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MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE ENSAIO SOBRE A TEORIA 1.I INTEBPkETANO !li, LEIS

5 Ferrara, Francesco (1963) - Interpretação e aplicação das leis

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MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE

E N S A I O S O B R E A

TEORIA 1.I INTEBPkETANO !li, LEIS

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iilterpretação, aquele que melhor corresponda aos interesses da vida, -assunto este onde, d ib , é realmente de suma dificiil- dade chegar-se, com pleno conhecimei~to de causa e vcrdadeiro escrúpulo científico no decidir, a pontos de vista duma grande

1 precisão e firmeza l.

Bastante maior segurança pomos nós nas conclusões que adoptaillos

quanto ao problema das lacunas, salvo pelo que diz respeito à opinião emitida I

na pág. 78 e nota 3 (como aliás se depreendia já do que escrevemos neste último lugar e também na pág. go, notas 3 e 4).

C O L E C Ç Ã O C U L T U R A J U R ~ D I C A

FRANCESCO FERRARA PROTESSOR ORDINÁRIO DE DIREITO CIVIL NA UNIVERSID.4DE DE PISA

TRADUZIDO

POR

MANUEL A. D. DE ANDRADE PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DE COIMDR.4

ARMÉNIo AMADO, EDITOR, SUCESSOR - COIMBRA

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ESTA OBRA É CONSTITU~DA PELOS CAPÍTULOS III,

IV E V DO CTRATATTO DE DIRITTO CIVILE ITALIANO)),

VOE. I (ROMA, I ~ Z I ) , DO PROF. FRANCESCO FERRARA.

DIREITOS EXCLUSIVOS EM LÍNGUA PORTUGUESA DE

AWNIO AMADO - EDITOR - SUCESSOR

C E I R A - C O I M B R A - P O R T U G A L

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NOÇÕES PRELIMINARES '

1. - Funções da actividade do jiiiz

O direito opera por comaildos alstractos. Mas a renli- zação forçada destes comaildos efectua-se por imposição judi- ciária.

O juiz é o interiliediário entre a iiorina c a vida: C o instrumento vivo que transforina a ~e~ulainentação típica imposta pelo legislador na regulainentação iildividual das relações dos particulares; que traduz o comaiido abstracto da lei no coiiiando concreto entre as partes, formulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.

O juiz, porém, está submetido às leis, decide coino a lei ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função espe- cífica consiste na aplicação do direito 3 .

Alguma leve indicação do tradutor vai entre aspas. * HELLVVIG. - Lehrbtlch des Civilproress «Tratado do processo civil», I,

pág. 38 e 11, 91.0. WACII - Haizdlitrch dcs Zivilpuozess «Manual do Processo Civih, pág. 6. CHIOVENDA - Prii~cipi di diritto processuale, pig. 52 e scgs. e 595 e scgs. RUMPF - Gesr t z uird Richter (IA lei e o juiz*, Berlim, 1906, e em geral todos os escritores que se ocupam da livre descoberta do direito. uCfr. iizfia, n.O 12)).

A autoridade judiciária exerce tambCm f~ii i~ões adniiiiistrativas e de protecção de relações privadas que não são controvertidas. F~inções de documentação ou cooperação na coi~clusão de negócios jurídicos (adopçáo, reconhecimento, prestação de juramento) ou de tutela e vigilância lias relaçõcs privadas (tutela, curatela, pátrio poder, inventários) ou de cooperação coin intuito protectivo na formação ou dissolução de negócios jurídicos (autori- zação, homologação, etc.).

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Esta actividade desdobra-se em três operações:

I) Averiguar o estado de facto que é objecto da con- trovérsia.

11) Determinar a norma jurídica aplicável. III) Pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsun-

ção do estado de facto aos princípios jurídicos1. Tem-se dito que o julgamento é um silogismo em que

a premissa maior está na lei, a menor na espécie de facto e o corolário na sentença. E isto é verdade, embora se não deva acreditar que a actividade judicial se reduz a uma simples ope- ração lógica, porque na aplicação do direito entram ainda factores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se degradar num autómato de decisões a.

As tarefas preliminares da actividade judicial são pois: o apuramento do facto, da relação material a julgar, e a deter- minação do direito a que o facto está subordinado.

Mas é diversa a posição do juiz com respeito a estes dois elementos do processo. Na realidade, quanto aos factos o ónus da prova incumbe às partes, ficando por completo a cargo delas, como negócio privativamente seu, preparar os ma te riais que hão-de sustentar o pedido ou a defesa, para se formar o convencimento do juiz, sem o que este repele a acção ou a excepção (princípio dispositivo ou da iniciativa das partes e quanto ao direito, pelo contrário, é dever profissional do juiz conhecê-lo (iura novit curia).

1 HELLVVIG. - Lehrbuch, I, pág. 36. CHIOVENDA, Priltcipi, pig. 596. a RUMPF. - O p . cit., págs. 4 e 39 e segs. a 0 juiz decide segundo allegata et probata, não podendo suprir de

oficio à invocação (rilievo) de factos constitutivos e extintivos, ainda mesmo que deles tenha notícia particular: o que não está no processo não existe em direito.

O conhecimeilto do direito é pressuposto no niagistrado, em virtude da função que reveste. O juiz deve em cada caso achar a norma ou a combinação de normas que se aplica ao facto concreto; c se para este trabalho as alegações dos inte- ressados lhe podem fornecer sugestões, o juiz não está vinculado por elas, uma vez que pode aplicar princípios de direito não invocados pelas partes e até mesmo princípios de direito que as partes concordemente excluiram l.

A regra iurn fzovit nrria sofre uma limitação aparente no que toca ao direito estrangeiro, visto que o tribunal pode chamar ein seu auxílio a cooperação das partes, impondo-lhes o ónus da prova; mas tem uma função muito diversa da que tem a prova dos fr-ctos, pois o tribunal pode sempre de ofício pio- curar ou completar o conhecimento das normas aplicáveis.

A tarefa central a que o juiz se dedica é, porém, a deter- minação do direito que há-de valer no caso concreto. Para este fim deve levar a cabo três indagações:

1 . 2 ) Apurar que o direito existe. 2 . 2 ) Determinar o sentido desta norma jurídica. 3.2) Decidir se esta norma se aplica ao caso coricreto. A aplicação das leis envolve, por consequência, uma trí-

plice investigação: sobre a existência da norma; sobre o seu significado e valor; e sobre a sua aplicabilidade.

Examinemos distintamente estas operações.

' REGELSBERGER - Patzdekten ((Pandectasr, Leipzig, I 893, pág. I 3 3 . C~OVENDA - Principi, pág. 596.

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I

VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA NORMA JURÍDICA

2. - Crítica d o texto da lei

A averiguação da existência da lei pode ser fornznl ou substancial: uma refere-se à crítica do texto da lei; a outra é atinente ao controlo jurisdicional.

Para se aplicar uma lei, importa verificar que C auti!ntica, já no seu complexo, já em cada uma das suas partes. A veri- ficação da genuidade do texto da lei diz-se critica. Esta, nos tempos modernos, tem pouco espaço, dado que as leis são redigidas em forma escrita e resultam de um documento público em forma oficial. Texto autêntico é o que resulta da publicação na Colecção Oficial (Raccolta iIfficiale).

a) Erros n~nteriais do t ex to :

Todavia pode suceder que este texto se encontre viciado por incorrecções tipográficas, erros de impressão, mudança de palavras ou de algarismos, acrescentos ou omissões, pontuação diversa, transposições, que podem alterar o sentido da dispo- sição.

Entende-se de plano (da se ) que em tais casos a autoridade encarregada da execução das leis, isto é, o Governo ', pode prover à rectificação.

O Regulamento sobre a publicação das leis de 1 9 9 , no seu art. 17.0,

dispõe: <Caso na impressão se verifiquem erros que possain modificar o signi- ficado ou o conteúdo do acto, a sua correcção seri ordenada pelo Ministro

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Mas fora ou independentemente disto pode a autoridade judiciária, ao fazer aplicação da lei, rectificar o texto publicado em modo diverso do original aprovado pelas Câmaras? l.

É preciso distinguir. Quando se trata de simples erros materiais que à primeira

vista aparecem como incorrecções tipográficas, ou porque a palavra inserida no texto não faz sentido ou tem um signi- ficado absolutamente estranho ao pensamento que o texto exprime, enquanto a palavra que fonèticamente se lhe asse- melha se encastra exactamente na conexão lógica do discurso, ou porque estamos em face de omissões ou transposições que é fácil integrar ou corrigir pelo contexto da proposição - deve admitir-se que o juiz pode exercer a sua crítica, chegando, na aplicação da lei, até a emendar-lhe o texto 2.

da Justiça (Ministro Guardasigilli), quer mediante inserção na Gazeta Oficial, quer mediante uma errata (errata-corrige) no fim do volume da Colecçãos.

Nem se julgue que estas incorrecções são raridades, porque, ao contrário, são por demais assás.frequentes. Assim, só no decreto de 24 de Novembro de 1919 acerca do imposto extraordinário sobre o património, foi ordenada a rectificação de nada menos de dez erros e mudanças de cifias (Gaze ta Oficial, r7 de Janeiro de 1920, n." 13).

Sobre a questão veja REGELSBERGER, Pandekteiz, pág. 138; UNGER - System des osterreichischen allgerizeinem Privatrechts *Sistema do direito pri- vado geral austríaco*, I, pág. 73 ; BINDING - Haiidbuch des Strafiechts uManual de direito penal*, 5 98.O, 11 ; PFAFF - HOFMANN - Konztnentar zirnz osterrei- chischeiz biirgerlichen Gesetzbuch. *Comentário ao Código Civil austríaco*, I, pig. 174; BIERMANN - Burgerliches Recht *Direito Civil*, pág. zg; DERNBURG - Das biirgerliches Recht des deutscheiz ~ e i c h s «O direito civil no império alemão,, § 22.", nota 4; e uma decisão do Reichsgericht *Tribunal do Império*, 27, 411, onde se diz: ((o legislador só pode falar uma líígua - a da piiblicação da lei. Aquilo que da lei se não pode deduzir não é direito legal*.

Consulte ainda LUKAS - Fehler itn Gesetzgebungysoerfahren, 1907 vi cios no processo legislativoa; LINDEMANN, no Archiv fur offentlichen Recht *Arquivo para o direito público*, 14, 145 ; e ZANOBINI - L a publicazioize delle leggi, págs. 267 e seg.

O art. 16.O do Regulamento de 1919 sobre a publicação das leis diz: *Enquanto se não provar a sua inexactidão, tem carácter de autenticidade

Pelo contrário, a solução tem de ser outra quando se trata de mudanças ou adjunções de palavras ou frases que importam uma substancial divergência de pensamento, ou determinam equívoco sobre o sentido da lei, tornando possíveis diferentes significados da vontade legislativa.

Em tal caso o juiz não pode escolher a dição que lhe pareça mais racional e correcta, mas está vinculado ao texto da Colecção Oficial. Incumbirá à parte litigante que invoca o erro, e daí quer tirar consequências a seu favor, provar a inexactidão do texto impresso - e pode fazer esta demonstração produzindo cópia autêntica do original da lei ou decreto, passada pelo Arquivo Geral do Reino (regulamento de 5 de Setembro de 1902, art. 74-3) l.

Toda a vez que assim resulte discordância entre o texto impresso e o original da lei, o juiz não pode proceder a qual- quer emenda, mas deve entender-se, relativamente ao ponto em que a disconformidade se verifica, que nenhuma lei chegou a ter existência jurídica: nem o texto sancionado a que falta publicação adequada a, nem o texto publicado que não corres-

e de conformidade com o original e constitui texto legal das leis e decretos a respectiva edição (stanipa) oficial, seja em folhas separadas, seja na Colecção em volumes, seja na Gaze ta Oficial.

Mas é evidente que a prova pode resultar e x se, do próprio texto inipresso, qiie pritiia facie, se patenteia como incorrecto e incongruente, e para tanto não é necessário o confronto do texto com o original depositado no Arquivo geral do Reino, demais sendo certo que se não trata de prova de fnctos, mas de crítica do texto, para que é competente em primeira linha e pela sua mesma função o juiz.

Note-se, porém, que não se trata de verdadeira prova, mas duma forma de cooperação das partes na actividade judicial, semelhante à que tem lugar na prova do costume. Não é de excluir que a Cassação possa, de ofício, requi- sitar cópia do texto original depositado no Arquivo do Reino.

a Não pode aceitar-se a opinião de BINDING - Haiidbuch, pág. 460, segundo a qual a ordem de publicação é destinada a tornar conhecido o con- teúdo do documento original, e portanto niesmo por falsa publicação se torna lei o texto genuino. O A. explica (n. 6) que em tal caso o real princípio

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ponde à vontade do poder legislativo. Cai-se, portanto, na nulidade da norma.

A esta situação só pode trazer remédio uma nova publi- cação do texto genuino, ou uma rectificação oficial que, em substância, outra coisa não é senão uma nova publicação I,

parcial, que tem eficácia retroactiva.

b) Erros conceituais de redacção ou coordenação:

Dos erros materiais de texto devem separar-se bem os erros conceituais de redacção ou coordenação -erros na mani- festação de vontade, cometidos na elaboração das leis, e que por inadvertência passaram através das discussões parlamen- tares até ao texto definitivo. Estes deslises podem ser positivos ou negativos, segundo introduzem no texto palavras ou frases que não correspondem à vontade reconhecível do legislador ou omitem outras que, inversamente, lá deviam estar contidas.

Tais erros fazem parte da lei e têm força vinculante. O juiz não pode remediá-los, excepto no caso único de a recti- ficação poder deduzir-se por interpretação do próprio conteúdo do texto ou da sua conexão com outras normas. Em qualquer outro caso a correcção só é possível por via legislativa.

A actividade crítica do poder judicial tem mais vasto campo para se exercitar quando se trata de aplicar leis antigas -hipótese em que é necessário proceder a investigações histó- ricas ou pdeográficas, podendo o juiz, nesta tarefa, reclamar o auxílio de peritos.

jurídico não está na lei, mas pertence ao dxeito tzão escrito. A verdade é que o texto genuino, não tendo tido publicação conforme, não se tomou lei. Sobre a questão, veja SONNTAG - Redaktionsversehen úes Gesetzgebers uLapms de redacção do legisladon, no Archiv für Strafrerht aArquivo para o direito penab, 19, 291; SCWHE - ibi., 20, 351; ZANOBINI - La publicazione, pág. 282.

ZANOBINI - Lu publicazioae, piig. 287.

Outras vezes a investigação do juiz, sem se engolfar na diplomática, não é menos difícil e subtil; assim acontece quando se trata de aplicar princípios de direito conzurrz, vigentes ainda para certas relações. Em tal caso a determinação da norma aplicável não pode fazer-se simplesmente com remontar ao código de JUSTINIANO; é preciso, além disso, ter em conta todas as modificações e adaptamentos que o princípio romano sofreu na elaboração doutrina1 e na jurisprudência. Trata-se, portanto, de uma crítica conjectt~val, de uma selecção avisada das opiniões dos doutores, o que requer visão segura e profundo conhecimento das fontes, para se determinar o verdadeiro e

genuino princípio dominante e regulador naquele tempo.

3. - Controlo substancial da existência da lei

Mais importante é hoje o controlo substancial da exis- tência das leis. Uma norma jurídica existe desde que surgiu e não se extinguiu ainda. Por isso o poder judicial deve recusar a aplicação a todas as regras que não têm carácter jurídico, ou por falta das condições e formas constitucionais para o seu nascimento, ou por falta de competência e poder na autoridade que as emanou, ou enfim porque essas normas perderam a sua eficácia em virtude de abrogação.

Compreende-se como nestas investigações sc produzem contactos entre o poder judicial e o legislativo, e se torna necessário marcar limites a tais investigações, que poderiam transformar-se numa ilegítima intrusão de um dos poderes na esfera do outro.

Faz-se mister distinguir entre o controlo da existêncin formal das leis e o controlo substancial do seu conteúdo.

O nosso direito público não admite uma fiscalização sobre o conteúdo substancial das leis por inconstitucionalidade, como sucede nos Estados Unidos da América, pois o nosso Estatuto não representa uma lei inviolável acima das outras leis, mas t apenas uma lei como todas as outras, uma lei que pode ser

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modificada e abrogada pelas formas ordinárias: o poder cons- tituinte é imanente no poder legislativo. Por consequência, o verficar-se que uma lei derogou ao Estatuto não é motivo para lhe infirmar a eficácia, mas só faz constatar um desenvol- vimento ou modificação da lei constitucional.

Inversamente, cabe ao poder judicial um controlo sobre a existênciaformal das leis. Pois que, de facto, lhe cumpre julgar secundum legern, o poder judicial tem não só o direito como até o dever de verificar se uma lei existe formalmente, quer dizer, se estão integradas as condições e formas constitucionais para que haja uma lei válida.

Se, portanto, há discordância entre os textos aprovados pelas duas Câmaras, ou entre o texto aprovado pelo Parlamento e o sancionado e promulgado, não há uma lei, mas uma apa- rência de lei, a que não pode infundir força nem a sanção régia, que deve juntar-se à vontade das Câmaras e não substitui-la, nem o acto da promulgação, que anuncia a existência da lei e ordena a sua execução, mas cuja eficácia é subordinada à integração efectiva dos elementos da existência da lei, e prin- cipalmente à aprovação do Parlamento.

Todavia este ponto é objecto de controvérsia na doutrina l.

A questão foi debatida em Itália, a propósito da lei pautal de 30 de Janeiro de 1878, que no seu art. 96." estabelecia sobre os tecidos de algodão lavados (imbianchiti) um direito superior ein 20% ao que recaía sobre os tecidos brutos ou virgens (greggi), o que correspondia ao projecto aprovado pelo Senado, enquanto que a Câmara dos Deputados tinha votado só 15%. Veja Cassação de Roma, 20 de Junho de 1886, (Foro Italiano, 1886, I, 705).

A doutrina dividiu-se: alguns sustentaram a ineficácia da disposição legislativa e a admissibilidade do sindicato OLI controlo da autoridade judi- ciária, outros, às avessas, a impossibilidade de todo o controlo judiciário. Pela primeira opinião veja: ORLANDO - Teoria generale delle guarantigie &lla libertà, pág. 966; CAMMEO- Legge e ordinanza, n: 2s. FADDA e BBNSA, nd W I N D S C ~ -- Diritto delle pandette, r, pig. 107; RANELLETTI - Princbi di diritto arnrninistrativo, n, pág. 334; UGO - I-e leggi incortituzionalí, pdg. 106; GABBA, no Foro italiano, 1886, 705; LESSONA - L a legalitd della nornza e i1 yotere

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Opõe-se que o acto de promulgação é uma atestação z

% solene do chefe do estado sobre a constitucionalidade formal da lei, que tem o valor duma sentença ou dum acto público, cuja fé não pode ser impugnada perante os tribunais; quc a promulgação é o tíizico nzeio fonrzal para constatar a existência da lei; e que emanando do poder legislativo é insindicável pelo poder judicial. E demais, acrescenta-se, deve em qualquer caso ser vedado aos juizes o investigarem sobre o período de forinação interna da lei, para se não criarem conflitos e fiscalizações que diminuem a autonomia do poder legislativo .

Estes argumentos não são decisivos. Ou sc considere a promulgação um acto que o Rei pratica como chefe do poder legislativo, ou um acto ein que o Rei funciona como chefe do Governo, de toda a maneira a promulgacão não tem de per si a qualidade de acto legislativo subtraído ao controlo judiciário.

Inautorizada é a comparação que se quer instituir entre promulgação e sentença, porque o Rei ao promulgar a lei não decide processo algum, nem se pronuncia cnttsa cognitn, depois de ter examinado a observância das formas constitu- cionais da lei, como e x adverso se pretende.

E menos se pode induzir a insindicabilidade da proinul- gação do considerar-se esta um acto público, porque a publici- dade dos actos estaduais tem carácter diverso do da publicidade

giudiziario, (Florença, 1900). Opostamente, negam à autoridade judiciária o direito de contestar a constitucionalidade formal da lei, em contradição coin o acto de promulgação: ARMANNI, no Foro Italiai~o, 1890, I , 1106; SCHANZER, na Legge, 1894, n, 610. ROMANO, no Arckivio giuridico, 1905, 48; CRISCUOLI - L u yroinulgazione, pig. 76 e seg., (Nápoles, 1911); ZANOBINI - L a ptrbli- cazione, pág. 276. Ao mesmo resultado de negar todo o controlo judiciário chega MORTARA - Co~i~entár io de1 Códice e delle leggi de procedura c i ~ ~ i l e , I, n." 112, argumentando, porém, coin a sanção, que no seu entender C o acto apeâeiçoador da lei, que lhe confere a patente (brevetto) de constitucionali- dade externa. No mesmo sentido veja ainda VENZI, ~d PACIFICI MAZZONI - Istitirzioni di diritto civile itliliano, I, 60 e seg.

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dos negócios privados 1, e, em particular, a circunstância de tal acto emanar do Rei como chefe do poder legislativo não o torna imune de vícios e de impugnativas. A promul- gação, com efeito, não serve para completar a lei, não é o último estádio do seu processo de formação, mas pressupõe a lei já formada. E um documento que atesta solenen~ente a exis- tência da lei, mas esta atestação deve corresponder à verdade, deve ter o seu fundamento num acto legislativo real; de outro modo a lei não deveria o seu nascimento ao poder legislativo, mas ao acto régio de promulgação.

E assim volta a questão: o juiz quando aplica as leis deve conhecer da sua existência só através da promulgação, ou pode levar mais longe o seu exame, constatando que a promulgação se apoia num erro I

Assevera-se que a promulgação é o único meio para cons- tatar a existência das leis, mas este o thema probandum!

Em conclusão, pode observar-se que, na falta de uma disposição explícita, também esta acto solene é susceptível de crítica e revisão,' e quando se constata que ele repousa sobre um equívoco a autoridade judiciária negará reconhecimento a esta larva de lei que não veio à existência nas formas consti- tucionais.

Todavia o seu controlo cifra-se em averiguar da existência exterior dos elementos da lei: aprovação dos órgãos legislativos, promulgação, publicação; e não pode penetrar no vestíbulo interno da formação da lei, para inquirir da observância das

É de consentir a CRISCUOLI - L a proiriulgazione, pág. 81, que acto público em direito constitucional tem significado diverso do que tem no direito privado. Sucede todavia que os Autores contrários procuram jogar com o equívoco, deduzindo do princípio privatístico de que o acto notaria1 faz fé sobre aquilo que nele se atesta a irrevogabilidade da promulgação. Mas, pondo-se neste terreno, replica justo COVIELLO - Manuale di diriuo civile italiano, picg. 62, que o oficia público atesta de modo inopugnável aquilo que se passa na sua presença, enquanto que o Rei não pode fazer f4 plena da aprovação das Câmaras, que tem lugar sem o seu concurso.

regras de processo das Câmaras, na discussão e votação, sobre o número legal, a capacidade dos representantes para votar, e outras análogas. Estas normas dizem respeito ao funciona- mento interno das assembleias, são iura interita corporis de carácter autonómico, que fogem às indagações do poder judiciário. Por conseguinte, o poder de investigação do juiz não vai além do resultado da aprovação, além do voto final que põe termo ao processo legislativo interno, sem indagar da forma e do processo por que se chegou a este resultado.

A fiscalização jurisdicional exercita-se ainda nos casos de delegação legislativa, tendo por objecto então o examinar se as disposições emanadas pelo Governo entram na esfera de poder que lhe foi assinada pela lei de delegação. É natural, de facto, que as normas emanadas pelo poder executivo, quando exorbitam da delegação, sejam privadas de força jurídica l.

Mais duvidosa se apresenta a questão da sindicabilidade dos decretos-leis.

Uma forte corrente doutrina1 contesta a legitimidade deste processo de que o Governo se serve em circunstâncias extraordinárias ou de urgência, e por isso nega que tais decretos possam achar aplicação nos tribunais. Outros, pelo contrário, subordinam a sua validade à verificação concreta, por parte da autoridade judiciária, das condições excepcionais em que esses diplomas foram emanados.

Deve regeitar-se esta última opinião que levaria a intro- meter-se o poder judicial em indagações de carácter político para as quais não tem competência; mas tão pouco é de seguir afoitamente a tese rigorosa da ineficácia dos decretos-leis.

Como decisão mais recente, veja Cassação de Roina, 21 de Agosto de 1907, (Foro italinizo, 1907, I , 1304). O poder de suldicato judiciário foi

admitido até 1x0 caso de concessão de plenos poderes, durante a guerra actual para controlar se o Governo excedeu ou não os limites desta delegação. Veja Apelação de Génova, 1 3 de Jutilio de 1919 (Foro italia;to, 1919, I, 1118).

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Na verdade, sendo certo que do ponto de vista político não se pode negar ao Governo o direito de em condições de urgência se antecipar ao poder legislativo, fazendo-se uma espécie de gestor de negócios deste, resulta que os decretos-leis hão-de considerar-se como leis potenciais, dependentes de apro- vação, e que tal aprovação opera com eficácia retroactiva.

E pois que deve partir-se do princípio de que a actuação governativa tem carácter legítimo, e portanto deve presumir-se que será ratificada pelo poder legislativo, à autoridade judi- ciária cumpre, em vista deste normal pressuposto, dar apli- cação ao decreto-lei, salvo ficando o recusar-lhe eficácia se vier a ter lugar a desaprovação do poder legislativo.

Mais rigoroso se exercita o controlo sobre os regulamentos administrativos, a que a autoridade judiciária dará aplicação só enquanto forem conformes as leis. (Lei sobre o contencioso administrativo, art. 5.0).

A actividade regulamentar deve mover-se dentro de limites precisos, e não só não pode pôr-se em contradição com a lei, mas não pode também formular princípios novos, que apenas ao legislador compete pronunciar. U m regulamento pode ser coiztra ou praeter legenr. Mais interessante é o segundo caso.

O regulamento não pode sair da esfera discricionária que lhe é assinada pelo direito vigente (leis gerais ou lei de autori- zação) e não pode ditar normas estranhas ou exorbitantes daquela faculdade discricionária. Independentemente disto, transcende o poder discricionário toda a norma que limita direitos de liber- dade ou impõe encargos financeiros ou inflige penas, salvo se houver uma delegação conferida por lei. E quando se trate de regulamentos de execução, além destas restrições um limite imediato se encontra na lei mesma para cuja execução o regula- mento foi expedido. De facto o regulamento poderá desen- volver, concretizar, dar regras de detalhe sobre as formas e modos de actuação da lei, mas não pode introduzir principias

autónomos f?ovos que não derivem das prescrições da lci c, muito menos, que as contradigam. A autoridade judiciária em tais circunstâncias não infirma por nulidade o regulame~ito; apenas no caso concreto se nega aplicar a norma ou as normas que resultam inconstitucionais.

Mas não basta estabelecer que uma norina jurídica ilasceu em forma regular; ocorre igualmente saber se ela está em vigo;, se, isto é, não foi mudada ou suprimida por uma norma pos- terior. A tal propósito deve ter-se ein conta a teoria da abro- gação das leis «veja ii?fun, 11.0 16)).

O que se disse para as normas legislativas, vale também para os costumes, onde forem reconhecidos. O juiz não pode aplicá-los sem primeiro verificar a sua existência, apurando os elementos de que resultam, e a sua IZÃO cessaçÃo por efeito de desuso ou de usos contrários, ou mediante abrogação por via legal.

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DETERMINAÇÃO DO SENTIDO DAS NORMAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO

4. - Ideias gerais

Mas a actividade central que se desenvolve na aplicação da norma de direito 6 a que tem por objecto a interpretação.

O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras escritas que servem para uma manifestação de vontade, a casca

1 Da vastíssiina literatura sobre o arguineiito bastará recordar os tra-

balhos fundamentais: SAVIGNY - Systeiii des herrtigerz rori~ischei~ Rechts «Sis- tema do direito romano hodiernor, I, 5 32."; UNGER - Systeiir, I, g 10.0; BINDING - Strafrecht, pág. 450. WACB - Halidbucli, pág. jo; KOHLEI~ - Ueber die Interpretatioiz uoir Gesetzen «Sobre a interpretação das leis* na Griinhrit's Zeitschrift für das privnt trizd offentliclielz Ihering's ((Revista de Grunhut para o direito privado e público» 1896, e nos Ihering's Iahrbiiclier fiir Dogri~atik nAnuários de Ihering para a c!ogiiláticd» 25, 270; BULOW - Gese tz i ~ n d Rich- terarnt aA lei e a fwição do juiz», Leipzig, 1885; KRAUS-Die leiteizdc Grmzdsitzr der Gesetzirzterpretation rOs princípios directivos da interpretação das leisr, na Grünhut's Zeitschrift, 32; GÉNY - Méthode d'iizteryuetatioii et sorirces erz droit priiié positif; Paris, 1899; BRUTT - D i e Kirrzst der Rechtsali~riendttrig «A arte da aplicação do direito», Berlim, 1907; SCIALOJA - Stilla teoria della ilrter- pretazione delle leggi, nos Stridi per Schirpjér, 111; DEGNI, L'iitterpretazioize delle leggi, 2." ed., Nápoles, 1909; ALFREDO ROCCO - L ' i ~ r t e r p r e t a ~ i o ~ z ~ delle leggi processtrali, no Archiuio Giitridico, 1906, pág. 91 e seg.; SCIALOIA (ANTÓNIO) - L e f o n t i e l'interpretaziorle de1 diritto cotitnzerciale, 1907; CARNELUTTI - Criteri d'interpretazione della legge sirgli irrfortuni nel lnuoro, nos Stlidi stigli irijórttrizi, vol. I; ROMANO - L'itrterpretazior~e delle leggi di diritto ptiblico, no Filar~gieri, 99, 242 e segs.; FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Paizdette, I, 118 e segs.; SALEILLES - Ifatton d'interpretazione giuridica, Corte Napoli, 1903.

° Em forma paradoxal SCHLOSSMANN - Der Iuuttrrir iibeu ivrseiztliclierz Eigerzscl2afZen. «Erros sobre qualidades essenciais*, pág. 27, chama i lei uma folha de papel Ntipresso, uma combinação de papel com sinais negros! Mas

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exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo espiritual.

A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta

é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e portadores de pensamento, mas podem ser defeituosas. Só nos sistemas jurídicos primitivos a letra da lei era decisiva, tendo um valor místico e sacramental. Pelo contrário, com o desenvolvimento da civilização, esta concepção é aban- donada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o elemento espiritual, a voluntar legis, embora deduzida através das palavras do legislador.

Entender uma lei, portanto, não é sòmente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções possíveis: Scire leges izotz hoc est verba earum tetaere, red v i m nc potertaterla (17, Dig. 1 , 3).

A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o seu valor, penetrar o mais que é possível (como diz WINDSCHEID) na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo.

Só assiin a lei realiza toda a sua força de expansão e repre- senta na vida social uma verdadeira força normativa.

De interpretação fala-se em sentido amplo e em sentido estricto. No sentido estricto, a interpretação consiste em deter- minar a significação da lei e desenvolver o seu conteúdo em todas as direcções; no sentido amplo, a interpretação com- preende também a analogia, isto é, a elaboração de normas novas para casos não contemplados, induzidos de casos afins

não se adverte que estes sinais de escrita são a expressão dum pensamento e duma vontade.

Paitdekteit, 324, pág. 99.

regulados pela lei. Na analogia o trabalho do jurista move-se numa esfera inais alta, mas não se transforma em criação do direito, porque fica sempre vinculado à lei.

A actividade interpretativa é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino tacto, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espí- rito de uma certa legislação.

Cumpre evitar os excessos: duma parte o daqueles que por timidez ou inexperiência estão estrictamente agarrados ao texto da lei, para não perderem o caminho (e muitas vezes toda uma era doutrina1 é marcada por esta tendência, assim acontecendo com a época dos comentadores que se segue ime- diatamente à publicação dum código); por outro lado, o perigo ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo ideias e princípios que são antes o fruto das suas locubra- ções teóricas ou das suas preferências sentimentais.

A interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei.

Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou sejam obscuras1, pois não se deve confundir a interpretação com a dificuldade da interpretação.

A inteligência dum texto pode sair mais ou menos fácil, e de resto a facilidade depende da pessoa que interpreta, mas isto não tira que a lei se apresente sempre como um texto rígido que deve ser reavivado e iluminado no seu sentido

Sobre a insidiosidade da máxima: k claris noiz jit iriterpretntio, veja-se: MORTARA - Coinentario, I, 72; FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, I,

167; FERRINI, ad GLUCK, Pandette, I, 167, nota (a). O mérito da dilucidação deste ponto cabe a SAVIGNY - S Y S ~ C I I Z , I, 207 e segs.

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interior pela actividade interpretativa. Pelo contrário, as leis claras oferecem o perigo de serem entendidas apenas no sentido imediato que transluz dos seus dizeres, enquanto que tais normas podem ter um valor mais amplo e prof~mdo que não resulta das suas palavras.

A interpretação jurídica não é semelhante à interpretação histórica oufilológica, que se aplica aos documentos e que esgota a sua missão quando acha um dado sentido histórico, sem curar depois se é exacto ou não, harmónico ou contradiLório, completo ou dificiente. Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleo- lógica l.

O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei, o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor res- ponda a esta finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela.

A interpretação é actividade cient$ca livre, indagação racional do sentido da lei, que compete aos juristas teóricos e práticos 2.

Devendo aplicar-se a lei, todos os cultores do direito cola- boram para a sua inteligência, e os resultados a que chegam podem ser vários e diversos. Não se pode afirmar a priori como absolutamente certa uma dada interpretação, embora

KRAUS - Die leitende Grundsatzen, na Grunhut's Zeitschrifr, 32, 616; RADBRUCH - Rechtswissenschaft als Rechts~chopfun~ «A ciência jurídica como criação do direito*, no Archiv für sozialwissenschaft «Arquivo para a ciência socialn, zz, 355; WACH- Handbuch, pig. 257.

Distingue-se ordinà~iamente a interpretação em doutrinal, judicial e legal ou autêntica, segundo emana dos escritores, dos juízes ou da lei Esta última forma não é interpretação.

consiga num dado momento o aplauso mais ou menos incon- trastado da doutrina e da magistratura. A interpretação pode sempre mudar quando se reconheça errónea ou incompleta. Como toda a obra científica, a interpretação progride, afina-se.

A interpretação é uma actividade única complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa, Com respeito a tais cir- cunstâiicias é uso distinguir a interpretação em literal ou lógica, conforme se procura determinar o sentido da lei através da sua formulação verbal ou do seu escopo, mas a interpretação gra- matical também é lógica, uma vez que pretende inferir lògi- camente das palavras o valor da norma jurídica.

Não há várias espécies de interpretação. A interpretação é única: os diversos meios empregados ajudam-se uns aos

- outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e assim todos contribuem para a averiguação do sentido legislativo.

5. - A chamada interpretação autêntica l

Além da interpretação científica, os escritores falam duma interpretação usual ou legal, quando a determinação do sentido duma norma ocorre por via de costume ou por força de outra lei. Esta última chama-se precisamente interpretação autêntica.

É de negar, porém, que se trate aqui de verdadeira inter- pretação.

BREMER - Die autentische Iizterpretation «A interpretação autêntica», no Iahrhch des gemeinen dentschen Rechts «Anuário do direito comum alemão*,

1858, 245; GOPPERT, nos Ihering's Iahrbucher, az, 3 ; ISAMBERT - De l'inter- pretation Iégislative, na Revtre de Iégislation et jurisprudence, 1835 , 241; CAMMEO - L'interpretazione autentica, na Giuri~~rtrdenza italiana, 1907, IV, 305 e segs.; MORTARA - Coilieittario, I, 74; MORELLI - Ln funzioize legislativa, Bolonha, 1893, págs. 359 e segs.; Relazione Zucconi aí I I Congresso dei nragistratti italiani, Nipoles, 1913.

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A prescindir da interpretação consuetudinária, que no nosso sistema positivo carece de força vinculante, porque os usos têm uma posição subordinada à lei e valem só nos casos em que são reconhecidos, também a interpretação autêntica vale menos como interpretação, tirando eficácia da lei antiga, do que como lei nova com força própria, mesmo que seja uma lei meramente reprodutiva da anterior. Análogas, se

bem que distintas, são as leis confirmativas e as rectificativas. Em outros tempos a interpretação da lei era considerada

como função exclusiva do legislador, o qual curava de escla- recer as dúvidas e as obscuridades que se descobriam na aplicação. Em certo país até chegou a instituir-se uma comissão legislativa permanente, a que os Tribunais deviam enviar as suas dúvidas, sobre as quais ela se pronunciava com eficácia vinculante. Este sistema foi abandonado; mas de quando em quando, por razões de oportunidade, publicam-se leis destinadas a aclarar e especificar o sentido de outra lei.

É interpretativa toda a lei que, ou por declaração expressa ou pela sua intenção de outro modo exteriorizada, se propõe determinar o sentido de uma lei precedente, para esta ser aplicada em conformidade. Observe-se que tal escopo da lei interpretativa é essencial, porque nem toda a decisão legal de uma controvérsia preexistente, nem toda a &lucidação de outra lei há-de considerar-se como interpretação autêntica, bem podendo suceder que o legislador tenha querido sòmente afastar dúvidas para o futuro, sem pretender que a nova lei se considere como conteúdo duma lei passada. O conceito de interpretação autêntica está expresso no preâmbulo da Novela 143: «Quam interpretationem notz in futuris tantummodo casibus VERUM I N PRAETERITIS etiam valere sancimus, tarnquanz si nostra lex ab initio cum interpretatione tali a nobis promu2gata fuisseb).

Não estamos em face duma interpretação autêntica, quando se regula só para o futuro ou se completa qualquer lacuna duma lei precedente.

t .i A interpretação autêntica tem, por certo, de comum com

4 a interpretação doutrina1 o seu fim, a saber, a determinação

i do sentido duma norma jurídica; mas ao passo que a inter- pretação doutrinal o procura livremente, deduzindo-o da

I letra e das razões, e vale só na medida em que corresponde à vontade legislativa real, a interpretação autêntica, pelo contrário, declara formal e ~bri~atòriamente o sentido de uma lei anterior, prescindindo de que este se ache efectivamente contido na 'lei interpretada l.

i É frequente acontecer que sob a forma de interpretação autêntica, em vez de reproduzir em termos mais claros e pre- cisos a lei antiga, o legislador se desvia conscieilteinente dela, modificando-a, ou que nem sequer toma em conta o seu sen-

I

tido originário - especialmente se este já se não pode descobrir, I

I como tem lugar quando se interpretam leis velhas de muitos

J séculos - e introduz um princkio novo, que injecta e transfunde i 1

na lei antiga, fingindo que tal foi o sentido originário 2 .

Daqui deriva a característica das leis interpretativas, isto é, a sua eficácia retroactiva. Desde que o princípio contido na lei interpretativa deve considerar-se como ínsito na lei inter- pretada, conclui-se que todas as relações jurídicas anteriores, mesmo que sejam objecto dum litígio pendente, deverão ser julgadas consoante a nova lei declarativa, e por isso a sentença de primeira instância ou a proferida em grau de apelação, ainda que esteja conforme ao significado exacto da lei antiga, deverá ser reformada ou cassada, quando se mostre em oposição com a

lei interpretativa. Só não são atingidas por esta lei as contro- vérsias já encerradas por uma sentença passada em julgado ou por transacção 3.

1 SELIGMANN - Der Begriff des Geze t zes «O conceito da lei». págs. I 5 I i e segs.

1 a COVIELLO - Manuale, pág. 68. t a ENNECCERUS - Lehrbuch des burgerlicherz Rechts «Tratado de Direito

Civil», I, pág. 145; CAMMEO - op. cit., pág. 309 e segs.

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Disto resulta que a chamada interpretação autêntica l não é verdadeira interpretação, mas funda a sua eficácia de modo autónomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei com efeito retroactivo e. (Veja o Estatuto, art. 73.0). E por isso deve emanar de um órgão que possa derogar à norma interpretada: assim uma lei não pode ser interpretada senão por outra lei, um regulamento por outro regulamento ou por uma lei, etc.; mas o costume não pode ter força de interpre- tação autêntica.

6. - Objecto da interpretação: «Voluntas Legis, non legislat oris»

A finalidade da interpretação é determinar o sentido objec- tivo da lei, a vis ac potestas legis. A lei é expressão da vontade do Estado, e tal vontade persiste de modo autónomo, desta- cada do complexo dos pensamentos e das tendências que ani- maram as pessoas que contribuiram para a sua emanação.

O intérprete deve apurar o conteúdo de vontade que alcançou expressão em forma constitucional, e não já as volições alhures manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional. Pois que a lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão sòmente aquilo que ele exprimiu em forma de lei a.

Sobre as várias leis interpretativas publicadas na Itália, veja um elenco em STOLFI- Diritto Civile, pig. 590, nota 3; mas os casos aí recor- dados não são todos seguros, alguns, pelo contrário, sendo de excluir, como sucede com o do art. 2 8 . O da lei de 19 de Junho de 1873 que, segundo pensamos, não se pode dizer que tenha interpretado os arts. 773.O e 829." do Código Civil. " direito canónico tem um conceito especial de interpretação autên- tica: Veja o Codex iuris ranonici, cânone 17, 5 2.O.

SCHLOSSMANN- Der Irrtum über wesentl. EigenschafZen, pág. 26.

Veja-se também KOEER - Lehrbuch, 20: o que pelo mediunt da palavra não penetrou no texto não se tomou lei, ficou em simples tentativa sem força jurídica.

Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redactores - -

da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. Como diz THOL l, pela sua aplicação a lei desprende-se do legislador e contrapõe-se a ele como um produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que o legislador.

A vida jurídica todos os dias oferece ocasião para' se tirarem novos princípios das palavras da lei que subsistem de modo autónomo como vontade objectivada do poder legis- lativo. Especialmente à medida que a lei se vai afastando da sua origem, a importância da intenção do legislador vai afrou- xando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de mudadas concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um signi- ficado e um alcance diverso do que originàriamente foi querido pelo legislador. Mas com isto não se verifica, como pensa REGELSBERGER 2, um desvirtuamento ou uma adulteração incons- ciente da lei, devida à acção do tempo; 1iá sòmente uma diversa apreciação e projecção do princípio no meio social.

O ponto directivo nesta indagação é, por consequência, que o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a niens legis e não a nzens legislatoris.

Ao invés, a antiga concepção dominante ensinava que a função do intérprete consiste em procurar a vontade do legis- lador3, e por isso tinha em alta consideração os trabalhos preparatórios, reputando-os quase uma fonte autêntica de interpretação.

Mas contra isto foi observado que nos sistemas constitu- cionais hodiernos não se descobre um legislador em cujo ânimo

Das Handelsrecht «O direito comercial>, Introdução, pág. 150. a Pandekten, pág. 144.

Ueber die Interpretation der Gesetze, na Griinhrrt'r Zeitschrift, 1886, 20.

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se possa penetrar ou cuja vontade se possa indagar: na formação da lei cooperam multíplices factores, uma pluralidade de pessoas,

I viriamente ordenada, pelo que a rigor a lei é o resultado duma

i vontade colectiva, a síntese da vontade de órgãos estaduais diversos. E precisamente em virtude desta colaboração, e porque

entre os que participam na elaboração da lei subsistem correntes espirituais várias, opiniões e motivos não coincidentes, e por vezes mesmo têm lugar transacções de tendências para se chegar a um acordo, não é possível falar duma intenção real do legis- lador. - -

O legislador é uma abstracção l. A lei, diz KOHLER, deve conceber-se como um organismo corpóreo penetrado por um impulso espiritual. O elemento corpóreo é a palavra da lei, pois que a palavra não é simplesmente o meio de prova, mas o veículo necessário, o substracto do conteúdo espiritual, não é só revelação, mas realização do pensamento legislativo.

A obra legislativa é como uma obra artística em qué a obra de arte e a concepção do criador não coincidem. Também o conteúdo espiritual da lei não coincide com aquilo que dela pensam os seus artífices : na leiestá sempre um fundo, de inscoG1 ciente e apenas suspeitada vida espiritual, em que repousa o trabalho mental de séculos.

E assim chegamos à objectivação da lei. A lei deve inter- pretar-se em si mesma, como incorporando um pensamento e uma vontade própria. A interpretação consiste em declarar não o sentido histórico que o legislador materialmente ligou ao princípio,(mas o sentido que ali está imanente e vivo. Eis o

--.. -- - que, precisamente, se quer exprimir com a fórmula metafó-

WURZEL - Das Juristische Denken <O pensamento jurídico*, pigs. 46 e segs.: A vontade do legislador é uma grandeza variável, um reservatório em que estão sepultadas as contradições. Mas quem é o legislador? Seri o Parlamento? Se assim fosse teria de admitir-se que o Parlamento era um jurista de profissão, capaz de conhecer o título e o imenso conteúdo das leis emanadas. O legislador é entidade que em parte alguma se descobre - é uma figura mística, indeterminada.

rica - voiztade da lei. Esta fórmula não pretende significar que a lei tem um querer no sentido psicológico, mas apenas que encerra uma vontade objectivada, um quevido (voluto) inde- pendente do pensar dos seus autores, e que recebe um sentido próprio, seja em conexão com as outras normas, seja com referência ao escopo que a lei visa alcançar.

O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe conscgdr. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor res- ponda a esta finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela.

Ora isto pressupõe que o intérprete não deve limitar-se a simples operações lógicas, mas tem de efectuar complexas apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal! E daqui a dificuldade da interpretação, que não é simples arte linguística ou palestra de exercitações lógicas, mas ciência da vida e metódica do direito.

Visto o carácter objectivo do sentido da lei, conclui-se que esta pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos seus autores,. que pode produzir consequências e resultados imprevisíveis ou, pelo menos, inesperados no momento em que foi feita, e por último que com o andar dos tempos o prin- cípio ganha mais amplo horisonte de aplicação, estendendo-se a relações diversas das originàriamente contempladas, mas que, por serem de estrutura igual, se subordinam ao seu domínio (fenómeno de y rojecção) l .

Sobre isto veja-se WURZEL -Das juristische Denken, pág. 43 : «Muitas vezes acontece que uma norma é ditada tendo-se presente um certo estado de facto, mas essa norma será também aplicável a relações que, embora origi- driamente não previstas, têm, no entretanto, a mesma estrutura que as pri- meiras: o antigo conceito projecta-se sobre novos fenómenos)).

O A. recorda o caso duma disposição penal contra os fa l~~cadores de dinheiro, emanada num tempo em que no país não havia outra moeda senão a n~etálica: se depois se introduz o papel moeda, será aplicável a mesma

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7. - Método de interpretação

Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios.

Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamentos legis- lativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento da lei: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à tizens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.

E deste modo se passa bem cedo à interpretação lógica, que quer deduzir de outras circunstâncias o pensamento legal, -

isto é, de elementos racionais, sistemáticos e históricos, que todos convergem para iluminar o conteúdo do princípio. A interpretação lógica, porém, não deve contrapor-se rasga- damente à interpretação hguística: não se trata de duas opera- ções separadas, porque além de terem ambas o mesmo fim, - -

realizam-se conjuntamente -são as partes conexas de uma só e indivisível actividade 1.

disposição. Ou o caso duma disposição que faia de moinhos movidos por força mecânica, publicada num tempo em que só havia moinhos de vento ou de água, a qual disposição será de aplicar também aos moinhos a vapor, a electricidade, etc.

Um exemplo típico de projecção jurídica no nosso direito, que foi admitido pela jurisprudência, refere-se à disposição da lei sobre pensões que concedia a reversibilidade da quota de pensão para os fillios menores do empre- gado: essa disposição foi ampliada aos filhos da midlher empregada, não obstante resultar que na época da formação da lei o legislador pensava exclusivamente na primeira hipótese. Veja a magistral sentença do Tribunal de Contas, de 15 de Novembro de 1913, no Foro Italiano, 1913, rn, 68, com nota de VENEZIAN.

UNGER - Systerri, I, pág. 79; REGELSBERGER - Paildekten, pág. 145.

A interpretação literal é o primeiro estádio da interpre- tação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regias gramaticais.

O sentido das palavras estabelece-se com base no uso l i f l - -----..-e.-. ...

$uístico, O qual pode ser diverso conforme os lugares e os vários círculos profissionais. Normalmente as palavras devem enten- der-se no seu sentido usual comum, salvo se da conexão do discurso ou da matéria tratada derivar um significado especial técnico. É o que se verifica quando se trata de matérias ou de institutos que têm entre os interessados uma terminologia par- ticular (direito marítimo, contratos' de bolsa, regime das águas, certas espécies de venda, etc.).

Acontece também que no direito algumas palavras reves- tem uma acepção técnica que não coincide nem corresponde ao seu significado popular. Assim as palavras posse, usufruto, boa fé, diligência, hipoteca, caso fortuito, legado e semelhantes. Em tal caso deve escolher-se, na dúvida, a significação técnica jurídica, pois é de presumir que o legislador usou das palavras com plena reflexão, e portanto se serviu delas no seu significado técnico, de preferência ao vulgar.

Pode existir, finalmente, um LISO linguístico individt~al do próprio legislador: na verdade, pode suceder que o legislador empregue certas fórmulas e maneiras de dizer com um valor especial, diverso do ordinário e do jurídico, e que resulta do con- fronto com a terminologia e a estilística adoptada num código ou corpo de leis. Em tal caso prevalece este significado individual.

AS palavras hão-de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro

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uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso umafuncão e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmó-

i i

nica de todo o contexto. I Se as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas l,

se todo o princípio é obscuro, se resultam consequências contra- / i

ditórias ou revoltantes, a interpretação literal não pode remediar i

esta situação. Será preciso recorrer à interpretação lógica. i i

De resto, mesmo quando o sentido é claro, não pode haver logo a segurança de que ele corresponde exactamente i à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não reproduzam em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato do que o real, assim como, por último, não é excluído o emprego de termos erróneos que falseiem abertamente a vontade legisla- tiva. O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco. Também os que actuam i n j a u d e m legis observam o sentido literal da lei, e no entanto violam o seu espírito 2 . Como ajuda, integração e controlo da interpretação gramatical serve a interpretação lógica.

b ) INTERPRETACÃO LÓGICA OU RACIONAL.

Esta move-se num ambiente mais alto e utiliza meios mais f ios de indagação, pois remonta ao espírito da dispo- sição, inferindo-o dos factores racionais que a inspiraram,

REGELSBERGER - loc. cit. PFAFF - Ziir Lehre vorn sogenannt in fraudem legis agere «Para a doutrina do chamado i n fraudem legis agereu, págs. 157 e segs. FERRARA- Della sirnulazione dei negozi giuridici, 4." ed., págs. 66 e segs. ROTONDI- G í i atti in frode alia legge, Turim, 1911.

a Assim uma palavra pode ter mais de um sentido, um largo e outro

restricto ou técnico. Por exemplo: ausente, património, alienar, alimentos, nulidade, etc.

da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema. É da ponderação destes diversos factores que se deduz o valor da norma jurídica.

Toda a disposição de direito tem um escopo a realizàr, quer cumprir certa função e finalidade, para cujo conseguimento foi criada. A norma descansa num fundamento jurídico, numa ratio iuris, que indigita a sua real compreensão.

É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios.

Para se determinar esta fialidade prática da norma, t: pre- ciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a

norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas e sociais que brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa.

A interpretação não é pura arte dialéctica, não sc desen- volve com método geométrico num círculo de abstracções, mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade social.

Averiguado, porém, qual o escopo prático que a norma se destina a conseguir, não ficamos seguros de que isso constitiia o verdadeiro conteúdo da norma. E está aqui a fraqueza do elemento teleológico. Pois os caminhos para se chegar a um certo fim podem ser vários, e desse fim não se deduz qual o caminho preferido; e por outra parte o legislador pode ter-se

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enganado quanto ao meio que empregou l. Mas de toda a maneira o fim é sempre um raio de luz a iluminar o caminho do intérprete.

Da ratio legis, que constitui o fundamento racional objec- tivo da norma, precisamos distinguir a occasio legis que é a circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei. Assim uma lei restritiva da liberdade de reu- nião pode ser publicada por ocasião e por motivo de pertur- bações internas: tais circunstâncias constituem a occasio legis, ao passo que o fundamento racional será dado pelo fim de restringir a liberdade.

No entanto, a circunstância que promoveu o surgir de uma lei também pode ser utilizada para determinar o fim e o âmbito desta. É de notar, porém, que a cessação das circuns- tâncias que fizeram nascer uma lei não exercita nenhuma influência sobre o seu valor jurídico.

A ratio legis pode mudar com o tempo. O intérprete, examinando uma norma de há um século, não está incondicio- nalmente vinculado a procurar a razão que induziu o legis- lador de então, mas qual é o fundamento racional de agora. Assim pode acontecer que uma norma ditada para um certo fim adquira função e destino diverso.

A ratio legis é uma força vivente inóvel que anima a dispo- sição, acompanhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento; é como linfa que mantém sempre verde a planta da lei e faz brotar sempre novas flores e novos frutos. A disposição pode, desta sorte, ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se a novos casos. Sobre este princípio se baseia a chamada inter- pretação evolutiva.

~ G E L S B E R G E R - Pandekten, pig. 148.

, Um princípio jurídico não existe isoladamente, mas está :, ligado por nexo íntimo com outros princípios.

\ O direito objectivo, de facto, não é um aglomerado L caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio. Há princípios jurídicos gerais de que os outros são deducões e corolários, ou então vários prin- cípios condicionam-se ou restringem-se mùtuamente, ou cons- tituem desenvolvimentos autónomos em campos diversos. Assim todos os princípios são membros dum grande todo.

r. Desta conexão cada norma particular recebe luz. O sen-

/ tido duma disposição ressalta nítido e preciso, quando é con- I frontada coni outras normas gerais ou supra-ordenadas, dc

que constitui uma derivação ou aplicação ou uma excepção, quando dos preceitos singulares se remonta ao ordenamento jurídico no seu todo. O preceito singular não só adquire indi- vidualidade mais nítida, como pode assumir um valor e uma importância inesperada caso fosse considerado separadamente, ao passo que em correlação e em função de outras normas pode encontrar-se restringido, ampliado e desenvolvido.

111) Elemento histórico.

Uma norma de direito não brota dum jacto, cor110 Minerva armada da cabeca de Júpiter legislador. Mesmo quando versa sobre relações novas, a regulamentação inspira-se frequente- mente na imitação de outras relações que já têm disciplina no sistema l; e independentemente disto, o direito, em especial o direito privado, é o produto duma lenta evolução, é uma fase dum desenvolvimento histórico muito longo que remonta ao

Assim a servidão de condução de energia eléctrica foi modelada à imitação da de aqueduto.

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direito romano e depois, através da elaboração medieval, onde confluem correntes de direito germânico e canónico, prossegue no direito comum e daí, pelo trâmite do direito francês, entra no nosso código. Uma grande parte dos princípios contidos nos códigos são a reprodução de princípios análogos vigentes no passado, têm cada um a sua história própria.

Compreende-se que precioso auxílio para a plena inteli- gência dum texto resulta de se descobrir a sua origem histórica, -- - --- e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até ao arranjo definitivo do assunto no presentej Fórmulas e princípios que considerados só pelo lado racional parecem verdadeiros enigmas, encontram a chave de solução numa razão histórica, no rememorar de condições e coilcepções dum tempo longínquo que lhes deram uma fisionomia especial l.

A história dogmática dos institutos do direito civil ainda não é para nós mais do que um pio desejo, porque a outros assuntos se volvem as investigações dos historiadores do direito (afora excepções isoladas), e por isso convém que todo o estu- dioso solícito dum problema jurídico tenteie por si os pre- cedentes históricos, para adquirir uma visão plena e nítida da disposição.

8. - Os trabalhos preparatórios -- . .

A l-iistória do preceito positivo compreende não sòmente a indagação da sua origem remota, como também a do seu nascimento recente, e portanto dos trabalhos legislativos que prepararam a sua introdução num código. Trata-se dos pro- jectos de lei, das discussões de comissões, dos motivos, relatórios e discursos que constituem os materiais de elaboração das leis.

1 Assim só històricamente se explicam o princípio da natureza decla- ra iva da divisão, do efeito da posse dos móveis ein relação a terceiros, da Snizinn itrris na herança, da subrogação por pagamento, das contra-decla- rações no matrimónio, etc.

Questiona-se em doutrina acerca do valor a atribuir a estes Trabalhos preparatórios.

Está hoje refutada a obsoleta concepção que, identificando o legislador com o redactor da lei, dava a tais discussões e opi- niões quase a autoridade duma interpretação autêntica.

Parte-se agora da observação exacta de que semelhantes escritos e discursos são coisa interna dos órgãos legislativos e não se transfundem na lei publicada: trata-se de debates internòi, de modos de ver dos diversos relatores ou preopinantes (disse- renti), de tendências individuais, e não de pensamentos do legislador. O silêncio dos outros elaboradores da lei não vale por aquiescência ou apropriação dos conceitos emitidos pelos vários proponentes, porque o texto da lei pode ser aprovado por outros motivos e até, frequentemente, discordando-se das razões invocadas. O conceito da lei projecta-se diversamente no espírito dos votantes, e não é legítimo supor que haja neles um intento único. Desta divergência aparece rasto nos tra- balhos legislativos, onde vemos sustentar opiniões contrárias, surgir antagonismos e transacções de tendências, acordarem-se novas fórmulas de texto, e maior se patentearia a discordância se nos fosse dado colher ao vivo o trabalho legislativo mais do que resulta das atestações oficiais contidas nos actos e nos documentos das Câmaras. E de toda a maneira não pode falar-se dum intento único.

COSACK comparou os trabalhos preparatórios duma lei aos debates preliminares dum contrato, e como estes, em prin- cípio, não têm influência sobre o contrato definitivo, que é fruto de transacções de interesses, assim também àqueles falta autoridade sobre o texto definitivo da lei, que deriva do cruza- mento de opiniões e tendências opostas dos vários órgãos legislativos.

Lehrbtrclz des btirgerlichen Rechtr «Tratado de direito civils, I, 5 12.0,

pág. 40.

10

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Os trabalhos preparatórios podem esclarecer-nos relativa- mente às ideias e ao espírito dos proponentes da lei ou de alguns votantes, e valem como subsídio, quando puder demonstrar-se que tais ideias e princípios foram incorporados na lei. Em caso diverso devem considerar-se momentos estranhos à lei e sem influência jurídica. Valem apenas como ilustrações de carácter científico.

Tanto mais se reconhece a verdade disto, quanto é certo haver casos não raros de surpresas na formação das leis l, quer dizer, casos em que da lei votada resultam consequências não previstas ou diversas das que se tinham em vista ao compilá-la, ou em que, por um concurso de circunstâncias fortuitas, uma norma se desvia totalmente do seu fim, convertendo-se em meio ou instrumento para um fim oposto.

E, por último, não é difícil que uma lei encontre nos Trabalhos preparatórios uma falsa justificação, ou que lá apareça desvirtuado o seu espírito. Mas nem por isso o intérprete será vinculado pelas considerações erróneas ou limitadas dos redactores da lei, antes deverá apreciar a norma no seu valor objectivo, e em conexão com o sistema do direito 2.

Tudo isto basta para desacreditar suficientemente os Tra- balhos preparatórios, os quais amiúde não nos dizem nada ou são uma caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o intérprete pode achar cómoda confirmação para as opiniões próprias. Quando muito, podem valer como indício de certa vontade legislativa, mas devem ser utilizados com cautela e circunspecção.

1 POLACCO - Penowibre e sorprese nella forniazioize &lle leggi, nos Studi

yer Scialogia, I , 327 e segs. ENNECCERUS - Lehrbuch, I, § 62.0. DERNBURG - Das biirgerliches

Recht des deutschen Reichs und Preuszens «O direito civil do império Alemão e da Prússiau, I, 5 38.O. KOHLER, na Grunhut's Zeitschrift, 13, piig. 7. MORTARA - Coininenúzrio, I, n.O 73. FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, I,

págs. 119 e segs. COVIELLO - Manuale, pig. 73.

9. - Resultado da interpretação

A relação da interpretação lógica com a gramatical pode ser diversa.

a ) CONCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO . LÓGICA E O DA GRAMATICAL: INTERPRETA~ÃO DECLA-

RATIVA.

Antes de mais pode dar-se que o sentido da lei, tal como resulta da interpretação lógica, seja perfeitamente congruente com o que as palavras da lei exprimem, que haja perfeita cor- respondência entre as palavras e o pensamento da lei. Neste caso a interpretação lógica não faz mais do que confirmar e valorizar a explicação literal.

Ou então o sentido das palavras é dúbio e equívoco, por- que as expressões são demasiadamente gerais ou ailfib~ló~icas; e em tal caso a interpretação lógica ajuda a fixar o sentido real da lei, escolhendo ul?z dos sentidos possíveis, que resultam do simples contexto verbal. Assim no código aparecem muitas vezes as palavras: filhos, parentes, ausente, incapaz, alienar, cohabitação, etc., que têm uma acepção lata e uma acepção restrita, e que nas várias disposições legais revestem ora uni ora outro significado. A interpretação lógica adoptará con- forme as circunstâncias o sentido que melhor se ajuste i vontade da lei.

Em ambos os casos fala-se de it?terpretação declarativa, por- que não se faz mais que declarar o sentido linguística coinci- dente com o pensar legislativo.

A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo 2.s expressões que têm vários significados. iTal distinção não deve confun- dir-se com a de interpretação extensiva ou restritiva, de que a seguir vamos tratar, pois nada se restringe ou se estende quando

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entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que parece mais adapatado à nfens legis l.

E para esta escolha valem os meios usuais de interprtação lógica. Em particular, observaremos que na interpretação de expressões de sentido duplo, ou indeterrninadas, cabe escolher, na dúvida, o significado pelo qual o princípio jurídico menos se desvia do direito regular, ou pelo qual se chega a um resultado mais benigno, de preferência a um mais rigoroso 2.

O sentido literal não coincide com a vontade da lei, tal como se deduz da interpretação lógica: há desconfor- midade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro sentido que não é aquele que das palavras transparece ime- diatamente.

Ora as palavras são um meio para tornar reconhecível a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas constitucionais uma vontade legislativa não tem existência jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defei- tuosa ou errónea, atravks da qual se possa reconstruir e vislum- brar essa vontade 3. Pois que o meio deve sacrificar-se ao íim,

WAECHTER - Handbuch des wiirttembergischen Privatrechts ulvlanual do direito privado de W ~ ~ T E M B E R W , n, pág. 143, nota 36.

e UNGER- Systern, I, pág. 91.

Exagera SCHLOSSMANN-Der Irrttrm, pig. 26, quando nega a legi- timidade da interpretação lógica, observando que embora estivéssemos con- vencidos de que o legislador adoptara uma expressão demasiado larga, ou resmta, nem por isso poderíamos dar validade como lei a uma vontade que não alcançou expressão nas formas constitucionais. E exagera, porque também uma manifestação defeituosa basta para exprimir a vontade.

o pensamento deve triunfar da forma, a vontade da escama verbal: prior atque potelztior est quam v o x , nlens diceiztis (7, $ 2, Dig. 33, 10).

O confronto da interpretação lógica com a literal há-de ter por efeito operar uma vectijcação do sentido verbal na con- formidade e na medida do sentido lógico. Tratar-se-á de - corrigir a expressão imprecisa, adaptando-a e entendendo-a no significado real que a lei quis atribuir-lhe. A modificaçZo refere-se às palavras, que não ao pensamento da lei.

A imperfeição linguística pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser demasiado genérica, e compreender aparentemente relações que conceitualrnente dela estão excluídas, ou demasiado restricta, e não abraçar em toda a sua amplitude o pensa- mento visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso ou por defeito.

A interpretação, para fazer corresponder o que está dito ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargaizdo a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro há interpretação extensiva.

I ) Ii~terpretação restritiva.

A interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de rela- ções. É falso, portanto, na sua absoluteza, o provérbio: U b i lex non distinguit, nec nobis distinguere licet.

A interpretação restritiva tem lugar particularmente nos seguintes casos: 1.0 se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2.0 se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdurn); 3.0 se o princípio, aplicado sem res- trições, ultrapassa o fim para que foi ordenado.

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Além disto é de observar que se um princípio foi esta- belecido a favor de certas pessoas, não pode retorcer-se em prejuízo delas, por interpretação restritiva das suas expressões demasiado gerais l.

11) I~zterpretação extensiva.

A interpretação extensiva, pelo contrário, destina-se a corrigir uma formulação estreita de mais. O legislador, expri- mindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando queria aludir ao género, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma cate- goria. Assim: fala-se de homens, quando é certo que devem reputar-se abrangidas também as mulheres; fala-se de doação, e devem julgar-se compreendidas todas as aquisições gratuitas, ainda que mortis causa; diz-se alienação, e quer-se contemplar igualmente a concessão de direitos reais de gozo ou de hipo- tecas; enuncia-se um princípio em tema de contratos, e pre- tende-se que valha também para os testamentos, etc.

A interpretação extensiva, despojando o conceito das parti- cularidades e circunstâncias especializantes em que se encontra excepcionalmente encerrado, eleva-o a um princípio que abarca toda a generalidade das relações, dando-lhe um âmbito e uma compreensão que, perante a simples formulação terminológica, parecia insuspeitada.

Falso é, pois, o brocardo: Ubi lex voluit dixit, ubi noluit, tacuit. As omissões no texto legal, com efeito, nem sempre significam exclusão deliberada, mas pode tratar-se de silêncio involuntário, por imprecisão de linguagem.

A interpretação extensiva é um dos meios mais fecundos para o desenvolvimento dos princípios jurídicos e para o seu reagrupamento em sistema.

UNGER - SysOt~, I, pág. 88.

E como a,interpretação extensiva não é mais do que reilzte- gração do pensamento legislativo, aplica-se a todas as normas, sejam embora de carácter excepcional ou penal l. O princípio do art. 4.0 das disposições preliminares, que veda a extensão das leis penais ou restritivas além dos casos expressos, refere-se à aplicação por analogia. Portanto não é verdade que as excep- ções tenham de interpretar-se estrictamente, mas, pelo contrário, que as excepções não se podem ampliar por analogia.

L

Sobre a interpretação extensiva baseia-se a proibição dos actos ir1 fvaudern legis.

Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na obser- vância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiallz offendit et verba resevvat. O frau- dante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos u111 resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proi- bição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito 2.

111) A chaniada ilzterpretação abrogante.

Por último, a interpretação pode levar a um resultado extremo -a negar sentido e valor a uma disposição de lei, quando se verifica a sua absoluta contraditoriedade e incompa- tibilidade com outra norma supra-ordenada e principal.

Assim o art. 365.", n.O 3 do Código Penal agrava a pena de homi- cídio quando este seja cometido por meio de strtistcincins veiteizosns. O prin- cípio, porém, deve entender-se referido não exclusivainente aos venenos verdadeiros e próprios, mas a toda a substância capaz de produzir a morte imediata e imprevistamente: Veja DEGNI, L'interpretazione della legge, pág. 269.

a FERRARA - Delln Sinirrlazioize, pág. 71 ; ROTONDI - G l i ntti iiz frode nlln legge, pág. 22.

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As antinomias e os desacertos não são raros nos nossos sistemas legislativos, filiando-se muitas vezes em defeitos de coordenação e em esquecimentos. Ora quando entre duas disposições há uma contradição absoluta e não se descobre r

nenhum meio de as conciliar, a interpretação deve lògicamente eliminar a norma contradicente, reputando-a letra morta, vazia de conteúdo. Em tal caso fala-se de interpretatio abrogaizs, não já porque o intérprete abrogue a lei, mas porque da "

interpretação resulta que a norma é abrogada por incompa- tibilidade.

Neste conflito deve ter-se em conta o diverso grau de importância das normas contraditórias. Pois tratando-se de preceitos igualmente principais e antagónicos, a contradição leva à sua elisão recíproca: nenhum deles sobrevive. Mas o caso é raro. Se pelo contrário a incompatibilidade tem lugar entre urna disposição principal e uma disposição secundária e acessória, então leva à ineficácia da última, deixando firme a disposição fundamental.

Assim os autores sustentam em regra que há antinornia entre o princípio geral que exige a forma escrita para as con- venções constitutivas ou translativas de direitos reais mobi- liários (art. 1314.0) e a norma que requer a publicidade duma sentença que reconheça a existência duma convenção que tenha esse objecto (art. 1932.O, n.O R), visto ser patente que uma con- venção verbal translativa de imóveis nunca poderia ter eficácia e portanto a hipátese em questão é inverificável. Assim também há contradição entre o princípio fundamental que admite a acção de manutenção ùnicamente para a posse de bens imóveis ou de universalidades de móveis (art. 694.0) e a disposição proces- sual que para fins de competência supõe uma acção de turbação para a posse de coisas móveis (cód. de proc. civ., art. 93.0). Em tal caso a norma acessória processual é sacrificada e consi- dera-se como não escrita.

153 --

I 10. - Desenvolvimento do sentido da lei I

Mas a interpretação não se detém uma vez apurado o sentido das normas: compete-lhe ainda desenvolver o conteúdo das disposições, em todas as suas direcções e relações possíveis.

Frequentemente um só preceito de lei encerra dentro de si vários princípios, dos quais apenas um está expresso, enquanto

L

que os outros podem derivar-se por dedução lógica; c além disso a conexão das várias normas faz com que algumas se apre- sentem como regras e outras como excepções. Ora o intér- prete deve tirar dos princípios todas as consequêiicias de que são capazes, embora algumas sejam expressas, enquanto que outras permanecem latentes. Os preceitos jurídicos têm um conteúdo virtual que é função do intérprete extrair e desenvolver. Assim se enriquece e elabora o material jurídico.

Para este fim servem diversos, argumentos lógicos, dos quais todavia se deve usar com cautela e senso crítico. Podem valer para tal efeito as directivas que seguem:

1.0 Legitimado um fim, legitimados estão os ineios indis- pensáveis para se conseguir esse fim (aplicações no tema das servidões, art. 639.0). Vice-versa, se o fim é incondicionalmente proibido, são também ilícitos os meios respectivos.

2.0 Quem tem direito ao mais, tem direito ao menos (argumentzrin a maiori ad nzinus). Se é vedado o menos, deve sê-10 também o mais (arg. a minori ad rnait.1~). Se a disposição é limitada só a uns tantos casos, para os outros casos não abran- gidos deve entender-se o contrário (arg. a coi~trario).

O argumento a contrario é um meio de dedução e deseil- volvimento da lei que deve empregar-se cautamente, pois nem toda a vez que o legislador exprime uma norma para

' Para desenvolvimeiltos veja: THIBAUT - Tl~eorie der logisclte Aiisle- gung der ronziscl~en Rechts ((Teoria da interpretação lógica do direito romanou, págs. 142 e segs. ; REGELSBERGER - Pandekten, pág. 1 5 4 ; COVIELLO - M i ~ t t t ~ a l e , págs. 81 e segs.

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um caso determinado ou a título de exemplo, se pode formular para os outros casos não compreendidos a regra inversa, antes é certo que nisto mesmo se funda a interpretação extensiva, ao elevar-se dos casos particulares a um princípio geral.

Para nos servirmos dum argumento a contrario havemos de estar seguros de que a norma em que nos baseamos deve valer só paraos casos enunciados pela lei; há-de mostrar-se que a dispo- sição é estabelecida exclusivarurente em vista daquelas relações, coisas ou pessoas que exigem especial disciplina. Só então será justificado induzir-se urna regra oposta válida para os outros casos em geral.

O argumento a contrario não é uma forma de interpretação extensiva, mas sim um meio de desenvolvimento das leis: ao passo que aquela tem lugar quando o legislador quis dizer mais do que disse, e o inttrprete mira a restituir (rendere) em toda a sua integridade o pensamento legislativo deficientemente expresso, o argumento a contrario propõe-se, ao invés, extrair um pensamento novo não expresso, em antítese com o esta- belecido para o'caso regulado, uma segunda norma com con- teído oposto ao formulado na lei.

11. - Integração das lacunas das leis: Analogia

É problema assaz discutido nos últimos tempos o saber se o ordenamento jurídico apresenta lacunas l. E a diversi- dade dos pontos de vista sustentados depende não só do modo vário de conceber as lacunas, mas também de a questão não comportar, porventura, a mesma solução para o direito público e para o direito privado.

ZITELMANN - Lucken i m Recht «As lacunas do direito», Leipzig, 1903. DONATO DONATI - I1 problema delle lacune dell'ordinarnento jurídico, Milão, 1910, onde vem indicada a copiosa literatura sobre o assunto (pág. 3, nota). BRU- NETTI- I1 delitto civile, pdg. 104 e segs., e urna série de escritos polémicos (Scriti giuridici, I, pág. 34 e segs.) Acerca do valor do problema das lacunas.

Se por lacunas se entendem vazios incolmáveis do orde- nameilto jurídico, deficiências que não se integrar com meios jurídicos, então deve partir-se do princípio que o direito não tem lacuilas e que para todo o caso não previsto ocorre sempre uma norma jurídica desenvolvida e elaborada no sistema. Isto vale, pelo menos quanto ao direito privado.

A plenitude ou completeza (corwpletezza) da ordem jurídica resulta de os casos não previstos recaírem por sua vez sob outras normas de remissão ( r i i ~ v i o ) predispostas para a siia regulamen- tação, ou de que, por não estarem sujeitos às limitações que deri- vam de normas particulares, saiem para fora do campo jurídico l.

I Por parte de vários escritores (ZITELMANN, ANSCHUTZ, DONATI) e com diversa amplitude e entoação, fala-se aqui duma iiuniin ger,d i ~ r g ~ i t i v n que vem a regular os casos não considerados.

DONATI, a pág. 3 5 e segs., escreve que do complexo das disposições particulares deriva unia norma geral coinplementar que tem este conteíido: que eiir todos os rnnis cnsos iião deve hnver neizhiiiiin lii~iitoção. Simplestnente o A,, longe de atribuir a essa norma um carácter itegntivo e coiicluir que não é uma norlizn jurídica, pois se resolve na iiegação de normas jurídicas para os casos não contemplados, e uma iiornia de tal conteúdo seria inútil, intuitivo como é que para al61n da órbita do comando cessa de haver obrigação, procura esquivar estc resultado, inflectindo e transforniando o conteíido da norma do sentido de que nos casos não conteniplados a lei não declara só que não há outras limitações, mas iião qiier que as hdja, e portanto exprime um comando positivo destinado n excluir outras limitações, afora as estabelecidas.

A mim parece-me que um comando deste género não tem nenhuma base real na ordem jurídica, porque, se a fuilção do direito objectivo é impor deveres, e só aqiieles deveres que resultam das normas, é implícito que os casos não regulados estão fora do círculo do dever, sem que haja precisão duma ulterior vontade do ordenamento jurídico destinada a esse fim, quer dizer, a excluir ou negar toda a limitação para os casos não regulados. Tal voritade é uma superfectação. E por isso a teoria de DONATI, apesar da sua meditada formulação diversa, resolve-se numa variedade das teorias que com a norma geral complenientar querem abraçar a esfera da liberdade. Ora um caso que entre no domínio deste princípio de liberdade não é uin caso jurídico, pois é 1.11ii COSO para qtle não vale111 izornias de direito. Se a lei petlal não pune certo facto que segundo a consciência social merece ser p~uiido, não se pode falar duma lacuna, mas sim d u m imperfeição da lei.

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Não pode tratar-se então de lacunas, mas sim de defeitos da lei, a apreciar segundo critérios intrínsecos de justiça ou de prática oportunidade.

Pode todavia falar-se de lacunas noutro sentido, coino 1

de falta duma disposição que regule especialmente certa matéria .

I ou caso, se bem que a tal deficiência se possa suprir mediante outra norma tirada por analogia, ou, onde o procedimento ,

analógico não é admitido, o facto caia numa esfera de liber- dade extra-jurídica ou juridicamente indiferente, por mais que este resultado possa surtir impróprio e inadaptado à índole da relação. Aqui trata-se de lacunas aparentes que se preenchem por via de interpretação e desenvolvimento do conteúdo legis- lativo e que desaparecem na aplicação.

Por muito previsora e vigilante que seja a obra legislativa, é impossível que todas as relações encontrem regulamentação jurídica especial, e que a plenitude da vida prática se deixe prender nas apertadas malhas dos artigos dum Código. Por

outro lado as relações sociais mudam continuamente, surgem novas situações, mercê de descobertas e invenções em que O

legislador do tempo não pensou nem podia pensar, e uma multidão de relações e conflitos novos irrompem na vida jurí- dica exigindo disciplina e tutela.

A esta necessidade satisfaz em regra a d c m jurídica, por virtude da sua tendência para contentar a aspiração das várias relações a tornarem-se objecto de regulamentação adequada. Pressupõe-se, isto é, que a insuficiência da disposição se filia não já na vontade por parte da lei de negar tutela a certas classes de relações, mas em que a lei omitiu regulá-las, enten- dendo-se que se o legislador tivesse tido conhecimento de tais relações as teria regulado convenientemente.

A ordem jurídica é uma atmosfera que circunda a vida social em toda a sua completeza, que lhe domina todos OS

movimentos, que não tolera espaço algum vazio de direito (horror vacui). Ordem jurídica e vida social coincidem: aquela é unta superstrutura desta.

Por isso, embora o direito positivo não apresente dispo- sição especial para certa matéria ou caso, há nele, porém, capa- cidade e força latente para a elaborar, e contém os germes de uma sCrie indeterminada de normas não expressas, mas ínsitas e viventes no sistema. Com efeito, se duma só disposição ou dum grupo de normas se deduz um princípio jurídico mais amplo, é de concluir, na dúvida, que, visto ter aplicado seme- lhante princípio no caso particular, a ordem jurídica o apr&a na sua generalidade, e portanto todas as consequências que do princípio derivam l.

E precisamente esta indagação delicada que à força de abstracções e de induções extrai do sistema um conteúdo de pensamento jurídico irrevelado é o instrumento técnico para colmar as lacunas da lei.

As lacunas podem ser de vária espécie. São intenciorzais ou i~zvoluntárias, segundo é o mesmo legislador que delibe- radamente omite regular certas situações, que não julga ainda maduras para uma disciplina própria, abandonando a sua decisão à ciência e à jurisprudência, ou o insuficiente da regulamentação jurídica provém de oniissão iiivolun- tária ou de não se ter tido uma visão completa do assunto a regular.

Acresce que a lacuna se pode referir a toda uma inatéria ou i~zstituto, ou já existente (por ex. a sucessão das pessoas jurí- dicas, o direito de sepulcro) ou novo (por ex. a navegação aérea) ou antes a um caso ou modalidade singular duma relação. Assim a lei impõe a obrigação de pagar juros, mas não diz em que medida; estabelece a protecção da propriedade industrial, mas não determina as respectivas condições e formas.

Além disso a lacuna pode nascer ou de falta de regula- mentação, ou por antinomia eiitre duas disposições contraditórias de igual força que se elidem reciprocamente.

KOHLER - Lehrbiich, pág. 138.

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Em face das lacunas da lei, o juiz ilão pode furtar-se a julgar, alegando que não existe norma para aplicar ao caso concreto: a sua recusa equivaleria a uma denegação de justiça. Deve decidir sempre qualquer controvérsia que lhe seja subme- tida, e decidi-la com base no direito. O cumprimento desta obrigação é possível só porque o sistema positivo é capaz de fornecer norma para qualquer caso. E de facto o art. 3.0 das Disposições preliminares zponta o caminho a seguir na inte- gração das lacunas da lei, isto é, o mbtodo analógico l.

A analogia consiste na aplicação dum princípio jurídico que a lei põe para certo facto a outro facto não regulado, mas semelhante, sob o aspecto jurídico, ao primeiro.

Perante casos de que o legislador não cogitou, o intér- prete busca regulá-los no sentido em que o legislador os teria decidido se neles tivesse pensado. E como procurando bem no sistema se podem descobrir casos análogos já regulados, extrai-se por um processo de abstracção a disciplina jurídica que vale para esses, alargando-se até compreender os casos não previstos mas cuja essência jurídica é a mesma.

O procedimento por analogia radica no conceito de que os factos de igual natureza devem ter igual regulamentação, e se um de tais factos encontra já no sistema a sua disciplina, esta forma o tipo do qual se deve inferir a disciplina jurídica geral que há-de governar os casos afins.

Analogia é harmónica igualdade, proporção e parale- lismo (paragoile) entre relações semelhantes.

Esta essência do método analógico faz com que a ele 4

se possa recorrer independenteinente de autorização do legis- lador %. A ordem jurídica, de facto, não é massa inerte de

1 Veja FADDA e BENSA, ad WINDSCHFID - Pat~dette, I, pigs. 128 e segs. Em sentido contrário se pronuncia DONATI - 11 problema delle lacuna,

pág. 41. Para este A. o procedimento analógico não se poderia admitir sem uma disposição legislativa expressa. Mas tal opinião depende da falsa crença numa norma geral de exclusão para os casos não contemplados.

princípios coexistentes, mas um corpo orgânico de normas intimamente conexas, e os princípios que lhe estão na base levam o germe de indeterminados desenvolvimentos l.

A analogia é, pois, uma aplicação correspo~zdente dum prin- cípio ou dum complexo de princípios a casos jtlvidicartzerife semelhantes.

Base de analogia pode ser: ou Lima só disposição (a!ialosia legis) ou um complexo de princípios jurídicos, a síntese del&, e mesmo o espírito de todo o sistema (aizalogia itjris).

A primeira forma C a mais fácil. Decide-se um caso iião reg~dado, segundo a norma que preside a um caso afim ji decidido: ubi eade~n legis ratio, ihi eadenz legis disporitio. Trata-se duma aplicação por semelhança.

Outras vezes não aparece disposição para um caso afim, e então é preciso reconstruir a norma pela combinação de vários casos regulados, que se mostram aplicações dum pri- cípio geral não expresso.

Ou então, por último, a lei omitiu completamente a dis- ciplina jurídica de todo um instituto, e é necessário construí-la

segundo os princípios de todo o sistema. Aqui a analogia torna-se uma operação extremamente delicada, devendo basear-se numa profunda e plena apreciação dos elementos e da fuiição do instituto a regular, confrontando-o com as teildêilcias ideais e as directivas do direito positivo.

A nossa lei diz que em tal caso cumpre recorrer aos yiirl- crjZlios gerais do direito. Ora o recurso a estes princípios gerais não é senão uma forma de atzalogia iuris.

Discutiu-se no passado qual a significação a atribuir aos princípios gerais do direito: para alguns tais princípios equi- valiam aos do direito racional ou natural 2 ; para outros aos

Veja-se Motive ZMilf hlirgerliclzen Gesetzbiich (Motivos para o c6digo civil), I, pág. 16.

Como diz o Código Austríaco (art. 7.0, que sem dúvida foi a fonte do art. 16.0 do nosso cód. civil).

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ensinamentos do direito romano; e para outros ainda aos prin- cípios da moral ou às exigências da justiça e da equidade. Actualmente, porém, estes conceitos estão abandonados, e a doutrina reconhece que se deve tratar de princípios de direito, e portanto de direito positivo, de normas da legislação vigente I.

Não se trata, pois, de vaguear por abstracções ou ideali- dades imprecisas ou de recorrer a exigências indeterrninadas, mas de estabelecq os princípios cardeais do sistema positivo.

Todo o edifício jurídico se alicerça em princípios supremos que formam as suas ideias directivas e o seu espírito, e não estão expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes

princípios obtêm-se por indução, remontando de princípios particulares a conceitos mais gerais, e por generalizações suces- sivas aos mais elevados cumes do sistema jurídico. E é claro que quanto mais alto se leva esta indução, tanto mais amplo é o horizonte que se abrange.

Na aplicação dos princípios gerais do direito passa-se sucessivamente dos mais particulares aos de mais vasto e supe- rior conteúdo, e deve fazer-se o confi-onto da relação a regular com os princípios jurídicos a que tal relação há-de subordinar-se.

Para que possa recorrer-se à analogia é necessário: 1.0 Que falte uma precisa disposição de lei para o caso

a decidir, que portanto a questão não se encontre já regulada por uma norma de direito -e isto não apenas segundo a letra, mas também segundo o sentido lógico dessamorma. Por isso,

se uma questão se pode resolver com base na interpretação extensiva não tem lugar a analogia, pois se trata dum caso já contemplado segundo o conceito da lei, embora fuja aparen- temente à formulação do texto.

2.0 Que haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso a regular e o caso regulado.

FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, I, pág. 28.

Este requisito é o mais difícil de apurar, e põe à prova o senso jurídico e a finura do intérprete. Todo o facto jurídico tem certos elementos essenciais que o caracterizam e formam a ratio iuris da norma, e outros elementos acidentais e contin- gentes que acompanham aqueles. Ora no confrontar o facto já regulado com o facto a regular é mister isolar dos outros o elemento essencial, colhendo de tais factos apenas as notas decisivas, os traços juridicamente relevantes, e só assim esta- belecer se entre eles há ou falta uma relação de semelhança. Pois pode acontecer que dois factos que na aparência se afiguram desconformes, porque diversificados por caracteres particulares, na sua essência sejam semelhantes, e por isso capazes de ser sotopostos por analogia ao mesmo tratamento jurídico, e que viceversa dois factos que exteriormente parecem semelhantes sejam no íntimo diferentes. É preciso, portanto, escrutar a semelhança jurídica dos factos, a coincidência dos elementos com relevância jurídica que informam a disposição.

Vejamos alguns exemplos. Assim, dizendo o art. 1151.0: «Qualquer facto do homem

que causa dano a outrem, obriga aquele por cuja culpa teve lugar a ressarcir o dano» - o mesmo princípio deve estender-se por analogia às pessoas jurídicas. Porque o princípio da respon- sabilidade depende e pressupõe necessàriamente mais a actuação dum sujeito jurídico do que um facto humano dum indivíduo, e por isso, despindo-o do carácter específico, mas sem influência, de acto humano, o facto posto na base da responsabilidade generaliza-se como acto duma pessoa I .

Estabelecendo o art. 1482.O a garantia por evicção no caso de venda (como caso mais frequente), a ratio iuris que informa a disposição prescinde da natureza especial deste contracto, e por isso tem aplicação e valor para todos os contratos trans- lativos a título oneroso. E assim também, enunciando a lei

Ao contririo, para se dizer que o art. 11~1.0 que fala de facto do homem compreende também as mulheres, basta a interpretação extensiva.

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o princípio da influência do dolo nos contractos (art. 1115.0) não pode duvidar-se de que o dolo exercerá influência análoga fora deste campo, em todos os negócios jurídicos: em que medida e com que efeitos - é problema; mas certamente tem influência. Desta maneira se põe a questão do dolo nos testamentos.

Estes casos são simples. Porém, se afrontarmos outras questões, a solução nem sempre é tão intuitiva.

Dada uma promessa de recompensa a quem achar um objecto ou descobrir um réu, se o achado ou a descoberta é feita ao mesmo tempo por várias pessoas, para quem há-de ser o prérnio? Terá de dividir-se entre todos? Análogo é o caso duma quota de reserva a que concorrem pelo mesmo título duas pessoas (dois cônjuges, um legítimo e outro putativo).

A lei estabelece a responsabilidade pelo facto de animais (art. 1154.0). Qual a razão ou o fundamento desta responsa- bilidade? Será rigorosamente necessário que se trate de animais, ou pode a mesma disposição aplicar-se a quem se serve de máquinas, automóveis, etc. ? Mas (questão prejudicial) ditará o art. 1154.0 uma disposição de direito singular?

Há matérias ainda que estão isoladas de quaisquer normas jurídicas: por ex., o direito de sepulcro, o exercício de poderes sobre a própria pessoa, a sucessão das pessoas jurídicas. Quais serão os princípios análogos a aplicar?

A analogia distingue-se da interpretação extensiva. De facto, uma aplica-se quando um caso não é contem-

plado por uma disposição de lei, enquanto a outra pressupõe que o caso já está compreendido naregulamentação jurídica, entrando no sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.

A interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vonade legislativa já existente, para uma relação que só por inexacta formulação dessa vontade parece excluída; a ana- logia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, dum caso não prevenido, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes.

A interpretação extensiva revela o sentido daquilo que o legis- lador realmente queria e pensava; a analogia, pelo contrário, tem de haver-se com casos em que o legislador não pensou, e vai descobrir uma norma nova inspirando-se na regulamenta- ção de casos análogos: a primeira completa a letra e a outra o pensamento da lei.

Esta distinção não tem só valor teórico, senão também importância prática, porque o princípio que veda estcndèr as normas penais e excepcionais além dos casos expressos refere-se ùnicamente à aplicação por analogia, e não à interpretação extensiva.

O procedimento analógico, com efeito, não pode desen- volver-se no domínio do ius singulnve, porque este, tendo sido introduzido exclusivamente para determinadas categorias de pessoas, coisas ou relações, constitui um carnpo fechado que não pode ser alargado pelo intérprete, mas só pelo legislador l. Aqui há razão para se fazer valer o argumento a contrario, pois se o legislador, por considerações especiais de utilidade, dispôs limitadamente a certos factos ou pessoas, nos outros casos entendeu que o mesmo tratamento não tivesse lugar. Sendo assim, logo se vê que a analogia não pode funcionar porque, consistindo ela na correspondente aplicação do pensamento jurídico a casos não contemplados, em regulamentar casos novos pela forma corno presumivelmente os teria regulado o legislador, aqui esbarra com a vontade precisa do legislador, que disse: fora destes casos quero o contrário.

* KEGELSBERGER - Pandekten, pág. 160, quer limitar o princípio de que o direito singular é incapaz de aplicação analógica, dizendo que o pensa- mento fundamental do ius sittglgtilare pode alargar-se; e cita o exemplo da sucessiva extensáo do Senatus-Consulto Velleiano, que na origem se referia só as alienações, às constituições de penhor, assunções de dívidas e (actos) seinelhmtes.

Mas é de objectar que a extensão analógica em direito romano tem caritcter produtivo de direito, visto o sistema da participação do magistrado pretório na evolução do material jurídico.

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A analogia não é criação de direito novo mas descoberta e direito existente.

O juiz, quando aplica normas por andogia, não forja om livre actividade regras jurídicas, mas desenvolve normas atentes que se encontram já no sistema. Pois direito não é ó o conteúdo imediato das disposições expressas; é também ) conteúdo virtual de disposições não expressas, mas ínsitas odavia no sistema onde o juiz as vai descobrir.

As normas encontradas por analogia não são corpos estranhos ntrometidos no organismo jurídico; são rebentos e desenvolvi- nentos do direito que lá está. Porque, é de notar, as normas leduzidas por analogia não são criadas pelo intérprete segundo ima livre estimação de interesses, não se trata duma regula- nentação nova excogitada pelo juiz quase legislador, mas da -eprodução duma disciplina já posta no direito positivo para :asos semelhantes e harmónicos com o espírito do sistema; lão é criação voluntarística do direito, mas elaboração vinculada i lei. A obra do jurista é como a dum poeta que componha z rimas obrigadas. '

12. - A escola do direito livre e os novos métodos de interpretação

A defiontar a orientação clássica, que define em estreitos limites os poderes do intérprete na aplicação e desenvolvi- mento do direito positivo, sempre obedecendo à lei, fez-se valer, recentemente, e em diversos países, uma nova orientação doutrinal, umas vezes arrojada e outras, mesmo, revolucionária, com a qual se vai sustentando que, visto ser a lei defeituosa e insuficiente, toca ao juiz corrigi-la e completá-la, e que nesta função integradora ele pode guiar-se por momentos subjectivos, por apreciações de interesses, pelo seu próprio sentimento, criando no posto e ao lado do direito positivo um direito livre judiciário. 1

i

O movimento novador delineia-se com ADICKES que impugna a teoria das fontes, dizendo que a lei e o costume não produzem direito, mas que todo o direito tem a sua raiz na convicção de cada um, e que o juiz se deve remeter à sua

consciência para descobrir livremente o direito. O direito positivo é limite à convicção do juiz, mas para além desta barreira ele pode formar direito livremente.

Seguem-se os escritos de BULOW que, exaltando a funGo judicial, lhe atribui uma força criativa de direito, pelo que, ao lado do direito legal e consuetudinário, deve reconhecer-se um direito judiciário: a lei não passa de ser um plano de ordena- mento jurídico que é realizado só pelo juiz; de KOHLER 3 , que estuda a teoria da interpretação, pondo à luz a força criadora da jurisprudência; de GENY *, em França, o qual critica o método de interpretação tradicional que a poder de lógica e deduções abstractas restringe o direito e lhe tapa os horizontes, e quer que o juiz produza o direito fazendo-se guiar pela observação da natureza das coisas, dos princípios da justiça, da sociologia, da filosofia, etc.; de SCHLOSSMANN~, que reduz a lei a uma folha de papel impresso, não se podendo, portanto, descobrir- -lhe uma vontade; e, por último, de KANTOROWICKZ, que no seu conhecido opúsculc - A luta pela ciêrzcia jurídica 6 , publicado da primeira vez sob o pseudónimo de Gnaeur Flaviur, depois de ter renovado as críticas mordazes contra a função do juiz no sentido tradicional, proclan~a o verbo novo da liberdade absoluta e do arbítrio mais inconfinado: o juiz deve decidir a seu arbítrio; a sentença não deve ser motivada; liberdade

Zur Lehere von den Rechtsquelleiz. «Para a doutrina das fontes de direito*, Cassel, 1872.

Gesetz und Richteranit. Ueber die Interpretation der Gesetre, na Griinhut'r Zeitschrift, 1896;

Die schopferische Krafi der Jurisprudenz, nos Jhering's Jorbiicher, 25, 270 e segs.

Methode d'interpretotion et sources, págs. 6 , 457 e segs.

Der Irrtum, págs. 25 e segs. Der Kampf um die Rechtswissenschaj.

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em toda a luiha; numa palavra, o direito entra na sua fase voluntarís tica !

A questão do direito livre acende uma polémica vivaz que se debate pelas Revistas, nos Congressos, e até nos jornais políticos.

A favor do movimento enfileiram EHRLICH~, que reco- nhece ao juiz, se as regras postas o abandonam, o poder de mediante descoberta livre adaptar o direito às necessidades da sua época; STAMPE 2, que vê na apreciação dos interesses o caminho para esta descoberta do direito; MULLER ERZBACH 3 ,

que defende da acusação de revolucionário o método realista da ponderação dos interesses, afirmando que a teoria e a prática embora inconscientemente, sempre fizeram assim, etc. Outros recorrem a fontes diversas, como, por exemplo, MAYER às

normas de civilização, STAMMLER ao direito justo, etc. Os escritores, porém, não estão de acordo sobre a ampli-

tude desta livre criação do direito: pois alguns reconhecem tal poder ao juiz só quando a lei é silenciosa, ou seja quando está em presença de lacunas; outros, pelo contrário, também lho reconhecem no âmbito da interpretação lógica; e por último há mesmo algum autor que defende a criação do direito em todos os casos.

Mas contra esta orientação apontam-se críticas e censuras severas. --

1 Freie Rech t s f i nd~n~ und fieie Rechtswissenschaft. «Livre descoberta do direito e ciência jurídica livrer, Leipzig, 1903.

a Rechtsfindung durch Interssenwagung. descoberta do direito por meio da ponderaGão dos interesses*, no Deutsche Juristen-Zeitung (Jornal alemão dos juristas), 1905, pág. 717.

Rechtsfindung auf realer Grundlage ((Descoberta do direito sobre funda- i

mentos reais*, no Deutsche Juristen-Zeitung, 1906, pág. 1235

a Rechtsnornzen und Kulturnormetz «Normas de Direito e normas de cultura>, Breslau, 1903.

Die Lehre vom dem richtigem Rechte «A doutnna do dueito recto*, Berlim, 1903.

UNGER DERNBURG e HELLWIG acusam este método de querer substituir à firmeza dos comandos legais o subjecti- vismo dos juízes, criando um estado perigoso de anarquia e de insegurança jurídica. Nenhuma autoridade pode ser obrigada a mais estricta obediência à lei do que a autoridade dos tribunais, que foram estabelecidos justamente para a sua defesa e realização. O juiz que por uma suposta equidade e oportunidade intenta mudar a lei, comete uma violaqão jurídica.

O direito, exclama LABAND 4 , necessita firmeza; a juris- prudência não se pode deixar mover pelas correntes do dia e pelas tendências das classes e dos partidos, como a cana ao vento. E LANDSBERG 5 : Porventura nos tornámos, com o nosso sentimento de equidade, tão neurasténicos que não sejamos capazes de suportar o rigor indispensável que é a submissão do caso particular à regra jurídica Será preciso repetir a antiga verdade que o direito foi criado contra o arbítrio subjectivo, chame-se este direito natural ou direito recto, imperativo racional ou estimação de interesses ? E MICHAELIS 6 : A tendência para emancipar da lei o juiz não se pode apreciar senão como uma tendência de revolta contra o legislador.

A questão foi debutida também na Itália, onde o movi- mento do direito livre encontrou prevalentemente opositores, como POLACCO, L. COVELLO, DONATI e outros 7.

Der Kanrpf uni die Rechtswissenschaft «A luta pela ciência jurídica*, no Deutsche Juristen-Zeitung, 1905, pág. 781.

Das Giirgerliches Recht, 3: ed., p. v. Zivilprozessrecht, I, § 93.", pág. 163. Rechtsyflege uizd volkstuniliches Rechtsbewusstsein «A jurisprudência e a

consciência jurídica popular», no Deutsche Juristen-Zeitung, 1905, pág. 15.

Deutsche Juristen-Zeitung, 1905, pág. 921. V i e E~uancipation des Richters von Gesetzgeber «A emancipação do

juiz do legislador*, no Deutsche Juristen-Zeitung, 1906, pág. 394. ' POLACCO, Le cabale de1 morzdo legale, nos Atti dell'Istituto Veneto, 1908.

L. COVIELLO - Dei moderni metodi d'interpretazioize delle leggi, Palermo,

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A plataforma desta orientação é uma crítica ao método tradicional de interpretação, ao método chamado lógico ou construtivo, que inculpam de estreiteza de vistas e de incoerência, e sobretudo de não ter na mínima conta as necessidades novas da vida moderna, pelo que se faz mister inaugurar um novo método de interpretação baseado na livre aprecia~ão do juiz.

O método tradicional, observa-se, pretende chegar ao conhecimento do direito por meio de deduções lógicas e de silogismos, por meio, isto é, de pura força dialética: silogismos e construções são as suas armas, com que ambiciona resolver todas as questões que surjam, mesmo aquelas em que o legislador não pensou. Ora este método é exageradamente sistemático, geométrico, formal; transcura o momento da finalidade do direito, a natureza real das relações, os interesses em jogo; reduz o juiz a simples máquina lógica. Por este caminho não se podem colmar lacunas, e nem ao menos se pode penetrar o sentido\da lei.

Que coisa é, de facto, a lei? A lei é um texto impresso, rígido e mudo. ' ~ ã o se pode falar misticamente de uma vontade da lei, porque a lei não quer nem pensa, e somos nós que pensa- mos e queremos atribuir-lhe um conteúdo intelectual. Tanto menos se pode falar duma vontade do legislador, que nos modernos estados constitucionais, com a pluralidade dos factores que parti- cipam na legislação, é puramente fantástico.

1908. DONATI - I1 problema delle lacune, pág. 17s e segs. F. FERRARA - Potere C

de1 legislatore e funzione de1 giudice, na Rivista di diritto civile, 1911. Sobre a questão veja ainda: CALDARA - Per una missione della magis-

tratura, na Scienza de1 diritto privato, 1895, pág. 373 ; DEGNI - L'interpretazione dele leggi, págs. 205 e segs.; CRISOSTOMI - D i akune recenti teorie sulle fonti e sull'interpretazione, Frascati, 1901 ; GALDI - La tendenza della moderna giuris- prudenza, Niipoles, 191 I ; PACHIONI - I poteri creativi della giurisprudenza, r. na Rivista di diritto commerciale, 1912; CESAXINI SFORZA - 11 modernismo giuri- dico, no Filangieri, 1912; BARTOLOMEI - Le ragioni della giurisprudenza pura, Nápoles, 1912; BRUGI - L'Analogia de1 diritto e i1 cosidetto giudice legislatore, em I1 diritto commerciale, 1916. i

E assim a chamada interpretação lógica é criação do direito, criação mascarada, travestida, mediante a qual às vezes negamos aplicação à letra da lei, só porque o seu sentido não corresponde à justiça e à oportunidade. Simplesmente, esta modificação e ~ r o d u ~ ã o do direito para o caso concreto pretende cohonestar-se sob a aparência da voluntas legis.

E que dizer então da hipótese das lacunas? O direito é uma congérie de decisões singulares, mas,

para as questões não decididas, o juiz está livre, e falar duma possível vontade do legislador é uma ficção.

Por isso o método tradicional, àparte o não ser científico, também não é sincero, porque o juiz faz sempre isto, e nunca fez outra coisa: satisfaz as necessidades da vida, consoante o impulso dos seus sentimentos; e esconde o seu agir com o véu da ratio legis e da analogia. A melhor prova é que a jurispru- dência muda; que de há um século para cá foi voltado do avesso o conteúdo e o sentido de muitas disposições legais.

Portanto, a doutrina da livre descoberta do direito não exige nada de novo; só aspira a esclarecer o método e a disci- pliná-lo abertamente, indicando o caminho a seguir na desco- berta do direito de conformidade com a apreciação dos interesses.

Este raciocínio está viciado por alguns equívocos. Antes de tudo, parte-se dum falso conceito da lei, já

que esta não é apenas uma folha de papel impresso, mas um documento que incorpora um conteúdo de pensamento e de vontade.

Certo, a lei não tem uma vontade no sentido psicológico; mas inegàvelmente encerra um querido (voluto), o resultado da vontade dos órgãos estaduais - a vontade do Estado. E então não se pode negar à lei um conteúdo espiritual que ao intér- prete cabe trazer a lume e desenvolver, antes é verdade que, por se destacar do legislador no momento da publicação, a lei existe de modo objectivo, e pode ter consequências e reper- cussões não previstas pelos seus autores.

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Erróneo, portanto, é o pensamento de SCHLOSSMANN ie quer reduzir a lei à letra pura e simples e restringir a função 1 intérprete a conhecer o sentido verbal. Pois se a lei é a [pressão dum comando, nada mais legítimo do que remontar

razões desse comando, ao fim que levou a ditar aquelas sposições.

Este tão dto oficio do intérprete exclui outra acusação le tem sido feita ao método tradicional - a de abuso de ~gica.

Não é verdade que o jurista opere só com corolários e Instruções e seja um mero autómato de decisões. O método ~nstrutivo não obsta a que se ponderem interesses e apreciem iigências sociais, perscrutando-se a natureza das relações; mplesmente, o intérprete induz aquelas apreciações que a lei :z e não as que a ele lhe apraz fazer, tirando-as do sentimento róprio ou das suas pessoais convicções.

A interpretação da lei é, de facto, essencialmente teleólo- ica; mira ao resultado prático; quer realizar um ordenamento e protecção. Por isso se explica a eficácia prática da jurispru- êiicia que plasmou e phma continuamente o material jurí- ico e portanto, longe de situar-se no ambiente vazio da dialética, ;e num ambiente cheio de realidade.

Opõe-se que a interpretação lógica é mhscara apenas, com ue aos profanos se esconde o labor criativo, o qual apresenta s mesmos perigos de arbítrio do direito livre.

Mas deve observar-se, pelo contrário, que o perigo de rbítrio não é tamanho na interpretação lógica e analógica omo na criação voluntarística do direito, pois no primeiro aso a estimação de interesses e o desenvolvimento do conteúdo a norma esth vinculado pela lei: o intérprete poderá dar satis- ~ção às necessidades sociais, porém só enquanto para tal efeito char gérmens e meios no direito positivo; em outros termos: desenvolvimento é sempre legal, e não extra-legal, como aquele ue se funda sobre apreciações empíricas de interesses ou sobre movimentos incônscios do sentimento. O princípio que se

alcança nãd é uma invenção do intérprete, mas a descoberta do direito que existe já em estado latente no sistema positivo.

De outra parte, não devemos equivocar-nos sobre o feiló- nieno da evolução da jurisprudência através dos tempos, que C uma lei histórica de desenvolvimento que não le,' ultima a suspeita duma adulteração (travisairzento) consciente dos textos por obra da jurisprudência.

Temos de distinguir entre desvio intencional e desvio irzcoiu-- ciente do sentido da lei. Ora é inegável que, ainda com o mais escrupuloso sentido do dever de respeito i lei, o juiz pode enganar-se acerca do valor da disposição, e é induzido a con- cebê-la no sentido que lhe parece inais conforme. Para isto influem as ideias do tempo, as condições do ambiente, etc. Mas se isto é inevitável, não é justificado, porém, que se vá passar ao juiz um salvo-conduto teórico para a violação da lei.

Por último, é falso conceber o direito como um amontoado de decisões desligadas e dispersas, enquanto que, pelo contrário, as disposições jurídicas são intimamente conexas entre si, e por isso todas se revelam como deduções e aplicações de princípios gerais que miram a dar uma ordenacão completa às relações da vida.

Com estas decisões reconstruir o sistema do direito que tem a potencialidade de resolver mesmo os casos não previstos - aqui está o nobile ojjficium do intérprete. É a razão por que se fala da força sempre moça da lei, e nesta medida (ir1 tanto) é legítima a função da jurisprudência que reaviva ao coiltacto fresco das correntes da vida os textos positivos.

Mas a questão do direito livre deve ser discutida sobre a base do nosso sistema de direito público.

Pois a priori não é de modo nenhum ilógico e impossível fiar do juiz uma cooperação activa na produção do direito, como nos mostram os exemplos do pretor romano e dos tri- bunais de equidade ingleses; e também na actualidade o Código Civil Suíço estabelece que no caso de lacunas o juiz deve decidir segundo as regras que adoptaria se fosse legislador. Pelo que

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oca, porém, ao problema de saber se no nosso ordenamento onstitucional o juiz goza de tal poder, não é duvidoso que nosso sistema atribui a órgãos diferentes a produção do direito a sua aplicação: os poderes da autoridade judiciária são limi-

idos à aplicação da lei.

No entanto, a escola do direito livre trouxe uma renova- ão benéfica à doutrina da interpretação, um novo sopro vital, ois ao mesmo tempo que lançava a mãos cheias o descrédito obre o abuso dos teoremas e das construções, isto é, sobre o nécodo lógico, apontou que a decisão deve ser inspirada na atureza real das relações e nas exigências sociais.

Por isso, como reacção e transacção de tendências opostas, irgiram outras escolas, entre as quais a do método histórico- ovolutivo, propugnado em França por SALEIUES, que, conside- ando a lei uma entidade distinta e autónoma, busca inter- retá-Ia, não já segundo o pensamento do seu autor, mas no ~ntido que melhor a habilita para realizar os fins da justiça da utilidade socid, e sustenta que, assim como as condições,

icias e necessidades mudam, assim também devemos adaptar lei às condições históricas do ambiente, fazendo-a evolver-se

e harmonia com o movimento social. A lei tem de ser respei- ida quando o seu sentido é indúbio, mas se há incerteza no :u conteúdo, se o significado originário se mostra já em desa- ordo com o rumo ( indir i zzo) da nova legislação, ou se trata e colmar lacunas, o intérprete, além de se inspirar nos elementos nternos da lei, deve inspirar-se também nos factores sociais que ircundam a vida do direito em todas as suas manifestações demonstram a sua fmalidade l.

Para esta direcçáo, veja: DEGNI - L'it~terpretazione, pág. 160 e segs.; SMEIN - Ld jurisprudence et la doctrine, na Revue trimestrielle de droit civil, poz, 5 ; SALEILLES - École historique et droit naturel, na Revue trimestrelle, 1902, 3 ; ALVAREZ - Une nouvelle conception des études juridiques, Paris, 1904; QUARTA - Per i1 centenario de1 Codice civile fiancese, na Rivista d'ltalia, 1905, I, 5 .

Este método é certamente verdadeiro, e para nós não constitui um desvio, antes nos parece uma exacta inteligência do método tradicional, do qual se tem exagerado os defeitos, que, todavia, são dos autores e nunca da orientação em si.

A chamada interpretação evolutiva é sempre mera apli- cação do direito, e repousa em dois cânones: a ratio legis é ohjectiva (não a ratio subjectiva do criador da lei) e é actual (não a ratio histórica do tempo em que a lei foi feita). Assim pode- acontecer que uma norma ditada para certa ordem de relações adquira mais tarde um destino e função diversa.

É um fenómeno biológico que tem correspondência no campo do direito.

De sorte que uma disposição jurídica pode ganhar, com o tempo, um sentido novo que os intérpretes nunca lhe tinham atribuído e que também não estava nas previsões do legislador, ressalvado, já se entende, que daí não venha contradição com outras disposições ou desarmonia com o sistema. A interpre- tação evoluciona e satisfaz novas necessidades, sem todavia mudar a lei. A lei lá está; mas porque a sua ratio, como força vivente móvel, adquire com o tempo coloração diversa, o intér- prete sagaz colhe daí novas aplicações.

Isto, porém, não é possível sempre, e até o mais das vezes esta actividade resulta impedida; mas não faltam disposições obscuras, dúbias e indeterrninadas, e às vezes palavras elásticas que prestam auxílio inesperado para regular toda uma nova série de relações.

Resumindo, pois, o juiz pode aplicar princípios da lei a casos novos, dar a princípios da lei um sentido novo, desde que não vá de encontro a outras normas.

Até aqui pode chegar a obra do intérprete. Mas desviar-se conscientemente da lei, querer reformá-la ou inová-la por pre- tendidas exigências de interesses, é atraiçoar a função do magis- trado. O juiz deve ficar pago com a sua nobre missão, e não ir mais longe, passando a usurpar os domínios do legislador. Os dois poderes estão divididos, e assim devem estar.

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Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às neces- sidades práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimento pessoal de justiça e de equidade, e de aplicar leis már. Tal é, porém, o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.

Só com esta condição se pode alcançar aquela objectiva segurança jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve preferir-se a uma hipotética protecção de exi- gências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do carácter, ou das paixões do indivíduo. Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito l.

13. - Elabo~a~ão científica. O direito como ciência

A missão do jurista não se exaure na interpretação e no desenvolvimento da vontade legislativa.

Isto é, de certo, matéria da actividade da jurisprudência, mas é a operação inicial que se realiza sobre o material legis- lativo bruto, é a forma mais baixa e primitiva do conhecimento do direito. Alguns povos e algumas épocas históricas queda- ram-se neste estádio de cultura, na exegese e no comentário, na investigação de textos paralelos e na conciliação de anti- nomias. Tal foi a obra dos glosadores, e tal se demonstra a dos comentadores a toda a nova codificação que surge.

O progresso intelectual, porém, e o a h m e n t o dos meios de estudo levam a outra fase de desenvolvimento, isto é, à elabo- ração científica do material jurídico.

HELLWG, Lehrbuch, I, pág. 155.

a KOHLER, Lehrbuch, I, 5 42.". pág. 135.

O direito é também uma ciência, e, como toda a ciência, pressupõe que a sua matéria seja transformada em conceitos e que estes conceitos sejam compostos em unidade sistemática. O direito deve ser organizado para se simplificar o seu conteúdo, dando-lhe expressão mais adequada e precisa. Assim se torna mais fácil compreender e senhorear o material e se chega a entender o pensamento jurídico.

Ora o conjunto dos meios e processos que servem para tal objectivo constitue o método jurídico l.

O método jurídico, por consequência, propõe-se dois fins: a simplificação quantitativa e a sinlplificação qualitativa do direito, que é apresentado numa síntese concentrada, ordenada e rigorosa, a qual torna possível dominar intelectualmente todo o material positivo. Com isto o direito resulta mais L<cil de ser conlpreendido, mais acessível, e aumenta-se a segurança da sua realização, pois um direito exageradamente complicado

I é direito que fica sempre meio inobservado.

A simplificação quantitativa tende a contrair a massa dos materiais (lei de economia), classificando-os e reduzindo-os a categorias gerais, reagrupando sob forma abstracta as apli- cações dispersas e concretas. A simplificação qualitativa, ao invés, tende a purificar a qualidade do material, apresentando-o numa forma interiormente ordenada, em que as partes singula- res se remem harmònicamente numa só unidade.

As operações fundamentais desta elaboração científica são % três: a análise jurídica, a concentração lógica e a construção jurídica.

-

i Sobre o método jurídico continua a ser clássica a tratação (tuotoziotie)

I de IHERING - Geist der rontischen Rechts ((Espírito do direito romano*, n, g 41." e 42.0, que aqui é particularmente utilizada.

Veja ainda, além de KOHLER, já citado: LEONHARD - Der ollgemeiner 1 Teil des biirgerliches Gesetzbuch «A parte geral do código civil», pág. 59; SCHLOSSMANN -Der Vertrag «O contrato», pigs. 235 e segs.; WINDSCHEID - Pandrtte, I, 24."; e DEMOGUE - Ler notiom fondarneiztales dtr droit yrivé,

i pig. 225 e segs. 1 I

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1 .o Análise jurídica.

A análise jurídica consiste na decomposição da regra de direito nas suas unidades elementares, na separação e eliminação daquilo que é particular e contingente, e na redução dos pre- ceitos jurídicos a conceitos jurídicos I.

Das normas de direito no seu complexo, bem como de elementos de uma só norma, extraem-se os conceitos jurídicos, isto é, fórmulas abstractas em que se concentra o pensamento, que constituem o precipitado das disposições positivas. Assim o conceito de domhio, de contrato, de herança. E por sua vez estes conceitos cindem-se e analisam-se em conceitos mais simples e gerais: assim os de direito real, de negócio jurídico, de sucessão.

Estas unidades elementares têm para o direito a mesma função e utilidade que as letras do alfabeto têm para a lingua- gem. É a comparação clássica de IHERING. Exactamente como para dominar a matéria inexaurível duma língua basta um número restricto de sons gràficamente expressos, também para dominar a matéria jurídica basta decompor as regras de direito nos seus elementos primeiros, porque as disposições positivas não são mais do que combinações destas unidades.

A primeira tarefa da ciência jurídica é, portanto, a inves- tigação destes elementos simples do direito.

A análise jurídica pode chamar-se a química do direito. Do mesmo modo que o químico analisa os corpos singulares, reduzindo-os aos seus elementos fundamentais, e busca os princípios segundo 'os quais se produzem as combinações qui- rnicas, assim o jurista deve analisar os corpos jurídicos, redu- zindo-os aos seus elementos puros, estudar as causas e as formas de combinação, descobrir as relações e reacções entre os vários

n

SCHLOSSMANN -Der Vertrag., pdg. 2 4 ; ELTZBACHER - Ueber Rechts- begriffe asobre os conceitos jurídicos, Berlim, ~gw.

elementos, para poder, por sua vez, recompô-los e reconstruí-10s sobre outra base e forma.

Neste procedimento é indispensável uma rigorosa teriizino- logia que, em forma abreviada e sintética, nos dê um conteúdo complexo de ideias. A todo o conceito deve corresponder uma designação técnica, que poupará longos desenvolvin~entos e distinções. A terminologia pode dizer-se a estenogrcljn do pensamento, e tem a mesma função que na álgebra desempenham os sinais dos logarítmos e das raízes das fracções c(sic».

Este trabalho de análise é preparatório para uma operação mais complexa, de natureza sintética.

2." Concentração lógica.

Uma vez distinguidos e separados, os elementos do direito devem reunir-se para serem reagrupados segundo razões intrín- secas de semelhança, de íntima afinidade, e extraindo-se as regras gerais que presidem às soluções particulares.

Trata-se de reproduzir, por via de abstracção e sob uma expressão lógica diversa e mais intensa, o princípio contido nas soluções particulares. O volume externo da matéria jurídica concentra-se em princípios abstractos, mais poderosos, que encer- ram, virtualmente, a massa das aplicações. E não só isto: por que uma vez apurado o princípio, ele mesmo se torna em fonte de novas regras de direito.

A concentração efectua assim a transformação da massa das decisões legislativas num complexo de princípios.

Extrair o princípio jurídico é operação delicada que, para não se cair no erro, pede um exame atento da relação.

É preciso que não nos deixemos enganar por aproxi- mações e semelhanças extrínsecas, que não troquemos a ideia inspiradora da regulamentação por qualquer outra que, pelo contrário, apenas se ligue às condições peculiares do caso regu- lado. Na formação dos princípios devem ser eliminadas como perturbadoras todas as causas que podem ofuscar a boa solução, e é necessário pôr à prova em outras situações o princípio obtido,

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?ara se ver em que termos se comporta e a que resultados ;onduz. Como em toda a investigação científica, deverá pro- ~eder-se à experimentação. Trata-se de encontrar casos decisivos típicos, onde o princípio é posto de modo talhante (tagliente), I fim de se averiguar se é exacto ou não l. Se o princípio leva ao absurdo, quer isto dizer que é errado e tem de modificar-se.

Esta redução dos materiais positivos a regras abstractas, enquanto por um lado simplifica a estrutura do direito, reagru- pando à volta de certos pontos, que são quase os centros nervosos, todas as decisões jurídicas particulares 2, também faz aparecer, e põe à luz, as anomalias da lei, as singularidades sem funda- mento, os resíduos históricos que permanecem isolados e desti- nados a desaparecer; e por outra parte a descoberta dum prin- cípio manifestado casualmente numa só aplicação, que constitui o seu ponto de irrupçiio na vida jurídica, pode determinar a sua expansão luxuriante.

Note-se, porém, que os princípios jurídicos mudam com a transformação ,do material positivo, e por consequência devem experimentar-se em todo o sistema legislativo, num dado momento histórico, pois pode acontecer que um prin- cípio excepcional em certo tempo se torne dominante mais tarde, e vice-versa. Estas ideias-forças que são os princípios de direito devem sempre manter contacto com a vida, sob pena de se converterem em dogmas estéreis.

3. O Construção jurídica.

A fase mais alta da elaboração teórica do material de direito é a construção dos institutos jurídicos.

Entende-se por construção jurídica o procedimento pelo qual se procura colher as qualidades essenciais características dum instituto, reconduzindo-as a conceitos mais amplos e conhecidos, ou então se apresenta a concepção geral dum h-

= KOHLER - Lehrbuch, I, pág. 136. DEMOGUE, Les notions fondarnentales, págs. 235.

tituto, resumindo sob uma ideia unitária de caráctcr técnico o seu complexo ordenamento positivo.

A actividade construtiva é vária pelo conteúdo e pela intensidade.

Todo o trabalho de organização sobre a matéria jurídica é construção. Analisado um instituto, diferenciados os seus elementos segundo os respectivos caracteres internos, extraídos os princípios que estão na base das várias disposições, o jurista procede mais alto na sua obra de concentração e de síntese, determinando as notas essenciais que individuam tal instituto, e reconduzindo-o a uma categoria mais geral, de onde recebe luz e desenvolvimentos.

Deste modo as figuras jurídicas se subordinam umas às outras, agrupando-se em tipos próprios; outros tipos, com numerosas variedades, se contrapõem; e todos se recolhem e conjuntam num organismo jurídico único - o sistema l.

Mas também há construção jnrídica quando se concentra

em forma unitária uma regulamentação positiva, isto é, se chega a obter uma ideia única superior da qual as soluções da lei se demonstram aplicações.

Ao passo que a regulamentação positiva aparece exterior- mente como simples ajuntamento de decisões separadas, a mesma questão recebe, por vezes, soluções opostas, e a matéria jurídica está envolvida em particularidades e detalhes, a construção jurídica, operando com conceitos abstractos, intenta abraçá-la sistemàticamente numa forma unitária, refunde e plasma o material jurídico num esqueiiia técnico que constitui - pode

Pense-se, v. g., nos vários tipos de direitos reais: propriedade, usufruto,

servidões, a que se contrapõem os direitos de obrigação, para formarem todos

os direitos patrimoniais. Assim também quando se discute se os direitos de autor são uma forma

de propriedade, trata-se d ~ ~ m problema de construção, pelo qual, cotejadas

as duas figuras, e eliminados os caracteres contingentes, se cliega às notas que formam a sua essência jurídica e se examina se é possível a subordinação dum conceito ao outro.

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izer-se - a armadura teórica em torno da se reúne e

ispõe natural e espontâneamente o material positivo. A dificuldade da construção está em achar a ideia dorni-

ante que preside à regulamentação jurídica, e tal coisa não fruto apenas de reflexão, mas de intuição e golpe de vista.

ó o jurisconsulto experimentado pode sair-se bem na construção ~rídica que, na simplicidade das suas linhas, dá a impressão uma obra de arte.

De certo, há hoje nos autores um abuso de construções; nas é necessário distinguir as tentativas artificiosas das cons- ruções perfeitas.

As condições a que tem de satisfazer uma boa construção ~rídica são as seguintes l :

1.0 A construção jurídica hd-de coincidir exacta e inteiramente 7m O direito positivo. -Os princípios positivos são os pontos lados, as pilastras sobre que deve levantar-se a construção urídica. Esta deve respeitar o conteúdo das regras legais, e todo

conteúdo: não pode prescindir duma parte e considerar como xcepções arbitrárias algumas normas, para organizar o restante da natéria. O jurista que por tal modo quisesse formular teorias, só iavia de fazer obra de destruição, que nunca de construção jurídica.

A actividade construtiva é portanto organização formal la matéria de direito na sua totalidade.

Mas não basta: pois a construção jurídica também deve :orresponder à realidade jurídica; deve dar uma reprodução eal e verdadeira do material positivo, em vez de a apoiar sobre :oncepções artificiosas e falsas.

Por isso a construção se distingue da ficção doutrinal. 9 ficção procura satisfazer a mesma necessidade prática de iar uma configuração simples e unitária às redções; só que,

1 Veja, além de IHERING: EISELE, no h c h i v fiir civilistische Praxis (Arquivo para a prática civil*, 69, 317; RUMELIN (Gustav) - Iuristiche Begrfi- bildung «A formação dos conceitos jurídicos», Leipzig, 1878, pág. 20; STAMMLER, Wirtschaft tina Reclzt ((Ecónomia e Direito*, pig. 112.

enquanto a construção é a síntese real dos efeitos, a ficção é uma síntese figurativa, simbólica. A ficção doutrinal não íI senão uma forma infantil e imaginosa, tècnicamente imperfeita, de construção jurídica. Também ela abraça e aperta à volta dum núcleo central uma regulamentação jurídica, mas este centro, em lugar de ser uma ideia inspiradora da regulamentação, é feito duma metáfora, duma comparação, duma imagem.

2.0 A construção jurídica deve ter unidade sistemn'tica. - Sigfii- fica isto que há-de estar isenta de contradições, ou seja que a concepção teórica não se pode pôr em conflito com outros princípios e teoremas científicos. Um conceito não pode sofrer excepções sem se negar a si mesmo.

Por isso é preciso submeter à prova a construção jurídica, pondo-a em todas as situações imagináveis, combinando-a de -

todas as maneiras possíveis, e confrontando-a com os princí- pios fundamentais. Uma construção que não resiste à expe- rimentação é ilegítima.

3.0 A construção deve ter beleza artística (elegantia iurix). -A concepção obtida há-de revelar-se uma configuração artística da matéria, como forma simples, natural, transparente, da realidade jurídica. A extrema simplicidade é a manifestação suprema do belo. Se se chega a conceber as relações mais com- plexas na mais simples das formas, atinge-se as culminâncias da arte.

O valor das construções é grande, quer do ponto de vista teórico, quer do prático.

A matéria jurídica é reproduzida numa forma sintética e luminosa que permite abraçar numa só mirada todo o conteúdo positivo, em toda a sua inteireza e generalidade. Com o auxílo das construções jurídicas consegue-se reunir e compor num sistema jurídico as várias partes do direito. Uni resultado do sistema jurídico é a criação duma Parte Geral do direito, onde se coligem todas as teorias que valem para todo o campo jurídico.

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Mas este trabalho de sistematização pode também acarretar prejuízos, pois, como o direito está sempre em movimento e desenvolvimento, os dogmas teóricos, imobilizando-se, acabam por já não ter correspondência na realidade. Se as correntes da vida jurídica - diz DEMOGUE - estão assim coaguladas por uma doutrina demasiadamente precisa, as transformações sociais já não se podem realizar dentro dos limites que se acham esta- belecidos, e os factos acumulam-se como atrás dum dique.

É necessário, portanto, que a doutrina reveja e retempere conthuamente as suas teorias ao contacto das novas leis que se sucedem e dos fmómenos reais da vida prática.

Tudo isto nos faz ver quanto é alta e árdua a missão do jurista, e como ele se distingue do einpírico e do leigo. O conhe- cimento científico do direito pede um conjunto de vistas e uma educação muito particular. Porque não basta aprender de cor a massa do material legislativo: ocorre saber assimilá-lo e servir-se dele. I

O jurisconsulto necessita de um poder de concepção e de abstracção, da faculdade de transformar o concreto em abstracto, do golpe de vista seguro e da percepção nítida dos princípios de direito a aplicar, numa palavra, da arte jurídica. A mais disto deve ter o senso jurídico, que é como o ouvido musical para o músico, ou seja uma pronta intuição espontânea que o guia para a solução justa.

As duas qualidades reunidas formam a educação jurídica, que não se adquire senão depois de longo habito de estudo. Ela, e não a massa dos conhecimentos, é o que estrema o jurista do leigo: com um saber moderado pode-se ser um jurista distinto, e nunca se chegar a sê-10, tendo-se embora um conhe- cimento vastíssimo 2.

O modo diverso como se comportam o jurista e o leigo observa-se quando um e outro tratam um caso jurídico. O jurista 1

Les Notions fondanrentales, pág. 236. a IHERING - GeU-t, § 37.", pág. 313.

apanha, de súbito, os lados que são juridicamente importantes, extraindo-os de outros que são irrelevantes, para desde logo colher o princípio a aplicar. Em contraposição o leigo não é capaz de tal força de abstracção; não sabe separar o importante do não importante; fica embrulhado no meio duma quantidade de pormenores que o impedem de conseguir uma exacta apli- cação dos princípios.

A dificuldade para o leigo de resolver casos complicados-de direito está precisamente em que ele fica enredado nos detalhes sem importância, e não sabe que a decisão depende sempre dum ponto essencial jurídico e tudo o mais não passa de bagagem inútil l .

Por outra parte, o jurista faz uma aplicação consciente do direito, sabe a norma que deve aplicar; e se a não encontra numa disposição precisa, elabora-a, tirando-a de casos seme- lhantes, especifica a matéria jurídica servindo-se do procedi- mento analógico. Mas o leigo dificilinente alcançará extrair a norma adequada, se esta não se lhe oferece já pronta no material legislativo, e mesmo se um instinto jurídico o adverte de que segue rota falsa, mingua-lhe a capacidade para acertar com o caminho exacto.

O jurista precisa também de fantasia, quer de abstracção quer de combinação, pois só desta maneira pode contribuir para a descoberta de verdades novas. Como na ciência, assim na jurisprudência à intuição feliz dum autor se devem tantas descobertas, que depois a experimentação controlou e reafirmou.

Muitas vezes, e até demais, se falou na Itália do método de estudo 2 : havia quem exigisse um estudo do direito civil

KOHLER - Lehrbuch, I, pág. 141. a A literatura sobre este tema, que esteve em modo algum tempo,

é assoberbante e agora, com razão, está caída no esquecimento. A discussão que se agitava envolvia, porém, diversos problemas, pois não só se ocupava do método de estudo do direito civii, mas também do método do ensino, e até mesmo do conteúdo substancial do Código Civil em confronto com as ciências políticas e sociais, exigindo a renovação dele.

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independente de toda a aplicação prática, ou seja um estudo dos puros princípios da ciência pela ciência; mas não faltava quem condenasse esta abstracta matemática das relações, e pro- pusesse contemperá-la com o sistema prático, e até quem quisesse inaugurar uma escola sociológica do direito, preten- dendo transformar o direito segundo as leis da evolução, com o que vinham a ser introduzidos na ciência jurídica elementos e critérios não jurídicos, de dúbio e desacreditado valor.

A nós parece-nos que, sendo o método um instrumento para a pesquisa da verdade, não se deve partir de preferências ou exclusões a priori. Todos os métodos são bons quando guiam ao saber.

O caminho a seguir está, por isso, no justo equilíbrio e na combinação dos diversos meios de estudo, a que deverá simul- tâneamente recorrer-se, consoante os casos, e que mùtuamente se completam e controlam.

Se a ciência opera com a elaboração de princípios, em forma sistemática, não deve, porém, transcurar o método analítico e o resultado da prática. Se não quer perder-se numa lógica abstracta e numa jurisprudência de conceitos, tão àspe- ramente fustigada por IHERING l, a ciência não deve encerrar-se num magnífico e solitário castelo de marfim, distante dos rumores do dia, mas tem de entrar na vida, seguir-lhe os movimentos e as aspirações, perscrutar as necessidades que a fazem pulsar, sempre consciente da mónita que não é a vida que deve adaptar-se ao direito, mas sim o direito à vida.

Este autor - Scherz und Ernst iiz der ]urisprudenz *jurisprudência jocosa e jurisprudência sériam, pág. 357, comparava a teoria conceitual a um circo para exercícios acrobiticos dialtcticos.

DETERMINAÇÃO DA NORMA A APLICAR AO CASO CONCRETO. O DIREITO

COMO TÉCNICA

14. - Aplicação das normas jurídicas. A arte da decisão

A actividade do intérprete tendente a apurar o conteúdo da lei e a desenvolvê-lo e completá-lo, bem como a elaboração científica, têm por último fim a aplicação. Porque o direito vive para se realizar, e a sua realização consiste nem mais nem menos que na aplicação aos casos concretos. O conhecimento do direito visa este objectivo prático - a decisão dos casos jurídicos.

Mas aqui se nos depara outro aspecto da actividade do jurista - a arte da decisão. O juiz terá de adaptar a ilornia abstracta à situação de facto, terá de sotopor o caso contro- verso aos princípios exactos que o governam, de escolher, isto é, que princípios são de aplicar na hipótese (actividade de subsu~zção).

Ora esta actividade não é simples, já que o facto se apre- senta envolvido entre circunstâncias e detalhes nem sempre juridicamente importantes ou nem todos de igual valor, e deverá ser isolado nos seus elementos juridicamente sensíveis; e, além disso, a todo o caso singular não é aplicável uma só dispo- sição, mas um conjunto de disposições combinadas e reagindo umas sobre as outras.

Ocorre, pois, que o jurista considere o efeito das normas na sua totalidade, e não apenas uma norma de per si; tal como o mecânico não precisa de conhecer só uma ou outra lei cine- mática, mas deve também saber por que modo, na cooperação

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de várias leis, se produz o resultado complexivo l ? Es~á nisto- a aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão: está - - em saber atinar com as diversas normas a que, na sua combinação, pertence governar o caso concreto.

Esta actividade exige aptidões ou disposições de que nem todos os juristas são dotados.

Pois não basta conhecer, ainda que profundamente, o direito para o saber traduzir em realidade, e há teóricos dístintos que não são capazes desta elasticidade mental que os torne mestres no manejo dos princípios na arte de decidir e. Existe ainda uma capacidade espiritual, um sentimento próprio, e assim se explica como, ao lado da técnica na aplicação, há também uma aplicação instintiva do direito, por via da qual, sem mais, o prá- tico sente a decisão justa e a segue.

De certo que este instinto jurídico é dum extraordinário auxílio para o jurista, mas não basta, nem merece confiança cega3. E porque o instinto muitas vezes pode enganar, e a aplicação inconsciente oferece o perigo do erro e do arbítrio, por isso o juiz deve controlar se a solução instintiva que à pri- meira vista lhe parece justa é verdadeiramente tal e concorda com o direito positivo, ou pelo contrário não passa duma intui- ção ou aspiração do sentimento jurídico que não tem corres- pondência na lei.

Com efeito, o maior risco da prática é que, decidindo e x aequo et bono, ela acabe por perder de mente a sua função de executora da lei.

A actividade judiciária, porém, não se reduz ao trabalho de subsunção dos factos à norma de direito.

Apertar nestes limites a função do juiz, é concepção falsa e estreita. Pois o juiz não é um autómato de decisões; é um

KOHLER, Lehrbuch, I, pãg. 140, e A aplicação do direito é uma técnica de base científica (veja STAMMLER,

Die Lehre von dem ricktigen Reckte, pirg. 312). KOHLER, Lehrbuch, I, pág. 123.

homem pensante, inteligente, e participe de todas as ideias e conhecimentos que formam o património intelectual e a experiência do seu tempo.

Ao julgar, portanto, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhe- cimentos extra-jurídicos que constituem elementos ou pressu- postos do raciocínio. Verdades naturais ou matemáticas, prin- cípios psicológicos, regras do comércio ou da vida social, compõem um acervo inesgotável de noções do saber humano, de que o juiz todos os dias se serve no desenvolvimento da sua actividade. Tais são os princkios de experiência, definições ou juizos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por obser- vação de casos particulares, nias elevados a princípios autó- nomos com validade para o futuro.

Estes princípios pode o indivíduo obtê-los directamente por indução dos factos; muitas vezes, porém, constituem um material adquirido de ideias, património comum da genera- lidade ou pelo menos de certos círculos de pessoas.

Algumas outras vezes é a lei mesma que apela para os conhecimentos do juiz, quando nas suas disposições não deter- mina com precisão o estado de facto, mas remete para factores sociais, v. g., para os bons costumes, para os usos locais, para a boa fé do comércio: aqui deve valer como direito o que o juiz, pelo seu conheciinento das relações da vida, considerar normal e típico naquela série de fenórnenos.

Por isso ocorre notar que a antítese comum entre factos da causa e normas de direito não é exaustiva, visto como entre aqueles e estas devem pôr-se os princípios de experiência, que são princípios de conteúdo geral, tirados duma multidão de observações, e que o juiz pode utilizar directamente ao senten- ciar, ou pode conseguir pela cooperação das partes, servindo-se dos meios processuais l.

Veja o que anteriormente ficou dito acerca do poder de inquiri~ão oficial, que o juiz tem pelo que respeita aos costumes - o que vale igualmente para todos os princípios de experiência. «Cfr. supra, n." I, e o n.O 34 do Trnttatou.

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15. -Relações entre a teoria e a prática

Teoria e prática não estão em antítese, não são inimigas ou estranhas que mùtuamente se ignoram ou desprezam: pelo contrário, entre elas existe uma colaboração recíproca l. Tendo objectos de actividade distintos, cada uma tem sempre que aprender da outra.

A teoria, operando com conceitos abstractos, com a força lógica, é capaz de extrair os princípios gerais da lei e de lhes dar o máximo desenvolvimento de expansão. Este trabalho, porém, fá-lo para a prática, para que surta mais completa e perfeita a aplicação do direito. A jurisprudência deve, pois, olhar à doutrina, ter em conta os resultados dos seus estudos, e pô-los à prova na aplicação.

Mas a teoria recebe quotidianamente da prática ensina- mentos e sugestões.

A prática, posta em face de hipóteses reais e das necessi- dades da vida, sente primeiro a solução jurídica, ao passo que a doutrina, trabalhando com hipóteses teóricas, não tem esta percepção pronta da realidade. É à jurisprudência, portanto, que a teoria deve ir colher a expressão das necessidades sociais que se &em sentir e batem à porta dos Tribunais. Além disso, a variedade inexaurível das questões práticas frequentemente revela problemas novos, ou novos lados de problemas jurí- dicos e abre novos campos de estudo à dogmática 2 . AS vezes um caso jurídico mostra experimentalmente que uma teoria

V. SCIALOJA, Diritto prático e diritto teorico, na Rivista di diritto cornilter- ciale, 1911, I, 941.

a Daqui a importância da actividade doutrina1 que se desenvolve na

motação de decisões jurisprudenciais. Por vezes uma destas anotações é o ponto de partida duma nova elaboração dum instituto.

Em França foi um esplêndido exemplo deste método um jurisconsulto que se dedicou a tal género de trabalhos - LABBÉ. Veja: Livre duhentenaire h Code Napoléon, I , pdg. 173 e segs.; e MEYNIAL - Les recueils d'nrrêts et les ~rrêtistes.

é errada ou unilateral, e por isso desmorona ao contacto dos factos o edifício fadigosamente levantado pelas abstracções dos teóricos.

Entre a teoria e a prática deve existir um enlaçamento, um intercâmbio de produtos espirituais, um fluxo e refluxo de ideias. A prática deve erguer-se do empirismo e da intuição instintiva do direito até uma aplicação consciente dos prin- cípios; mas a teoria deve retemperar os seus teoremas- no banho da vida real, dos fenómenos económicas, das situações que se suscitam e são apreciadas pela jurisprudência quotidiana. Uma e outra devem juntar e fundir as suas vistas, as suas críticas, os seus desejos, para cooperarem na actividade legislativa.

16. - Extinção das normas jurídicas

As normas jurídicas não são imortais, mas sujeitas a modi- ficarem-se e a extinguirem-se. Como na natureza, assim no mundo jurídico não há imobilidade, mas transformação: o direito renova-se com os tempos. Um direito imóvel não pode existir; pelo contrário, se o legislador declarasse não querer de futuro abrogar ou mudar uma certa lei, o seu comando resultaria inútil e invinculante.

Todavia as leis, normalmente, têm um carácter de ertabi- lidade, e são destinadas a uma duração indefinida. Valem

- - enquanto o Estado não declarar suprimi-las no todo ou em parte (abrogação ou derogação) l.

Uma norma jurídica não pode considerar-se extinta pelo conseguimento do fim que se propôs, ou por virem a faltar as

ULPIANO, frag. 3 , D e legibus: l ex nbrogatur, idest prior lex tollitur. L e x derogattrr, idest pnrs prioris legis tolitur. PFAFF e HOFMANN - Kotntnentar, I, págs. 214 e segs. REGELSBERGER- Pandekten, I, g 26.0. EISELE, no Archiv für die Civilistische Praxis, 66, 283. SAREDO - Abrogazione della legge, no Digesto italiano. DONATI - Abrogazione della legge, no Dizionario di diritto publico.

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circunstâncias ou os motivos que a determinaram, ou pela sua contraditoriedade com as exigências sociais. Isso pode ser motivo para a sua abrogação, e nunca uma causa de extinção da norma. É portanto erróneo, neste sentido, o brocardo Cessante ratione legis, cessat et l e x ipsa. A vontade do Estado existe de modo autónomo, independente e destacada dos factores psicológicos que a fizeram nascer, assim como prescinde dos resultados bons ou maus a que conduz na sua realização.

A lei conserva-se não obstante as modificações da consti- tuição política dum Estado, e mesino se o Estado acaba, porque o seu território é incorporado em outro Estado, este sucede no ordenamento jurídico do Estado anterior, nos limites do território do ex-Estado. Assim, vigoram ainda hoje leis anti- quíssimas, como as leis sobre a transmissão dos títulos nobi- liários, sobre o direito de padroado nas Igrejas, e leis sobre a caça, visto que, em parte, não foram modificadas.

Para que se verifique, portanto, a extinção é necessário: ou que a própria lei contenha em si um limite à sua eficácia (leis ad tempus); ou que a lei seja mudada ou abrogada por outra posterior l.

Não infrequente é o caso de leis que no seu conteúdo determinam a duração da sua validade, pelo que, transcorrido o prazo, elas deixam de ter valor, a menos que intervenha uma prorrogação da sua eficácia. Assim a lei de 15 de Agosto de 1863 para a repressão do banditismo, a lei de 19 de Julho de 1894 contra as manifestações anarquistas, etc.

Este termo pode resultar também mediatamente, em relação a um certo evento. Assim as leis especiais de guerra

Aqui não são tomadas em consideração as leis formais, que são simples actos administrativos em veste de lei, os quais, naturalmente, estão subordinados a outros princípios, pelo que toca a sua eficácia. Assim uma lei formal constitutiva dum direito subjectivo extingue-se por renúncia, prescrição, etc., mas em substância trata-se aqui dum fiegócio juridico e não duma norma juridica.

costunlam ter a sua vigência fixada até um período de tempo depois da conclusão do tratado da paz. Uma lei sanitária pro- vocada por uma epidemia é aplicável até que arn acto admi- nistrativo declare cessado no país o estado de infecção.

É preciso, todavia, que a lei subordine e delimite a sua eficácia àquele dado evento, pois nem toda a lei emanada por ocasião dum estado de facto transitório (v. g., um desastre, uma sedição, uma crise) cai necessàriamente quando este cessa l.

A não se verificar a indicada subordinação, a lei mantém-se em plena validade, só que a sua aplicação pode tornar-se gra- dualmeiite mais rara, e por último desvanecer-se. iaas deve distinguir-se entre a não aplicação duma lei por falta de relações a regdar e a sua inexirtincia jurídica: no primeiro caso a norma

qcia se uma nova existe e é sempre capaz de desenvolver efic: relação se apresenta, como um arco retesado, pronto a despedir a frecha; ao passo que no outro não há norma.

Isto vale também para as disposições transitórias, chamadas a disciplinar as relações existentes no passado, entra em vigor uma lei nova. Formalmente, essas disposições valem sempre. E certo que com o andar do tempo a sua aplicacão se vai tornando sempre mais rara, ou até se anula, pois as rela- ções anteriores vão desaparecendo gradualmente. Mas nem por isso se pode dizer que tais disposições estão abolidas. E pelo contrário algumas disposições transitórias têm duração indeter- minada (por ex. o art. 48.0, primeira parte, das Disposições transitórias para a aplicação do Código Civil).

Todavia a forma ordinária de abrogação ou mutação duma lei tem lugar por força duma lei posterior (art. 5.0 das Disposições preliminares ao Código Civil).

É preciso que se trate duma verdadeira lei, e não dum acto administrativo. Assim um regulamento não pode abrogar uma lei.

Assim COV~ELLO - Manuale, pág. 97; DE RWGGE~?~ - Istit~ziotti di diritto civile "4." ed., I, pig. 1 6 3 ~ .

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Diverso é o caso de se tratar dum acto que a autoridade administrativa emana por delegação do poder legislativo. A lei, de facto, pode pronunciar a supressão dum princípio jurídico ou directamente ou delegando no Governo tal facul- dade: nesta hipótese é a lei de autorização que tira a força formal à lei modificada l. Em termos análogos se resolve a -

questão de saber se um tratado internacional pode mudar uma lei: não é o tratado como tal, senão a lei interna que o aprova o que modifica o direito anterior; e quando um tratado deroga leis, para a sua eficácia há sempre mister da aprovação do poder legislativo.

A lei abrogativa ou modificativa deve ser posterior à lei a mudar; e a posterioridade determina-se pela data da pronzul- gação, e não já pela entrada em vigor.

Por isso, de duas leis, uma das quais foi promulgada primeiro, se bem que entre em vigor depois, e a outra foi promulgada depois, se bem que entre em vigor primeiro, é a segunda que em caso de contradição prevalece, abrogando ou modificando' a primeira. De facto, a entrada em vigor não respeita à eficácia formal duma lei, mas à sua aplicação prática.

E por outro lado o efeito da abrogação só tem lugar com a entrada em vigor da lei abrogatória, pelo que pode haver um estádio em que uma lei formalmente abolida não perdeu ainda a sua eficácia. Na verdade, durante a vacatio subsiste em vigor a lei precedente %.

I CAMMEO - Giustizia Amministrativa, n.O 29, pág. ~ g . Mas não basta que o Governo tenha emitido uma norma por delegação legislativa, para que possa depois abrogá-la por sua iniciativa: é preciso que a mesma abro- gação tenha sido autorizada. (FIORE - Dispozizioni generali a1 Codice Civile,

n, 598). a Assim aconteceu com a lei sobre a justiça administrativa e a lei

relativa a obras pias, no referente à questão das despesas de hospitalização (spedalità). Veja CAMMEO - Giwtizia Alltntinistrativa, pág. 56.

A abrogação pode ser total ou parcial, conforme é supri- mido todo o conteúdo duma lei ou só uma parte ou algumas disposições singulares.

A abrogação pode resultar ou duma declaraçiio expressa do legislador que proclama abolida uma certa lei, pura e sim- plesmente sem outra estatuição (assim aconteceu com a lei que aboliu a prisão por dívidas), ou é conexa com uma nova regulamentação jurídica que substitui a revogada.

Neste caso, aliás, a abrogação expressa é supérflua, pois basta que a lei nova estabeleça uma regulamentação diversa incompatível com a lei antiga, para que a lei nova prevaleça e destitua de efeito a lei precedente. Então é uso falar-se de abrogação tácita: a vontade abrogativa resulta da nova disciplina jurídica que se vem substituir à anterior, pela ivicoirzpatibilidade do novo ordenamento com o antigo.

Mas isto aponta o limite de tal forma de supressão. A abro- gação tácita verifica-se na medida da colztraditoriedade: a lei pre- cedente é abrogada até onde for inconzpatível com a lei nova; onde, porém, esta contraditoriedade não tenha lugar, é possível a coexistência e compenetração da lei anterior ~arcialmente revogada com a lei nova modificadora. Amiudadas vezes, de - facto, as leis limitanz-se a simples retoques e inovações, e estes S U C ~ S S ~ V O S remendos em certos casos dão origem a complicações e dificuldades. Precisamente Dara obtem~erar a este estado de incerteza, o Governo é, de ora em quando, autorizado a prover à publicação de textos únicos que recolhem pràticamente num só corpo as disposições vigentes supérstites de leis parcialmente modificadas.

Todavia a questão da existência da abrogação continua a impor-se, mau grado os textos únicos. Nem sempre a incom- patibilidade entre duas leis é seguramente determinável.

Se a uma lei geral se sucede uma especial, norinalmente aquela fica de pé, visto que pode coexistir com a outra. Mas se a uma lei especial se segue uma lei geral, é duvidoso se a nova regra não tolera mais os desvios e excepções da mprieira,

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lu quer mantê-las coordenando-as com o novo princípio. 1 solução dependerá, caso por caso, da indagação do nexo lue existe entre as duas ordens de normas e do fundamento la nova disposição I.

Pode tratar-se de relações distintas, e por isso a norma hspecial não influenciar a geral, ou vice-versa pode a norma ,special não ser mais do que um rebento e uina aplicação da iorma-regra, cuja abolição importa naturalmente a queda da )uha, por conflito virtual entre as duas.

A abrogação tácita não resulta só de incompatibilidade: >pera-se também quando uma lei nova regula toda a matéria á disciplinada pela lei anterior. Aqui deduz-se, com efeito, r vontade por parte do legislador de liquidar o passado, bstabelecendo um novo sistema de princípios completo e autó- iomo. Temos então um novo reordenamento jurídico com iirectivas originais, que não tolera desvios ou enxertos de leis ~recedentes.

É fácil compreender que a abrogação se limita aquilo jue consitui a matéria da nova regulamentação jurídica, não rbrcngendo institutos que, embora pertinentes e conexos com ~quele, não foram nem directa nem indirectamente contem- dados.

Mas, por outro lado, a abrogação não faz cair só a ei directamente atingida; afecta ainda todas as disposições Zependentes ou acessórias que a ela se prendem, tonquanto resultem de leis diversas. Assim as normas interpretativas, ~specificativas, limitativas, ou que tendem a regular a exe- cução OU a reforçá-la, infligindo pena, estabelecendo garan-

tias, etc. Enfim, todas as disposições que são coiisequências ou aplicações do princípio abolido l .

Há aqui uma incompatibilidade conceitual ou virtual. Isto acontece de modo eminente quando uma lei introd~iz

rzovos prirzclpios cardeais iizfornzadores da regulanwiztaGZo jzrrídicn, o que arrasta consigo a anulação de todas as leis e disposições que, embora não liaja manifesta contraditoriedade, são demitidas da sua base racional. Há um conflito íntimo nas ideias inspi- radoras, no fundamento do edifício jurídico.

As leis abolidas não ressurgem com a extinção da lei aboli- tiva. Assim, se uma lei abrogou expressa ou ticitamente outra lei, e em seguida esta lei abrogativa é por sua vez abrogada, não revive por isso a lei antiga, sendo necessária uma expressa declaração legislativa que a reponha em vigor (lei repristinatória) 2 .

É discutido se uina lei pode perder valor pela forniação duin costume contrário, isto é, pelo seu não uso prolongado.

Segundo o nosso sistema positivo, o costume, tendo uma posição subordinada, não pode entrar em contradição com a lei. A não aplicação ou o não uso duin preceito legislativo não pode considerar-se como abandono ou reiiúncia dos interes- sados que faça tornar-se inútil a lei, porque não se deixa à vontade dos indivíduos a força coactiva das normas 3 .

Regras de direito nascem também pelo exercício da facul- dade regulamentar.

Ora os regulamentos, sejam de execução, ou indepen- dentes, ou autorizados, podem ser inodhcados ou abrogados

REGELSBERGER, Pandekten, pig. 110. OERTMANN, Uber den Satz lex oosterior generalis non derogat priori speciali (Archiv für ofiztlichen Recht (Arquivo para o direito público).

Assim, abolida a pena de morte, caíram as disposições dos arts. 394.0 : 395," do Cód. Civ.

ENNECCERUS - Lehrbuch, I, pág. 91 (edição de 1924). ~ G E L S B E R G E R

- Pandekteit, pág. I I r . a COVIELLO - Ma~tiiale, pág. 98. DE RUGGIERO - Istituzioni ( ~ 4 . ~ ed., I ,

pág. 165». a CAPITANT - Iittrodutian d l'étude dr, droit fiarzçais, z . ~ edição, pág. 62.

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por outro regulamento posterior emanado da mesma autori- dade, e com as mesmas formas, ou da autoridade hierárquica superior, ou, enfim, por lei I . Mas o regulamento não pode ser modificado por uma provisão especial sob forma de decreto, porque vincula a autoridade administrativa a conformar-se com ele, restringindo o seu poder discricionário.

A abrogação do regulamento pode ser total ou parcial, expressa ou tácita, e esta última resulta não só de aberta incom- patibilidade, senão tambtm como consequência da abrogação da lei, a que o regulamento acedia, enquanto norina especi- ficativa ou de execução.

Noções preliminares Pág.

. . . . . . . . . . . . . I - Funções da actividade do juiz I I I

CAPITULO I

Verificação da existência da norma jurídica

. . . . . . . . . . . . . . . 2 - Critica do texto da lei 11s . . . . . . . . . 3 - Coiitrolo substancial da existência da lei I r 9

Determinação do sentido das normas jurídicas. Interpretação

4 - Ideias gerais . . . . . . . . . . . . . . . . 5 - A chamada interpretação autêntica . . . . . . . . . 6 - Objecto da interpretação: «Voluntas Legis, iion legislatoris<< 7 - Método de interpretação . . . . . . . . . . . . 8 - 0 s trabalhos preparatórios . . . . . . . . . . . g - Resultado da Interpretação . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . 10 - Desetivolvimento do sentido da lei . . . . . . 11-Integração das lacunas das leis: Analogia

1.2 - A escola do direito livre e os novos métodos de interpretação r3 -Elaboração científica. O direito como ciência . . . . .

Prevalece entre nós a teoria de que o costume não pode abrogar a lei. A questão é amplamente tratada por GÉNY - Méthode d'inferpretation, págs. 338 e seg. Veja também FIO= -Disposizioni generalí, u, págs. 605 e seg.; e S C ~ O J A - Le fonti e I'interpretazione de1 diritto conimerciale, e as citações aí feitas.

Mais controvertida é a matéria no direito público. Pela eficácia deroga- tória do costume: CAMMEO- Giustizia nnlwiinistrativa, pág. 61; contra: RANELLETTI - La c~nsuetudine come firrte di diritto publico interno, pág. 16.

CAPITULO 111

Determinação da norma a aplicar ao caso concreto. 0 direito como técnica

14 -Aplicação das normas jurídicas. A arte da decisão . . . . . 185 15 - Relações entre a teoria e a prática . . . . . . . . . . . 188

16 - Extinção das normas jurídicas . . . . . . . . . . . . 189