresa de Odete haviam sido trocadas. Entretanto não são apenas

os personagens da ala do mal de Vale Tudo que usam do expediente do favor, já

que este procedimento tem um caráter ambíguo, podendo aparecer associado tanto

a atos graves de corrupção, quanto ao “jeitinho brasileiro”.

Assim, a benevolente Celina (Natália Thimberg) – irmã de Odete – adota o

mesmo mecanismo com o gerente do apart-hotel, no qual Fátima mantém

encontros com o amante César. Em troca de informações que possam incriminar a

personagem de Glória Pires, a irmã de Odete promete organizar festas no salão do

edifício. Em outro momento da trama que também envolve Celina, o favor

aparece atrelado à questão sentimental, pois – embora goste de Raquel – a tia de

Afonso propõe à cozinheira sociedade na Paladar desde que ela prometa não se

aproximar de Ivan, que, ao se separar, casou-se com Heleninha.

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As descobertas de Celina sobre o adultério de Fátima pela via do favor

marcam o início da derrocada da golpista. Mas, antes mesmo desse episódio, a

ascensão social através do casamento por interesse é mostrada na novela de forma

a desmistificar uma aparente facilidade que esse caminho possa ter. Assim, apesar

de conseguir ficar cercada dos luxos com que sempre sonhou, a filha de Raquel

depara-se com o fato de que a riqueza da família está toda concentrada nas mãos

de Odete.

Esse tipo de desilusão permeia toda a trajetória de Fátima, pois as metas

que ela alcança nunca traduzem fielmente os devaneios que a impulsionaram.

Tomando como parâmetro o pensamento de Campbell, pode-se dizer que o

movimento da personagem reproduz o ciclo desejo-aquisição-desilusão e desejo

renovado característico do hedonismo moderno. Ou seja, como não dá para ser do

jeito que ela sonhou, Fátima engendra sempre um novo plano de forma a ajustar

as cenas imaginadas para sua vida aos embaraços próprios da realidade.

Desta forma, decepcionada com o fato de a carreira de modelo não ser

como ela via nas revistas, ela passa a querer um marido rico. Como o que

consegue é completamente dependente da mãe, a personagem deseja engravidar

para se separar, receber o dinheiro do acordo pré-nupcial e poder viver feliz ao

lado do amante César como sempre quis. Nesse ponto, além da discrepância entre

devaneio e realidade, está o outro grande calcanhar de Aquiles nos planos de

Fátima: o amor passional, que tal como acontecia no melodrama clássico,

reaparece em Vale Tudo como uma prerrogativa dos vilões, na medida em que as

atitudes do casal atentam contra a razão e o bom senso, ou seja, são um fator de

desequilíbrio pessoal e social.

Após Fátima dar à luz, comprovado que o pai de seu filho é César, ela é

expulsa da mansão dos Roitman, com um bebê no colo e uma mala na mão, numa

sequência que dialoga com o mesmo sofrimento ao qual ela submeteu a mãe no

começo da novela. Entretanto, mais do que pelas atrocidades que cometeu contra

Raquel, nesse ponto, Fátima é exemplarmente punida por seu adultério. Essa

relação da paixão marginal com o sofrimento herdada do melodrama explica-se,

segundo Igor Caruso (apud Oroz, 1999), porque esse tipo de envolvimento é um

ato não social relacionado com princípio do prazer – algo oposto ao que Herbert

Marcuse (apud Oroz, op.cit.) chamou de princípio do rendimento, que seria a

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relação entre a produtividade e as normas sociais exigidas pelo sistema social de

dominação para sua tranquila manutenção.

A telenovela recupera esse aspecto e, completamente derrotada, Fátima –

exatamente como Raquel havia devaneado – vai procurar a mãe, que lhe nega o

perdão, mas acolhe o neto. Recomeça então um novo ciclo de devaneio-desilusão

na trajetória da vilã que, para garantir um recomeço, planeja vender o filho a um

casal de estrangeiros pela quantia de 25 mil dólares, mas é impedida.

Tem-se, assim, nesse entrecho uma atualização dos folhetins da terceira

fase, nos quais a vítima – em muitos casos – é personificada pela criança que sofre

nas mãos de mães venais movidas pelo dinheiro. Pode-se dizer ainda que essa

relação fria de Fátima com a maternidade, além de ter na novela a função moral

de contrapô-la aos personagens de Raquel e de Solange – a boa moça que sonha

em ter um filho nem que seja via produção independente – aproxima-a de Odete

no que essa também rompe com a estrutura resignação-bondade comum ao

protótipo da mãe melodramática.

Sem ter a mesma falta de escrúpulos de Fátima, mas personificando a

angústia da classe média dividida entre seus valores éticos e o ajuste ao vale tudo,

Ivan também enfrenta muitos percalços no seu processo de ascensão social,

sobretudo, em função de seu casamento com Heleninha Roitman. Por meio desse

entrecho, a história de Aurélia e Seixas reaparece em Vale Tudo com novas

colorações. Assim como a heroína de Alencar, Raquel – ainda pobre – passa a

encarar Ivan como um homem vendido e, quando enriquece, chega a dar um

cheque ao personagem de Antônio Fagundes após uma noite de amor que ocorre

quando este percebe que seu casamento com Heleninha havia sido um equívoco.

Em nenhum momento da relação com Heleninha, Ivan se porta como uma

pessoa interesseira. E, para reforçar a ideia de que não foi comprado, o

personagem de Antônio Fagundes assume uma postura semelhante à de Seixas, já

que procura ater-se ao patrimônio que possuía antes de se casar. Assim, por

exemplo, insiste em morar com Helena num lugar que ele mesmo possa pagar.

Apesar de ambicioso, seu envolvimento com a herdeira se dá em razão da

carência e da mágoa oriundos do descrédito de Raquel para com ele no episódio

da mala de dólares. Além disso, Odete incumbe-lhe de uma missão da TCA na

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Itália com o intuito de aproximá-lo da filha, pois sabia que Helena estaria com

uma exposição no mesmo local. Então, ardilosamente envolvido num clima

idílico, Ivan sucumbe ao amor da personagem de Renata Sorrah.

Ivan defende-se das suspeitas de Raquel dizendo que aquilo que o atraiu na

nova esposa não foi o dinheiro em sua face utilitária, mas transmutado em agente

que proporciona o acesso a produtos culturais determinantes no desenvolvimento

de uma pessoa em relação às coisas do espírito. E Helena, entre outros traços

românticos de sua personalidade, tem uma visão boêmia, de acordo com a qual,

uma boa condição financeira só tem sentido a serviço da sensibilidade artística.

Entretanto a união não dá certo, porque a herdeira dos Roitman, também como os

românticos boêmios, tem na bebida uma válvula de escape para suas agruras reais,

que são muitas.

Assim, em consonância com a topografia do enredo que confere às

histórias do núcleo rico maior densidade dramática, Helena representa o expoente

máximo do sofrimento durante toda a novela. Após passar seis meses numa

clínica de reabilitação devido ao alcoolismo, tem de enfrentar uma série de

restrições que o ex-marido Marco Aurélio lhe coloca para ver seu filho Tiago

(Fábio Vila Verde). A personagem perdeu a guarda do adolescente após uma

bebedeira, em razão da qual, supostamente, além de causar um acidente

automobilístico que matou um de seus irmãos, provocou um princípio de incêndio

que colocou a vida de Tiago em risco.

Pode-se dizer então que, além de ser o protótipo da pobre menina rica que,

embora cercada de luxos, padece com a falta de afeto, Heleninha – assim como

Rubinho – personifica na novela a sensibilidade romântica no que esta tem de

teoria da arte extrapolada para uma filosofia de vida. Mas, em virtude da

personagem de Renata Sorrah ser rica e o de Daniel Filho, pobre, esse mesmo

aspecto do Romantismo que ambos representam ganha diferentes nuances e

motivações.

Desta forma, apesar de terem em comum a boemia, o comportamento

autodestrutivo, a valorização do prazer acima da utilidade e certo egoísmo, a falta

de dinheiro faz com que essas manifestações no personagem do Rubinho remetam

ao estereótipo do artista que, por insistir em viver exclusivamente de sua arte,

submete a si – e também a família, no caso do pianista – a uma existência à beira

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da privação e da pobreza. Gilberto Braga retoma esse tipo em Paraíso Tropical

(2007) por meio da história de Evaldo (Flávio Bauraqui), ourives talentoso que,

além de ter seu trabalho explorado por oportunistas, afunda-se na bebida.

Tanto Rubinho quanto Evaldo morrem no momento em que a vida lhes dá

a chance de finalmente concretizar suas aspirações artísticas. Ao matar esses

personagens semelhantes, Braga dá vazão ao Romantismo em sua face resignada

com o fato de que, numa sociedade regida pelas regras do dinheiro, artistas pobres

e sonhadores não têm possibilidade de redenção.

Já Helena, por ser rica e de família influente, teve condições de investir na

carreira de pintora e de se inserir facilmente no mercado, obtendo inclusive

reconhecimento internacional. Nela, os mesmos traços da filosofia de vida

romântica que aparecem em Rubinho e Evaldo, além de ser uma forma de

escapismo da culpa que a personagem carrega e também uma maneira que ela

encontra de chamar a atenção para sua carência afetiva, assumem um caráter de

resistência à opressão da mãe Odete que, por ter o controle do patrimônio dos

filhos, dispõe sobre a vida deles como lhe convém. Ou seja, a personagem de

Renata Sorrah não enfrenta em seu fazer artístico as restrições financeiras de

Rubinho e Evaldo, seu confronto se dá no plano das ideias, no qual sua mãe

personifica a visada mercantil.

Ao se embebedar, Helena dá vazão às tais explosões descontroladas de

emoção poderosa por meio das quais o romântico revela a natureza única de seu

ego com o objetivo de provocar uma reação desaprovadora naqueles burgueses

enriquecidos que, assim como Odete, além de defenderem uma moralidade que a

conduta romântica rechaça, são regidos pela cartilha do dinheiro, o que os leva a

uma perspectiva utilitária da arte e da vida. Essas diferentes visões aparecem

confrontadas num embate entre mãe e filha que acontece na primeira cena do

capítulo 30, quando Helena, alcoolizada, sai em defesa de sua Tia Celina – vítima

constante das implicâncias da sovina Odete, que considera a irmã uma perdulária:

Odete (a Celina): – Mas o que é isto? Você trocou os estofados aqui da sala? [...] Você vai acabar na miséria, jogando dinheiro pela janela [...]

Helena: – [...] Ela trocou os estofados, porque achou esses mais bonitos. Tem algum problema com a beleza, é? Por que tudo pra você tem que ser utilitário?

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[...] Ela não precisa ligar pra Paris e pedir licença pra irmãzinha pra poder comprar uns metrinhos de fazenda não!

Odete: – [...] Eu sei que ela não precisa ligar pra mim pra pedir licença pra fazer coisíssima nenhuma, porque ela tem do que viver [...] Agora, você não. Fica aí tomando cinco litros de whisky por dia, às minhas custas, com o meu dinheiro, porque, que eu saiba, faz muito tempo que você não vende uma tela.

Helena: – Cala a boca! Não abre essa boca pra falar de beleza, nem em pintura, porque você não entende nada de beleza! [...]

(BRAGA, 1988)

A fala crítica de Odete sobre o comportamento de Celina guarda relações

com o ascetismo protestante tal como este era didaticamente propagado no drama

burguês inglês, já que, para a personagem, o controle racional dos gastos é uma

condição necessária para acumulação de capital. Por isso, a arte na visão da

empresária só tem sentido na perspectiva do lucro, como ela assim o expressa ao

cobrar as vendas da filha. Confirma esse argumento outra cena em que ela volta

ao assunto dos estofados com a irmã e aponta um quadro na sala como uma forma

correta de empregar o dinheiro, pois se trata de investir em uma obra que pode ser

revendida e gerar dividendos num momento de crise.

Entretanto, levando-se em conta o ponto de vista do drama burguês inglês,

essa é a única conduta de Odete em relação ao dinheiro que poderia ser encarada

como um exemplo de doutrinamento positivo, pois sua atuação como empresária

passa ao largo do puritanismo que condenava o rebaixamento moral com o

propósito de enriquecimento. Desta forma, no comando de sua empresa, ela se

vale de chantagens, subornos, conchavos com políticos corruptos, abuso de poder,

contas ilegais no exterior, entre outros expedientes escusos.

Tais ações de Odete como executiva entrelaçam-se na novela as suas

atitudes como mãe, ou seja, ao discutir a corrupção por meio da personagem de

Beatriz Segal, Gilberto Braga atualiza o aspecto de privatização da vida que o

melodrama herdou do drama burguês, sobretudo, o francês. Por isso, a empresária

usa sua compreensão do poder do dinheiro e do carreirismo para equivocadamente

garantir a felicidade dos filhos aproximando-os de Ivan e Fátima e também para

separar os personagens de Antônio Fagundes e Regina Duarte, quando estes

voltam a se envolver.

A milionária convence o genro – que está com um projeto parado por ter

equipamentos retidos na alfândega – a subornar um funcionário público como

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sendo algo de praxe na TCA. Ivan – mantendo a modulação que o faz pender

entre as duas formas de ascensão opostas pedagogicamente na novela – cede ao

carreirismo e, por isso, cai na armadilha de Odete, que registra todos os seus

passos. Assim, a executiva monta um dossiê contra ele de modo a assegurar o que

acredita ser a felicidade da filha, mesmo mantendo-a num casamento desgastado.

Por meio desse entrecho, Gilberto Braga – além de trazer uma mazela da

ordem pública para a esfera privada, transformando-a no agente da separação do

casal romântico – recupera também a tradição melodramática de atrelar o amor-

sacrifício ao amor homem-mulher, quando este implica a infelicidade de uma

terceira pessoa (Oroz, op.cit.). Assim, mesmo antes de ser vítima da chantagem de

Odete, Ivan procura ser um bom marido, mantendo-se firme ao lado de Helena nas

crises de alcoolismo desta e não pedindo a separação – em comum acordo com

Raquel – para que a mulher não sofra. O apelo ao sofrimento no tratamento desse

adultério revela também um cuidado do autor de não vilanizar o casal.

Embora Raquel e Ivan fiquem juntos no final, em consonância com o

exagero melodramático e com os romances de vítima nos quais – como ressalta

Meyer (1996) – “desgraça pouca é bobagem”, o casal de amantes só alcança a

felicidade depois que o personagem de Antônio Fagundes passa um ano na cadeia

por ter subornado o funcionário público. Ao sair da prisão, ele retoma a sua vida

como executivo da TCA. Nesse ponto, o autor volta a se valer do caráter mágico

típico das ascensões sociais dos heróis melodramáticos como fez na trajetória de

Raquel, pois suprime todas as dificuldades que um ex-presidiário pode vir a ter

em sua reintegração à sociedade.

Outro recurso narrativo retomado por Gilberto Braga nesse ponto da trama

é a utilização de um alter-ego que transforma a história da novela em um livro.

Em Senhora, essa função cabe a Torquato Ribeiro que faz um romance a partir

dos fatos a ele narrados por Aurélia. No último capítulo, Torquato entrega seus

originais a um editor, cuja caracterização remete à figura de José de Alencar.

Desta forma, Braga se vale da intertextualidade para atribuir a Torquato – ou

tomar para si – a identidade secreta da pessoa que, conforme Alencar explica ao

leitor antes do início do romance, “recebeu diretamente e, em circunstâncias que

ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso” (Alencar, 1975,

p. 4).

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Já em Vale Tudo, essa função de alter-ego cabe a Ivan, que aproveita o

tempo encarcerado para escrever as histórias dos personagens da trama e reuni-las

em um livro cujo nome é o mesmo da novela, mas acrescido de uma interrogação.

Gilberto Braga não responde à pergunta. Em vez disso, promove a reflexão, por

meio dos destinos finais – nem todos tranquilizadores – que confere aos

personagens.

Portanto, embora Gilberto Braga – por meio da ascensão vitoriosa da

personagem Raquel – tenha reafirmado o discurso romântico reformador no

sentido de resgatar os valores morais caros às classes médias como, por exemplo,

a honra em meio ao desencanto com os rumos da Nova República, em Vale Tudo,

ele se mostra mais próximo da crítica ao restringir o espaço para a estrutura de

consolação que havia em Senhora. Assim, além de Ivan, apenas os personagens

pobres envolvidos em esquemas de corrupção são punidos. Os ricos saem ilesos,

com direito a uma cena em que Marco Aurélio dá uma “banana” para o Brasil ao

fugir do país com milhões de dólares desviados da empresa de Odete.

O gesto agressivo do vice-presidente da TCA permite tanto uma leitura

sob o ponto de vista da indignação, quanto da catarse, pois, por um lado, revela o

desprezo de uma elite corrupta pelo país, mas, por outro, reproduziu um ato que –

naquela conjuntura – brasileiros desonestos ou não – queriam fazer em razão de

uma série de dificuldades que viver no Brasil envolvia. Ou seja, para muitos, a

saída era o aeroporto, ideia que Braga em 1994 transformou em espinha dorsal da

novela Pátria Minha.

Fátima – após um ensaio de modificação no qual recupera para a mãe as

provas que incriminam Ivan – reaproxima-se de César e, capturada por um novo

devaneio de ascensão, aventura-se num casamento de fachada com um príncipe

italiano, amante do personagem de Riccelli. Isto é, no final das contas, o caminho

da personagem de Glória Pires – antagônico ao da mãe e ajustado ao vale tudo –

também se mostra possível.

Nem o assassinato de Odete Roitman – a despeito do efeito catártico que

provocou na população – chega a ser uma solução totalmente compensatória para

um público ávido por ver os corruptos punidos. Isso porque Odete é aniquilada

como mãe e mulher e não como uma empresária desonesta. Assim, a milionária –

apesar de no decorrer da novela racionalmente manter relações na base do

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dinheiro com jovens amantes, os quais exibe como signo exterior de riqueza –

sofre com a traição de César, por quem ela realmente havia se apaixonado a ponto

de largar a presidência da TCA para viver ao lado dele.

Em seguida a essa decepção, ela é apontada como a verdadeira responsável

pela morte do filho no acidente pelo qual sempre culpou Heleninha. E, por fim, é

assassinada em um crime passional, no qual Leila (Cássia Kiss) – ao disparar três

tiros – acreditava que o alvo era Fátima. Ou seja, além de todos os castigos

impingidos a Odete pertencerem à ordem privada, o que poderia ser uma

consolação assume ares de ironia, já que ela foi morta por engano.

Outro aspecto a ser destacado no assassinato de Odete Roitman é que o

mistério em torno desse crime – embora remeta ao recurso do whodunit

largamente utilizado na literatura policial oriunda do Romantismo negro – é um

dos muitos pontos na trama de Vale Tudo que guardam relações com as novelas

de Janete Clair. Onze anos antes de Braga, a autora já havia mobilizado a

população a desvendar o assassinato do milionário Salomão Ayala (Dionísio

Azevedo) na novela O Astro (1977).

Estabelecer um diálogo entre as obras de Gilberto Braga e de Janete Clair

é possível, pois dos autores responsáveis pelas mudanças que conferiram à

telenovela uma linguagem moderna e brasileira, Janete Clair foi a que exerceu

maior influência nas criações de Braga. Além de auxiliá-lo na sua estreia como

autor de novela em A Corrida do Ouro, ela o convidou para ser seu colaborador

na novela Bravo (1975), a qual ele teve que concluir sozinho, já que Janete Clair

foi obrigada a escrever Pecado Capital às pressas para substituir a primeira versão

de Roque Santeiro que havia sido censurada: “Aprendi tudo com Janete. Faço o

folhetim que ela criou adaptado aos nossos anos” (Braga, 2003, p. 21).

Assim, a ida de Raquel para o Rio de Janeiro e sua posterior ascensão

social remete a Selva de Pedra, já que a novela de Janete Clair também tematiza

os desafios morais com que se defrontam os que desejam manter seus laços

familiares e comunitários, bem como subir na vida na cidade grande (Hamburger,

2005). Além disso, a mala com 800 mil cruzeiros de um assalto que, em Pecado

Capital, tira o sono do taxista Carlão reaparece em Vale Tudo recheada com 800

mil dólares, que desviados de um esquema de corrupção, vão parar debaixo da

cama de Raquel.

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Mas, enquanto o sonhador personagem de Francisco Cuoco cai em

tentação, a “pé no chão” Raquel – coerente com a missão pedagógica que lhe foi

impingida pelo autor de ser um bom exemplo – resiste. Recuperado por seu amor

a Eunice, Carlão morre ao tentar devolver o dinheiro. Já Raquel fica sem amor e

sem os dólares, que vão parar nas mãos de Fátima. Esta – bem mais pragmática

que o taxista criado por Clair – devolve o dinheiro a Marco Aurélio, porque está

interessada no patrimônio da família Roitman, cujas características assemelham-se

a outros núcleos ricos criados por Janete Clair.

Da mesma forma que na obra de Gilberto Braga, as famílias ricas do

universo de Janete Clair também possuem um personagem que concentra a

riqueza, como, por exemplo, Salviano Lisboa em Pecado Capital e Salomão

Ayala em O Astro. O primeiro, em sua trajetória, enfrenta os surtos psiquiátricos

da filha Vilma (Débora Duarte) – protótipo da rica problemática que Braga

atualiza por meio de Heleninha – e sofre com a falta de afeto de quase todos os

filhos, que condenam seu amor por Lucinha – personagem que passa por um

processo de ascensão mágica semelhante ao de Raquel. Ayala, em contrapartida,

tem um desenho mais próximo de Odete no que concerne ao poder econômico

como elemento de conflito com os filhos.

Entretanto a resistência que Odete enfrenta dos filhos é pífia se comparada

aos arroubos românticos que Salomão suporta do filho Márcio Ayala (Tony

Ramos). Além de tomar atitudes como jogar o dinheiro do pai pela janela para que

o povo na rua pegue, Márcio rompe definitivamente com o milionário após exigir

sem sucesso que Salomão pague salários justos aos seus empregados.

Assim como Helena e Afonso ouvem da personagem de Beatriz Segal,

Márcio ouve do pai que é muito fácil criticá-lo e continuar vivendo do seu

dinheiro. Mas, ao contrário dos filhos da empresária que – numa atitude ambígua

em relação à riqueza – acabam por se ajustar, Márcio – numa cena que remete ao

mito de São Francisco de Assis – despe-se de todas as suas vestes e deixa a

mansão dos Ayala disposto a viver uma nova vida ao lado de Lili (Elizabeth

Savala), moça pobre e suburbana, a quem realmente ama.

As associações entre as obras de Braga e Clair, principalmente, no que se

refere à recorrência ao tema romântico da riqueza como agente da dissolução de

valores, corroboram para o argumento de que o fenômeno romântico é uma moeda

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de dupla face. Assim, Pecado Capital termina com a leitura de um jornal que, nas

colunas sociais, traz a notícia do casamento do milionário Salviano Lisboa com a

modelo Lucinha. Até aí, a autora mostra que o sonho é possível, já que a mocinha

pobre ascende magicamente às passarelas e ainda se casa com o milionário, o qual

consegue transformar pela força do amor. Entretanto, nesse mesmo periódico, um

outro personagem aparece derrotado, pois a manchete “Morto por um pecado

capital” relata o fim trágico do sonhador Carlão que, mesmo modificado pelo

amor de Eunice, não foi capaz de vencer o poder do dinheiro.

Essa mesma ambiguidade romântica do final da novela de Janete Clair é

mantida por Gilberto Braga na conclusão de Vale Tudo. Mas aparece atravessada

pela crítica e pela ironia. Embora conquiste a felicidade, Raquel assume um papel

de exemplo idealizado de conduta honesta numa tentativa do autor de despertar no

brasileiro um espírito de mudança, a fim de que o país de fato um dia seja

realmente como os versos da música Isto aqui o que é?, de Ary Barroso (1941),

que serviram de inspiração para a personagem de Regina Duarte: “um Brasil que

canta e é feliz, que não tem medo de fumaça, que não se entrega não”.

Contudo, ao deixar escapar os grandes corruptos, ao punir apenas os

pobres e ao não modificar Fátima, Gilberto Braga, sem esperança, responde a Ary

Barroso que isto aqui é o país dos rocamboles do desencanto, cujo lema ajustado

ao circuito de ódio do capitalismo selvagem passa ao largo do ufanismo de um

Brasil em aquarela para se aproximar da ideia contundente expressa na letra do

tema musical da filha de Raquel interpretado pelo Barão Vermelho: “Ataco se isso

for preciso, sou eu quem escolho e faço os meus inimigos. Saudações a quem tem

coragem, aos que estão aqui pra qualquer viagem. Não fique esperando a vida

passar tão rápido. A felicidade é um estado imaginário. Pense e Dance” (Frejat,

Goffi, 1988).

Mesmo com um final nada tranquilizador, Vale Tudo foi um grande

sucesso. Motivado por essa repercussão, Gilberto Braga continuou nas suas duas

telenovelas seguintes – O Dono do Mundo (1991) e Pátria Minha (1994) – a fazer

uma crônica do Brasil pós-redemocratização. Se na primeira a questão central

girava em torno do valor da honestidade, nas obras que completam essa espécie de

trilogia as perguntas eram se a classe dominante tinha alguma preocupação com as

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camadas mais pobres da população e se valia a pena morar (ou voltar a morar) no

Brasil, apesar de tudo.

Entretanto, em O Dono do Mundo e Pátria Minha, a crítica social

suplantou o romanesco, e tal desequilíbrio – que não havia em Vale Tudo –

afugentou a audiência. No caso de O Dono do Mundo, os telespectadores das

classes populares – que correspondem aos segmentos C e D na medição do Ibope

– preferiram assistir à trama mexicana Carrossel, exibida pelo SBT. Essa novela,

que contava a história da professorinha Helena e seus alunos, era rigidamente

estruturada de acordo com o modelo seguro de consolação.

Já a história de Braga, em contrapartida, para defender a tese de que a elite

brasileira não se importa nem um pouco com o povo, trazia sequências em que as

camadas menos abastadas da população eram cruelmente ridicularizadas ou

rechaçadas pelos ricos. Em uma cena, por exemplo, a personagem Karen – uma

socialite interpretada por Maria Padilha – dizia para a empregada: “Esse vaso

custa mais do que um ano do seu salário. Se você quebrar, vai pagar” (Braga,

2008, p. 394).

Em entrevista ao livro Autores – Histórias da Teledramaturgia, Gilberto

Braga apontou essa crueldade da elite brasileira para com o povo como a razão

para o insucesso da trama: “Pesei a mão na crítica social e paguei por isso. Em

telenovela, é preciso pegar um pouco mais leve” (idem). Quanto à Pátria Minha,

além de diversos problemas envolvendo o elenco, o autor acredita que o público

não foi capturado pela história, porque esta não era adequada para um folhetim:

“Numa telenovela, nós tentamos comover, fazer algo com alguma substância. Mas

eu não deveria ter abordado o tema principal de Pátria Minha em uma novela,

porque era sério demais” (ibidem, p. 396).

Após essas novelas mal sucedidas no horário nobre, Gilberto Braga foi

convidado a assumir novamente o horário das 18h. Então, em parceria com

Alcides Nogueira, escreveu a novela Força de um Desejo (1999), livremente

inspirada em obras do autor romântico Visconde de Taunay:

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De certa forma, eu me senti rebaixado quando me escalaram para o horário das seis. Para piorar a situação, Força de um Desejo não atingiu a audiência que a emissora queria. Dava uma média de 26 pontos. E eu sofria muito com isso. Esse tipo de coisa mexe muito com a gente, porque você começa a achar que não está cumprindo o seu papel. [...] Felizmente, voltei para o time lá de cima depois que fiz Celebridade (Braga, 2009, p. 99).

Tanto os fracassos de audiência de O Dono do Mundo e Pátria Minha,

quanto a fala de Gilberto Braga em relação às expectativas do mercado mostram

que a telenovela, além dos temas e da estrutura narrativa, guarda estreitas relações

com o folhetim no que concerne à ingerência de fatores como público, editores,

veículos e anunciantes no modo de produção do autor. Então, assim como o

inventor do folhetim Emile Girardin, que, cuidadoso com o projeto mercantil por

ele engendrado, condicionava a continuação de uma história à boa aceitação do

público, as emissoras de TV o fazem em relação à telenovela, encurtando-a ou

exigindo modificações na trama no intuito de promover uma adequação ao gosto

da audiência.

Contudo, de acordo com a dialética do folhetim, pode-se afirmar que

Braga, embora tenha procurado satisfazer o público e o mercado minimizando os

conteúdos ideológicos em detrimento da engenharia folhetinesca, não deixou de

lado a mordacidade ao construir uma história sobre a fama. Desta forma,

Celebridade traz tanto o aspecto de buscar atingir um denominador comum de

modo a conquistar uma audiência mais ampla possível – ou relembrando as

palavras de Zola: “tentando agradar a uma multidão sem arranhar ninguém” –

quanto apresenta brechas que deixam atravessar ou são atravessadas por outras

falas, escutas e interpretações possíveis.

Sob o aspecto da adequação aos anseios empresariais e também aos do

público, Celebridade é um exemplo de como Gilberto Braga segue os passos de

Ponson du Terrail no que concerne à forma como o autor de Rocambole se valia

da pilhagem narrativa, apropriando-se da obra de outros escritores e pirateando a

si mesmo de modo a atender às exigências do mercado folhetinesco. Isso porque,

com o intuito de recuperar a audiência que havia lhe escapado na década de 1990,

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Braga – em Celebridade – faz referências claras a suas novelas anteriores de

sucesso, ainda que confira novos contornos às personagens e situações34.

Além de fazer apropriações de sua obra, Gilberto Braga – como é uma

constante em seus trabalhos, bem como na telenovela brasileira desde seus

primórdios – recorreu ao cinema como fonte de inspiração em Celebridade. Para

construir a espinha dorsal da novela, o autor tomou como ponto de partida o filme

A Malvada (All About Eve), clássico de 1950 dirigido por Joseph L. Mankiewicz.

No longa-metragem, Eve Harrington (Anne Baxter) é uma candidata à atriz que se

apresenta como uma moça modesta, a fim de conquistar a confiança da grande

estrela Margot Channing (Bette Davis) para depois tomar o seu lugar. A esse fio

condutor, Braga – para dar ao produto um sentido contemporâneo que despertasse

interesse – incorporou a discussão sobre a visibilidade midiática.

Assim, na apropriação de A Malvada feita por Gilberto Braga, a dama dos

palcos interpretada por Bette Davis transforma-se na modelo e empresária musical

de sucesso Maria Clara Diniz (Malu Mader). Esta chegou ao estrelato por conta da

música Musa do Verão, supostamente a ela dedicada 15 anos antes35. Ou seja,

num diálogo com a célebre frase de Andy Warhol, o autor mostra que a

protagonista de sua história conseguiu permanecer famosa bem mais do que os 15

minutos previstos pelo papa da pop art que, ao discorrer sobre o futuro da

produção cultural massificada, afirmou que esse seria o tempo de sucesso de cada

um.

Maria Clara guarda com a personagem cinematográfica que lhe inspirou

apenas o fato de ser uma estrela, pois, ao contrário da atriz de teatro interpretada

por Bette Davis, ela não é voluntariosa, nem egocêntrica, para se aproximar mais

do perfil da heroína romântica que, mesmo com dinheiro e fama, continua sendo

uma pessoa simples, à procura de um grande amor e sonhando com a maternidade.

Em contrapartida, Laura Prudente da Costa (Cláudia Abreu), cujo papel na novela

34 Ao longo da análise de Celebridade, as notas de rodapé trarão alguns exemplos de autopilhagens narrativas feitas por Braga na novela. 35 Numa reunião de pauta da revista Fama usada como recurso para apresentar a personagem Maria Clara, o editor Renato Mendes (Fábio Assunção) diz: “Tá fazendo 15 anos que Musa do Verão estourou nas rádios e ela virou modelo famosa. Continua lá em cima, empresária, agora tá trazendo o Simply Red, bem mais tempo do que o Andy Warhol previu, gente, 15 anos!”

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corresponde ao de Anne Baxter36 no filme, tem um perfil mais próximo de sua

matriz cinematográfica. Ambas querem o lugar das estrelas e, por isso, procuram

se apropriar das posturas de suas vítimas no que se refere a gosto, estilo e atitude,

mas a diferença é que Laura – motivada por um misto de inveja e vingança – quer

também o patrimônio de Maria Clara, ou seja, a casa, a empresa e o dinheiro da

modelo.

Em outras palavras, Gilberto Braga – para fazer uma novela sobre o

universo das celebridades, tomando como base um filme que revela os bastidores

da ascensão ao estrelato no meio teatral – acrescentou ao material cinematográfico

outros traços românticos, entre eles a heroína idealizada, o dinheiro – além da

fama – como motivação para a vilã e também o tema da vingança. Desta forma,

entre os letreiros luminosos – emaranhados num caça-palavras – que se sucedem

na abertura da novela37, além dos termos ligados diretamente à temática da fama

como, por exemplo, beleza, nudez, arte, futebol, show e imagem, aparecem

também em destaque aspectos como loucura, ódio, favor, amor e dinheiro, ou seja,

elementos recorrentes nas intrigas dos folhetins românticos.

Em Celebridade, Ademar (Daniel Dantas) trabalhava como contínuo na

emissora de TV que promoveu o concurso em que Musa do Verão venceu. Na

época, ele atravessava sérias dificuldades e aceitou suborno de Ernesto (Roberto

Pirilo) para roubar a ficha na qual Ubaldo Quintela (Gracindo Jr.) inscrevera a

música, para que, assim, Vagner – irmão de Ernesto e noivo de Maria Clara –

pudesse concluir a fraude e se passar como o verdadeiro autor. Além disso, Lineu

Vasconcelos (Hugo Carvana) que, na novela, personifica a arrogância advinda da

concentração de poder, entrega Ubaldo – seu amigo de juventude – à polícia,

quando este, depois de um acesso de fúria, no dia do casamento de Maria Clara,

assassina o noivo que havia lhe roubado a autoria de Musa do Verão.

Como se vê, Braga volta a recorrer ao personagem que, por concentrar

toda a riqueza, dispõe da vida das pessoas de acordo com o que entende ser o 36 A vilã de A Malvada foi também uma das fontes de inspiração para Gilberto Braga criar Maria de Fátima. Em Vale Tudo, o mordomo Eugênio (Sérgio Mamberti) – um alter-ego do lado do cinéfilo autor – comentava as tramas da novela, relacionando-as aos filmes que as haviam inspirado. E, ao perceber a personalidade de Fátima, sempre se referia a ela como Eve Harrington. 37 Uma marca na obra de Gilberto Braga é que o autor costuma participar da criação das trilhas sonoras. Love’s Theme, de Barry White, música de abertura de Celebridade, além de ser um exemplo disso, revela uma escolha condizente com a trama, já que toda intriga da novela é motivada pelo roubo da autoria de um tema de amor.

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certo. Entretanto, em consonância com a discussão principal da trama, esse grande

dono do dinheiro é também o senhor da fama. Proprietário do grupo Vasconcelos,

um império de comunicação que reúne jornais, revistas, emissoras de rádio e TV,

Lineu usa todo o seu poder econômico e midiático em prol de seus interesses e em

detrimento dos direitos alheios.

Ao trair Ubaldo, Lineu visava proteger Maria Clara – a quem considera

como filha – mas também não deixou de capitalizar em cima da projeção

midiática alcançada pela modelo graças ao sucesso e à tragédia envolvendo Musa

do Verão. Desta forma, criou a linha de produtos Summer Spell – nome que a

música cuja autoria foi roubada recebeu em sua versão em inglês, tornando-se um

sucesso mundial – colocando a personagem de Malu Mader como rosto exclusivo,

numa jogada lucrativa para ambos.

Lineu apresenta uma conduta contraditória em relação ao uso do seu poder

durante toda a sua participação na trama. Assim, é capaz de ajudar a manicure

Jaqueline (Juliana Paes) – a quem considera uma pessoa pura de coração – a ter o

seu tão almejado programa de TV. Em contrapartida, usou essa mesma influência

para boicotar profissionalmente o genro Fernando Amorim (Marcos Palmeira),

por acreditar que este se casou com sua filha Beatriz (Déborah Evelyn), porque

estava interessado no patrimônio da moça. Tal atitude obrigou Fernando a se

refugiar no exterior para desenvolver sua carreira de cineasta.

Da mesma maneira que outros personagens com perfil semelhante

presentes na obra de Gilberto Braga, o presidente do Grupo Vasconcelos pratica

ações movidas pela ambição e pela arrogância que acabam por fundar as

principais intrigas da novela. Ao ajudar a desgraçar a vida de Ubaldo – que, a

despeito da fama de mitômano38, era realmente o verdadeiro autor de Musa do

Verão – Lineu também provocou a derrocada moral de Marília (Alessandra

Negrini), verdadeira inspiradora da canção que, enquanto Maria Clara enriquecia

graças a um sucesso que não lhe pertencia por direito, era obrigada a cantar em

inferninhos de Copacabana e até a se prostituir para conseguir sustentar a filha

Laura, gerando nesta o desejo de vingança, amplificado pela morte prematura da

mãe causada pela frustração e pelo desgosto.

38 Ubaldo tinha essa fama por ter acusado Chico Buarque de ter lhe plagiado a música A Banda.

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Por abusar exageradamente de seu poder, Lineu acaba sendo assassinado,

somando à obra de Gilberto Braga mais um whodunit, recurso da literatura

policial que se tornou uma marca na obra do autor39. O que particulariza o

assassinato de Lineu é que, ao contrário da morte por engano de Odete, o

empresário foi punido por tentar manter a farsa para ele lucrativa em torno da

verdadeira autoria de Musa do Verão, ou seja, ele foi punido realmente por seu

crime. Ao saber que Laura havia conseguido os documentos que comprovavam

que Ubaldo realmente havia criado a canção, Lineu usa a máquina da qual dispõe,

para conseguir recuperar as provas e tentar negociar com a personagem de

Cláudia Abreu. Esta não cede ao acordo proposto e atira no presidente do grupo

Vasconcelos40, disposta a seguir com sua vingança.

Tomando como parâmetro o pensamento de Antônio Cândido, segundo o

qual, a vingança é um passaporte para o romancista circular livremente pela

sociedade, ligando as camadas e desvendando as conexões obscuras (Cândido

apud Meyer, 1996, p. 68), pode-se afirmar que, por meio da vingança de Laura,

Gilberto Braga mostra o que há por trás do mundo do showbizz, onde nem tudo é

glamour. Assim, embora cada passo de Laura sirva à construção de um folhetim,

cuja intrincada engenharia plena de reviravoltas prende a atenção e diverte o

39 Gilberto Braga valeu-se do whodunit pela primeira vez na novela Água Viva (1980). O mistério da novela era “Quem matou Miguel Fragonard?”. Esse personagem – interpretado por Raul Cortez – embora não fosse maléfico como Odete, representava na novela a figura do grande dono do dinheiro. Médico famoso, ele vivia às turras com o irmão Nelson Fragonard – o menino do Rio interpretado por Reginaldo Faria – que recusava qualquer espécie de controle. Na trama, os irmãos também disputam o amor de Lígia (Betty Faria). Miguel foi morto por Kleber (José Lewgoy) que, no passado, havia sido seu tutor e de Nelson. O motivo do crime foi financeiro, já que Miguel descobriu que Kleber estava envolvido na perda dos bens de Nelson. Assim como Miguel, nem todos os personagens que personificam o poder do dinheiro na obra de Braga são maus, mas isso não garante que escapem de uma morte trágica. Em O Dono do Mundo (1991), o milionário Herculano Maciel (Stênio Garcia) é vítima de um serial killer. O mesmo acontece com o Barão Henrique Sobral (Reginaldo Faria) em Força de Um Desejo (1999). Em ambas as novelas, o mistério sobre a identidade dos assassinos é revelada no final. Os responsáveis pelos crimes eram William (Antônio Calloni) e a Baronesa Bárbara (Denise Del Vechio), respectivamente. Em contrapartida, alguns poderosos malvados são redimidos pelo amor, como, por exemplo, acontece com Chica Newman (Fernanda Montenegro) em Brilhante (1981), Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana) em Corpo a Corpo (1984) e Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) em Pátria Minha (1994). Já Antenor Cavalcanti (Tony Ramos) em Paraíso Tropical (2007) se modifica em razão do amor por Lúcia (Glória Pires), mas é punido com a morte de dois de seus filhos. Um deles – o bastardo Ivan (Bruno Gagliasso) – morre em seus braços logo após o reconhecimento da paternidade. 40 O assassinato de Lineu acontece durante uma festa no Espaço Fama. Eis outra recorrência na obra de Braga já ressaltada na análise de Senhora. O autor utiliza as festas como cenários para acontecimentos que avançam a narrativa. No caso de Celebridade, a morte do empresário remete à associação entre execução e festa que, segundo informação de Marlyse Meyer colhida no livro Vigiar e Punir, de Foucault, recupera um aspecto folhetinesco herdado de um velho tema popular alimentado pelas complaintes ou literatura de colportage francesa (Meyer, 1996).

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espectador, a vingadora em busca do seu objetivo também deixa entrever o que

acontece quando os letreiros luminosos se apagam, já que – não só os flashbacks

da infância da vilã, mas também suas ações no presente – são atravessadas por

histórias de autorias roubadas, plágios, estrelismos, troca de favores – inclusive

sexuais –, tráfico de influências, sabotagens em casas de espetáculos, fofocas,

verdadeiros artistas sem oportunidade e pessoas sem talento desfrutando de

dinheiro e sucesso.

Laura41 se vale dessa mesma engrenagem que a embruteceu para alcançar

os louros da fama, cujo ápice na novela é representado pela conquista do Troféu

Celebridade. Isso porque a vilã é premiada pelo projeto de uma coletânea da obra

de Pixinguinha, ideia que roubara de Maria Clara. Tal passagem remete

novamente ao filme A Malvada, que começa com Eve sendo agraciada com o

prêmio da Sociedade Sarah Siddons, a maior honraria conferida à classe teatral.

Embora Eve seja talentosa, os prejudicados por ela que estão na plateia sabem do

que a atriz foi capaz de fazer para conseguir a estatueta. Por meio da apropriação

de mais esse aspecto do filme, Gilberto Braga aponta criticamente que nem

sempre os vencedores dos prêmios são os que deveriam ser contemplados com os

mesmos. Além disso, o autor mostra a manipulação que há por trás de tais

premiações, já que, no início da novela, Lineu Vasconcelos – presidente do grupo

que concede o troféu – tenta de todas as maneiras que seu genro e desafeto

Fernando Amorim não seja indicado na categoria de cineasta do ano.

Esse lado obscuro da fama assume em Celebridade o papel que o dinheiro

representa em Senhora e Vale Tudo no que se refere à variação do tom dramático

da trama. Por isso, o mundo dos famosos aparece na novela como o núcleo dos

personagens envoltos em conflitos mais sérios. Assim, a estrela Maria Clara

Diniz, além de sofrer com a perda de privacidade e as maledicências da imprensa,

atrai oportunistas que querem aparecer as suas custas e invejosos como Laura, que

não mede esforços para destruí-la.

Entretanto a riqueza – advinda ou não da fama – também aparece na

novela como um fator que pode gerar infelicidade. Por isso, entre os sofrimentos

41 A escolha do nome Laura por Gilberto Braga condiz com os objetivos da personagem. Em latim, o nome significa árvore dos louros ou coroa de folhas de louro.

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da heroína, está o fato de que ela sustenta a mãe Corina42 (Nívea Maria), a irmã

invejosa Ana Paula (Ana Beatriz Nogueira), o cunhado sempre envolto em

projetos fracassados, Nelito (Taumaturgo Ferreira), além dos sobrinhos, sem

contrapartida em termos de afetividade ou mesmo de gratidão. A única exceção é

a sobrinha Sandra (Juliana Knust) que se envergonha dos pais explorarem a

benevolência da tia43.

Outra personagem por meio da qual Gilberto Braga mostra a riqueza como

um fator de desajuste é Beatriz Vasconcelos – a filha de Lineu. A herdeira, cujo

perfil combina traços da pobre menina rica carente de afeto como Heleninha com

a afetação e o desprezo pelo Brasil característicos de Odete44, atrai amizades

falsas como a de Laura que, no intuito de prejudicar Maria Clara, alia-se à

milionária, iludindo-a com a possibilidade de salvar seu casamento falido com

Fernando, que se apaixona pela produtora musical.

Além disso, Beatriz atormenta-se por, no passado, ter engravidado do

primo Renato Mendes (Fábio Assunção) e dito que o filho era de Fernando, para

forçar seu casamento com o cineasta. Quando tal segredo é descoberto, ela passa a

ser chantageada por vários personagens da novela. Nesse entrecho, a fama volta a

aparecer como elemento causador de problemas, pois, em troca de silêncio,

Beatriz é obrigada tanto a dar dinheiro e pratarias como o faz para calar Yolanda

Mendes – a avó de Renato interpretada por Natália Thimberg – quanto voltar a

42 Celebridade chegou a ser acusada de fazer apologia ao mau-caratismo. Por isso, alguns personagens tiveram seus perfis modificados durante a novela. Corina que, antes era mais interesseira e preferia a filha invejosa, tornou-se amiga e grande companheira de Maria Clara. Outro personagem que teve seu perfil modificado ao longo da trama foi Ubaldo. Ao sair da cadeia, ele tinha um lado mais obscuro e vingativo inspirado no personagem vivido por Robert Mitchum e Robert De Niro nas duas versões cinematográficas de Cabo do Medo (1962/1991). O filme conta a história de um criminoso que jura vingança ao seu advogado, porque este omitiu uma prova que poderia inocentá-lo. Mas a referência acabou ficando apenas nas tatuagens que o autor de Musa do Verão exibia pelo corpo de forma semelhante ao personagem do cinema no qual Gilberto Braga se inspirou para criá-lo. Ainda por meio das tatuagens de Ubaldo, Braga cita O Mensageiro do Diabo (1955), outro clássico do cinema protagonizado por Robert Mitchum. Neste filme, o ator interpreta um criminoso que, assim como Ubaldo, tem a palavra amor tatuada na mão direita e a palavra ódio, na esquerda. 43 Em Água Viva, Gilberto Braga já havia explorado essa mesma situação. Na novela exibida em 1980, Janete (Lucélia Santos) era indignada com o fato de os pais viverem à custa de Irene, a tia solteirona interpretada por Eloísa Mafalda. 44 Tal característica de Beatriz é um dos motivos que a afastam do marido Fernando. Isso porque o personagem é um apaixonado pelo Brasil e esse sentimento aumentou ainda mais ao ser obrigado a viver no exterior, para fugir do boicote de Lineu. O perfil do personagem de Marcos Palmeira aproxima-o do Afonso Roitman, de Vale Tudo, na medida em que ambos possuem traços do romantismo de Gonçalves Dias expressos em Canção do Exílio e enfrentam conflitos familiares por essas convicções românticas.

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tocar Musa do Verão nas rádios do Grupo Vasconcelos – que passa a presidir após

a morte do pai. Esse “pedido” lhe é feito por Ubaldo Quintela, quando este

descobre que – após a verdade sobre a autoria da canção ter vindo à tona – a

empresária havia proibido a execução da música nas emissoras do grupo.

Como contraponto a esse núcleo rico e famoso, mas infeliz, Gilberto Braga

criou os personagens não famosos que vivem no Andaraí. São eles os

responsáveis, em Celebridade, pelo comic relief, além de terem a função de

dialogar com a trama principal, seja por meio de comentários ou ações. É pelo

bairro da zona norte carioca que circulam a sacoleira Eliete (Isabela Garcia),

Salvador (Roberto Bonfim), o dono da barbearia e Wanderley, o dono da banca de

jornal, parada obrigatória para as manicures Darlene (Déborah Secco) e Jaqueline,

ávidas consumidoras de revistas de celebridades e sempre envoltas em planos

mirabolantes para alcançar o estrelato. Contrastando com essa obsessão das

manicures pela fama, nesse mesmo núcleo, aparece o bombeiro Vladimir

(Marcelo Faria) que com elas forma um triângulo amoroso.

Ao contrário das duas manicures que perseguem o sucesso e não o

alcançam, a visibilidade chega para Vladimir – sem que ele a busque – em razão

de sua beleza e de seus atos heroicos. Entretanto, embora faça alguns comerciais e

presenças em festas, o rapaz tem orgulho da profissão que escolheu, incomoda-se

em aparecer e quer ser apenas uma pessoa comum. Pode-se dizer então que, por

meio do personagem de Marcelo Faria, Gilberto Braga traz para Celebridade a

sensibilidade romântica tal qual entendida por Lowy e Sayre, pois, na medida em

que a fama com o advento do capitalismo de consumo passou a ser tão divinizada

quanto o dinheiro, o comportamento do bombeiro é uma recusa a um aspecto da

sociedade burguesa.

Embora o Andaraí reúna personagens mais anedóticos, há exceções como

o jornalista Cristiano (Alexandre Borges), que passou a ter problemas com o

alcoolismo após a perda de sua esposa – irmã do vilão Renato Mendes. Este arma

uma intriga criminosa para tirar do cunhado a tutela do sobrinho Zeca, a fim de

abocanhar a herança do garoto. Por meio desse entrecho, Braga resgata em sua

obra45 uma temática romântica presente desde o melodrama Coelina, de

45 A criança explorada é outra recorrência na obra de Braga. Em O Dono do Mundo, Karen (Maria Padilha) cuida do sobrinho Paulinho (Jonathan Nogueira) para poder extorquir dinheiro do pai

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Pixerécourt, e que se tornou recorrente no folhetim, sobretudo, nos romances de

vítima: crianças herdeiras que se tornam vítimas de ações vis. Além disso, ao

apresentar Zeca como uma criança pura, doce e extremamente amorosa com o pai,

Braga recupera a visão romântica no que essa, segundo Löwy e Sayre, entendia da

infância como uma forma, além do amor, de transformar a própria vida mesmo

estando no interior da sociedade burguesa, pois para os românticos, as crianças

trazem consigo valores primitivos da humanidade que se perderam com a

alienação das relações humanas engendrada pelo capitalismo.

Além de Zeca, outro personagem de Celebridade por meio do qual

Gilberto Braga dá vazão à sensibilidade romântica é Hugo (Henry Castelly), um

músico anônimo que tem um estilo de vida alternativo com quem Maria Clara se

envolve num momento da trama que reproduz a mesma situação de Vale Tudo, na

qual o amor-sacrifício mistura-se ao amor homem-mulher, quando este acarreta a

infelicidade de uma terceira pessoa. Isso porque a entrada de Hugo na vida da

produtora acontece quando ela se afasta de Fernando – seu grande amor na novela

– porque o cineasta tem de adiar seu divórcio de Beatriz em virtude de um

acidente automobilístico do qual seu filho Inácio escapa por um triz, mas sofre

sérias fraturas, precisando, assim, do apoio do pai.

Clara, que está acostumada a lidar com a afetação do mundo das

celebridades, encanta-se, desde o primeiro momento, por Hugo – uma pessoa de

natureza pura e ingênua a quem Laura chama ironicamente de hippie. De fato, o

comportamento do personagem de Henry Castelly resgata traços do movimento

cultural, no qual tanto Campbell, quanto Löwy & Sayre identificam a

permanência da visão romântica de mundo. Além disso, Hugo personifica a

sensibilidade romântica no que esta faz do amor um antídoto contra qualquer

estratégia racional, já que ele se dedica à personagem de Malu Mader sem

interesse em seu dinheiro ou em sua fama, ou seja, não exige nada em troca, nem

mesmo o amor da produtora. E esse sentimento é estendido à Nina, de quem Hugo

chega a assumir a paternidade, mesmo sabendo que ela é filha de Clara e

Fernando.

milionário do garoto. Já em Paraíso Tropical, Taís (Alessandra Negrini) tenta ficar com a guarda do filho de seu avô, para poder gastar a herança deixada para o menino.

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Diferentemente de Senhora e Vale Tudo, nas quais o dinheiro aparece em

primeiro plano no embate moral entre arrivistas e românticos, em Celebridade, a

riqueza atravessa as intrigas da história amalgamada à fama como elemento de

dissolução dos valores. Tal aspecto é determinante para a divisão maniqueísta da

trama que opõe pedagogicamente os que querem a fama a qualquer preço e os que

são famosos e, no entanto, além de encararem o sucesso como algo advindo do

trabalho, colocam-no em segundo plano em relação ao amor.

Ainda por meio da demarcação dos campos do bem e do mal, Gilberto

Braga procura discernir no jornalismo de celebridades os profissionais sérios dos

não éticos. Nessa diferenciação, o autor mostra mais uma vez a força corruptora

do dinheiro, já que, entre os jornalistas sem escrúpulos, a verba é ilimitada, para

obter um flagrante de um famoso numa situação constrangedora ou inusitada. Na

novela, o grande exemplo de mau-caratismo na profissão é Renato Mendes – o

editor da revista Fama, publicação que Braga, reproduzindo criticamente a

realidade na ficção, coloca como sendo a de maior vendagem do Grupo

Vasconcelos, apesar de todos os escândalos que ela traz.

Assim como Maria Clara e Laura, Renato foi outro personagem da novela

criado a partir do filme A Malvada. Seu papel em Celebridade corresponde ao do

crítico de teatro Addison DeWitt, interpretado por George Sanders no cinema. Em

comum, ambos têm a crítica mordaz capaz de destruir uma peça ou show, o gosto

pelo sexo com belas aspirantes à fama sem qualquer conteúdo e também o fato de

se envolverem com as vilãs sobre as quais sabem tudo, mantendo-as, desta forma,

sob controle. Entretanto, além de ser muito menos ético que DeWitt em sua

profissão e viver acima de suas posses, Renato é atravessado por características

dos vilões folhetinescos.

Um exemplo disso é que, embora seja vaidoso e aprecie a visibilidade

midiática, é por meio dessa personagem que o tema romântico do dinheiro como

dissolução dos valores encontra sua expressão maior na trama. Renato usa dos

expedientes mais baixos para alcançar o poder e a riqueza, que vão desde a intriga

para ficar com a guarda do sobrinho até cogitar matar Beatriz e Inácio – quando

descobre que este é seu filho – a fim de assumir a presidência do grupo

Vasconcelos.

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Outro componente dos personagens dos folhetins românticos presente em

Renato é o sentimento de vingança. Após ser traído por Laura, que lhe conquistou

de verdade ao se fazer de virgem e recatada, o jornalista colhe todas as

informações possíveis para ter a vilã sob seu controle e a serviço de suas

ambições. Renato cria uma armadilha para que Laura, mesmo sendo rica, perca a

liquidez, já que, sem poder econômico de fato, ela se torna um alvo muito mais

fácil. Então, munido de uma fita na qual a vilã negocia com um traficante as

drogas que ela usa para incriminar Maria Clara, Renato obriga Laura a se casar

com ele e controla todos os seus passos. Na rua, coloca seguranças no encalço da

esposa durante o tempo todo. Em casa, com dinheiro desviado da Vasconcelos,

coloca câmeras em todos os cantos, reproduzindo um Big Brother particular no

qual Laura é a estrela.

Nesse entrecho, Gilberto Braga dá uma amostra da permeabilidade da

telenovela aos temas contemporâneos, uma vez que ele extrai das tecnologias

mais recentes novas possibilidades criativas para atualizar o tema romântico da

vingança. Desta forma, não só o dinheiro é um elemento importante no plano de

Renato, mas também as câmeras. Estas, assim usadas como recurso na intriga,

acabam se revelando objetos de desejo tão ambíguos quanto a riqueza ou a fama

para as quais são instrumentos, já que podem tanto trazer a visibilidade ansiada,

quanto possibilitar a vigilância e o controle.

Embora em Celebridade Gilberto Braga aproxime-se mais do folhetim de

Xavier de Montepin, no qual a demarcação maniqueísta apresenta-se mais rígida,

ainda assim, em razão da dialética folhetinesca também presente nos romances do

autor europeu, por vezes na trama, os papéis de vítima e algoz se invertem, já que

os bons são capazes de ações rocambolescas e os maus sofrem por amor. Maria

Clara, por exemplo, temendo que Renato Mendes achincalhe um show que ela

produziu por não ter sido colocado numa boa mesa, consegue a autorização de um

homônimo do jornalista para publicar um anúncio sem foto nos principais jornais,

dizendo que Renato Mendes havia adorado o show46. Em outro momento da

novela, o jornalista é vítima de outra armadilha da heroína que, disposta a 46 Esse entrecho foi baseado num fato real, ocorrido na Broadway com o produtor teatral americano David Merrick. Para promover o musical Subways are for sleeping (1961), ele encontrou sete nova-iorquinos com os mesmos nomes dos sete maiores críticos teatrais da cidade, convidou-os a assistir ao espetáculo e conseguiu autorização para usar seus nomes em um anúncio com aspas elogiosas ao show (Braga, 2008).

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recuperar a fita que prova sua inocência no caso das drogas, finge que vai se

entregar a Renato, mas assim que consegue o tape que lhe interessa, ela se afasta.

Por fim, a produtora vinga-se de Laura, dando uma surra47 na vilã justamente no

dia em que esta conquista o Troféu Celebridade.

Já a personagem de Cláudia Abreu, apesar de maquiavélica, sofre ao ser

impedida por Renato de se encontrar com Marcos (Márcio Garcia). A distância

forçada do comparsa leva-a a perceber que seu sentimento pelo cúmplice é um

grande amor e não simplesmente uma atração física. Assim, as cenas do casal que,

antes da vingança de Renato, eram caracterizadas pela atmosfera das paixões

marginais, transformam-se em encontros mais afetivos com a aura dos amores

infelizes do melodrama romântico, já que ambos têm que transpor inúmeros

obstáculos para ficarem juntos.

Entre esses polos do bem e do mal, há personagens voláteis como a

manicure Darlene (Déborah Secco) que, em sua busca insana pela fama, é capaz

tanto de atitudes engraçadas como retirar a parte de cima do biquíni em um evento

para atrair os fotógrafos, quanto, ao saber do segredo de Beatriz, chantagear a

milionária, obrigando-a a apoiá-la em seu projeto de ascensão midiática. Além

disso, Darlene assalta um banco de sêmen, a fim de engravidar de Caio Mendes

(Theo Becker) – famoso atleta da natação e irmão de Renato –, mas a farsa não

funciona, pois o material que ela roubara era de um doador negro e Caio é loiro.

Assim, ela acaba dando à luz a dois bebês negros. Ao final da novela, a manicure

acaba se modificando em função do amor pelos filhos.

Mas, antes de personificar o protótipo da mãe melodramática no que se

refere ao amor-sacrifício, recusando um teste para um papel numa novela de

Sílvio de Abreu, a fim de cuidar dos filhos que ficam doentes, Darlene é a

personagem da trama que mais se vale do mecanismo do favor. Em troca de

projeção, ela coloca a carreira do namorado bombeiro em risco, fazendo-o posar

sem saber para a capa de uma revista gay. Depois, para ser capa na revista Fama,

entra em acordo com Lineu – dono da publicação – que, por achá-la interesseira,

47 A cena em que Laura apanha de Maria Clara no banheiro do Espaço Fama, além de ter sido o maior pico de audiência da novela, é outro exemplo de autopilhagem narrativa em Celebridade, já que Gilberto Braga havia feito o mesmo em Água Viva, novela na qual Lígia (Betty Faria) dá uma surra em Selma (Tamara Taxman) no banheiro do Canecão, porque esta havia lhe tirado o marido Heitor (Carlos Eduardo Dolabella).

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quer vê-la afastada de seu neto Inácio. E, por fim, com a promessa de um

programa de TV, Darlene entrega a Laura as provas da verdadeira autoria de

Musa do Verão, mesmo sabendo que isso prejudicaria seu pai, Ademar – um dos

envolvidos no roubo da documentação. Em outras palavras, por meio de tais ações

da personagem de Débora Secco, Gilberto Braga atualiza a prática do favor,

substituindo o dinheiro pela fama como moeda de troca.

Além desse aspecto do favor, por meio da personagem Darlene, Braga

volta a destacar em sua obra a figura da leitora feminina. Em Senhora, o autor fez

isso por meio das personagens Adelaide, Mariquinhas e Nicota. As duas primeiras

eram leitoras de romances românticos e, na adaptação do livro de Alencar, Braga

resgata não só o sentimento de insatisfação com o estado de coisas que esse tipo

de literatura despertava nas jovens, mas também a postura de desafio às

convenções sociais que essas mesmas jovens assumiam com base na ficção

romântica, gerando, assim, o pensamento conservador que responsabilizava tais

leituras pelo rompimento com os laços tradicionais.

Já Nicota é uma leitora de revistas femininas, o que a faz sonhar com uma

vida requintada como a que é retratada nos exemplares que consome, ou seja,

ajustada ao que é convencional em sociedade. Em Vale Tudo, esse hábito da irmã

mais nova de Seixas reaparece atualizado em Fátima, que lê publicações dirigidas

à classe A como Stampa e Tomorrow, nas quais o conteúdo romanesco apresenta

um caráter reificado, ou seja, diluído num conjunto fundamentalmente apologético

aos valores dominantes com a função de evocar o potencial de sonho de um

produto, levando ao consumo. Mas, enquanto Nicota restringia-se ao escapismo,

Fátima é levada a um movimento cíclico no qual se alternam devaneio e

desilusão.

Assim como a filha de Raquel, as aspirantes à fama Darlene e Jaqueline

também embarcam no mesmo ciclo. Entretanto, de acordo com a premissa da

novela, Braga atualiza o material de sonho que as motiva, transformando-as em

leitoras da revista Fama, um duplo fictício de publicações no estilo Caras, Quem,

Flash, Isto é Gente etc, ou seja, revistas que experimentaram um boom no

jornalismo brasileiro na primeira década do século XXI e nas quais o caudal

romanesco serve como instrumento para retratar o mundo das celebridades numa

atmosfera de sonho com direito a ilhas, castelos, lugares exóticos, festas suntuosas

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e glamour. Por isso, de modo diferente de Fátima, Darlene e Jaqueline até podem

desejar uma vida de riqueza, mas esta não tem o menor sentido se não vier

atrelada ao sucesso midiático, que é vendido em cada exemplar como uma

garantia de felicidade.

A leitora feminina é resgatada também em Celebridade por meio de Laura.

Da mesma forma que Eve Harrington procurava se informar sobre seu alvo

através da revista Who’s Who? – uma publicação que dizia quem era quem no

showbizz americano – a personagem de Cláudia Abreu colecionava tudo que era

publicado sobre Maria Clara em revistas nas quais a produtora surge envolta numa

aura de glamour, projetando um estilo de ser. Esse material foi fundamental para

que Laura construísse um projeto de vida fantasioso e, assim, o objetivo inicial de

retomar um lugar que era por direito de sua mãe, passou a ser também o de ocupar

o lugar de Maria Clara Diniz graças a um misto de admiração e inveja alimentado

pela magia midiática.

Por meio dessas leitoras presentes em Senhora, Vale Tudo e Celebridade,

Gilberto Braga faz uma referência à Madame Bovary, já que a protagonista do

romance de Gustave Flaubert era também uma ávida consumidora de leituras

romanescas, através das quais estabelecia os parâmetros para sua própria vida. A

ficção romântica levava Emma Bovary a um estado mental no qual a sensibilidade

e a imaginação predominavam sobre a razão, o que acabava por gerar na

personagem uma insatisfação romanesca com a realidade, que assumia formas

como o individualismo, a revolta, a fuga, a melancolia ou a fantasia. Ao ressaltar

cada uma dessas manifestações nas diferentes leitoras que criou, Braga pontua os

registros que o bovarismo – entendido como identificação entre o romanesco e o

real (Morin, 1989) – pode assumir não só em suas personagens, mas também nas

espectadoras de telenovelas, uma vez que estas atualizam a relação estabelecida

entre a mulher e a literatura romântica desde a Era da Sensibilidade, inclusive sob

o ponto de vista da crítica conservadora que esse tipo de leitura recebia.

Preservando-se as diferenças de contexto histórico, já que os veículos de

comunicação não possuíam os mesmos recursos tecnológicos que, na

contemporaneidade, possibilitam-lhes um alcance global e também, levando-se

em conta que a palavra celebridade não tinha a mesma conotação a qual lhe é

atribuída na sociedade de consumo, pode-se dizer que – entre os personagens que

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compõem a vasta galeria de alpinistas sociais da obra de Gilberto Braga – a busca

por uma vida de luxos sempre esteve acompanhada por um anseio de notoriedade.

Assim, em Senhora, Seixas, além de querer se garantir economicamente através

de um casamento de conveniência, desejava fazer uma carreira política e tinha em

seu trabalho como jornalista uma maneira de projetar seu nome na metrópole.

Já em Dona Xepa48, a arrivista Glorita (Ana Lúcia Torre) é obcecada pela

ideia de aparecer nas colunas sociais. Para isso, tenta se aproximar a todo custo da

socialite Isabel Becker (Ida Gomes), adotando os marcadores de status da

milionária e se adaptando às modificações dos mesmos. Em Vale Tudo, Fátima –

antes de querer se casar com um homem rico – queria ser uma modelo famosa e,

Raquel, embora não fosse um alpinista social, tem na visibilidade midiática um

dos elementos mágicos que impulsionam a sua ascensão como empresária, pois as

reportagens feitas sobre a heroína atraem clientes para o seu restaurante, entre eles

Laudelino, um milionário investidor.

Na mesma novela, a questão da visibilidade midiática aparece ainda por

meio da personagem Aldeíde que – após ficar viúva de Laudelino – investe seu

dinheiro em campanhas publicitárias com o intuito de ficar famosa. Por meio

dessa personagem, aparece ainda de forma embrionária uma questão que, em

Celebridade, assume um caráter central: o sucesso midiático como um fator de

distinção social.

Por isso, de modo diferente ao que acontecia em Senhora e Vale Tudo,

novelas nas quais a topografia do enredo era definida pela condição financeira, em

Celebridade, embora as tradicionais marcações de riqueza e pobreza permaneçam,

a divisão que impera é determinada pelo sucesso. Os ricos vivem em flats ou

mansões da zona sul, são editores de revistas de fofoca, produtores de eventos,

modelos, atletas, cineastas, dondocas e presidentes de grupos empresariais. Nos

shows, ficam na área vip, mas, ainda assim, alguns deles – como o jornalista

Renato Mendes – brigam pela melhor mesa, pelo melhor lugar. Já alguns dos

personagens menos abastados do Andaraí, que trabalham em atividades nada

relacionadas ao glamour midiático, em vez do poder econômico, sonham com a

48 Dona Xepa também trouxe Nívea Maria no papel de Rosália. Essa personagem que humilhava a mãe feirante foi a primeira grande arrivista contemporânea de Gilberto Braga. Assim como várias vilãs marcantes na galeria do autor, Rosália queria dinheiro e sucesso.

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fama que poderá lhes abrir as portas de todos os eventos, de preferência na área

vip.

Não basta mais ser rico, ter bom gosto e estilo, o topo agora também

significa estar na mira dos paparazzi e sob a luz dos holofotes49. Em um mundo

que se dá como imagem, um mundo onde ser filmado e tornar-se um produto a ser

consumido é uma possibilidade concreta, a aristocracia do dinheiro foi substituída

pela aristocracia da fama. Assim, se outrora Aurélia – após enriquecer – tornou-se

a nova estrela que brilhava nos salões da sociedade fluminense, a personagem de

Malu Mader – na era do culto à celebridade – reina no grande salão midiático, no

qual sua imagem impera em outdoors, capas de revista, shows, eventos e

programas de TV, alimentando os sonhos do capitalismo de consumo como, por

exemplo, ter uma festa só para si no Espaço Fama – templo ficcional de

celebridades as quais Edgard Morin denominou de olimpianos, vedetes da cultura

de massa, astros de cinema e TV, os campeões, príncipes, reis, playboys e artistas

célebres e também a falsa musa Maria Clara Diniz, que, por meio de sua dupla

natureza, divina e humana, efetua a circulação permanente entre o mundo da

projeção e o mundo da identificação (idem), lugar da experiência maravilhosa

onde as Bovarys de Braga, algumas até mesmo sem dinheiro, querem estar.

49 Corrobora para esse argumento o fato de que, assim como a personagem Aldeíde, em meio aos milionários da vida real como Luciano Huck, Luís Calainho, Roberto Justus, João Dória Jr., Luciano Szafir e Lucília Diniz, alguns deles, apesar de não necessitarem da exposição midiática como forma de ganhar dinheiro ou de ter acesso a eventos importantes, chegam a comprar horários nas emissoras para ter o seu programa de TV.

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