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,5(,72 $2 · Sonia Cristina Reis Chefe do Departamento de Ciência da Literatura Profa. Dra. Luciana di Leone Substituto Eventual da Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

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Odara

revista de arte e literatura [vol. 5 nº 5]

A Odara é uma publicação semestral.

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras da UFRJ - Sala D201

Av. Horácio de Macedo, 2151

Cidade Universitária - CEP 21941-917

Rio de Janeiro - RJ

Reitor

Roberto Lehrer

Diretora da Faculdade de Letras

Profa. Dra. Sonia Cristina Reis

Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

Profa. Dra. Luciana di Leone

Substituto Eventual da Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

Prof. Dr. Eduardo Guerreiro Brito Losso

Apoio Editorial

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

Equipe Odara

Amanda Dib, Bárbara Perez, Brena Azevedo, Camila Silva Mendes, Flávia

Natércia, Giulia Benincasa, Maria Júlia Santana, Paula Campello, Rafaela

Miranda de Oliveira e Vinícius Fialho.

Ilustradores

Ana Luisa Araujo, João Pedro Athayde (J Reis) e Marcela Almeida.

Agradecimentos

A todos que colaboraram com esse número da Odara. Em especial, a Pablo

Rodrigues e ao Prof. Ricardo Pinto. Também à Editora UFRJ, especialmente a

Valéria Baptista. Por último, mas não menos importantes, aos nossos

ilustradores: Ana Luisa Araujo, João Pedro Athayde e Marcela Almeida.

Odara

revista de arte e literatura [vol. 5 nº 5]

Direito à literatura,

direito ao grito

Sumário

Editorial 7

Equipe Odara

Poéticos

Cavalo 10

Deborah Gonçalves

Ainda que não seja onda 12

Eduarda Vaz

Espelho 14

Mahena Costa

Guarda-chuva Lilás 16

Renata Benicá

Claro Enigma

De escombros e sussurros: a Comala de Pedro Páramo como

entre-lugar 19

Alice Carvalho

A escuta de Conceição Evaristo 26

Amanda Dib

O corpo, abaixo do equador, no carnaval do Paraíso 36

Artur Vinicius Amaro ou Vanubia Close

Horacio Quiroga e a experiência dos textos no espaço do

entre-lugar 45

Brena Azevedo

As Margens de Guimarães em Nelson Pereira dos Santos 54

Carmosita Senna

Sobre “O direito à literatura” nas Orientações Curriculares

para o Ensino Médio 60

Carolina Fabiano de Carvalho

Juventude berlinense: um diário de leitura dos textos

benjaminianos dos anos 1910 68

Carolina Peters

Políticas do segredo: tensões entre o público e o privado em

três romances latino-americanos 77

Flavia Natércia da Silva Medeiros

O corpo nu e suas vestimentas simbólicas: uma leitura de

pratos-quadros de Adriana Varejão e dos úteros de Angélica

Freitas 86

Juliana de Assis Beraldo

Vozes esquecidas: o ser-animal de Vidas Secas e uma

comparação com A Hora da Estrela 95

Maria Júlia Santana Valério

Entre G e I 101

Rafaela Miranda

Modalidades de desprendimento: leitura de um poema de

Alberto Caeiro 107

Rafaela Lima

Normas de Publicação 114

Editorial Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

| 7 |

Editorial

Equipe Odara

Parece que mais uma vez a nova edição da Odara ficou engavetada mais

tempo do que o desejado. Novamente passamos por imprevistos e desafios,

colocando à prova a nossa vontade de manter o projeto funcionando. Como é

difícil manter uma revista de graduação! Entre toda a pressão e as obrigações

que a vida acadêmica nos impõe, achamos uma pequena brecha na louca grade

horária da Faculdade de Letras para respirarmos um pouco na Odara. É isso que

a revista pretende ser, na medida do possível: um sopro de alívio entre a correria

natural do dia a dia.

Esse foi um semestre de perdas: três queridos integrantes da Equipe

seguiram novos rumos. Erick, Pablo e Paula tiveram que nos deixar nessa

edição, ficamos com uma alegre saudade e cheios de gratidão pela dedicação

dos três. Em contrapartida, agora contamos com Bárbara, Giulia e Vinícius,

novos integrantes da equipe editorial da Odara. Além disso, temos a felicidade

de anunciar que a revista deu mais um passo, expandindo os horizontes

universitários para fora da Faculdade de Letras e, até mesmo, da UFRJ. Temos,

a partir dessa edição, uma equipe de ilustração composta por Aninha (EBA -

UFRJ/ Letras - Puc Rio), João (Jogos Digitais - IFRJ) e Marcela (EBA - UFRJ).

A arte da capa foi feita por eles. Estamos muito felizes com essa parceria e

damos boas vindas a todos. A saída de Erick, Pablo e Paula deixou um misto de

saudade e de necessidade de adaptação. Nos tirou de uma zona de conforto e

nos colocou em ação. Aos três dizemos um carinhoso até breve.

Outra parceria que fizemos, para esta edição, foi com o Claro Enigma,

evento organizado pelos monitores e monitoras do departamento de Ciência da

Literatura. Ambos, Odara e Claro Enigma, são projetos feitos por alunos de

graduação e para alunos de graduação. O tema do evento, ocorrido nos dias 7 e

9 de novembro de 2017, coincide com o tema da revista: Direito à Literatura,

Direito ao Grito, que foi pensado dentro da perspectiva de uma conversa entre o

texto “Direito à Literatura” de Antonio Candido e A Hora da Estrela de Clarice

Lispector (sim! mais uma vez estamos falando de Clarice!). Candido, por um

Editorial Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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lado, reflete sobre a literatura como um direito, e afirma que “negar a fruição da

literatura é negar a nossa humanidade”. Lispector, por sua vez, nos apresenta,

como um dos subtítulos de A Hora da Estrela, o direito ao grito. Sob esses

olhares, foi proposto um debate entre essas duas linhas de pensamento, no qual

os pesquisadores e as pesquisadoras da graduação foram convidados a

apresentar seus trabalhos, relacionando-os com o tema.

O evento contou com a presença, na mesa de abertura, da poeta Angélica

Freitas e da poeta e professora Tatiana Pequeno; houve um sarau de

encerramento com microfone aberto e com a participação da Oficina

Experimental de Poesia e trabalhos que abordaram desde produções

cinematográficas baseadas na obra de Guimarães Rosa até o samba-enredo da

Paraíso do Tuiuti. Música, cinema, literatura, diversas manifestações artísticas

foram contempladas pelos trabalhos apresentados e aqui publicados. Conceição

Evaristo, Carlito Azevedo, Clarice Lispector, Alberto Caeiro, Adriana Leitão,

Walter Benjamin foram alguns dos autores, artistas e teóricos abordados pelos

pesquisadores.

Como ficaria, então, a parte criativa da Odara? Decidimos abrir chamada

para a submissão de contos, poemas, quadrinhos, resenhas e ilustrações.

Queríamos saber como o tema proposto seria apresentado através da ótica

artística. Foi assim que recebemos os poemas de Deborah Gonçalves, Eduarda

Vaz e Mahena, além do conto de Renata Benicá. Todas vozes femininas em

diferentes contextos, retratando diferentes gritos. Compomos a Odara com essas

vozes polifônicas, cada uma com sua própria melodia, embora juntas dentro do

mesmo tom.

Após meses do evento Claro Enigma e da abertura de chamada da revista,

uma importante voz feminina foi silenciada. Uma voz que gritava e lutava por

direitos daqueles que infelizmente são socialmente marginalizados: negros,

favelados, LGBTQ, periféricos, indígenas, mulheres, crianças. Uma voz

chamada Marielle, brutalmente silenciada em 14 de março de 2018. Digo aqui

silenciada, mas, na verdade, o assassinato de Marielle fez com que sua voz fosse

repercutida, como um eco que não cansamos de fazer chegar a todos os lugares.

Não nos esgotaremos de gritar até que seja feita justiça. A quinta edição da

Odara é em memória de Marielle Franco e Anderson Gomes. Por isso, gritamos:

Marielle, presente! Anderson, presente!

Poéticos

Cavalo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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CAVALO

Deborah Gonçalves

Mulher, nordestina, aquariana, 22 anos.

Gastróloga por formação, estudante de Letras por gosto e poeta por sina.

Nasci de pai e mãe

Um se foi com a morte

o outro

a vida é quem levou

Ganhei em troca um protetor

e esse me apadrinhou

Com sua coroa de ouro

filha da pedreira me batizou

Trouxe nas mãos machado e corisco

e é quem nunca me deixou

A esse eu devo é muito

e pago com meu louvor

Justiceiro

Honrado

Dono do raio e do fogo iluminado

Rei que veste vermelho

Guerreiro nagô

Ele dá

mas ele cobra

KAÔ

Cavalo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

| 11 |

KABECILÊ

MEU PAI, XANGÔ!

Ainda que não seja onda Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

| 12 |

Ainda que não seja onda

Eduarda Vaz

Eduarda nasceu em Volta Redonda (RJ), em 1997. Desde pequena, queria ser

escritora. Estuda Letras: Português/Espanhol na UFRJ, escreve em sua página

Eduarda Vaz / Poesia e na Revista Pólen. Também é contadora de histórias e

professora. Alguns de seus poemas já foram publicados em revistas - como a

Zzzumbido. Seu primeiro livro, Aresta, foi publicado pela Macabéa Edições em

dezembro de 2017.

talvez

a primeira libertação da voz

criou-se pelo traço

tinta marcada vinda

da pena de pássaro

privilégio sorte recurso ínfimo

das moças guardadas

nos palácios

talvez

a primeira libertação da voz

esticou-se pelo canto

escondido nas beiras de rio

durante o esfregar

das roupas e dos panos

destino trabalho recurso necessário

das moças guardadas

nos campos

talvez

a primeira libertação da voz

acalentou-se pelas receitas

ao fogão à lenha e às panelas

tempero toque jeito

Ainda que não seja onda Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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dos caldos das tortas das comidas

acrescentados sempre de um

segredo

amor reza uma pitada a mais de sal

carinho ofício recurso característico

das moças guardadas

nas cozinhas

a voz sempre encontrou uma saída

escrita melodia profecia

Espelho Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Espelho

Mahena Costa

Mahena Costa nasceu em 1997, em Aracaju-SE, onde cresceu e se desenvolveu

(ou nem tanto). Atualmente é estudante de Letras – Português e inglês na

Universidade Federal de Sergipe. Ainda não reproduziu e nem tampouco

morreu, o que considera grandes conquistas.

Tenho procurado

e ainda segurando a lupa

engulo a poeira de mim

pois quem quer que me veja me viu

empoeirada

sei que somos duas e que as duas são iguais

compartilham

siamesas

segredos e travesseiros

amores

tristezas

nos separamos no ódio – uma de nós odeia

qual de nós é luz?

quem escreve? as duas escrevem

eu sei que na verdade nenhuma sozinha fez coisa alguma

pois uma delas rouba a doença da outra e inspira-se

perverso prazer em ver pesar

então a que dói

retorce e grita e faz pouco da que a segura

quem seria nesse ponto tão sádico

assim, expondo

exponho-me

quem é tão ruim?

– sou eu.

e exposta

nua

Espelho Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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torna-se ela mesma

uma e meia de si

Guarda-chuva Lilás Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Guarda-chuva Lilás

Renata Benicá

Milena. Cabelos longos, olhos amendoados, rosto fino. Milena. Com suas

bochechas rosadas, andava por Copacabana as três da tarde com uma

curiosidade que só os vinte e poucos tem. Lá pela esquina da Siqueira Campos

com a Barata Ribeiro ela para. Se distraí com as bugigangas de uma senhora

cubana expostas no chão em uma toalha desbotada. Fica ali parada, hipnotizada

com aqueles objetos antigos em plena calçada movimentada, do lado do pastel

chinês, de uma mãe com seu bebê, de um jovem de terno e de um senhor.

Um senhor. Seus setenta anos. Branco, de sardas. Um senhor. Que sem

nenhum pudor, atitude normal, como se coçasse a cabeça, passa a mão nas

pernas de Milena. Apertando com força aquela lateral da curvinha. Na perna e

na bunda. Em cheio. Com força. Três da tarde, na esquina, perto do chinês,

homem, terno, mulher, bebê, uma porcelana com cisnes na toalha com manchas.

Um borrão... um borrão.. embaçando os olhos da menina. O ar entrando devagar

nos pulmões, um calor desesperado subindo pelo ouvido. E ela ainda parada.

Estática. Olhos fixos nos cisnes e nas flores lilás que eles tinham no dorso.

Atônita, ela vira para trás. Na tentativa de achar nos pés firmes do senhor o

seu ato falho. Mas ele afrontava Milena. Aquelas costas concurdas. Costas e pés

que a esmagavam na sua imobilidade. Como uma barata marrom de rua, de

cozinha de restaurante velho. Suja, fria. Cheia de cascas. Milena sentia raiva.

Impotência. Muita raiva. Xingava baixinho. Com vergonha. Pensava em todas

as vezes que foi objeto. Desejo. Carne. Cantada. Conquista. Um abandono. E

nunca percebeu. A mão daquele senhor descortinava a coisa toda violenta.

No meio de sua fúria estarrecida, viu, na mão do senhor um guarda-chuva

enferrujado. Um guarda-chuva lilás! A mesma cor da flor dos cisnes da cubana,

da lancheira antiga do irmão, da cortina da casa da sua vó. O tempo suspende. E

ela lembra do avô na janela escutando jogo de futebol no domingo depois do

almoço. Detrás da cortina daquela cor! A cor! Que agora dava uma família, uma

casa, talvez até um rádio de pilha de baixo do travesseiro para aquele estranho.

Guarda-chuva Lilás Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Aquelas costas corcundas. “Será que ele torce pro Flamengo, meu Deus?” “Será

que ele come bolinho de chuva?” Meu Deus! Meu Deus! Deus! Ele é comum.

Um qualquer. Um homem. Uma pessoa. Um dogma. Uma verdade falsa

incrunhada na pele caucasiana de macho. Menino macho, agora homem, senhor,

velho, nojento.

Sentia náuseas de toda gente, do seu avô, da sua vó, de toda cruz no

pescoço das beatas, de toda vez que seu irmão podia chegar mais tarde do que

ela em casa, de toda vez que mandaram que ela cruzasse a perna. Teve cólera de

si. Do senhor. Cólera do mundo que aprisiona ela em uma bunda e ele em um

desejo. Quis gritar. Olhou para as pessoas ao redor. Todas em vitrines, horários,

compromissos, telefonemas. Imersos. Sem perceber a coisa toda violenta.

Claro Enigma

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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De escombros e sussurros:

a Comala de Pedro Páramo como entre-lugar

Alice Carvalho

A proposta do presente texto é desenvolver uma leitura do romance Pedro

Páramo, do mexicano Juan Rulfo, a partir da ideia de entre-lugar cunhada pelo

intelectual brasileiro Silviano Santiago, que se mostra em diversos níveis da

obra. A proposta, mais especificamente, é observar os desdobramentos de tal

ideia dentro da narrativa – estruturalmente e também na relação que se

estabelece entre os próprios personagens.

O termo “entre-lugar” aparece explicitado pela primeira vez na obra de

Santiago – outros filósofos e intelectuais já haviam forjado o conceito

anteriormente, como Derrida e Foucault – no ensaio “O entre-lugar do discurso

latino-americano”, escrito em 1971 e incluído no livro Uma literatura nos

trópicos - ensaios sobre dependência cultural, de 1978. No entanto é importante

destacar que a ideia de entre-lugar permeia toda a obra de Santiago e, de certo

modo, está presente em outros textos. Nesse sentido, além do ensaio já

mencionado, também serão abordados no presente estudo “Apesar de

dependente, universal” e “Eça, autor de Madame Bovary”, ambos de Silviano

Santiago, reflexões e problematizações das relações culturais entre países

centrais e países denominados periféricos.

Fazendo uma análise que reconhece o etnocentrismo como eixo

determinante da relação entre Europa e América Latina, Santiago percebe, na

colonização da segunda pela primeira,

Uma operação narcísica, em que o outro é assimilado à imagem refletida

do conquistador, confundido com ela, perdendo, portanto, a condição

única de sua alteridade. Ou melhor: perde a sua verdadeira alteridade (a

de ser outro, diferente) e ganha uma alteridade fictícia (a de ser imagem

refletida do europeu) (SANTIAGO, 1980, p.).

A ocasião da colonização, que procurou uniformizar as culturas “outras”,

ocidentalizando-as, acabou por instituir “a classe dominante como detentora do

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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discurso cultural, discurso europeizante” (SANTIAGO, 1980, p.). Santiago

constata, portanto, a inescapável “dependência” latino-americana em relação à

cultura dominante, reconhecendo, porém, a possibilidade de originalidade do

produto criado pela colônia, desde que haja “contestação da erudição, quebra da

cronologia e busca de originalidade” (SANTIAGO, 1980, p.).

Feito este diagnóstico, Silviano aponta para a necessidade da busca pela

explicação da constituição latino-americana, não nas noções de originalidade e

começo, mas pensada através de um entre-lugar: a América Latina deve ocupar,

dentro do cenário ocidental, um lugar de desvio da norma, transfigurando os

elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo.

Adotar a ideologia do outro, mas na forma da “falsa obediência”,

usando o termo de Santiago, uma vez que, segundo o intelectual:

A riqueza e o interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade

do modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do

poeta, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso do

modelo pedido de empréstimo à cultura dominante (SANTIAGO, 2000,

p. 56).

Silviano Santiago, ao reconhecer a dependência do chamado “Terceiro

Mundo”, aponta como sendo a destruição dos ideais de “unidade e pureza” a sua

maior contribuição, o que significa ir contra a ideia de herança e,

consequentemente, contra o patriarcalismo. E é exatamente isso que está na

base do conceito de entre-lugar: uma recusa à ideia de originalidade, fonte,

influência – daí o seu viés anti-paternal e antipatriarcal.

No romance de Rulfo, Pedro Páramo, é possível perceber várias maneiras

de problematização do modelo dominante, da lógica da herança e da

paternidade cultural. Pode-se vislumbrar, então, no romance de Rulfo, essa

“escrita contra” a respeito da qual fala Silviano Santiago. É possível notar,

ainda, que se poderia denominar “anti-paternidade” – como sendo um dos

sustentáculos da narrativa.

O romance de Juan Rulfo teve sua primeira publicação no ano de 1955.

Expoente não apenas da literatura latino-americana, mas também da literatura

mundial, sua narrativa, envolta em uma atmosfera espectral, é permeada por “la

fabulación y la desfabulación, la afirmación y la negación, y donde la vida y la

muerte no se niegan unas a otras, sino que coexisten” (VOLEK, 1990, p. 35).

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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No entanto, o que há de espectral na obra não se situa no domínio do onírico,

tampouco do absurdo ou do surreal como bem observa Guilherme Belcastro em

seu texto sobre a obra de Rulfo:

Os sonhos são vistos não como ilusões, mas como propriamente o que

se tem para dizer[...] Aqui, o sonho não tem um caráter diáfano,

imaterial. Ele é o que há de real, o que gera o movimento do narrador e,

portanto, da narrativa. As vozes que aparecem no romance são vazias

(BELCASTRO, 2015, p.).

O começo do romance sinaliza o início de uma busca: Juan Preciado, para

realizar o último pedido de sua mãe antes de morrer, sai em busca de seu pai,

sobre o qual ele sabe somente o nome – Pedro Páramo – e o lugar onde

supostamente estaria – Comala.

Antes mesmo de chegar exatamente a Comala, Juan Preciado já se

depara com o fato de que seu pai, na verdade, já está morto: “— E Pedro

Páramo? — Pedro Páramo morreu faz muitos anos” (RULFO, 2008, p. 19).

Logo nas primeiras páginas, portanto, há uma ruptura na narrativa, e assim

como Juan Preciado, o leitor é pego de surpresa: se para o personagem

representaria o fim da sua mal começada viagem, para quem lê seria o fim da

possibilidade de desenvolvimento de uma história.

Não bastasse Pedro Páramo estar morto, Juan Preciado também é

advertido de que o vilarejo de Comala também estaria: “Aqui não mora

ninguém”. Mais uma vez, o contrário do que se espera acontece: o personagem

continua a sua busca. Mas busca pelo quê? No romance de Rulfo, explicações e

motivações detalhadas não parecem se fazer necessárias para o

desenvolvimento da narrativa.

Mais adiante, observamos outra quebra estrutural: sem explicação ou

aviso prévio, entra na história uma voz até então inédita: “No dia em que você

foi embora, entendi que não tornaria a vê-la [...]”. Tal reflexão estranha, que

aparece repentinamente ao leitor, só pode ser atribuída a Pedro Páramo, (que até

então nem sequer tinha surgido na história, senão pela fala alheia) pelo diálogo

– também, a princípio, desconexo – que vem em seguida, e termina do seguinte

modo: “Você e suas esquisitices! Sinto que você vai se dar mal, Pedro Páramo”.

Isso quer dizer que nunca é possível ter certeza de fato de quem está narrando.

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Embora se perceba que não existe um narrador único, as passagens de um para

outro não ficam explicitamente delimitadas: não há divisão de capítulos e

nenhuma sinalização que situe o leitor confortavelmente. Pode-se ver, então,

que a estrutura narrativa do romance não segue os padrões de linearidade que

definiriam uma “história” prototípica.

O episódio da morte de Juan Preciado sinaliza uma virada no romance: até

então narrado em primeira pessoa, por Juan Preciado, a narrativa passa a ser

narrada em terceira pessoa:

Sentia o ar indo e vindo, cada vez menos; até que se fez tão fino que se

filtrou entre meus dedos para sempre. Digo para sempre. Tenho

memória de haver visto algo assim como nuvens espumosas fazendo

redemoinhos sobre a minha cabeça e depois enxaguar-me com aquela

espuma e me perder em sua nuvarada. Foi a última coisa que vi.

(RULFO, 2008, p. 41).

Mais uma vez, existe uma subversão da concepção tradicional de

“história” – além dos acontecimentos não se darem em uma ordem cronológica,

a narrativa não gira em torno de um personagem especificamente, não conta

uma única história: nem a de Juan Preciado, nem a de sua mãe, nem a do

próprio Pedro Páramo.

Agora já não se pode identificar um narrador, e a ideia de autoridade e

confiabilidade do mesmo são completamente desestabilizadas – tudo que chega

ao leitor são pedaços, sussurros, lamúrios, que nunca se completam ou

conduzem a alguma conclusão. Talvez possa se dizer, inclusive, que a cada

momento é “retirado” algo do leitor. Aliás, é impossível acessar, de fato,

qualquer personagem, por completo. Tudo que recebemos deles são “fiapos”,

fragmentos, que nos chegam por meio da palavra de mortos - o que confere à

narrativa um clima rarefeito.

O material narrado é fragmentado, o que remete, de certa forma, à narrativa

cinematográfica. Há uma série de cortes, reforçando a ideia de incompletude do

que está sendo contado. Tudo o que chega ao narrador é resultado de

lembranças e, como já observado, lembranças de mortos – o que pode

representar, de alguma maneira, a impossibilidade de narrar completamente.

Em primeiro lugar, a figura que de certa forma norteia a narrativa, Pedro

Páramo – da qual só nos aproximamos muito precariamente, a partir de

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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fragmentos e histórias soltas, quase sempre contadas por terceiros –, pode ser

considerado como um grande pai, não só por ter muitos filhos, como é revelado

no início por um dos personagens, mas também pelas relações que engendra em

Comala, povoado fantasma onde se ambienta a narrativa:

Estavam no curral. Pedro Páramo se esparramou numa manjedoura e

esperou:

— Por que não senta?

— Prefiro ficar de pé, Pedro.

— Como você quiser. Mas não se esqueça do dom. Dom Pedro. [...]

Começou a tirar os papéis para informar a quantas andava a sua dívida.

E já ia dizer: “Estamos devendo tanto”, quando ouviu:

— Para quem estamos devendo? Não me interessa quanto, mas a quem

(RULFO, 2008, p. 29).

A relação que Pedro Páramo cria com o povoado é, portanto, de

paternalismo, na qual toda a população é submetida a suas vontades, mandos e

desmandos. Essa é, portanto, a economia de Comala, o modo como se articulam

os indivíduos e como se estabelecem suas relações materiais. Pedro Páramo, de

alguma forma, pode ser considerado a própria Comala e, no romance,

acompanhamos a trajetória de sua derrocada. Cabe perguntar, então, se não

estaríamos também observando a destruição e a negação dessa tal ideia de

paternidade?

Pedro Páramo e a ideia de paternidade são assassinadas de múltiplas formas.

Temos na figura de Susana San Juan um ponto desestabilizador: ela, a mulher

por quem Pedro é apaixonado, e apresenta total devoção, é absolutamente

inalcançável. Suzana representa com muita eficácia essa suposta “anti-

paternidade”. Não permite qualquer aproximação com Pedro Páramo (nem com

o leitor), e tampouco se deixa governar pelo mesmo.

Susana, vale ressaltar, não apenas recusa – e abala – o “grande pai” que é

Pedro Páramo, mas também o seu próprio pai, Bartolomé. É possível apreender

a força desta negação especialmente no seguinte diálogo entre ela e seu pai:

— Você é minha filha. Minha. Filha de Bartolomé San Juan.

Na mente de Susana San Juan começaram a caminhar as ideias, primeiro

lentamente, depois se detiveram, para depois começarem a correr de tal

maneira que só conseguiu dizer:

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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— Não é verdade. Não é verdade.

— Este mundo, que nos dilacera por todos os lados, que vai esvaziando

punhados de nosso pó aqui e acolá, desfazendo-nos em pedaços como se

regasse a terra com nosso sangue.

O que fizemos? Por que nossa alma apodreceu? Sua mãe dizia que pelo

menos nos restava a misericórdia de Deus. E você a renega, Susana. Por

que me renega, a mim, como seu pai?

Você está louca?

— Você não sabia?

— Você está louca?

— Claro que sim, Bartolomé. Você não sabia? (RULFO, p. 56).

É interessante notar que Susana não renega neste momento só o pai, mas vai

além: renega pretensões lógico-racionais e, mais ainda, “a misericórdia de

Deus”. Ela é, no romance, esse ponto inalcançável e responsável pela queda de

Pedro Páramo e Comala. Em sua única fraqueza, o seu amor por essa mulher,

Dom Pedro é contrariado: “Esperei trinta anos pelo seu regresso, Susana.

Esperei até eu ter tudo” (RULFO, 2008, p. 94). Ela, que, como os demais

moradores de Comala, podem ser considerados “filhos”, recusa.

Pedro, ao saber da morte de Susana, impõe luto à Comala. No entanto esse

luto se transforma em festa, não sendo concretizado e acatado pelos habitantes

do povoado. E é exatamente aí que de fato começam a desmoronar Pedro e

Comala – que podem ser considerados um todo. Agora, todos os habitantes,

todos os “filhos” enlouquecem, indo contra a vontade do grande “pai” que é

Pedro Páramo:

Começou a chegar gente de outras paragens, atraídas pelo repicar

constante[..] chegou um circo, trazendo acrobatas e trapezistas.

Músicos. Comala formigou de gente, festança e ruídos, igual nos dias de

quermesse, quando dava trabalho dar um passo pelo povoado[...] Os

sinos pararam de tocar; mas a festa continuou (RULFO, 2008, p. 129).

Por meio de uma ordem do próprio Pedro Páramo, os habitantes de

Comala, totalmente dependentes e subordinados, conseguem assassinar o elo de

dominação e paternidade que estaria na base da economia de Comala. Trata-se

de uma recusa da dívida, da herança, da continuidade.

Como é possível perceber, então, o romance como um todo gira em torno da

questão da anti-paternidade – seja no campo estrutural da narrativa, seja no do

De escombros a sussurros Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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enredo. Esta “transgressão como expressão" que se nota na obra de Rulfo,

estaria, então, bem próxima do que Silviano Santiago entendeu por entre-lugar.

Não está no domínio de uma pretensa “superação”: “entre o sacrifício e o jogo,

entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a

obediência e a rebelião”. A ordem para o badalar dos sinos pode ter vindo de

Pedro Páramo, mas a festa que dessa ordem deriva vem dos seus “filhos”. E é aí

que está o entre-lugar: o agir dentro da prisão.

Referências

BELCASTRO, Guilherme. A cena do luto e a ruína da cena em Pedro Páramo.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.

SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência

cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

VOLEK, Emil. Pedro Páramo de Juan Rulfo: Uma obra aleatória em busca de

su texto y del género literário. Revista Iberoamericana. Pittsburgh, vol. 41,

n.150

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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A escuta de Conceição Evaristo

Amanda Dib

No dia cinco de setembro, à noite, minha amiga Lizandra Barboza me faz

um convite: no dia seguinte, no colégio Pedro II de Realengo, haveria uma

palestra com a Conceição Evaristo. Entre compromissos já marcados sendo

desmarcados; a pressa de dar logo os documentos para fazer o cadastro

necessário para assisti-la e o entusiasmo de ouvir a autora mais uma vez,

rodeava aquele entorno do convite feito de última hora, como que improvisado

e como quem não muito sabia sobre o evento. Depois de ter dito sim àquele

movimento de correria e descobertas, chegando ao Pedro II, veio o primeiro

impasse: o segurança me dizendo não. Afirmava que era apenas para alunos ou

ex-alunos, que para mim a entrada era não. Mas, minha amiga Lizandra, ex-

aluna, mais uma vez impulsionando que houvesse um sim, intercedeu para que

eu pudesse entrar. Por fim, conseguimos e fomos direto para o auditório

aguardar a escritora. No entanto, percebo, agora, a possível interpretação de um

breve erro no que intitulei este trabalho - A escuta de Conceição Evaristo. Esta

era, antes, nossa busca ao chegar ao Pedro II na manhã corrida do dia seis de

setembro, mas eu e ela não nos atentamos ao próprio nome do evento, chamado

Kizomba, entre vozes outras também convidadas a integrarem as falas, sem ser

somente a de Conceição Evaristo.

Ao sentar no auditório, vimos os cartazes de Kizomba, e já ao palco, a

Oficina Literária Ato Zero, organizada pelo professor Luiz Guilherme Barbosa.

Então foi o instante do segundo impasse: ali, acabamos dizendo sim à outras

vozes, e não só àquela inicial da qual tanto esperávamos. No palco, com alunos

vestidos de preto circulando descalços e com pouca luz, dois estavam à frente,

onde a iluminação dos dois destinava ao eco: "De que cor eram os olhos de

minha mãe?". Pergunta emblemática que fica ressoando no primeiro conto do

livro Olhos d'água, de Conceição Evaristo e, ali, na Oficina Literária Ato Zero,

experienciou-se essa voz lida pelo outro: uma aluna lia o conto inteiro, enquanto

outro aluno repetia pausadamente, durante a leitura dela: "De que cor eram os

olhos de minha mãe?", como um parafuso que não para de girar; como uma voz

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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que não cessa nas memórias e nas cenas; como um resgate sempre a vir. As

vozes daqueles dois alunos, confundindo-se, enquanto os outros permaneciam

cíclicos, transformou em deles, e nosso, aquela comunhão de ancestralidade e

memória - que é a potência dos escritos de Conceição Evaristo.

A apresentação na Jornada de Iniciação Científica da aluna Patricia

Rogeria, orientanda do professor João Camillo, teve como título: Memória de

um Círculo de Fogo (poesia e Samba de Enredo como cultura negra). Patricia

trouxe um poema de Conceição Evaristo para pensar a questão da memória e

ancestralidade. O poema intitula-se "Vozes-mulheres" e, em seu trabalho,

Patricia ressalta a importância da palavra eco, tão repetida ao longo dos versos,

para a visibilidade da força ancestral; então, destes traços deixados e marcados

para a preservação de identidades. Eco, que não coincidentemente, é um registro

oral. Os escritos de Conceição Evaristo vêm dos ecos, dos gritos, da oralidade

pulsante de palavras que são memórias, experiências e também perguntas

incessantes: "De que cor eram os olhos de minha mãe?". O conto desta frase,

"Olhos d'água", começa com a inquietação da narradora em uma noite quando

acorda e "(...) uma estranha pergunta explodiu de minha boca", ela diz. Esta

explosão que irá acompanhar o conto inteiro ao contornar as lembranças da

infância e adolescência vindas à tona; histórias que se misturavam, como a

narradora mesmo afirmou: "Às vezes, as histórias da infância de minha mãe

confundiam-se com as de minha própria infância". O confundir-se com a mãe

retrata o espelho da identidade; do reconhecer-se; do resgate das raízes e a

importância desse movimento. A narradora diz:

Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconheci a importância dela na

minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de

minha família. (...) Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás,

donas de tantas sabedorias.

Os ecos da mãe, da tia e da família, agora, ressoam na própria voz da

narradora: "Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?". O conto termina

com o reencontro da mãe e filha, em meio a olhos emocionados, os olhos

d'água, e com a pergunta refeita pela filha da narradora: "Mãe, qual é a cor tão

úmida de seus olhos?". Estas palavras, vindas como herança da família, mais

uma vez fazem confundir-se as infâncias da mãe e filha, que se conectam a ecos

da história e à trajetória de cada uma dessas mulheres. Neste ponto que o poema

"Vozes-mulheres" aproxima-se do conto "Olhos d'água", que traz a pergunta

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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incômoda, e incessante, sobre os olhos da mãe, como um eco retornando e

incorporando, por fim, a voz da filha.

A voz de minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz da minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagem suja dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha

recorre todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem - o hoje - o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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o eco da vida-liberdade.

Entre os olhos da filha e os da mãe, há uma cumplicidade vinda de todos

esses ecos. Os olhos d'água surgem por toda resistência da identidade e todas as

memórias de uma realidade violenta superadas para vir a filha, recolhendo as

vozes destas mulheres - as Senhoras, as Yabás -, vozes tantas vezes engasgadas

nas gargantas. Então a pergunta explode na boca, nestas vozes, como quem

pergunta sempre: de que cor são os olhos das nossas mães? A importância de

lembrar-se dos olhos, metonímia para representar a vida da mãe, é a inquietude

e necessidade em preservar a memória, a identidade e a ancestralidade. A

narradora, no conto, não poderia esquecer da mãe passando e lavando as roupas

dos outros enquanto deveria brincar com as filhas, para que as brincadeiras

distraíssem a fome. No poema, as bisavós, avós, mães e filhas também estão a

lembrar-se dos olhos, ou seja, da trajetória de todas elas, e isto a partir da escuta

dos ecos. A voz da filha, por fim, recolhe e confunde-se a todas as outras vozes.

Os gritos ecoam para o ato. A escrita é o ato de Conceição Evaristo, numa

segunda narração dos fatos. O livro Becos da Memória, surge como essa outra

filha de Conceição: recolhe e funde todas essas vozes, não só como becos da

memória, como o título sugere, mas como os ecos da memória. Conceição

escreve um prefácio intitulado "Da construção de becos".

Se a publicação de Becos da memória levou vinte anos para acontecer, o

processo de escrita do livro foi rápido, muito rápido. Em poucos meses,

minha memória ficcionalizou lembranças e esquecimentos de

experiências que minha família e eu tínhamos vivido, um dia. Tenho

dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como

ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade

da invenção.

Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As histórias

são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o

acontecimento e a narração de fato, há um espaço em profundidade, é ali

que explode a invenção. Nesse sentido, venho afirmando: nada que está

narrado em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em

Becos da memória é mentira. Ali busquei escrever a ficção como se

estivesse escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no

fundamento da narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e

dos meus. Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência. Por isso

também busco a primeira narração, a que veio antes da escrita. Busco a

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha. Assim nasceu a

narrativa de Becos da memória.

Voltando ao evento Kizomba e, finalmente, à fala de Conceição Evaristo,

que integrava a mesa junto com o coletivo Papo Negro, ela nos faz um pedido:

que afinemos nossa escuta para a Literatura, e dá seu testemunho: "Eu não nasci

rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras". A escrevivência relatada por

Conceição Evaristo no prefácio lido, relata não só a experiência com a oralidade

e a valorização da vivência como força matriz para a segunda narração, mas

também partilha da realidade rodeada de palavras, ouvidas nos ecos mais

violentos e perturbadores. Da escuta para a escrita, Conceição não alivia a

experiência de sua vivência ao leitor; ela diz:

A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da

casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.

Maria-Nova, personagem principal de Becos da Memória, dizia que um dia

escreveria todas as histórias que eram dela e dos outros. Ouvia atentamente às

falas dos familiares e dos habitantes da favela onde morava, ou então atentava-

se aos gestos, aos sussurros das mulheres nas torneiras lavando roupas das

patroas e os próprios molambos. Diz ter percebido que escreveria assim que

ouve a mãe dizendo que a Vó Rita dormindo embolada com ela. Conceição diz

que cresceu possuída pela oralidade, pela palavra. O som, o ritmo, como o de

um eco, permeia a escrita literária da escritora, que traz como traço àquilo do

qual nasceu rodeada e fez possível os primeiros instantes com a Literatura e da

Literatura. Esta frase: "Vó Rita dormia embolada com ela" é a primeira frase do

livro, frase também já mencionada no prefácio "Da construção de becos".

Assim nasceu a narrativa de Becos da memória. Primeiro foi o verbo de

minha mãe. Ela, D. Joana, me deu o mote: "Vó Rita dormia embolada

com ela". A voz de minha mãe a me trazer lembranças de nossa

vivência, em uma favela, que já não existia mais no momento em que se

dava aquela narração. "Vó Rita dormia embolada com ela, Vó Rita

dormia embolada com ela, Vó Rita dormia embolada com ela..." A

entonação da voz de mãe me jogou no passado, me colocando face a

face com o meu eu-menina. Fui então para o exercício da escrita. E

como lidar com a memória ora viva, ora esfacelada? Surgiu então o

invento para cobrir os vazios de lembranças transfiguradas. Invento que

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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atendia ao meu desejo de que as memórias aparecessem e aparecessem

inteiras. E quem me ajudou nesse engenho? Maria-Nova.

Quanto à parecença de Maria-Nova, comigo, no tempo de eu-menina,

deixo a charada para quem nos ler resolver. Insinuo, apenas, que a

literatura marcada por uma escrevivência pode con(fundir) a identidade

da personagem narradora com a identidade da autora. Esta con(fusão)

não me constrange.

Becos da Memória faz construção de uma árvore genealógica e de um

cenário físico, emocional e social da favela onde nasceu Maria-Nova, menina de

treze anos, que escreve em homenagem aos marginais, quem ela intitula os

bêbados, as putas, os malandros, as crianças vadias que ficam à margem, todos

nos becos ecoando e amontoando-se dentro dela. Também escreve em

homenagem à família, muitos já póstumos, a eles por quem tinha uma dor de

banzo, palavra angolana que denota saudade; saudade em ouvir as histórias

violentas de Tio Totó, que guardavam pedras pontiagudas no fundo do coração

da menina. Tio Totó, que se chamava Antonio João da Silva, mas ficava mesmo

com o apelido de cachorro, fazia-se sempre a pergunta: "Deus do céu, seria

aquilo vida?". Depois de ver Miquilina e Catita, sua primeira mulher e sua filha,

morrerem sendo arrastadas pelo rio, Totó sobreviveu sozinho em meio a

violenta perda alinhada em três palavras, que em sua vida estão sempre a

permutar e fundir-se: turbilhão, vida e morte. A rapidez, como o fluxo de um

rio, com que as perdas vão se repetindo na vida do personagem contorna a

desesperança em sua fala: "Assento e penso: para quê?". Ele, filho de escravos,

nascido na "Lei do Ventre Livre", tem por sina, e destino implacável, as

orfandades, partidas, labutas exaustivas e intermináveis. Os trabalhos pesados

acoplados entre a estrada e a roça, arrancava a estabilidade de Totó, que vagava,

mas, no fim, voltava para a favela, sem os pais - falecidos de tuberculose -, sem

Miquilina e Catita. Restava a herança das histórias de escravidão como marca e

repetição da própria história, e a busca pela sobrevivência na forte tentativa de

não ser derrubado pelo turbilhão da realidade.

Prisca Agustoni de Almeida, no livro Vozes além da África, escreve o

capítulo "Signos do atlântico negro em trânsito: algumas vozes da poesia de

língua portuguesa contemporânea", e ela diz:

É fundamental pensarmos o processo de escravidão e seus

desdobramentos como paradigma de uma herança cultural cujas marcas

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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estão inscritas nos diferentes âmbitos que dizem respeito à cultura

brasileira.

O movimento dos negros vindos ao Novo Mundo para a escravidão, resulta

no que Ana Beatriz Gonçalves, no artigo Processos de (re)definição na poesia

de Conceição Evaristo, nomeou o "sujeito diaspórico". A pesquisadora pensa a

diáspora como experiência traumática, já que se instala um sentimento de perda

nesse sujeito deslocado e desmembrado, e como deformação da homogeneidade

de modelos fixos da identidade cultural brasileira. Totó, o nítido sujeito

diaspórico, casa-se depois com Maria-Velha, filha de Luisão da Serra - um dos

poucos sobreviventes dentre os irmãos nascidos na escravidão. Todos esses

sujeitos diaspóricos marcam Becos da Memória ao assinar as contínuas perdas e

dores e, de geração em geração, levar consigo os traços indissociáveis da

trajetória familiar. O avô de Maria-Velha chorava ao vê-la, pois lembrava-se de

Ayaba - sua filha; arrancaram-na dele quando ela rebelou-se contra o senhor de

escravos. Ayaba, que era a "mamãe preta" da criança branca, foi vendida e o pai

nunca mais a viu. Ele, quando olhava Maria-Velha, sua neta, lembrava da filha

Ayaba, a quem pôde nomear como aquela que significa Rainha, mas que

perdeu, como tantos outros filhos. Maria-Velha, tia de Maria-Nova - a pequena

menina que ouvia todos os ecos atenta -, fazia parte da resistência por esta nova

identidade cultural, resultado de tantos processos de perda, mas que busca sair

"da invisibilidade para transformar marginalização em poder", como diz Ana

Beatriz Gonçalves.

O rosto de Maria-Velha confundindo-se com o rosto de Ayaba, é a confusão

mesma das vozes no poema "Vozes-mulheres", quando a filha recolhe todas

elas, e no conto "Olhos d'água", quando a mesma pergunta passa de mãe para

filha. Esta con(fusão) de vozes foi experienciada na Oficina Literária Ato Zero

na leitura simultânea dos dois alunos, e a memória representada pelos outros

alunos, circulando no fundo do palco. Apesar de toda manifestação de perda,

Conceição concilia passado, presente e futuro na voz da filha, que recolhe e

grita, por todas as Senhoras e Yabás, o fim dos ecos da escravidão. A escrita,

para Ana Beatriz Gonçalves, deve ser pensada como um processo constante de

auto(re)definição: os ecos da escravidão tornarem-se os ecos da liberdade e as

mulheres negras redefinirem-se dos retratos moldados pela sociedade. Sobre os

escritos de Conceição Evaristo, Eduardo de Assis Duarte, no artigo Mulheres

marcadas: literatura, gênero, etnicidade, diz:

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Suas personagens são negras e vivem como domésticas, mendigas,

faveladas, presidiárias. E são, sobretudo, mulheres de fibra, lideranças,

referências comunitárias.

Não há glamour nessas mulheres: há um registro da realidade pela qual as

personagens permeiam, percorrendo a miséria e a violência A maternidade

aparece, no livro Olhos d'água, como a veia pulsante para o resgate de forças e

esperanças, como se no leito fosse depositado todas as formas de sonho

impossíveis de serem sonhadas na realidade - fora das barrigas e dentro dos

barracos. Ana Davenga germinou a esperança no filho. A personagem, diante

dos policias arrombando a porta e apontando as armas para ela e o marido

traficante, preocupava-se em proteger "com as mãos um sonho de uma vida que

ela trazia na barriga", ela pensava. O fim do conto termina com a questão mais

trágica: a perda da expectativa, naquele bebê nem ainda nascido, de um futuro

diferente. O narrador diz que o futuro ali, na favela, chegava rápido. O filho dos

Davenga, entre as mãos da mãe tentando protegê-lo, mata a crença de mudança.

Os pais metralhados, e o filho, também, ali - onde o futuro chega rápido, num

turbilhão ágil do deslocamento vida à morte.

A temática da violência e maternidade vão sendo recorrentes nos contos de

Olhos d'água. Esse registro da realidade marcado por perdas alcançam mulheres

de traficantes, como Ana Davenga, que perde o marido, a própria vida e a

esperança de um futuro diferente: o filho; alcançam prostitutas, como Duzu-

Querença, que também já tinha sido a filha - o símbolo de esperança dos pais

pobres. No fim, ainda criança, vai trabalhar num prostíbulo limpando os

quartos, sob a advertência da senhora em sempre bater nas portas antes de

entrar. Certo dia entrou sem bater, e o homem, não importando-se com a

pergunta: "Não estava vendo que ela era uma menina?", começa a fazer os

carinhos que renderam à Duzu-Querença dinheiro. A senhora depois

descobrindo tudo, deu um quarto à menina. O narrador diz:

Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas.

Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao

sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos

cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte

como uma forma de vida.

Ela teve nove filhos e muitos netos. Um dos netos, o pequeno Tático de

treze anos, foi assassinado dando mais uma dor a Duzu-Querença, que agora

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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tinha a neta Querença para retomar os sonhos perdidos. Quando Duzu-Querença

morreu, e ficou em vida a pequena Querença com treze anos, mesma idade que

Tático, habitando os sonhos de reinventar a vida, encontrar novos caminhos. O

registro de realidade marcado por perdas alcançam empregadas domésticas

como Maria, voltando para casa segurando as sacolas cheias dos restos da festa

da patroa - o osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Assim que

ela entrou no ônibus, reconheceu o homem que era o pai de seu primeiro filho.

Maria sentiu mágoa pelo abandono, por todo aquele tempo do qual não

apareceu. O homem sentou-se ao lado dela e cochichou que sentia saudades,

perguntou também sobre o menino, seu filho. Maria tinha tido mais dois filhos,

e nos três ela apostava: "Eles haveriam de ter outra vida. Com eles haveria de

ser diferente". Assim que o homem levantou-se, anunciou o assalto, mas ele e o

comparsa não levaram nada de Maria. Ela só pensava nos três filhos. Os

homens saíram do ônibus e o motim começou contra Maria, acusada de

conhecer o assaltante e não ter sido roubada. Mas ela não conhecia o assaltante,

conhecia o pai de seu primeiro filho, quem pediu baixinho para enviar um

abraço, um beijo e um carinho ao menino de onze anos. A violência dos

passageiros explodiu, mesmo com a fala do motorista intervindo por Maria,

mulher que todo dia encontrava indo trabalhar para sustentar os filhos. No fim,

Maria não conseguiu chegar em casa para enviar o que o pai do menino tinha

pedido, nem para saber se as crianças gostariam de melão ou como seria, agora,

a vida dos filhos sem a mãe, linchada com o corpo dilacerado, pisoteado,

odiado.

A valorização da identidade afro-brasileira e a preservação da memória

como resistência integrou o assunto discutido entre Conceição Evaristo e o

coletivo Papo Negro, no Kizomba. Os alunos reúnem-se para pensar em como

resistir aos discursos de ódio, ao preconceito e à realidade violenta da qual têm

que enfrentar todos os dias para continuarem sendo a esperança de um futuro

diferente, como todos os netos e filhos germinados na escrita e escuta de

Conceição Evaristo. Alunos que estão afinando a escuta para a Literatura e aos

ecos da história, e o principal: recolhendo em si todas essas vozes e libertando a

própria, nesta fusão e con(fusão). Este trabalho, repito, surge da escuta aos

alunos do colégio Pedro II de Realengo, por onde este trabalho surgiu pela

vivência e escuta, resultando na segunda-narração do dia seis de setembro. Por

fim, chegando ao terceiro impasse: sair, durante o evento, no meio da fala de

Conceição Evaristo porque as apresentações dos alunos ocorreram em peso,

A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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atrasando os horários de programação. No entanto, o convite para aquele dia

tinha, em todas as falas, o que aprendemos, sentimos e nos vemos, na

Literatura-palavra de Conceição Evaristo - e é a partir disso que intitulo meu

trabalho como A escuta de Conceição Evaristo, a recolher neles, e nela, todas

estas vozes em Kizomba.

Na minha bibliografia, afinando minha escuta à Literatura, agradeço o

convite de Lizandra Barboza, que permitiu que fosse possível a escuta do

evento Kizomba; a apresentação emocionante da Patricia Rogeria na JIC; a aula

do professor Paulo Tonani no curso de autoficção quando líamos Carolina

Maria de Jesus e se discutiu Literatura Marginal, ressaltando Conceição

Evaristo - nome que anotei no meio do caderno; e a Luana Marques, quem leu

para mim, no clube de mulheres da livraria Travessa, os primeiros trechos da

autora e me levou a Flupp, onde, depois de ler o livro, ouvi Conceição Evaristo

pela segunda vez.

Referências

AGUSTONI DE ALMEIDA, Prisca. Vozes além da África

ASSIS DUARTE, Eduardo. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade

BEATRIZ GONÇALVES, Ana. Processos de (re)definição na poesia de

Conceição Evaristo

EVARISTO, Conceição. Becos da memória

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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O corpo, abaixo do equador, no

carnaval do Paraíso:

A relação do Carnaval, a Arte e a corrente

conservadora catequizadora.

Artur Vinicius Amaro ou Vanubia Close

Graduando em Letras: Português - Licenciatura, atualmente participa do

Laboratório de Experimentação de Design da Escola de Belas Artes, tem sua

escrita atravessada pelo alter ego, sua Drag Queen Vanubia Close, quase uma

antropofagia de duas escritas, duas vivências entre a academia e as ruas, entre o

samba e os livros, entre os bailes e teorias. Essa escrita contempla ritmos e

culturas do povo, abarca o samba, o funk, das ruas e das favelas e tenta mostrar

o Brasil como ele é, um Brasil Canibal, capaz de conquistar o mundo com tudo

que ele tem.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.

(ANDRADE, Oswald. 1928)

Agradecimento especial ao Carnavalesco da

G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, Jack Vasconcelos, pelas

grandes contribuições a este ensaio. Também

agradeço ao Prof. Dr. Milton Cunha, pela ajuda no

pensamento que guiou e atou várias pontas para que

esse texto tivesse fim. Ao Prof. Dr. Samuel Abrantes

por duvidar acreditando de minhas loucuras... E por

fim ao mais especial deles, Marlon A. Barbosa, por

sempre embarcar na Nau das minhas loucuras

acadêmicas.

Oswald de Andrade, em 1928 - ano de fundação da primeira Escola de

Samba, inicialmente como bloco, a "Deixa Falar" -, escreve o manifesto

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Antropófago e faz inúmeras menções às diversas obras e autores da literatura.

Dentre eles, Machado de Assis - e seu “To Be or Not To Be” que dá origem a

expressão “Tupi or Not Tupi”, presente no manifesto - até José de Alencar -

com suas obras que falam de índios, mesmo que idealizados, como Iracema, que

curiosamente foi o enredo da G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis em 2017:

“Iracema A Virgem dos Lábios de Mel”. Oswald, então, instaura

inúmeras questões que perdurarão ainda por gerações, que tiverem a

sensibilidade de olhar sua obra, e a primeira e talvez maior delas seja:

“Nunca fomos catequizados?”.

O Corpo no Carnaval

Imensas vezes provamos, dia após dia, que fomos mais que colonizados:

fomos catequizados, ou talvez uma grande parcela de nós esteja se

encaminhando a tal. Das inquietações que o Manifesto Antropofágico causa,

talvez essa seja a questão mais complexa de se responder: “Nunca Fomos

Catequizados. Fizemos Foi Carnaval.”. De fato, fizemos carnaval: aprendemos

no carnaval a viver com as dificuldades e a sermos felizes por quatro dias. Mas

aqui precisaríamos pensar que, mesmo com o sentimento de liberdade que o

carnaval nos traz, com esse sentimento de permissão, ele ainda é pensado

através de uma formação cristã: a ideia da festa da carne, da festa profana. A

nossa maneira de fazer carnaval é diferente, é única, já que aqui, no Brasil, a

terra tropical, talvez o pudor não existisse antes do colonizador Europeu, este

que a idealizava como a terra que não existe pecado, onde ele viu o índio

despido e que muitas vezes se reafirmou ser a terra abaixo do equador que não

existe pecado.

Vestir o corpo do componente da escola de samba é mostrar que há tempos

existe uma censura à arte, que tem se fortalecido nos últimos anos. O carnaval

tem vestido muito mais o folião. Desde 1989, o próprio regulamento dos

desfiles, organizados pela LIESA, proíbe a exposição de genitália - graças ao

caso mais comentado da musa da União da Ilha do Governador, Enoli Lara, que,

no ano de 1988, no enredo festa profana, exibiu a genitália desnuda em um

carro alegórico, o que gerou uma questão moral, já que o júri não gostou e

causou grande polêmica nos dias subsequentes. Outros nomes, como Jorge

Lafond, na Beija-flor, em 1985, também já causaram polêmica ao desfilar

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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apenas com um tecido de paetês por cima da genitália, que muitas vezes ficava

exposta, na Marquês de Sapucaí.

Joãozinho Trinta mostrou, também em 1989, uma nova maneira de libertar

esse corpo, quando “Ratos e Urubus Larguem minha Fantasia” mostra que do

lixo vem o luxo, que o mendigo pode ser rei e a Sapucaí pode ser repleta de

bumbuns e peitos de fora – o próprio corpo ganha certa liberdade, mesmo com a

imposição do regulamento que proíbe. João mostra, mesmo com as críticas, um

“cristo coberto”. Outro fato é o pudor no brincante que tem receio de mostrar o

corpo, como, por exemplo, mulheres que tem pudor com os seios.

Carnavalescos, como Jack Vasconcelos da Paraíso do Tuiuti em 2017, apontam

que tem sido cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a minimamente

despir partes do corpo para compor o número de componentes em alegorias. Os

homens, que tem mais liberdade perante à sociedade, ponderam-se para expor

ou não seu corpo.

O Corpo e os espaços condenados: A censura à

Arte

Essa noção de catequização não vem apenas de um cristianismo trazido nas

caravelas, mas das ideias que nesse “Cristo” são apoiadas e criam diversos

desconfortos. Com o crescimento das mídias sociais e o avanço da internet,

parece que isso se enraíza com mais facilidade. A internet ajuda na ideia cristã

de “evangelizar”, a ponto de fechar o Queermuseu, exposição sobre diversidade

promovida pelo Santander Cultural, e criar pela primeira vez uma exposição

com classificação etária de dezoito anos - arte sendo censurada, arte sendo

julgada, arte sendo jogada. Em ambas manifestações artísticas - exposição e

carnaval - parece que há um pressuposto moralizante em relação aos corpos

expostos à nudez. Pressuposto moral que advém sobretudo de um caráter

religioso cristão, que também se conforma nas correntes neopentecostais. Para

quem pensa na contracorrente da catequização, ainda há mais absurdos: há mais

pessoas que querem nos vestir, como fizeram com os índios, do que quem se

manifeste contra (mudança na ordem). Por mais que seja um desejo, há um

pudor tão entranhado entre nós que os atos sexuais são inibidos, de modo que as

pessoas se escondem em banheiros para fazer tais coisas. Um corpo que

moraliza do lado de fora, espera achar uma porta onde o prazer possa romper o

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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limite do pensamento, possa ser curtido sem pudor e que lá fique, sem parecer

um fantasma que persegue. Romper essa barreira da liberdade do corpo é difícil.

É ruim o caminho dos que querem ser. O corpo na nossa sociedade parece um

objeto; sociedade essa que se diz tão decente, conservadora da “Moral e Bons

Costumes” e decide quais dos corpos importam.

Pensando no Queermuseu, que foi fechado por uma ideia moralista cheia de

palavras de “fé e moral”, como aconteceu com os colonizadores nas caravelas, é

possível notar uma força ditadora que impõe um corpo mais importante, , qual

integridade corporal deva ser mantida. De um lado, uma menina branca de

classe média-alta exposta a um homem nu; de outro, crianças negras, pobres,

moradoras de uma comunidade do Rio de Janeiro expostas a corpos (mortos)

nus, dilacerados por tiros, crianças dia após dia perdem conhecidos e entes

queridos . A menina envolta da polêmica do Queermuseu é a escolhida para

manter a inocência. Afinal, por causa disso, a exposição foi fechada e

bombardeada por críticas fundamentadas em “Deus, Família e Moral”. A arte

passa por tempos difíceis. O mundo passa por tempos difíceis.

Parece que mesmo depois de quase 90 anos do manifesto, nada mudou. As

ditas “minorias” podem ter saído dos seus respectivos armários, caixas e prisões

para gritar seus desejos, seus direitos, As mulheres querem o domínio do

próprio corpo, sem ter que pensar nas normas da sociedade machista e

patriarcal; , a população LGBTTQIA+ cada dia descobre uma nova categoria, e

muitas vezes evita categorização, , mas se torna de extrema importância no

processo de liberdade do corpo e de autoconhecimento do seu próprio “Eu”.

Mesmo com a liberdade desses grupos minoritários e liberdades de pensamento

individual, ainda existe um poder proferido pela religião cristã.

Tanto não evoluímos que chegamos ao ponto de ter um prefeito bispo de

uma igreja evangélica. Seria esse o primeiro ou mais um dos indícios de que,

sim, fomos catequizados? No primeiro dos quatro anos do Prefeito-Bispo a

GRES Paraíso do Tuiuti traz em seu samba os versos: “No Pindorama todo dia

é carnaval,/ Brasil, riqueza da mãe Natureza,/ Meu chão, morada da felicidade”.

A escolha parece que foi feita intuitivamente, já que o enredo e o samba foram

escolhidos em 2016, antes das eleições terem acontecido e o prefeito ser eleito.

O samba enredo em questão parece uma espécie de manifesto de

exaltação ao próprio Brasil, mas com o mesmo sentido do manifesto

antropofágico de Oswald de Andrade em que a palavra “pindorama”, do tupi-

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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guarani “Terra das Palmeiras”, é o próprio Brasil. O samba parece se apropriar

desse conceito e o ressignifica como um lugar mágico do sonho e da falta de

vergonha, onde não há pecados. Por um lado, em 1928, o manifesto traz várias

questões sociais do Brasil pertinentes à época , falando de uma nacionalidade e

definindo o Brasil como país da Antropofagia, Hoje,entretanto, depois de quase

90 anos, encontramos um novo manifesto por meio do carnaval da Paraíso do

Tuiuti, assinado por Jack Vasconcelos, . No que diz respeito ao formato e ao

conceito do enredo, a história da tropicália é contada e recontada, bebendo das

fontes do modernismo para fazer duras e veladas críticas à ditadura. Talvez essa

escolha não tenha sido arbitrária, vivemos tempos minimamente estranhos.

Talvez, em 2016, antes do Prefeito Bispo, tais críticas se direcionassem

diretamente ao presidente “Vampirão”, mas elas caem quase como uma luva, ou

cairão ainda mais ano após ano do bispo prefeito sobre a Cidade Maravilhosa do

Pindorama.

Há de se pensar que tentaram catequizar o Carnaval e que, de certa forma, já

o fazem desde 1989, quando as genitálias desnudas foram impedidas, da mesma

forma que houveram pedidos para impedir os mamilos femininos . E que tal

pensar em uma pregação antes da final de um samba enredo? Isso deve ser

levado em conta, tentam se infiltrar de maneira amistosa, porém perigosa.

Devemos sempre nos lembrarmos que a escola de samba nasce dentro de

terreiros de cultos aos orixás africanos e caminha lado a lado com eles. Talvez

possamos dizer que a maior parte das escolas de samba (e para afirmar isso com

maior certeza exigiria uma pesquisa histórica profunda) já cantou algum Orixá,

já trouxe alguma figura de cultos africanos e sua influência no Brasil. Isso é

antropofagismo. Nos dá medo pensar em um enredo chamado “Deus é Fiel”,

com algum cantor gospel como “puxador”.

O Paraíso e o Brasil do Neoantropofagismo: A

favela

Pensando novamente no desfile de 2017 da Paraíso do Tuiuti,nas as várias

fantasias e as suas seis alegorias, pode-se lançar um olhar mais detalhado sobre

a segunda, que encerra o setor “Antropofagia: A Revolução Anticolonialista”,

intitulado “Brasil Canibal: Neoantropofagismo”. Fazendo uma breve descrição

desses setor, nota-se uma primeira referência ao morro da Mangueira graças aos

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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tons de verde e rosa, uma planta Carnívora que deglute um “Abaporu”, um

brincante que simboliza “Macunaíma devorando a Arte”, fazendo referência ao

que o samba diz da obra de Oswald , e todo o setor de referências à sua frente

para formar o resto da escola que vem atrás. “Macunaíma”, o nosso anti herói, o

típico brasileiro e Tarsila e seu abaporu , “O Rei da Vela”, “Terra em Transe

serão deglutidos , sinais da nossa antropofagia cultural que se confirmam na

favela. Assim, vemos uma explosão de cores, de referências e de um

movimento que só confirma o quão antropófagos nós somos.

Vemos ali - nos vemos ali - o real retrato do que é o Brasil e do que é o

brasileiro, e percebemos que somos tupiniquins. Somos antropofágicos - isso é

inegável - conseguimos transformar em nosso tudo aquilo que nos é dado, e

fazemos isso com excelência Mas parece que nas comunidades, nas favelas,

“nos becos e vielas” isso ganha um novo sentido, uma nova maneira de se fazer.

“A favela é o maior antropofágico do Brasil”. Essa afirmação soa muito

pertinente se pensarmos que muito que sai dela vai para o mundo. Seja o samba,

que hoje é patrimônio cultural, produto de exportação, seja o funk, que vem

atraindo olhares, se tornando um molde para se expor pelo mundo (assim como

o samba) e ganhando novos espaços. Contudo o funk ainda tramita entre o céu

de ser amado por uns e o inferno de outros pensarem em instâncias legais à sua

proibição. O gênero arrasta multidões em bailes, faz grandes revoluções, se

populariza através da mídia, faz a “Malandra” dançar e cantar com um norte-

americano,torna o “Bum Bum Tam Tam” uma parceria em 3 idiomas. O funk

está presente e surgiu pela mixagem de vários ritmos por DJ’s que convidavam

Mc’s para cantar versos simples e que hoje gera grandes discussões dentro do

próprio movimento sobre a forma de se produzir e reproduzir o ritmo, sai das

favelas e morros do Rio de Janeiro e ganha as periferias de São Paulo, Minas

Gerais e outros estados do Brasil.

Há também uma exaltação ao poder paralelo das comunidades,

determinadas rotinas e uma autodescrição de atos sexuais, de liberdade do corpo

e despudor quanto à conveniência social do sexo. Se a sociedade prega o corpo

com pudor, o sexo em locais velados, o funk canta, dentre outros contextos,

uma realidade direta do sexo que acontece de forma explícita em ruas, becos, ao

simples desejo do corpo de uma transa. Um gozo e dois olhares que se

desencontram no som alto, em copos de bebida alcoólica ou envolvidos pela

“onda” de alguma outra droga. Sexo por sexo. Apenas por prazer . É na favela

que o antropofagismo ganha um significado cultural imenso e talvez seja a

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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favela, assim como a do desfile do Tuiuti, este “Pacman” antropofágico que se

constrói através daquilo que ingere do que vê pela frente.

Há, também, dentro da favela, um embate muito grande entre a falta de

pudor das noites de baile funk e o desejo pela pureza, pregada pelas igrejas que

fazem seus cultos pela manhã, ou passam as madrugadas nos bailes tentando

“evangelizar” os que frequentam. A promiscuidade, dita pelos moralistas,

defensores da família tradicional e dos bons costumes, dos funks reflete a

liberdade sexual que tanto é condenada e a pudicícia das orações de joelhos nas

igrejas. Tanto o funk quanto os cultos trazem elementos externos; o primeiro

usa a batida de música norte americana e nasce da mixagem de LP’s de outras

músicas, se reinventa seguindo a linha das tendências na música eletrônica

criando a moda dos “150 BPM’s”, enquanto o segundo prega a castidade, que

não pertence a essa terra, ou seja, que não estava aqui com o habitante original

dela, uma vez que o colonizador propagou pela Europa a frase “Não existe

pecado abaixo da linha do Equador”. Parece que há um Deus perverso que não

quer a liberdade. Por mais que exista o tal “livre-arbítrio” eles insistem em

enfiar-nos goela abaixo suas crenças e maneiras de ver a vida sem que peçamos.

Se a antropofagia nos une, o tal “erro de português” nos separa, nos faz criar

discursos de ódio, traz até apedrejamento, ou naturalização da morte em alguns

casos. A colonização, as ideias conservadoras, o pecado imposto a nós , o véu

do medo que vestimos nos torna incapazes de aceitarmos as diferenças: raça,

cor, etnia, opção sexual. "Ser” é pecado, o travestido é condenado, a travesti

leva pedra de dia, mas a noite o corpo travestido é um objeto de desejo

sublimado, que se localiza à margem; a liberdade é a paixão que move a vida,

todos queremos ser livres de tudo, queremos ter nosso corpo, ser nosso, ter

pertencimento próprio, engrenar a liberdade do corpo, dar voz.

Somos consumidos, assimilados, padronizados, entramos em uma regra.

Querem nos colonizar novamente. Somos as flores em um jardim onde a

opressão nos pisa, expurga, nos demoniza, chama de doentes, expulsa com

chutes e pedras desse pindorama. Deixa de ser pindorama. Somos os não-

catequizados, fizemos foi carnaval, O CARNAVAL, carnaval diferente, o

carnaval livre, o carnaval que não tem o pudor do corpo, o que não aceita as

imposições do bispo. Brincamos o carnaval, somos o carnaval.

Vamos para o samba?

Alô povo brasileiro... Aquele abraço

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Caminhando deixo o sonho me levar...

Ecoamos os gritos de liberdade, propomos o fim do pecado, no sentido de

um começo de pensamento no qual a liberdade do outro não interfira na minha

vivência . A liberdade precisa existir, entretanto, a catequização apresenta o

“livre-arbítrio” que nunca existiu de fato. Os versos do refrão, no fim ou no

início, são uma mensagem, quase como um manifesto, o manifesto

Antropófago, uma leitura sobre leitura, assim como na tropicália, que o povo

sonhe com o pindorama, mas não só que sonhe, que tente mudar, que ajude a

levar ao povo a liberdade, que ressignifique o “erro de português”. Se o

português vestiu o índio, necessitamos despi-lo, e ter carnaval todo dia, “não

esperar para ser vadia”, como afirmar o hit do carnaval de 2017, cantado pela

drag queen Pabllo Vittar Há, porém, quem realmente seja todo dia, encurralado

em banheiros sórdidos dos mais inusitados lugares. Esse corpo não pode ser um

corpo livre apenas nesses quatro dias, os gritos de liberdade e igualdade

precisam ecoar pelo longo do ano com essa mesma alegria e felicidade que

vivemos enquanto o “rei momo” nos governa.

Necessitamos sonhar, nos carnavalizar dia após dia e ver o quanto somos

capazes de delirar enquanto não-catequizados. O que perdemos jamais teremos

novamente, mas o novo, que, como antropofágicos, conseguimos construir deve

ser a engrenagem que vai nos mover para utopicamente pensar, delirar e

antropófagos ser.

Artur Vinicius Amaro

Ou

Vanubia Close, o Travesti

Em 2017

O ano da tal Crise, Do Prefeito Bispo,

Dos Cortes e do Quase, se não o próprio, “Retorno da Escravidão”

Resistido e “Com Dinheiro ou sem dinheiro, eu Brinco”.

E 2018 promete muito... Conta-se os dias para o carnaval!

O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Referências

Livro Abre-Alas LIESA 2017 – Domingo 26/02/2017; Pág 03-

54.

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica I Oswald de

Andrade. São Paulo: Globo: Secretaria de Estado da Cultura,

1990. - (Obras completas de Oswald de Andrade)

SILVA, Beatriz Coelho. Negros e Judeus na Praça Onze – A

história que não ficou na memória. Rio de Janeiro: Bookstar,

2015.

Links Consultados:

https://oglobo.globo.com/rio/crivella-diz-que-corte-de-subvencao-para-

carnaval-decisao-complicada-mas-necessaria-21511122 - Noticia do Corte de

Verba da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

https://www.youtube.com/watch?v=JcD9xakS3Bo – Entrevista em que Leandro

Vieria, Carnavalesco da GRESEP Mangueira, comenta sobre o enredo para o

carnaval de 2018

https://www.youtube.com/watch?v=FF41_PGsZCw – Desfile de GRES Beija-

Flor de Nilópolis do ano de 1989

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Horacio Quiroga e a experiência dos

textos no espaço do entre-lugar

Brena de Azevedo da Silva Santos

Formada em Letras - Português/Literaturas pela UFRJ. Atualmente trabalha

com ensino fundamental e acredita fielmente que a educação é a única maneira

de mudar o país. Encontrou no texto A Metamorfose, de Kafka, uma sensação

de desconforto na medida em que, a cada página, a escritura a perturbava a

ponto de querer aprofundar ainda mais as obras do escritor. Viu em seus textos

um abrigo e desabrigo que foram fundamentais durante a sua graduação.

Não se conhece criador algum de contos campesinos,

mineiros, navegantes, vagabundos, que antes não

tenham sido, com maior ou menor eficácia,

campesinos, mineiros, navegantes e vagabundos

profissionais.

Horacio Quiroga

A questão que percorre este trabalho é pensar como acontece a relação do

autor com a sua obra, interrogando onde ele está – se está - quando lemos um

texto. O interesse por este assunto foi acordado no segundo semestre de 2015,

em um curso de extensão intitulado A teoria da literatura em seus textos

fundamentais: apoio à formação de docentes da teoria literária organizado pelo

departamento de Ciência da Literatura. Ali, tive a oportunidade de refletir a

respeito de um texto de Franz Kafka, "A Metamorfose", onde o primeiro

contato com o texto foi desconfortável na medida em que, a cada página, a

escrita perturbava-me a ponto de querer aprofundar ainda mais nas obras do

escritor. A busca por uma particularidade na escrita de Kafka se seguiu com o

conto “Um artista da fome” e com o desejo de apresentar o limite "indecidível"

entre o literário e a biografia, além da tensa relação entre o autor e a sua obra,

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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cuja inquietude e a dificuldade de pertencimento de Kafka se transbordam para

a sua escrita.

Retomando a questão central deste trabalho, que é pensar como acontece a

relação do autor com a sua obra, foi possível observar que esta mesma questão

que aparece a partir dos textos de Kafka, aparece também a partir de outros

autores, entre eles, o uruguaio Horacio Quiroga, cuja vida foi marcada por

muitas tragédias, o que não escapa em seus contos, textos que em sua maioria

vão concluir também em cenas trágicas.

Assim, o trabalho será constituído em apresentar as discussões sobre o

autor, principalmente ao longo do século XX, mostrar como a crítica do

uruguaio lê a sua literatura e apresentar o conto "A galinha degolada" e como

essa relação com o autor pode aparecer.

Em seu texto "O que é o autor" de 1969, Foucault procura analisar a relação

do texto com o sujeito que escreve, mostrando como o texto vai apontar para

essa figura que aparentemente é exterior e anterior a ele e inicia o ensaio com a

frase emprestada de Beckett: "Que importa quem fala, alguém disse que importa

quem fala" e continua mostrando que a ideia de apagamento do autor é para a

crítica um tema recorrente como já foi mencionado. E diz ainda que o essencial

não é mostrar mais uma vez esse apagamento do autor, mas sim descobrir como

lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório – os locais onde sua

função é exercida.

Com o fragmento que foi retirado de Beckett, Foucault mostrará que a

indiferença dessa fala faz parte do princípio ético fundamental da escrita

contemporânea, essa indiferença não é o traço que vai caracterizar a maneira ou

a forma como se escreve, ela é "um princípio que não marca a escrita como

resultado, mas a domina como prática." (s.f.). A escrita passa a se desenrolar em

um jogo que vai para fora, não tem uma regularidade, ela é experimentada. Na

escrita, não é a exaltação do gesto de escrever ou da manifestação que

prevalece, mas sim da abertura de um espaço, onde o sujeito não para de

desaparecer.

Foucault, ao longo do seu texto, vai comentar sobre a relação de parentesco

da escrita com a morte, e critica a constatação da morte do autor na medida em

que apresenta duas noções que para ele são singularmente importantes: a noção

de obra e a noção de escrita, que afastariam o foco do autor, mas na verdade

acabam "bloqueando, escamoteando, o que realmente deveria ser destacado."

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(s.f.). As noções de obra e escrita fazem parte, para Foucault, de um processo

falho para constatar a desaparição do autor: "É preciso localizar o espaço vago

deixado pela desaparição do autor, seguir atentamente a repetição das lacunas e

das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz

aparecer." (s.f.).

Para Foucault, o autor vai existir como “função autor”: um nome do autor

não é simplesmente um elemento no discurso, ele vai exercer certo papel em

relação ao discurso. E afirma que "os textos sempre contêm em si mesmos um

certo número de signos que remetem ao autor." (s.f.). Esse vazio deixado pela

"morte do autor" vai ser preenchido pela categoria "função autor" que se

construirá em diálogo com a obra.

Contemporâneo de Foucault, Barthes em seu texto "A morte do autor" vai

usar um fragmento retirado da novela de Balzac, Sarrazine, sobre um castrado

disfarçado de mulher: "Era a mulher, com seus medos repentinos, seus

caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias e sua deliciosa

finura de sentimentos." (BARTHES, 1988, p.57). Para depois lançar a pergunta

sobre quem seria a voz do texto 'Quem é que fala?' 'É o herói da novela?' 'É o

indivíduo Balzac dotado de sua experiência pessoal, de uma filosofia de

mulher?' 'É o autor Balzac, profanando ideias literárias sobre a feminilidade?'

(BARTHES, 1988, p.57). Em seguida, Barthes afirma que a escritura vem a ser

a destruição de toda a voz no texto, isto é, o afastamento do texto de uma voz

que estaria atrelada ao seu autor, que o tornaria presente.

Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a

destruição de toda a voz, de toda a origem. A escritura é esse neutro,

esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco – e

– preto em que vem se perder toda a identidade, a começar pelo corpo

que escreve. (BARTHES, 1988, p.57)

Para Barthes, a escritura começa quando ela não tem o objetivo de atingir

diretamente o real, e continua dizendo que "fora de qualquer função que não

seja o exercício do símbolo" (BARTHES, 1988, p. 58) o autor morre. A

escritura passa a gerir o papel performático e não o da genialidade.

A crítica e a teoria contemporânea passaram a ter como questão central a

presença-ausência do autor no seu texto, ambas desconfiam de abordagens

unicamente textualistas, mas que também não pretendem retornar a uma

concepção tradicional intencionalista ou biográfica. Exemplo disto é o estudo de

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Diana Klinger, Escritas de si, escritas do outro. No primeiro capítulo do livro a

autora constata a necessidade de repensar a figura do autor na crítica e na teoria

contemporânea, já que se identificaria uma insistência forte de certos textos em

estabelecer um jogo entre a figura biográfica do autor e a voz que fala nos

textos. Klinger vai mostrar que uma primeira aproximação às escritas de si na

ficção contemporânea deveria ser inscrita no espaço interdiscursivo de textos

não literários, visto que o avanço da cultura midiática oferece um cenário que

vai privilegiar o sujeito, sua experiência e a vontade de falar de si. Para isso,

mostra que a escrita de si vem desde o final do século e acrescenta ainda que se

olharmos retrospectivamente ela tem uma presença forte na história latino-

americana, pontuando dois momentos importantes na história.

Refletir em torno do que se mostra como o retorno da problemática do autor

implicará justamente no debate sobre a produção da subjetividade em relação à

escrita. "A escrita performa a noção de sujeito." (KLINGER, 2007, p.27).

Klinger continua mostrando que, desde os anos 70, não encerram as perguntas

pelo lugar da fala e abre espaço para a citação de Beatriz Sarlo para evidenciar

tal fato: "Nós leitores ainda nos interessamos pelos escritores porque não fomos

convencidos, nem pela teoria, nem na nossa experiência, de que a ficção seja,

sempre e no primeiro lugar, um apagamento completo de vida." (SARLO, 1999,

p.11).

Neste sentido, o problema do autor ou o autor como problema, é observável

em outros textos ficcionais, por exemplo não é possível pensar no conto "Um

artista da fome", de Kafka, sem pensar no próprio Kafka também adoentado e

faminto. Muitos outros textos, a princípio ficcionais, nos colocam esse

problema.

O exemplo que tomarei neste trabalho é do escritor Horacio Quiroga, em

cujos textos é possível observar a forte presença de personagens que beiram a

loucura, muitas vezes produtos de doenças ou justificadas pela relação com um

meio selvagem e hostil, assim como o fato de que todos os contos concluem em

cenas trágicas. Paralelo a isso, é conhecida a dramática vida do autor, marcada

pela loucura, mortes acidentais, suicídios e doenças, e com uma produção que

traz uma temática profunda, cujos textos na maioria das vezes dialogam com a

morte, como comenta Abelardo Castillo:

"No hay casi cuento de Quiroga donde el protagonista no sea la muerte.

Otro es el miedo. Otro es la muerte. Otro es la voluntad. El drama entre

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la transitoriedad del hombre y su búsqueda de algún absoluto – el amor,

un lugar en el mundo -, la fascinación y el horror de la muerte, son

grandes temas de Quiroga." (CASTILLO, 1996, p.25)

As críticas relacionadas ao escritor acendem um debate limitando a sua obra

por uma perspectiva biográfica/geográfica, já que Quiroga passou grande parte

de sua vida na selva misioneira argentina, onde teve uma vida trágica. Sendo

assim, procuro pensar em estabelecer uma relação entre o autor e sua obra, não

como (auto)biográfico, mas como essa relação pode influenciar na leitura do

texto.

Abelardo Castillo na abertura do livro sobre Horacio Quiroga começa

dizendo que "Seguramente no hay em la vida de un escritor un solo

acontecimiento, por opaco o circunstancial que sea, que no sirva para explicar

algún aspecto de su obra." (CASTILLO, 1996, p.21). Esta frase não pode passar

despercebida, e ainda é continuada em uma classificação: "Quiroga es el

suicidio de su padastro, la selva misioneira, la muerte de su mejor amigo, su

fascinación por las mujeres más o menos infantiles y su propio suicidio."

(CASTILLO, 1996, pg.21)".

Castillo evidencia que Quiroga teve uma vida marcada pela morte e pela

tragédia, e data o ano de 1903 como um momento marcante para o escritor, ele

viajou com seu amigo Leopoldo Lugones às cataratas e decidiu abandonar seu

país e conhecer a "selva misioneira" argentina para encarar-se com sua obra e

seu destino. Quiroga revelou a nós, leitores, a selva não como paisagem, mas

como geografia espiritual.

O conto que será analisado adiante não tem como cenário a selva, mas

possui uma temática sombria, marcada pela loucura. O conto "A galinha

degolada" vai mostrar o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz. Jovens, com pouco

tempo de casados e aparentemente saudáveis decidem ter um filho para

concretizar o momento mais feliz de suas vidas. Porém, pouco tempo depois do

nascimento, o primeiro filho apresenta uma série de convulsões e acaba por

ficar, segundo o narrador, “idiota”. “Tinham a língua entre os lábios, os olhos

estúpidos, e voltavam a cabeça com a boca aberta”. (QUIROGA, 2014, pg.61).

Após o nascimento do primogênito, o casal não perdia a esperança em dar a luz

às crianças mentalmente saudáveis, mas passados dezoitos meses, a história se

repetia. Após o nascimento do segundo filho, o médico que examinou o bebê

vai acender a discussão de que Mazzini ou Berta carregam um problema

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genético que poderia ser então a razão dos filhos apresentarem problemas

mentais, o que ao longo da narrativa será o motivo das brigas. "Depois do seu

sangue, seu amor estava maldito! Seu amor sobretudo! Vinte e oito ele, vinte e

dois ela, e toda sua apaixonada ternura não era capaz de criar um átomo de vida

normal. Já não pediam mais beleza ou inteligência como no primogênito; mas

um filho como todos!". (QUIROGA, 2014, pg.63).

Passado o nascimento do segundo bebê e o anseio de terem uma criança

saudável, vieram os gêmeos, e novamente, aos dezoitos meses, repetiu-se a

doença dos mais velhos. "Não sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo

sentar-se. Aprenderam, por fim, a caminhar, mas se chocavam contra tudo, por

não se darem conta dos obstáculos. (...). Tinham por outro lado, certa faculdade

imitativa, mas não se pode obter nada mais." (QUIROGA, 2014, pg.63).

Por fim, depois de outra tentativa, o casal deu a luz a uma menina que

passou sadiamente pelos dezoitos meses de vida. Os pais depositavam nela toda

complacência, negligenciando totalmente a atenção para os outros filhos. O

texto nos permite dizer que desde o nascimento do segundo filho já se notava a

falta de um cuidado materno e paterno, não havia qualquer relação de afeto com

os quatro meninos. E diante dessa distância afetiva relacionada aos filhos e as

recorrentes brigas do casal, o conto deixa entredito que essa ausência de afeto

também pode ter desencadeado as atitudes dos quatro irmãos, deixando para o

leitor esse possível questionamento.

Um dia, Berta ordenou que a empregada degolasse uma galinha.

Enquanto a empregada realizava tal ato o dia radiante tinha arrancado os

idiotas de seu banco. De maneira que enquanto a empregada degolava o

animal (...), achou que sentiu algo como uma respiração atrás dela.

Virou-se, e viu os quatro idiotas, com os ombros colados um ao outro,

olhando estupefatos a operação. Vermelho...Vermelho! (QUIROGA

2014, pg.66)

Mais tarde, depois do passeio, Bertita consegue fugir da atenção dos pais e

vai direto para o quintal, onde os seus irmãos estavam imóveis observando

fixamente os tijolos, mas de repente algo tinha chamado a atenção dos meninos,

Bertita estava tentando subir no muro. "Mas o olhar dos idiotas tinha se

animado, uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. Não tiravam os

olhos de sua irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia mudando

cada linha de seus rostos." (QUIROGA, 2014, pg.67). A menina havia

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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conseguido apoiar o pé, porém sentiu ser agarrada pela outra perna. "Embaixo

dela, os oito olhos fincados nos seus lhe deram medo." (QUIROGA, 2014,

pg.67). Enquanto Bertita ainda tinha voz, gritava chamando pelos pais, mas foi

em vão, logo foi agarrada e caiu, não conseguindo chamar mais ninguém "um

deles lhe apertou o pescoço, apartando-lhe os cachos como se fossem plumas, e

outros a arrastaram por uma das pernas até a cozinha, onde naquela manhã a

galinha havia sido dessangrada, bem segura, arrancando-lhe a vida segundo por

segundo." (QUIROGA, 2014, pg.67).

Especificamente em A galinha degolada, a loucura vai aparecer como uma

herança genética, um mal do homem que o frustra e o destrói. Qual a causa de

as crianças terem ficado assim? "O médico o examinou com essa atenção

profissional de quem está visivelmente procurando a causa do mal nas doenças

dos pais." (QUIROGA, 2014, pg.62).

"A loucura aparece como algo súbito, a conversão do ser humano em

irracional e a alienação mental, são para o autor, uma transformação

instantânea, sem processos intermediários e que pode acontecer a

qualquer um, em qualquer momento." (QUIROGA, 2014, pg.21).

No início da narrativa, o texto dá indício de que a doença dos meninos possa

ser algo genético, o médico diz "Quanto à herança paterna, já lhe disse o que

acho quando vi seu filho, com respeito a mãe, há ali um pulmão que não sobra

bem." (QUIROGA,2014, pg.62), mais adiante no texto, o narrador vai mostrar

que o pequeno primogênito pagava pelos excessos do avô, durante uma briga do

casal e com a necessidade de culpar o outro, o leitor descobre que o pai de

Mazzini morreu de delírio, fazendo com que Berta culpasse Mazzini pela

doença mental dos quatros meninos. Com as constantes brigas do casal e o

desejo de terem filhos saudáveis, Mazzini e Berta afastam qualquer afetividade

em relação aos meninos: a total falta de controle do casal acaba condicionando

para o trágico fim de Bertita.

Aristóteles, em A poética, diz que mimetizar é natural ao homem desde a

infância "e nisso se difere dos outros animais, porque é o mais propenso à

mimese, e os primeiros ensinamentos são feitos por meio da mímese, e todos se

comprazem com as mímeses realizadas." (2006, pg.40). O processo da mímesis

seria um processo de conhecimento, além de prazer:

A maneira como Bertita é brutalmente morta, assim como o degolamento da

galinha, abre espaço para outras observações. Poderíamos dizer que o tema

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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central do conto seja o da “imitação”, e as tensões entre uma imitação que

produz conhecimento e outra que não. Haveria uma imitação da genética doente

do pai para Mazzini, e dele para os quatros meninos; haveria uma imitação dos

dezoitos meses, todos os quatros meninos sofreram com as convulsões nos

meses de vida, todos os filhos como mostra o narrador são idiotas, suas

descrições são as mesmas e a morte que aparece no texto é consequência de

uma imitação, no caso, o degolamento da galinha e Bertita.

A questão que percorre todo esse trabalho é: onde está o autor quando lemos

um texto? Com o auxílio dos estudos críticos do autor foi evidenciado que

Quiroga é a selva, é o suicídio daqueles que estiveram com ele e é também seu

próprio suicídio. Seus textos apontam para essa direção, deixando aberto

espaços que possibilitam seu entre lugar. Horacio Quiroga apresenta em seus

contos acontecimentos que são ele. E neste conto, a loucura vai ser narrada por

meio das ações dos personagens, dialogando com o questionamento do porquê a

loucura acontecer de forma tão rápida sem avisar. Os contos reforçam o

fatalismo do autor. E Castillo comenta que os textos do uruguaio "Son

ejemplares singulares de um género autonomo que acata suas proprias leyes

estructurales y que se basta a si mismo." (CASTILLO, 1996, pg.24).

Considerado um conto de horror, "A galinha degolada" é um dos contos

mais cruéis e desconcertantes na medida em que a loucura é por um lado

explicada como um mal genético, passada de pai para filho, abrindo no conto o

questionamento a respeito do porquê da loucura acontecer de forma tão rápida e

sem avisar, mas também como uma questão de imitação. Os filhos não são as

cópias esperadas pelos pais: os quatro idiotas agem fora do seu controle mas,

paradoxalmente, imitando eles e sua linhagem, e imitando também a

empregada. Há semelhança em seus comportamentos, porém não há uma

imitação "tal pai, tal filho", problematizando ainda mais a lógica da imitação.

Os pais não controlam seus filhos, o narrador não pode controlar os personagens

e o autor que aparece como um gesto, segundo Agamben, não pode controlar

suas obras, mas não se pode se ausentar totalmente.

Diante de toda a discussão teórica que foi posta no início deste trabalho, é

possível caminhar para a afirmação de que o autor não morreu, mas que ainda

assim ocupa um lugar de morto. Não podemos dissociar o autor da sua obra e

nem limitar a obra pelo autor, mas é preciso perceber que há traços dentro do

texto, onde o autor desaparece, que fazem o autor (re)aparecer.

Horacio Quiroga Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Referências

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Leyla Perrone Moisés.

São Paulo/Campinas: Brasiliense/ Ed. Da Unicamp, 1988 [1984].

CASTILLO, Abelardo. Liminar: Horacio Quiroga. In: Horacio Quiroga: Todos

los cuentos. Ed. Napoléon Bacino Ponce de León y Jorge Lafforgue. Madrid:

ALLCA XX, 1996.

Essencial Franz Kafka/ seleção, introdução e tradução de Modesto Carone;

tradução. — São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Ditos e escritos III:

Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio

de Janeiro: Forense, 2011.

GAZONI, F. M. A poética de Aristóteles: tradução e comentários. 2006. 132 f.

Tese (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.

KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a

virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

QUIROGA, Horacio. Contos de amor de loucura e de morte. Tradução de

Renata Moreno. São Paulo: Martin Claret, 2014.

RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Genio y Figura de Horacio Quiroga. Buenos

Aires: EUDEBA, 1967.

_________________________ Las Raíces de Horacio Quiroga. Buenos Aires:

EUDEBA, 1961

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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As Margens de Guimarães em

Nelson Pereira dos Santos

Carmosita Senna

30 anos, graduanda em Francês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,

com iniciação científica em Cinema e Literatura, ênfase no autor brasileiro João

Guimarães Rosa. Trabalha de freelancer como roteirista e assistente de

produção executiva, em diversas produtoras brasileiras.

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa, iniciada em março 2017 e

dedicada às transposições de obras de João Guimarães Rosa para o meio

audiovisual. Pensamos a relação entre obra literária e sua transposição conforme

os termos de Ismail Xavier em O olhar e a cena: “estará aqui em foco a

passagem do teatro e da literatura ao cinema num sentido amplo que ultrapassa

o caso da ‘adaptação’” (XAVIER – 2003, p.7). O ponto de partida foram

leituras de Sagarana (1946), Grande Sertão: Veredas (1956), Corpo de Baile

(1956) e Primeiras Estórias (1964), obras mais aproveitadas tanto no cinema,

quanto na televisão brasileira – como é o caso de Grande Sertão: Veredas,

transformado em 1985 por Walter Avancini em minissérie que será reexibida

em breve no canal de TV por assinatura Viva. Após as leituras, o trabalho

voltou-se para as narrativas que foram transpostas, com a finalidade de entender

a estrutura do roteiro, construção dos personagens e significações que ganharam

nessa mudança de linguagem.

Segundo Doc Comparato, “o roteirista está mais perto do diretor, da

imagem, do que do escritor” (COMPARATO, 2009, p. 28). Essa é uma

premissa compartilhada também Jean-Claude Carrière, e que se procura

problematizar aqui. O roteirista/adaptador é um leitor preso à narrativa, criada

pelo escritor, onde personagens, ambientes e sentimentos já estão prontos.

Dessa base, o roteirista tem de conseguir conjugar a sua imaginação e a

imaginação dos leitores que se tornam, na mudança das linguagens,

espectadores. Linda Hutcheon assinala que “adaptação sempre envolve

(re)interpretação, (re)criação”; pode-se então descrevê-la como: “um ato

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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criativo e interpretativo de apropriação” (HUTCHEON – 2013 p.29, 30). O

leitor já tem em sua mente seu próprio cinema, um cinema-imaginação, essa

imaginação tem margens que são comuns aos demais leitores e as mesmas

atingem os roteiristas/adaptadores. É justamente a possibilidade criativa que um

simples leitor não possui que aproxima o roteirista a um autor literário. Aqueles

que escrevem filmes a partir de romances têm de decidir que ponto de vista

adotar para replicar o olhar do leitor; o roteirista tem o controle e a escolha do

narrador, e nesse trabalho de garimpar o livro, ele traça a perspectiva e induz o

espectador à sua escolha, o qual, sem perceber, vê a leitura feita pelo roteirista,

agora novo autor, como se este fosse o verdadeiro autor da história. E isso leva

ao julgamento que o professor Robert Stam refuta na seguinte passagem de seu

artigo “Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade”:

A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com

frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o

cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como

“infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”,

“vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada

palavra carregando sua carga específica de descrédito. “Infidelidade” carrega

insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca um desserviço ético;

“abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e

monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua

degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia.

Embora seja fácil imaginar um grande número de expressões positivas para as

adaptações, a retórica padrão comumente lança mão de um discurso elegíaco de

perda, lamentando o que foi “perdido” na transição do romance ao filme, ao

mesmo tempo em que ignora o que foi “ganho”. (STAM, Artigo, 2006)

É importante afirmar que adaptar é amar sendo infiel. Adaptação não é

fidelidade, é recriação, e desta surge um novo. Com isso, faz-se necessário

aproximar roteirista e autor para assim desvendar quais conexões eles

estabelecem nessa mudança de signos.

Das obras de Guimarães Rosa, focou-se, neste início de pesquisa, na

adaptação feita por Nelson Pereira dos Santos, o filme A terceira margem do

rio, de 1994, baseado no volume de contos Primeiras Estórias, de 1962. Alguns

motivos em comum entre o livro e o filme chamam a atenção de saída.

Primeiras Estórias é escrito em momento de esperança de renovação e

desenvolvimento do país, tanto que logo no primeiro conto tem-se a viagem de

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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avião em que uma criança vai com os tios para o lugar que viria a se tornar

Brasília, anunciada nos anos 1950 como cidade-ícone do progresso no país.

Parece que comparece aí, subliminarmente, o slogan de Juscelino Kubitschek

“50 anos em 5” – o que não se realizou. E essa não realização de modernidade

se encontra décadas depois no longa de Nelson Pereira, que chega com a

retomada do cinema no Brasil, após um período de grande retrocesso no país,

quando medidas do governo Collor levaram quase a uma extinção da

cinematografia brasileira. Além disso, os contos de Primeiras estórias

apresentam uma relativa redução da violência da figura do jagunço, muito mais

intensa nos livros anteriores (Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão:

veredas, 1956). Em Primeiras estórias, parece que a violência dos jagunços

perde espaço com o avanço da urbanização, a migração do sertanejo passa por

uma ilusão de civilidade. A violência permitida e em certa medida enaltecida

anteriormente já não é tão explícita, pois existem as leis, ainda que moldáveis e

adaptáveis. Esse tipo de situação é incorporado ao filme de Nelson Pereira dos

Santos.

A terceira margem do rio é um longa-metragem que costura 5 contos do

livro Primeiras Estórias, “A menina de lá”, “Os irmão Dagobé”, “Sequência”,

“Fatalidade” e o conto eixo do filme, “A terceira margem do rio”. Para que

essas histórias se unifiquem, Nelson toma cena de outros contos, como a cena

do avião que presente em “As margens da alegria” e em “Os cimos”; o clarão

no aparecimento do caixão de Nhinhinha, que lembra a forma de como o

personagem de “Um moço muito branco surge”; o singelo pedido de um

bombom a menina “milagreira” que um menino dá a outra, remetendo à paixão

infantil do conto a “Partida do audaz navegante”; a festa de casamento de

Liojorge, que esboça um pouco a festa no final de “Tarantão, meu patrão”; a

fusão de Damastor Dagobé com Herculiano, personagem que persegue um casal

em “Lua de mel”, por estar loucamente apaixonado pela noiva.

Algumas dessas passagens podem ser discretas e pouco perceptíveis, mas

elas são perceptíveis para o leitor atento. Ao focar-se no conto principal, que dá

título ao filme, nota-se, para usar os termos de Stam, “ganhos e perdas”. Um dos

ganhos do filme é a transposição de parte das sequências para a cidade de

Brasília nos anos 1990, mais exatamente para a periferia de Brasília. Se, na obra

de Rosa, pobreza e violência se situam no chão seco do sertão, agora

acompanham a migração dos sertanejos para as grandes cidades, carregando

com melancolia as transformações sofridas em ambos os locais e pessoas

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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(sertão versus cidade e sertanejo versus pessoas da cidade). O roteirista/diretor

mostra uma Brasília degradada. Se, na época da criação de Primeiras estórias,

aquela cidade significava um salto para a modernização do Brasil, é possível

notar que isso não se concretizou. Ir para cidade não altera a pobreza, nem a

violência e outros fatores, que permanecem fazendo sofrer o morador de

periferia, onde a exploração é evidente, embasada em leis cruéis. Ao nos trazer

essa Brasília fracassada, o longa dialoga muito bem com o volume de contos,

um diálogo marcado pelo contraste (projeto de modernização versus a

degradação da nova capital do país). Mas o filme perde o vigor do conto

principal, pois ele é diluído nas costuras entre as cenas extraídas das outras

histórias. Para tratar dessa questão, podemos tomar novamente considerações de

Robert Stam sobre a noção de “fidelidade”, em seu livro A literatura através do

cinema: realismo, magia e a arte da adaptação:

(a) algumas adaptações de fato não conseguem o que mais apreciamos

no romance; (b) algumas adaptações são realmente melhores do que

outras; (c) algumas adaptações perdem pelo menos algumas das

características manifestas em suas fontes”. (STAM, 2008 p.20)

O conto que dá título ao filme e serviria como eixo principal perde a

potência da imagem da inércia e aceitação de estagnação. O sujeito que

encomenda uma canoa e vai morar no meio do rio, mas sem o intuito de se

movimentar, apenas de ali ficar, afirma uma negação, que se personifica na

força da frase da esposa dita no livro, que também se perde no longa: “– Cê

vai, ocê fique, você nunca volte!”. (JGR* Primeiras Estórias - 2005, p.77).

Aos poucos, na passagem do “cê” ao “ocê” e, por fim, ao “você” completo,

essa frase vai personificando um sujeito que se nega. Segundo Ana Paula

Pacheco, em seu estudo O lugar do mito, ela exprime “a veemência expressa

em negativo diante de uma decisão sem volta, anunciada quando já em curso”.

(PACHECO - 2006, p.146). A beleza contida na frase se funde ao

distanciamento que vai se estabelecendo com a dilatação do pronome: de inicio,

o “cê” mostra intimidade e proximidade, “ocê” tem o duplo sentido de “cê” e

“ou cê”, por fim, “você” define a distância estabelecida e o ponto final do não

retorno.

A inexplicada decisão que o Pai toma no conto, a atitude desse homem que

se afirma como negação, fica esvaziada no roteiro, exemplificando um caso da

proposição a) de Robert Stam: perde-se o que há de mais forte na obra de

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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origem. Devido às costuras com outras narrativas de Primeiras estórias, esse

homem no meio do rio que escolhe se ausentar da vida é esquecido pelo

espectador, já que o foco do enredo muda quando seu filho se casa e vai para

Brasília, deixando-o sozinho. Esse sujeito perde valor imagético na narrativa

cinematográfica.

Em compensação, as opções de linguagem cinematográfica adotadas por

Nelson Pereira dos Santos recuperam sentidos importantes de obra de

Guimarães Rosa. Principalmente nas sequências localizadas em a Brasília, onde

grande parte do filme se passa e nas quais se pode perceber grande influência e

uso assertivo das Eztetykas de Glauber Rocha; das quais destacam-se algumas

que parecem assumidas no filme de Nelson:

o povo é o mito da burguesia

nenhuma estatística pode informar a dimensão da pobreza

o ponto vital da pobreza é o misticismo (Eztetyka do Sonho - 1971)

Esse último tópico é especialmente importante quando se trata de

Guimarães Rosa, e relevante para pensarmos o modo como Nelson Pereira dos

Santos lida com o conto “A menina de lá”. Na história de Rosa, a menina,

Nhinhinha, tida como milagreira, mas na verdade participa de situações em que

seus desejos são cumpridos sem que nada de sobrenatural ocorra de fato – o que

ela quer são coisas miúdas que se realizam talvez por acaso. Já no filme, há, de

fato, diante dos olhos do espectador, magia, milagre, algo de fantástico – como

a casa da família que uma nuvem de poeira transporta do sertão para Brasília,

num passe de mágica e fé. Numa busca ao filme no IMDB

(http://www.imdb.com/title/tt0111396/?ref_=nv_sr_1), nota-se essa aura

fantástica no cartaz que confere ênfase à menina “milagreira” e no resumo

descritivo que atribui ao longa a especificação de gênero “drama/fantasy”.

Parece que fica assim reafirmada outra máxima de Glauber: “o sonho é o único

direito que não se pode proibir”.

Essa opção da adaptação – afirmar o milagre – é uma forma de especulação

em torno do misticismo visto e revisto pelos cineastas do Cinema Novo, que

percorre o imaginário do povo de rincões brasileiros. No caso de A terceira

margem do rio, o “milagre” ainda vem atrelado ao comércio da fé, pois os tios

da menina exploram de maneira midiática seus milagres. Em relação a isso, há

ainda a vantagem de o filme abordar um problema grave de nossa sociedade

atual, que ainda explora a fé das camadas sociais mais pobres, transformando-a

As margens de Guimarães Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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em moeda de modo perverso, para que ela se torne alimento, sonho e alento

para maioria da população brasileira.

Embora a pesquisa ainda não tenha chegado a conclusões sobre essa leitura

do conto, sobre a ótica explorada por Nelson Pereira dos Santos, sem dúvida, é

interessante esse desafio que o longa propõe, junto com a obra de Guimarães

Rosa: pensar o uso e a representação do misticismo no Brasil é um modo de

nosso cinema continuar sendo autoral ou um meio de atingir as massas para

consumo do produto? A terceira margem do rio, pondo à vista o milagre, nos

faz refletir sobre essa manipulação da fé ou a reafirma?

Referências

GUIMARÃES ROSA, João; Primeiras Estórias, Ed. Nova Fronteira, 2005 –

Rio de Janeiro;

PACHECO, Ana Paula; O Lugar do Mito – Narrativa e processo social nas

Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, Editora Nankin, 2006 – São Paulo;

HUTCHEON, Linda; Uma teoria da adaptação, Ed. UFSC, segunda edição

2007 – Florianópolis/ Santa Catarina;

STAM, Robert; Introdução à teoria do cinema, Ed. Papirus, quinta edição, 2015

– Campinas/SP

STAM, Robert; A Literatura através do Cinema – Realismo, magia e a arte da

adaptação, Ed. UFMG, 2008 – Belo Horizonte/MG

STAM, Robert;, TEORIA E PRÁTICA DA ADAPTAÇÃO: DA FIDELIDADE

À INTERTEXTUALIDADE; Artigo: Ilha do desterro/ Florianópolis – Santa

Catarina, 2006 – original publicado na Nova York University;

BERNADET, Jean Claude; Cinema Brasileiro propostas para uma história –

capítulo: A Crise do cinema brasileiro e o plano Collor, pág. 182, Ed,

Companhia de Bolso, 2014 – São Paulo;

COMPARATO, Doc; Da Criação ao Roteiro – Teoria e Prática, Ed. Summus,

2009 – São Paulo.

ROCHA, Glauber; Eztetyka da Sonho¹ - seminário realizado em 1971,

Universidade de Colúmbia, Nova Iorque/EUA;

XAVIER, Ismail – Olhar e a Cena; Ed. Cosac & Naify, 2003 – São Paulo.

Filmografia

PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – A Terceira Margem do Rio, 1994;

PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Vidas Secas, 1963;

PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Rio 40 Graus, 1955

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Sobre “O direito à literatura” nas

Orientações Curriculares para o

Ensino Médio

Carolina Fabiano de Carvalho

Educadora no curso comunitário Elos Educação, onde ensina, pensa, escuta e,

sobretudo, ama. Mestranda no PPG de Ciência da Literatura (UFRJ)

Resumo

O texto “O direito à literatura”, de Antonio Candido, é uma das principais

bases teóricas do currículo nacional para ensino de literatura hoje. Nas

Orientações Curriculares para o Ensino Médio, último documento publicado

pelo MEC e destinado a escolas públicas e particulares, a presença do texto de

Candido é evidente, tanto por citações diretas, quanto pelas ideias veiculadas.

Chamam atenção os conceitos de humanização e valor estético, recorrentes no

documento oficial, para justificar o ensino de literatura nas escolas e orientar as

escolhas dos livros a serem lidos. Com base na crítica de Natali (2006) e Avelar

(2009) a esses conceitos, e nas propostas de Araújo (2014) e Valle Neto (2016),

este trabalho pretende discutir os argumentos presentes nas Orientações

Curriculares para o Ensino Médio - Literatura e suas possíveis implicações para

o ensino de literatura na atualidade.

Palavras-chave: Ensino; Literatura; Antonio Candido; Crítica literária.

Publicado em 2006, o documento “Orientações Curriculares para o Ensino

Médio” é o mais recente publicado pelo MEC para direcionar o ensino de

literatura na escola básica. Essas orientações, doravante chamadas OCNEM,

tinham por um de seus objetivos atualizar e elucidar questões levantadas pela

crítica aos Parâmetros Nacionais Curriculares para o Ensino Médio (PCNEM) e

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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os Parâmetros Complementares (PCN+EM), estes publicados seis e quatro anos

antes, respectivamente. De fato, os documentos apresentavam contradições

importantes: criticavam o ensino tradicional, muito baseado na história da

literatura e na instrumentalização da teoria literária, para depois dizer que “o

aluno deve saber identificar obras com determinados períodos, percebendo-as

como típicas de seu tempo ou antecipatórias de novas tendências. Para isso, é

preciso exercitar o reconhecimento de elementos que identificam e singularizam

tais obras” (PCN+, 2002, p.65). Chamo atenção para o verbo “exercitar”, que

remete àquelas atividades enfadonhas de classificação e memorização das

escolas literárias. Outro aspecto problemático dos Parâmetros é sua

superficialidade ao tratar da escolha das obras a serem lidas, reduzindo a

discussão do cânone e da cultura a um jogo retórico.

Mas o que se mostrou mais grave aos pesquisadores e professores de

literatura foi a sua diluição em meio a outros gêneros textuais, ignorando suas

especificidades. A literatura nos PCNEM é tida como “conteúdo tradicional”,

subjugado à “perspectiva maior da linguagem como espaço dialógico”

(PCNEM, 2000, p.23). Não é à toa, creio eu, que logo de cara as OCNEM de

2006 procurem justificar a manutenção do ensino de literatura na escola básica,

suscitando tensões e autores caros à Teoria Literária para responder à pergunta:

Por que a literatura no Ensino Médio?

As OCNEM definem a literatura “stricto sensu” como “arte que se constrói

com palavras”; propõem que ela rompe com o trabalho alienado; afirmam-na

como meio de conhecimento, de sensibilidade, de crítica, de liberdade pela

fruição estética, e “meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado”

(OCNEM, 2006, p.53). O documento postula ainda que a apropriação da arte -

da literatura - é um direito de todos, talvez mais daqueles que “têm sido

sistematicamente expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por

si mesmos” (p.53). Mas, para que fique claro de que literatura estão

efetivamente falando, as OCNEM também consideram o seguinte: não basta

que uma obra seja literária ou tenha valor cultural; é preciso que tenha

qualidade estética reconhecida e legitimada, capaz de propiciar uma “fruição

mais apurada” (p.70). Ao longo de suas páginas, a argumentação das OCNEM

seguirá estes dois eixos - a literatura como humanização e com alto valor

estético -, não só para justificar sua permanência no ensino médio, mas para

direcionar a escolha das obras, a formação de leitores, a mediação dos

professores e suas práticas em sala de aula.

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Como dito, as OCNEM têm bastante embasamento teórico; entre suas

referências estão Hans Robert Jauss, Magda Soares, Umberto Eco e Ligia

Chiappini. Destaco aqui sua filiação a Antonio Candido, em particular ao texto

“O direito à literatura”, cujas ideias parecem protagonizar no documento.

Sabemos a importância deste texto para os estudos literários no Brasil; não é

fortuito que ele seja mote para um evento como o Claro Enigma. Sua afirmação

da literatura como direito humano inalienável me parece, hoje, ainda mais

importante do que nunca. Também não surpreende que seja base para o

currículo de literatura na escola; ao contrário, é possível dizer que “O direito à

literatura” é a própria contribuição da Teoria Literária para às pedagogias

críticas que surgiam nos anos 80, propulsionadas por Dermeval Saviani e José

Carlos Libâneo, dentre outros. Tais abordagens pedagógicas percebiam os

conteúdos culturais - inclusive a literatura - como bens universais apropriados

pelas elites para dominação das classes populares; o papel da escola seria

democratizar o acesso e a produção crítica desses conhecimentos,

potencializando os alunos como agentes de transformação social. O texto de

Candido contribuiu para esta percepção, não só por apresentar a literatura como

uma “necessidade universal”, “bem incompreensível” e “instrumento consciente

de desmascaramento” das situações de restrição ou negação de direitos, mas

também por acusar sua inacessibilidade a um “homem do povo” que “está

praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de

Machado de Assis ou Mário de Andrade” (Candido, 2004, p.188). Neste

sentido, a defesa de Candido ao acesso a essas obras eruditas pela classe popular

em muito dialoga com a ênfase dada pelas pedagogias críticas à socialização do

conhecimento erudito.

As OCNEM citam Antonio Candido e trechos de “O direito à literatura”

diversas vezes em seu texto; os conceitos de humanização e valor estético no

documento são claramente alusivos ao autor. Não são conceitos banais e isentos

de críticas. No ensaio “Além da literatura”, Marcos Natali sugere que Candido

incorreria em contradição lógica em sua defesa ao mesmo tempo da literatura

como “direito humano” e do acesso à literatura (uma literatura específica e

erudita).

No ensaio de Antonio Candido, a tensão interna vem do fato de ele

partir de um modelo performativo - todos têm literatura, tudo é literatura

- e terminar em um modelo pedagógico. Convivem, assim, a insistência

na universalidade daquilo que é defendido - o literário - e a defesa da

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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necessidade de levar algo específico - um certo conceito e tipo de

literatura - a todos os povos. (Natali, 2006, p.34)

De acordo com Natali, o anseio universalizante de Candido levaria à

negação da literatura mundial como um fenômeno historicamente situado,

decorrente da própria expansão capitalista; também acarretaria uma “violência

tradutora”, que enquadraria práticas discursivas culturais em um conceito

moderno, alheio ao seu contexto de criação e performance. Natali expõe a

vinculação do texto de Candido a um ideário ocidental, em que seria possível a

leitura do “adjetivo ‘universal’ como eufemismo para ‘moderno’, e a defesa da

‘humanização’ como uma convocação à modernização” (p.38); a inclusão no

sistema literário “erudito” seria, em realidade, a superação de produções

“folclóricas”, sejam elas culturais, rurais ou urbanas. Anita Moraes parece fazer

leitura similar: em “O direito à literatura”, a função humanizadora da literatura

corresponderia a uma função civilizatória da literatura, atestando a primazia da

cultura e da racionalidade sobre a natureza e a materialidade (Moraes, 2012,

p.8).

A humanização, informa-nos Candido, está estritamente ligada à qualidade

do texto literário: “a eficácia humana é função da eficácia estética” (Candido,

2004, p.184); não basta que o tema da obra seja a escravidão, por exemplo. É

preciso que ela seja esteticamente elaborada, construída, para assegurar o seu

efeito. Daí que se crie uma hierarquia valorativa dentro do sistema literário: há

obras que são eruditas porque possuem determinadas características; estas

devem ter seu acesso e produção “democratizados”; e há obras que são

populares, que não possuem tais características. É interessante perceber que, ao

se utilizar de fatores estéticos como fundamento para afirmar a superioridade da

literatura erudita, Candido incorra na tautologia apontada por Idelber Avelar.

Define-se o valor como a presença de certos traços formais (sejam quais

forem) ou a capacidade de produzir certas sensações. Esses traços ou

potencialidades passarão a ser apresentados como característicos da experiência

estética, sendo sua maior ou menor presença em cada obra o critério para sua

valoração. Ao enfrentar-se com a pergunta acerca de como se chegou a

delimitar o terreno propriamente estético, remete-se o interlocutor à existência

de obras que exibem… aqueles traços inicialmente característicos do estético!

Não é à toa que os alunos não aceitam isso facilmente. (Avelar, 2009, p.143)

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Em seu ensaio, Avelar adentra o debate contemporâneo acerca do valor

estético, afirmando sua contingência: as obras que são consideradas de “alta

qualidade” estão dentro de um pacto valorativo histórica e socialmente

localizado.

O caminho até que se estabeleça o sistema valorativo vigente é conflituoso;

mas, afirma Avelar, depois de estabelecido, esse sistema vale-se de imaginário e

vocabulário transcendental que faz aparentar a imanência. O autor apresenta

esse processo como falácia desenvolvimentista, em que os juízos adequados ao

“pacto valorativo dominante” são lidos como naturais e óbvios, enquanto os

juízos desviantes serão taxados como deficientes. Ou seja: se alguém não

percebe a superioridade estética de, por exemplo, Graciliano Ramos sobre Jorge

Amado, trata-se de deficiência do sujeito valorador e que, se todo mundo for

bem educado, não haverá dúvidas sobre essa constatação. A retórica do

desenvolvimento está implícita no texto de Candido: a literatura que humaniza -

que civiliza, de acordo com Moraes - é a literatura esteticamente mais

valorizada; não parece haver dúvida para o autor de que, uma vez que deixe de

ser privilégio das elites, essa literatura erudita prevalecerá.

Retorno enfim às OCNEM. Como dito, o documento se filia claramente a

“O direito à literatura”, à sua função humanizadora como fundamento para

justificar sua presença nas escolas, e à eficácia estética como seu principal

critério de qualificação. Esta última me parece a questão mais controversa

dentro documento curricular. Para resolver a dicotomia entre conservadorismo

(representado por professores que insistem em trabalhar apenas o cânone e

textos críticos consagrados) e permissividade (cometida por aqueles que

trabalham “qualquer coisa”), é justo à fruição estética que o documento recorre.

Mas a contundência da crítica aos tais “permissivos” é evidente: estes

denotariam possível atitude “condescendente” e “paternalista”, mostrando

demasiada tolerância aos produtos “ditos culturais” (OCNEM, 2006, p.56). E,

logo depois, o texto cita o trecho já mencionado aqui em que Candido acusa a

“fruição segundo as classes” no país e menciona autores consagrados e

inacessíveis. A construção das OCNEM, apesar de considerar em inúmeros

momentos a importância na variedade das escolhas das obras literárias, parece

comprometer-se com certo imaginário valorativo que garante maior estabilidade

nessas escolhas. Ainda quando admite a contingência do pacto valorativo,

reafirma-o: “Mesmo apresentando dificuldades em casos limítrofes, entretanto,

na maioria das vezes é possível discernir entre um texto literário e um texto de

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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consumo” (p.57). Quando refere-se às escolhas das leituras feitas por alunos,

chama-as anárquicas, e as contrapõem às escolhas “sistematizadas e aferidas”

da escola. As preferências das OCNEM dentro do cenário de discussões caras à

Teoria Literária, se não reveladas apenas pela bibliografia, ficam bastante

evidentes ao longo de seu texto.

Cabe, aqui, fazer uma ressalva. A recepção das OCNEM pela comunidade

acadêmica, tanto do ensino básico, quanto do ensino superior, parece ter sido

positiva. O que se vem discutindo em torno das OCNEM não parece ser

propriamente seu conteúdo, mas sua peculiar ausência nas salas de aula. Acusa-

se um descompasso entre orientações e práticas; não pretendo entrar em

detalhes acerca das possíveis razões para isso, mas menciono a questão dos

livros didáticos e a formação continuada dos professores do ensino básico como

talvez as mais relevantes para os estudiosos. Algumas das perguntas às quais me

proponho nesta pesquisa daqui em diante dizem respeito a este descompasso.

Longe de chegar a soluções miraculosas para o ensino de literatura no

Brasil, tento seguir aqui um fio de novelo. Idelber Avelar, ainda em seu ensaio

sobre o valor estético, propõe o deslocamento do debate conservadorismo

versus permissividade para a análise histórica da construção do valor literário

no Brasil. Ele cita, inclusive, o papel relevante da internet no processo atual de

manufatura valorativa, haja vista sua potência de circulação e produção de

conteúdos literários. Neste sentido, Nabil Araújo e Júlio de Souza Valle Neto

ecoam tal proposta de deslocamento ao incorporarem a crítica literária nos

currículos escolares. Afirma Araújo - citando Candido, inclusive - que o ensino

de literatura deve ser considerado um aspecto da crítica; afinal, a preferência

por obras já aferidas esteticamente, valoradas e sistematizadas retira do aluno a

possibilidade de desenvolver um juízo sobre elas - trata-se de uma decisão

crítica já tomada, internalizada e reproduzida. Por outro lado, desconsiderar a

existência desses valores é igualmente redutor e limitante para este aluno

(Araújo, 2014, p.418).

Em recente publicação, Valle Neto complexifica essa proposta. Seu texto

começa com a seguinte ressalva: a crítica literária (julgamento ou avaliação, nas

palavras de Antoine Compagnon) sempre esteve presente nas aulas de literatura

no Ensino Básico; no entanto, ela costuma se dar de forma implícita, fantasmal,

nas escolhas de corpus para análise da Teoria Literária e na eleição das obras

que constituem a História Literária. Em breve análise de livros didáticos

presentes no Guia de Livros Didáticos do Programa Nacional do Livro Didático

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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de 2015, o autor percebe que tendências tradicionais do ensino de literatura

permanecem firmes e fortes - quase dez anos depois da publicação das

OCNEM, vale dizer. A apresentação do conteúdo (a literatura) segue critérios

cronológicos; as obras são vinculadas a escolas literárias generalizantes, sem

levar em conta autores transgressores; e os recursos para análise teórica resume-

se às figuras de linguagem e estudo do foco narrativo. Mesmo assim, trata-se

abordagens mais diretas do que recebe a Crítica Literária.

De acordo com o autor, “o juízo de valor comparece enquanto naturalização

de um dado tipo de conhecimento, mas não enquanto instância necessariamente

parcial da apreciação literária” (Valle Neto, 2016, p.69); lembra Avelar em sua

exposição do pacto valorativo transcendentalizado. O que Valle Neto sugere a

seguir diz respeito à Crítica Literária nos documentos curriculares: tanto a

História Literária quanto a Teoria Literária se prestariam mais docilmente ao

processo de escolarização; à tendência de fechar currículos e quantificar

saberes. A Crítica, por sua vez, configuraria uma zona de conflito a tais

demandas institucionais: ela pressupõe uma reflexão acerca do próprio currículo

e, por tabela, acerca da própria linguagem escolar. As OCNEM, como eu disse,

consideram o valor estético como fulcral na seleção e condução de leituras no

Ensino Médio; no entanto, falham em problematizar justamente a contingência

desse valor.

Valle Neto propõe que a Crítica Literária seja tomada como objeto cotidiano

do trabalho escolar, e para isso, afirma que deve-se lidar com casos específicos.

Ele traz como exemplo duas polêmicas: a de Jorge Amado (mencionado agora

há pouco) e seus críticos Alfredo Bosi, Eduardo de Assis Duarte e Anco Márcio

Tenório Vieira, e a de Machado de Assis em seu artigo sobre Eça de Queirós.

Levar esses juízos para as salas de aula evidenciaria a Crítica Literária como

ponto curricular; seus benefícios seriam: mostrar os processos da crítica e a

parcialidade do crítico; discutir aspectos da História Literária e as escolas nas

quais os autores “se encaixam”; e afirmar que o descompasso entre crítica e

público leitor é explicável, e não arbitrário ou inevitável. Em especial, trazer a

Crítica para a escola evitaria da percepção pelo aluno de que é incapaz de julgar

o valor de uma obra, simplesmente por colocar esse valor em cheque. Eis o que

configuraria um outro procedimento de ensino de literatura nas escolas.

Tanto a leitura das OCNEM e de Antonio Candido, quanto a exploração da

Crítica Literária dentro da escola são atividades de pesquisa sobre as quais ainda

pretendo me debruçar mais longamente. Por hora, encerro com palavras de

Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Barthes em sua Aula que me vêm ecoando desde a primeira vez em que as li: “O

que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele

veicula, mas as formas discursivas através das quais ele é proposto”. Obrigada.

Referências

ARAÚJO, Nabil. “Entre ‘educação estética’ e ‘estudos culturais’: a

problemática da pedagogia literária, do programa

schilleriano aos PCNs”. Remate de Males, Campinas, v. 34, n. 2, p. 397-420,

2014.

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: CANDIDO, Antonio. Vários

escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul/São Paulo: Livraria Duas Cidades,

2004.

MORAES. Anita Martins Rodrigues. “Da natureza à cultura: literatura e

folclore no pensamento de Antonio Candido”. In: XI BRASA CONFERENCE,

2012. Urbana-Champaign. Disponível em

<https://www.academia.edu/4035155/Da_natureza_%C3%A0_cultura_literatur

a_e_folclore_em_Antonio_Candido>. Acesso em set./2017.

NATALI, Marcos Piason. “Além da literatura”. Literatura e sociedade, São

Paulo, n. 9, p. 30-43.

ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO. Brasília:

MEC/SEB, 2006. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>.

Acesso em: out./2017.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS +: Orientações Educacionais

Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEB,

2002. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf>. Acesso em:

out./2017.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: ensino médio. Parte 2.

Brasília: MEC/SEF, 2000. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: out./2017.

VALLE NETO, Júlio de Souza. “Crítica literária na escola: caminhos e

descaminhos”. Leitura: teoria e prática, Campinas, v. 34, n. 68, p. 65-78, 2016.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Juventude berlinense:

um diário de leitura dos textos benjaminianos

dos anos 1910.

Carolina Peters

Graduanda em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e monitora bolsista do Departamento de

Ciência da Literatura. Desenvolve pesquisa na área de Teoria da Literatura em

torno da obra de Walter Benjamin.

“Para o amador, basta o sentido geral e um domínio

ainda vago, que pode esclarecer por meio de leituras

atentas. Mas ele não sente a necessidade de

comprovar como tudo se afina no todo, e como se

afina pelas partes. A possibilidade de estabelecer esta

prova é fundamento da nossa ciência” (CANDIDO,

2006, p. 31).

Estas linhas recuperam a comunicação apresentada durante o Claro

Enigma 2017 – Direito à literatura, direito ao grito. Representam uma primeira

tentativa de, mais que expor o trabalho de pesquisa que sigo desenvolvendo ao

lado da professora Martha Alkimin1, torná-lo comunicável. Tirando proveito

das considerações do próprio Walter Benjamin acerca da figura do Narrador2, o

presente ensaio busca compartilhar o saber de um exercício – o da leitura

imanente – para o estudo de textos da juventude do autor. Agradeço

profundamente a Martha pela generosidade da escuta (e igual generosidade das

1 Martha Alkimin de Araújo Vieira, professora Associada do Departamento de Ciência

da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

2 Cf. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.

In.: ______. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da

cultura. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp.

197-221.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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interdições, reconduzindo o pensamento ao objeto) e pela sugestão de fazê-lo

inicialmente na forma de um diário de leitura, registro das nossas primeiras

errâncias.

Mas por que voltar a Benjamin? E em particular, por que recorrer a esses

seus primeiros textos, da década de 1910? É tentador, quando confrontada por

essas perguntas, evocar a “atualidade de Walter Benjamin”, suprimindo as

distâncias temporal, geográfica e social que nos separam do autor e de seu

pensamento; exigindo deles respostas para dilemas de um tempo que não

conheceram, ou ainda pior, falsificando soluções a partir de suas palavras. A

cautela de formular a justificativa sem incorrer em uma presentificação

[Vergegenwärtigung] talvez exija explicitar o sujeito que indaga e a posição a

partir da qual o faz: qual seria, então, o interesse presente em recuperar essas

linhas já centenárias? E antes disso, que caminhos levam uma jovem

pesquisadora a se debruçar sobre a produção do jovem crítico?

Amparadas inicialmente por textos de comentadores, entre os quais

destaco os delicados ensaios de Lembrar, escrever, esquecer, de Jeanne-Marie

Gagnebin, as considerações benjaminianas sobre experiência [Erfahrung],

transmissão e conceito de História interpelaram minhas leituras da literatura

brasileira cujo tema são as ditaduras civis-militares na América Latina, tecidas

em um projeto que desejava se ocupar da resistência política e da escrita

histórica como matérias literárias. Desempenhando função coadjuvante na

análise e interpretação do romance A resistência, de Julián Fuks, as imagens do

narrador [Erzähler] e do historiador comprometido com a Revolução, aquele

aludido por Benjamin em suas teses “Sobre o conceito da História”3, pouco a

pouco assumiram o protagonismo, até o ponto em que tomaram o lugar de objeto

da reflexão. Esse deslocamento suscitou dúvidas acerca do escopo da pesquisa,

posto que a insígnia “Literatura e Engajamento” parecia já não dar mais conta de

responder aos (meus) anseios teóricos; alertou para o risco de incorrer em

impropriedades no manuseio de noções e categorias que, apesar de apreendidos

por fonte primária, foram até então articulados a partir de formulações de

3 Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In.: ______. O anjo da história.

Tradução de João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, pp. 7-20;

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In.: ______. Magia e Técnica, arte e

Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Paulo Sérgio

Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-232. Há ainda uma terceira

tradução para “Über den Begriff der Geschichte” publicada no Brasil, feita por Jeanne

Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller em LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de

incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda

Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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terceiros; despertou a curiosidade pelas posições desse autor tão adorado, mas

tão pouco conhecido em profundidade; e assim orientou a adoção de uma

metodologia capaz de atravessar tais tensões.

O movimento da pesquisa anterior me conduziu ao novo projeto:

recompor o itinerário intelectual de Walter Benjamin no que tange essas duas

figuras – o narrador e o que chamou “historiador materialista” – demonstrando-

o sempre através de seu próprio texto (entendido aqui como sua formação

ideal). Se é verdade que o contato com comentadores permitiu traçar as

primeiras coordenadas desse percurso, nossa nova empreitada faz a opção

intransigente pela leitura imanente. Como aponta José Chasin sobre a obra de

Marx, considerações que têm se mostrado bastante pertinentes ao nosso

trabalho,

É decisivo, numa época devastada pelas “leituras”, ressaltar uma questão

fundamental: reproduzir pelo interior mesmo da reflexão [de um autor] o

traçado determinativo de seus escritos, ao modo como o próprio autor os

concebeu e expressou. […] Tal análise, na melhor tradição reflexiva,

encara o texto – a formação ideal – em sua consistência

autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o

conformam, tanto positivos quanto negativos: o conjunto de suas

afirmações, conexões e suficiências, como também as eventuais lacunas

e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é

autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por

vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para

nós que é elaborado pelo observador (CHASIN, 2009, pp. 25-26).

O aprendizado do método, pouco corrente nas nossas universidades, impõe

uma série de dificuldades a serem vencidas, entre as quais a mais evidente

talvez seja a língua alemã. Apesar do sobrenome e ascendência germânicos, a

única palavra alemã no meu vocabulário até o início dessa pesquisa era

“schnell, schnell!”, que minha Vó Daize gritava aos filhos, e depois gritou aos

netos, ordenando que cumprissem com rapidez uma tarefa. Longe de representar

uma mostra de erudição, um capricho diletante, o contato com o texto original é

uma exigência do estudo. Não que não haja traduções e retraduções confiáveis,

amparadas por recentes investigações filológicas e projetos editoriais mais

robustos. Sobre o tema, Gunther Karl Pressler, responsável por um significativo

trabalho de mapeamento da recepção dos textos benjaminianos no Brasil,

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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considera ter passado “o momento histórico das ações pioneiras [...], assim

como o momento do desespero cultural de acompanhar, ou melhor, de recuperar

a literatura crítica do ‘primeiro mundo’ por [meio de] traduções rápidas e, por

isso, superficiais” (2006, p. 41). Em que pese a observação, as edições de

Walter Benjamin no Brasil cobrem ainda parcela diminuta da extensa e

fragmentária produção do autor, especialmente dos seus primeiros escritos. E

mesmo aquelas traduções que se considere “rigorosas” carregam em si uma

dose de “renúncia”, como anotou Benjamin4, ele próprio um tradutor. É

importante para nós, nesse movimento investigativo, não só o que é dito, mas

como é dito; a forma através da qual um pensamento se objetiva textualmente.

Quando esse diário começou a ser escrito, as traduções brasileiras eram lidas

recuperando termos específicos dos originais, estabelecidos na edição da

Gesammelte Schriften, pela Suhrkamp5. Algumas lições de alemão mais tarde,

já percorremos hoje – ainda muito lentamente, com pouca destreza, mas um

tiquinho de ginga – a sintaxe benjaminiana, comparando-a às versões brasileiras

existentes, que se mantêm como nosso lastro.

Um segundo desafio diz respeito à auto disciplina exigida pelos estudos;

às longas horas cronometradas de exposição ao texto, ao corpo curvado sobre o

papel, cerrando os olhos para as pequenas letras, empreendendo sucessivas

leituras. Um esforço corporal em algo iconoclasta, a fim de trincar a superfície e

arrancar ao invólucro aurático das publicações a dicção do autor. Como dito

anteriormente, trabalho e exercício: a escolha desses dois termos na

apresentação do ensaio não é arbitrária, e recorro a um contemporâneo de

Benjamin, também vítima do nazifascismo na Europa, o comunista italiano

Antonio Gramsci. Em um de seus Cadernos do cárcere, ele nos lembra que

Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e

muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual,

mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um

hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento

(GRAMSCI, 2011, p. 51).

4 Cf. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In.: ______. Escritos sobre mito e

linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. 2. ed. São Paulo: Duas

Cidades; Editora 34, 2013, pp. 101-120.

5 Os Escritos Reunidos, organizados por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser,

sob a supervisão de Theodor W. Adorno e Gershom Scholem, publicados pela editora

Suhrkamp em seis volumes entre 1972 e 1985.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Não se trata, portanto, de uma leitura ingênua que permita lançar mão das

citações do autor para justificar um ponto de vista, orientar a interpretação dos

dados ou amparar nossas conclusões. A leitura imanente empreende uma

escavação das palavras, erguendo do texto a arquitetura de um pensamento que

ali pulsa, independente dos nossos anseios teóricos e saltos interpretativos,

independente de nós, como aponta Chasin na citação supracitada. Talvez aí

resida a grande angústia, e diante dela, convém afirmar categoricamente

(inclusive para nós mesmas) que não nos cabe “redimir” nosso objeto em suas

eventuais falhas. O jovem Benjamin (ou qualquer outro autor de quem se ocupe

a leitura imanente) dispensa toda e qualquer intervenção redentora, toda e

qualquer tentativa de justificar seus escritos universitários em função de suas

formulações consagradas.

Ao longo do ano de 2017, nos debruçamos sobre dois textos produzidos

nos tempos em que o primogênito de Emil e Paula Benjamin frequentou a

Universidade de Berlim: “Experiência” (1913), no qual se detém pela primeira

vez ao termo que o acompanharia pelo resto da vida, demonstrando uma

acepção muito distinta daquela cristalizada no ensaio sobre a obra do ficcionista

russo Nikolai Leskov; e “A vida dos estudantes” (1915), que, redigido a partir

da conferência de posse como presidente da associação dos Estudantes Livres

de Berlim no ano anterior6, registra sua atividade como líder estudantil quase

uma década antes do primeiro contato com o marxismo, além de uma postura já

crítica ao historicismo e à ideia de progresso, marcas de suas famosas “teses”.

Buscamos nessa empreitada apreender em sua singularidade a primeira

elaboração de Benjamin para temas cruciais (e cativantes!) de sua produção

“madura”, ou antes, mais difundida, e aproveito o mote porque parece

importante dizer, não em nota de rodapé, mas em primeiro plano, que o

Benjamin que se possa chamar “maduro” era ainda muito jovem em seus 48

anos quando, tentando escapar do avanço das tropas de Hitler, cometeu suicídio

em Portbou.

Se empreendo a tarefa de recuperar seu pensamento, não é só por rigor

científico na compreensão e apropriação de categorias e imagens, mas também

6 Oposição às tradicionais corporações estudantis [Burschenschaften], surgidas no início

do século XIX, as Freie Studentenschaft, ou Associações de Estudantes Livres,

representavam uma tendência mais radical do movimento de juventude alemão do

começo do século XX. Em 1914, Benjamin se elege presidente da Berliner Freie

Studentenschaft, abandonando o cargo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Cf.

WOLIN, 1982, p. 12; WITTE, 2017, p. 22; SCHOLEM, 2008, p. 21; KONDER, 1999,

p. 16.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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por declarada afinidade com essa figura e sua trajetória; com um projeto

filosófico e social que necessita ser acalentado. Encaro Walter Benjamin a partir

dos problemas e exigências presentes, como a crise por que passam as escolas,

universidades públicas e os órgãos financiadores de pesquisa, ou a crescente

conservadora contra nossos corpos e direitos – inclusive à literatura e ao grito –,

não como postura individual, mas metodológica, aceitando a proposição que já

nos anos 1910 o próprio autor manifestava nos testemunhos que nos legou. Essa

defesa não se fia na palavra da pesquisadora: acatando as recomendações de

Chasin, para quem “antes de interpretar ou criticar é incontornavelmente

necessário compreender e fazer prova de haver compreendido” (2009, p. 25), as

linhas que seguem buscam comprová-la através do movimento de leitura de “A

vida dos estudantes”. Escreve Benjamin, em 1915:

Há uma concepção de História que, confiando na infinitude do tempo,

distingue apenas o ritmo dos homens e das épocas que rápida ou

lentamente avançam pela via do progresso. A isso corresponde a

ausência de nexo, a falta de precisão e de rigor na exigência que ela faz

ao presente (BENJAMIN, 2009, p. 31).

Esse “assombroso exórdio”, para usar as palavras do pesquisador francês

Philippe Ivernel (2012, p. 6), que pode nos remeter perigosamente ao autor de

“Sobre o conceito da História”, nosso conhecido, localiza uma linha

historiográfica – o historicismo – para a qual a história da humanidade

transcorreria dentro de um continuum temporal, percorrido ora devagar, ora

aceleradamente. Confiando no progresso, tal concepção tem por consequência

um descompromisso com a ação presente dos homens. A consideração tecida

pelo então líder dos Estudantes Livres de Berlim, por outro lado, visa “[...] um

estado determinado, no qual a História repousa concentrada em um foco, tal

como desde sempre nas imagens utópicas dos pensadores”. Como contraponto,

portanto, à “infinitude do tempo”, Benjamin apresenta o “foco”, não como

certeza do progresso, mas como exigência do tempo e dos homens do presente.

Esse estado das imagens utópicas – “estado final” [Endzustand], como dirá na

sentença seguinte – é conformado não por elementos que “[...] afloram à

superfície enquanto tendência amorfa do progresso, mas se encontram

profundamente engastados em todo presente como as criações e os pensamentos

mais ameaçados, difamados e desprezados” (BENJAMIN, 2009, p. 31);

elementos, portanto, que não se mostram como tendência, mas pelo contrário,

são interditados pelo status quo. A percepção de interdição é reforçada pela

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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gradação contida em “mais ameaçados, difamados e desprezados” ou, em

alemão, “[...] als gefährdetste, verrufenste und verlacht” (BENJAMIN, 1991, p.

75), onde o último termo carrega o radical do verbo lachen, “rir”, e poderia

ainda ser traduzido por “ridicularizados”7. Desse reconhecimento, diz ele,

decorre a tarefa histórica: converter, de forma pura, o estado imanente de

perfeição onde estão incrustadas as criações e pensamentos índice do estado

final, em estado absoluto. Em suas palavras, “torná-lo visível e soberano no

presente, esta é a tarefa histórica” (BENJAMIN, 2009, p. 31).

Mas do que se trata, para aquele universitário berlinense de 23 anos, esse

“estado final” que se deseja tornar absoluto? Quais seriam as suas

características? Não podendo “[...] ser parafraseado com a descrição pragmática

de pormenores (instituições, costumes, etc.), descrição da qual ele se furta”, o

Endzustand ao qual aqui se refere Walter Benjamin apenas poderia “[...] ser

apreendido em sua estrutura metafísica, como o reino messiânico ou a ideia da

Revolução Francesa” (BENJAMIN, 2009, p. 31). A fim de delineá-lo, a vida

dos estudantes, seu significado histórico e o significado histórico da

universidade alemã contemporânea a Benjamin são então mobilizados como

símile. Remetendo à sua textualidade:

O atual significado histórico dos estudantes e da universidade, a forma

de sua existência no presente, merecem portanto ser descritos apenas

como símile, como reflexo de um momento mais elevado e metafísico da

História. Somente assim ele se torna compreensível e possível. Tal

descrição não é apelo ou manifesto, que tanto um como o outro

permaneceram ineficazes, mas indicia a crise que, situando-se na

essência das coisas, conduz a uma decisão à qual os covardes sucumbem

e os corajosos se subordinam (BENJAMIN, 2009, pp. 31-32).

O estabelecimento do símile tem, portanto, a dupla função de tornar o que

seja “um momento mais elevado e metafísico da História” não somente

mensurável, mas possível, realizável. A busca por descrever tal momento não

configura um apelo ou manifesto, mas é índice/indício de uma crise que ocorre

“na essência das coisas” (mais adiante no texto, situada na sociedade e com

7 A título de curiosidade, essa é a escolha do francês Maurice de Gandillac, quem traduz

“[...] créations et idées en très grand péril, hautement décriées et moquées”

(BENJAMIN, Walter. La vie des étudiants. L’homme, le langage et la culture: De la

politique à la sémiologie. Traduction par Maurice de Gandillac. Paris: Denoël, 1971, pp.

7-22.).

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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impacto particular sobre a organização do sistema universitário alemão),

conduzindo a uma decisão, qual seja: assumir a tarefa de tornar o Endzustand

“visível e soberano”; torná-lo absoluto no presente. Do ponto de vista teórico,

isso significa para o nosso jovem autor a assunção do “sistema”, herdado à

tradição romântica e idealista alemã, como sendo o “único caminho para tratar

do lugar histórico do estudantado e da universidade”. Contudo, a permanência

do estado imanente é para tanto uma barreira. Em face dessa dificuldade,

Benjamin circunscreve o papel da crítica: “Enquanto várias das condições para

isso continuarem vedadas, restará apenas libertar o vindouro de sua forma

desfigurada, reconhecendo-o no presente. Somente para isso serve a crítica”

(BENJAMIN, 2009, p. 32). Eis sua única função para o jovem Benjamin:

libertar o tempo futuro da forma desfigurada que assume enquanto os

pensamentos e criações rejeitados e encravados no presente; dito de outro modo,

aderir a tais pensamentos, fortalecendo-os.

Quando há alguns parágrafos sugerimos o “perigo” da remissão ao texto de

1940, é porque, ainda que não seja a proposta dessa breve exposição estabelecer

a differentia specifica entre ambos, é forçoso reconhecer e assegurar sua

autonomia; balizar nossa intervenção sobre o texto a partir daqueles parâmetros

que ele generosamente nos oferece. Em meio à Primeira Guerra Mundial, o

compromisso assumido pelo jovem Walter Benjamin é com um “momento mais

elevado da História”, que permita aos homens encontrar os próprios

mandamentos para sua existência no presente. Trata-se de um “engajamento”

puramente intelectual, sem preocupações pragmáticas; uma postura crítico-

filosófica fundamentada também sobre a rejeição da ideia de que o por vir esteja

aprioristicamente determinado, mas que, contudo não pretende se ocupar da

resolução de problemas políticos8. Longe de pretender esgotar o tema, o objetivo

deste diário, entre o relato íntimo e o relatório de pesquisa, não é outro senão

organizar o transcurso de uma investigação que ainda dá seus primeiros passos e

justificar escolhas metodológicas. Por fim, as proposições aqui levantadas estão

sujeitas ao confronto e reparo de colegas e professores, mas acima de tudo, às

demandas do próprio objeto.

8 Tive a oportunidade de expor mais detalhadamente essa postura intelectual em

dezembro passado, durante a Benjaminiana 2017, evento ocorrido na Faculdade de

Letras da UFRJ, com a comunicação “Juventude em Berlim por volta de 1915:

Universidade e sociedade em ‘A vida dos estudantes’, de Walter Benjamin”.

Juventude berlinense Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Referências

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Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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São Paulo: Boitempo, 2005.

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Columbia University Press, 1982.

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Políticas do segredo:

tensões entre o público e o privado em três

romances latino-americanos

Flavia Natércia da Silva Medeiros

Introdução

Em 1971, Silviano Santiago elabora o conceito de entre-lugar para abordar,

em sua positividade, as especificidades da literatura latino-americana e dos

escritores latino-americanos, os quais não poderiam ter leituras inocentes da

cultura ocidental, da política, das relações de poder nem dos cânones literários.

É possível interrogar se esse entre-lugar não coloca em tensão, além da relação

centro x periferia ─ central na intervenção de Santiago─, a dicotomia público x

privado.

Pois é possível pensar que as relações estabelecidas tradicionalmente nessa

dicotomia assumiram diversas formas, como Estado x mercado, comunidade

política x Estado, Estado x família. De um lado, fica aquilo que se considera

pertencer à/ocorrer na esfera doméstica, o que é invisível, o que é

individual/familiar. De outro se colocam atividades relativas a negócios,

políticas, legislação, governança, o que é visível, o que é coletivo. Apesar de ter

se naturalizado ou cristalizado no discurso político e econômico hegemônico,

essa dicotomia nada tem de natural ou inescapável e tem sido criticada por ser

liberal, branca, ocidental, além de favorecer a dominação masculina.

A separação das esferas tem relação com a emergência do capitalismo e a

consolidação do Estado burguês, em grande medida a partir do aparato legal que

os monarcas haviam utilizado para solapar a estrutura feudal. É uma oposição

que se construiu gradualmente, decorrente de um duplo movimento: um que é

da política moderna, outro que é do pensamento jurídico. Podemos dizer que é

recente a noção de uma esfera pública como parte de uma consciência jurídica e

política que se afasta das concepções medievais de propriedade (Horwitz,

1982).

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Foi também gradual o surgimento de doutrinas que desenvolveram a ideia

de uma esfera privada, que ficaria fora do alcance do poder público (Horwitz,

1982). Sob o liberalismo, essa distinção adquiriu grande relevância, com o

termo público designando aquilo que é suscetível de intervenção estatal e

deliberação política, enquanto a esfera privada seria aquela que é livre da

coerção do Estado (Peterson, 2000). E no mundo pós-Guerra Fria a autoridade

estatal se enfraqueceu, ao passo que o mercado internacional se unificou; com

isso, as grandes corporações se apropriaram do “espaço público”,

transformando-o em parte em um grande espaço publicitário (Dupas, 2005).

Este estudo tem como objetivo analisar cenas específicas de três romances

construídos sobre a ou em torno da tensão público x privado: Junta-cadáveres,

de Juan Carlos Onetti, Pantaleão e as visitadoras, de Mario Vargas Llosa, e O

veneno da madrugada, de Gabriel García Márquez. São textos de escritores que

integram a geração do boom latino-americano e não foram analisados por

Silviano Santiago. Comparando as formas como a tensão público x privado se

realiza nas cenas escolhidas, procura-se entender se e como os escritores as

utilizam para construir oposições, subversões, inversões do que nos é legado

como cultura ocidental e do lugar que nos é designado nela. Como se constroem

e quais os efeitos das políticas do segredo?

Cartas para endireitar o céu

Em Junta-cadáveres, lançado em 1964, a cidade fictícia de Santa María

finge receber com total indiferença a instalação de um prostíbulo em uma casa

azul celeste da orla local, como se o céu ficasse na terra. No entanto a chegada

do quarteto, formado por um cafetão e três prostitutas, deflagra um movimento

de resistência que envolve o padre local e duas associações, formadas,

respectivamente, por cidadãos e cidadãs zelosos da moral e dos bons costumes:

a Liga dos Cavaleiros e a Ação Cooperadora.

Prepara-se sem estardalhaço uma guerra ao prostíbulo que não tardará a

eclodir. Alguns meses depois, pessoas (sobretudo mulheres) começam a receber

cartas “anônimas” e azuis – como o céu e a casa da orla– que denunciam os

homens da cidade que frequentam o prostíbulo. Na narrativa construída sobre

múltiplos olhares e diversos tempos, é no capítulo XV (de um total de 33) que

se lê:

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Aquele foi o princípio da guerra e as cartas anônimas saltaram em

seguida para as sacolas dos carteiros para confirmar isso. Eram azuis,

com grafias uniformes e lentas; quase todas eram dirigidas a mulheres e

denunciavam a concorrência ao prostíbulo de filhos, irmãos, noivos,

escassos maridos. Não insultavam nem mentiam; naquele tempo, o que

se seguiu ao primeiro sermão ofensivo do padre Bergner, limitavam-se a

mencionar nomes, datas e horas, insinuavam apenas as represálias que

logo iriam dividir a cidade (Onetti, 2009, p. 178).

Nesse caso, as cartas escritas pelas moças, a maioria delas estudantes do

Sacré Coeur, juntamente com os sermões do padre Bergner e a vigilância da

Liga dos Cavaleiros, contribuem para que a licença para o funcionamento da

casa celeste, concedida em uma barganha entre os vereadores locais, seja

invalidada pelo governador e para que o cafetão e as três prostitutas se vejam

banidos da cidade. As moças, ao redigir e enviar as cartas com denúncias e

ameaças, acreditam agir com sinceridade e correção; dizem não querer provocar

“mais sofrimentos, mais brigas e separações que os que acreditavam

imprescindíveis para terminar com o prostíbulo, para limpar Santa Maria

daquela imundície” que desde a orla contaminava a cidade. Não agiriam por

vingança nem por estarem murchas pelo tempo, como a solteirona rancorosa

que muitos imaginam ser a responsável pela redação das cartas, e sim pela

necessidade de se defenderem do “inimigo que ameaçava seus princípios e seus

projetos, os futuros pessoais que lhes eram comuns” (Onetti, 2009, p. 181).

Esse recurso às cartas pode ser encarado como uma espécie de encenação da

intimidade, de uma solução discreta, secreta, privada para um problema, o sexo,

que é ao mesmo tempo público ─ relacionado, por exemplo, com as taxas de

procriação e a disseminação de doenças venéreas─ e privado. Além disso,

mesmo quando cartas são usadas na esfera privada, podem surtir efeitos

políticos, tanto dentro quanto fora do texto ficcional.

Missão secreta: Pantilândia

Já em Pantaleão e as visitadoras, publicado em 1973, o Exército peruano

tenta resolver, por meio de uma missão “secreta”, um problema que se alastra

pela selva amazônica: “[...] a tropa da floresta anda traçando as cholas” (Llosa,

2003, p. 11). “Violações por todo lado e os tribunais não estão dando conta de

julgar tanto safado [...]” (ibid., p. 11-12). “Todo dia nos bombardeiam com

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queixas e denúncias [...]” (ibid., p. 12). Para comandar essa missão, o Exército

convoca o mais correto, o mais caxias dos militares. "- Não fuma, não entorna,

não arrasta a asa" (ibid., p. 10) ̶ .

Pantaleão Pantoja, o oficial recém-promovido por unanimidade a capitão,

casado e, segundo o Serviço de Inteligência, desprovido de vícios, é

encarregado de criar o "Serviço das Visitadoras". "─ O Serviço das quê? ─ solta

uma gargalhada o general Scavino" (ibid., p. 11). Para aplacar o apetite sexual

dos soldados que servem na Amazônia e estupram uma série de mulheres,

desrespeitando qualquer interdição moral, legal ou social, prostitutas passam a

integrar o corpo do Exército, atendendo àqueles que trabalham em guarnições,

acampamentos e postos de fronteira. Mas o problema não estava somente nas

"mulheres derrubadas". "Servir na floresta é fogo, Pantoja, fogo" (ibid., p. 15).

"Nos povoados amazônicos todas as saias têm dono ─ comparece o coronel

López López. ─ Não tem boteco nem mocinhas festeiras nem nada do gênero"

(ibid., p. 15).

O texto começa na casa do capitão, que se arruma para uma reunião com o

alto comando do Exército. No lugar de descrições, as personagens são

introduzidas por uma apresentação cinematográfica: por suas próprias falas e

pelas intervenções na forma de narrações ou descrições do narrador, que nesse

primeiro capítulo só aparece entre os travessões. O primeiro diálogo é travado

entre Pantaleão, Pochita, sua esposa, e sua mãe, dona Leonor. Sem nenhuma

indicação, o leitor passa ao diálogo de Pantaleão com a secretária ou

recepcionista que lhe indica aonde deve ir para se juntar aos chefes. E assim

vamos conhecendo coronéis, generais, majores, algumas vítimas dos soldados, o

beato brasileiro (irmão Francisco), a cafetina Chuchupe, o radialista Sinchi.

É somente ao chegar a Iquitos e encontrar o general Roger Scavino que

Pantaleão passa a ter noção de todas as mudanças em sua vida que a missão

“secreta” exige: terá de viver como civil, totalmente afastado do quartel e das

cerimônias oficiais; mais que isso, terá de se fazer passar por empresário na

cidade nova; não pode contar a sua mãe e a sua esposa por que tiveram de se

mudar; passa a frequentar bares e bordéis e começa a beber. Tudo para fazer

nascer a "Pantilândia".

Por meio do capitão, quem se disfarça é o Exército, o que se oculta é o

caráter público e também o caráter político da intervenção, fazendo-a parecer

mercadológica. Podemos, porém, considerar frágil o dispositivo de ocultação.

Um dos problemas, que não tardará a emergir, é que os outros homens da

região, e não somente os militares, manifestarão uma demanda por sexo, não

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compreendendo por que o “serviço”, sendo pago, não poderia se estender aos

civis.

Vazamentos encenados

Por fim, no terceiro romance analisado, O veneno da madrugada, lançado

em 1962, Márquez narra um momento de um povoado sem nome no qual

pasquins com "segredos" e intrigas começam a ser afixados nas portas das casas

das pessoas durante as madrugadas. Uma dessas intrigas aparece no primeiro

pasquim: o clarinetista Pastor teria composto uma canção para a mulher de

Cesar Montero. Como afirma uma personagem, os pasquins dizem o que todo

mundo já sabe; mas, conforme diz outra personagem, a mãe de Montero, nem

tudo o que dizem é verdade, o que ela mesma constatara com boatos

envolvendo a própria família.

São diversos os indícios no texto de que as personagens prestam muita

atenção na vida alheia ou têm seus atentos informantes. Nutridos pelas

informações e pelos boatos em circulação, os pasquins ressuscitam fantasmas

do passado ─ infidelidades, enganos, fraudes ─ e em duas semanas conseguem

desestabilizar a paz precária que havia sido alcançada no povoado marcado por

conflitos, violência, desmandos do alcaide, guerrilha. O primeiro a saber dos

pasquins foi o padre Ángel, por meio da mulher responsável pela manutenção

das dependências da igreja, Trinidad. Mas o primeiro a encontrar um pasquim

pregado na própria porta foi um dos homens ricos do povoado, Cesar Montero,

que se preparava para partir rumo a uma jornada de caça enquanto uma pesada

chuva caía.

A única porta que estava aberta na praça era a da igreja. Cesar Montero

olhou para a cama e viu o céu espesso e baixo, a dois palmos de sua

cabeça. Fez o sinal-da-cruz, esporeou a mula e a fez gritar várias vezes

sobre as patas traseiras, até que o animal se firmou na lama,

escorregadia como sabão. Foi então que viu o papel pregado na porta de

sua casa.

Leu sem desmontar. A água havia diluído a cor, mas o texto escrito a

pincel, em grosseiras letras de imprensa, continuava legível. Cesar

Montero levou a mula até a parede, arrancou o papel e o rasgou

(Marquez, 1999, p. 12-13).

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Nós, leitores, não sabemos nesse primeiro momento o que estaria escrito no

pasquim. Sabemos, porém, que a reação de Cesar Montero não se esgota na

destruição do papel. Ele vai até a casa do clarinetista Pastor e o chama para

matá-lo com o fuzil que usava para caçar. "A casa estremeceu com o estampido,

mas César Montero não soube se foi antes ou depois da comoção que viu Pastor

do outro lado da porta, arrastando-se numa ondulação de verme sobre um filete

de penas ensanguentadas" (Marquez, 1999, p. 14).

A divulgação dos pasquins é usada pelo alcaide como pretexto para impor

um estado de exceção e se apropriar de bens, como o gado de Cesar Montero e a

herança da viúva Montiel. É também o que se observa ocorrer com vazamentos

não ficcionais: podem ser usados para normalizar as transgressões da ordem que

anteriormente eram (ou em outras circunstâncias seriam) mantidas em

“segredo” (Bail, 2015).

O público, o privado e o entre-lugar

As três cenas têm em comum o fato de tensionarem a relação público x

privado por meio de segredos que só podem ser postos entre aspas por não

serem tão secretos quanto se pretendem. Cartas constituem um gênero que

somente a princípio é íntimo, próprio da esfera privada, mas, por serem

endereçadas a um destinatário, trazem em si mesmas a possibilidade de se abrir,

da mesma forma que podem nunca chegar, extraviar-se, ser interceptadas (como

ocorre nos regimes ditatoriais, por exemplo, o que se dá no livro de Milan

Kundera intitulado A brincadeira). Antes disso, inclusive, a própria linguagem

pode proporcionar uma abertura, bem como o ato de encenação em si. Cabe

lembrar, ainda, que escritores, políticos, jornalistas, por exemplo, escrevem

cartas públicas.

Também se pode questionar o quão secreta pode ser uma missão militar,

visto que tende a mobilizar, no mínimo, diversos agentes e várias unidades do

Exército. Até uma missão top secret tem de ser conhecida por membros do alto

comando e pelo Serviço de Inteligência; por isso, corre sempre o risco de vazar,

tornando-se publicamente conhecida. É o próprio segredo, secretum, que

secreta, ou seja, separa os que sabem e os que não sabem, instaurando a

possibilidade do vazamento. E, por fim, no caso dos pasquins afixados no

povoado sem nome, o que aparece escrito não é segredo ̶ já circulou pelo lugar

como fofoca.

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Propõe-se aqui considerar que em Junta-cadáveres e Pantaleão e as

visitadoras as políticas do segredo se fazem ao menos em parte de encenações

do privado, do íntimo, do confidencial, que têm caráter performativo, e não

substantivo. No primeiro caso, as cartas "anônimas" cumprem o que delas se

espera, ou seja, “endireitam o céu”: contribuem para o encerramento das

atividades da casa azul. No caso de Pantaleão, a ordem imposta pelo alto

comando e seu empenho no sentido da discrição não bastarão para manter

secretas as visitadoras. E, com o “segredo”, compromete-se também o sucesso

da empreitada e a reputação do Exército. O mecanismo de ocultação é frágil.

Apesar de o sexo ter se construído por diversos dispositivos de saber-poder

como o grande segredo a ser descoberto, situa-se na verdade em uma

confluência, um ponto de articulação entre as disciplinas individuais do corpo e

a regulação, o governo das populações (Foucault, 2012; 1988). Como afirma

Culler (1999): “A ideia de que o sexo está fora e em oposição ao poder oculta o

alcance do poder/conhecimento”.

Por último, em O veneno da madrugada, a política do segredo se constrói

por meio de uma encenação da publicação de informações supostamente

confidenciais; o resultado é não somente o restabelecimento do estado de

instabilidade, conflito e violência, como também a apropriação de bens alheios

por parte do alcaide, que como o povoado e o(s) autor(es) dos pasquins, não tem

nome próprio.

Fora do espaço literário, vazamentos encenados também servem como

recurso político: "Esta é uma carta pessoal. É um desabafo que já deveria ter

feito há muito tempo. Desde logo lhe digo que não é preciso alardear

publicamente a necessidade da minha lealdade. Tenho-a revelado ao longo deste

cinco anos" (Temer, 2015). Tal suposta correspondência privada se constrói em

parte sobre estratégias gramaticais que promovem a vitimização, afirmam ou

valorizam a lealdade inexistente e negam a "suposta conspiração". Com o

emprego da voz passiva, por exemplo, Temer em diversos trechos coloca a si

mesmo e seu partido como sujeitos que são na verdade os pacientes (vítimas) da

ação expressa pelo verbo. Usa o futuro do pretérito como suporte para a

afirmação de sua lealdade, mencionando o que deveria ter feito, mas não fez em

nome dela. Ele também usa verbos performáticos, que se caracterizam pela

coincidência entre o falar e o fazer (Austin, 1990), orações com verbos

impessoais e a alternância entre a primeira do singular e a do plural. Fala do

governo como quem não pertence a ele.

Políticas do segredo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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O que vaza, nesse caso, supostamente, é o rompimento do vice e de seu

partido com a presidente. Mas, na verdade, o que vaza é a infantilidade do “vice

decorativo” que, por meio de um golpe de Estado, seria alçado à condição de

presidente; o que seria um grito se transforma num mero sussurro, porque sai

controlado. Esse caráter performativo das políticas do segredo é iluminado pelas

três cenas analisadas neste estudo. Da mesma forma que os romances dos quais

foram extraídas, elas parecem contribuir para a constituição de um entre-lugar

que é um lócus de questionamento e desestabilização e de exposição da

fragilidade da dicotomia público x privado.

Referências

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Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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O corpo nu e suas vestimentas

simbólicas:

uma leitura de pratos-quadros de Adriana

Varejão e dos úteros de Angélica Freitas

Juliana de Assis Beraldo

É estudante de Letras - Português/Inglês na Universidade Federal do Rio de

Janeiro, membro do Núcleo Poesia do Programa Avançado de Cultura

Contemporânea (PACC) e desenvolve atividades de monitoria no Departamento

de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras/UFRJ. Realiza pesquisas sobre

poesia contemporânea brasileira, performance e artes plásticas.

Nos quadros e instalações de Adriana Varejão há uma aposta na tematização

de questões que dizem respeito à história do Brasil a partir do diálogo com as

tradições da arte e da literatura. Em uma dicção pictórica de repetição de

discursos alheios, a artista desloca narrativas hegemônicas que põem em jogo a

construção da nacionalidade e a contraposição de raças marcadas pela violência

e opressão. Em seus quadros, desenham-se inúmeras referências a outros

artistas, com ênfase em Debret, como vemos no conjunto de pratos Filho

Bastardo I (1992) e II (1995). Como uma colagem, figuras de quadros do pintor

francês ressurgem em obras de Varejão em contextos distintos. Uma repetição e

manuseio de discursos de outros marcados por um gesto fragmentário, que invés

de restituírem uma paisagem de continuum histórico, abrem, em lugar disso,

uma ferida.

O artista Jean-Baptiste Debret foi enviado ao Brasil no século XIX para uma

missão artística. Aqui, ficou conhecido por suas aquarelas sobre o que se

acreditava ser o cotidiano na colônia. Pinturas de índios, da vegetação, dos

escravos negros, de manifestações culturais e membros das elites formaram um

grande estudo que, entre outras coisas, serviu como ponto de diálogo para os

pratos de Varejão. Em Um jantar brasileiro (1827), por exemplo, é possível

observar que Debret parte de uma cena corriqueira para desenhar certa

hierarquia social. Na referida imagem: à mesa de jantar, um senhor e uma

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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senhora se alimentam em um banquete farto enquanto três criados adultos e

duas crianças os rodeiam. Dos adultos, dois criados homens se encontram

próximos à mesa de braços cruzados. Atitude que possivelmente realçaria que

esses não teriam mais deveres naquele momento, em gesto que, para a

antropóloga Lilia Schwarcz (2014), parece reforçar a estrutura de divisão do

trabalho por gênero. As duas crianças negras, ao chão, são alimentadas pela

senhora, uma comendo sem talheres. Essa disposição das crianças pode

assinalar o nível hierárquico de submissão a que estão expostos, aproximados

de uma animalização. Há, ainda, uma mulher próxima à senhora que a abana e

olha para baixo. Schwarcz (2014, p. 164) assinala, ainda, que “tanto a mucama

como o senhor olham para baixo, numa mesma direção, como se fosse possível,

deveras, imaginar ali uma relação pessoal e carnal”.

Essa mesma escrava que abana a senhora reaparece nas pinturas de Varejão.

Em Filho Bastardo I (1992), a negra com ganchos no pescoço aparece sendo

estuprada por um religioso em uma paisagem bucólica. No Filho Bastardo II

(1995), a mulher mantém relações sexuais com o senhor da pintura de Debret

sobre a mesma mesa de Um jantar brasileiro (1827), que ressurge vazia e com a

mesma criança negra comendo ao chão. Já o homem branco que aparece em

Filho Bastardo I aparentemente duplicado – mesmo que um esteja atrás do

rasgo – parece ter saído de outra tela de Debret. Sobre a pintura Empregado do

governo saindo a passeio (1820-1830), Schwarcz (2014) aponta que a fila

indiana cumpriria o papel de mostrar o processo civilizado, evolutivo e ordeiro

vigente ou futuro no país (p. 164). O homem, que na tela oitocentista parece

olhar para a próspera posteridade, no prato de Adriana Varejão observa a forma

nua de uma mulher indígena amarrada em uma árvore. Vemos, portanto, a

ênfase em corpos nus, bem como nas relações curiosas com outros corpos – do

discurso, da tela.

A escolha de um outro corpo – o prato – como contrapartida à tela

tradicional propõe uma reflexão sobre a forma com que as narrativas históricas

são emolduradas. Os discursos sobre colonização são exportados como um

prato típico do que constitui o genuinamente brasileiro, em tom inquestionável

de verdade sobre a origem. Além disso, o formato do prato, como aponta a

artista em uma entrevista, sugere uma semelhança com a barriga grávida. Uma

gestação que guardaria, em seu útero de “Mãe Pátria”, a geração incestuosa,

estupradora e violenta que compõem as “raízes do brasileiro”. Trata-se da

barriga grávida do filho bastardo, o que não está nos documentos oficiais, o

contra-discurso.

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Com a imagética da gravidez, vem à tona outra faceta da repetição em suas

pinturas: estas aparecem como uma região limítrofe de corpos. A gravidez,

nessas obras, pode ser vista como essa narrativa que engloba, em seu ventre,

referências artísticas e históricas – como Debret, no caso. Em um corpo grávido,

como delimitamos, precisamente, os limites dos corpos do bebê e da mãe?

Existem órgãos e elementos compartilhados na gestação que se configuram

como zonas de indefinição desses limites. As figuras que aparecem no quadro

de Debret e são repetidas nos pratos de Varejão fazem parte desses corpos

limítrofes que borram noções de origem e originalidade. A implosão da ideia de

originalidade se projeta por todas as camadas dos pratos: na pretensa formação

do conceito de brasileiro, na tradição de arte ou na própria narrativa “originária”

da pátria. Há uma ruptura nos laços de continuidade e semelhança, alicerces de

uma tradição homogênea, sem contradições.

A intenção de delinear uma “identidade brasileira” na literatura, que se faz

presente em diversos projetos ao longo da história, reflete nada menos do que a

incessante procura de uma origem. Essa tentativa se desenvolve em diversos

aspectos na estética literária e no próprio exercício da crítica de arte. A busca do

crítico por relações de continuidade, tanto na obra completa de um artista

quanto dentro de uma narração particular, estabelece uma relação de

patriarcalidade na constituição do que se considera literatura ou arte brasileira.

Conforme Sussekind aponta em Tal Brasil, qual romance? (1984):

Se do filho exige-se um retrato fiel do modelo paterno, é com ênfase

idêntica que se costuma explicar uma obra em função de suas

semelhanças com aquele que a escreveu. Não apenas se exige do

escritor que sua produção se lhe assemelhe de alguma forma, como

também que, entre si, os seus textos guardem relações de continuidade e

semelhança. Na história literária, como na tradição familiar, também se

repete orgulhosamente a máxima: “Tal pai escritor, tal filho obra”

(SUSSEKIND, 1984, p. 29).

Na contramão do reforço de uma tradição sanguínea e paterna, e isto é claro

no diálogo da artista com Debret, um diálogo de ruptura, as narrativas sobre a

“miscigenação” são operadas por um investimento crítico e de denúncia. Sendo

assim, a repetição utilizada no procedimento de Varejão, em vez de ser

simplesmente uma repetição conservadora, no sentido de confirmar e fazer

ecoar uma “verdade”, pelo contrário, ressalta uma diferença na repetição das

narrativas históricas.

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Para Sussekind (1984), que postula sobre a ressurgência do naturalismo em

certos momentos da história brasileira, existem dois tipos de naturalismos. Um

que, para ela, se basearia em uma repetição de caráter conservador, ou seja, de

um compromisso ideológico com a nacionalidade sem rupturas, e outro que

permitiria uma fratura desse discurso de literatura ou arte como espaço

construção de identidades sem contradições. Da mesma maneira, haveria, com

estas repetições, uma tentativa de olhar para um lado avesso da História em uma

dissecação dos lugares comuns das origens do Brasil.

A preocupação que Adriana Varejão parece ter ao enfocar outro lado da

história e dos discursos se assemelha com a reflexão de Walter Benjamin em

suas teses “Sobre o conceito de História” (1942). Nestes pequenos textos, o

teórico contrapõe uma perspectiva historicista a uma materialista histórica em

relação à análise dos eventos da História. Benjamin defende que o historicismo

é pautado numa espécie de empatia que tem por elementos centrais, nas obras

aqui analisadas, o vencedor, os detentores de poder. Em trecho importante, o

escritor assinala:

Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo

triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que

hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados

no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural.

(BENJAMIN, 2012, p. 12).

A obra de Varejão encena um afastamento da “transmissão da tradição” em

prol de uma escovação da “história a contrapelo”. Os despojos das narrativas

históricas se fazem centrais em quadros como Filho Bastardo I (1992) e II

(1995). O próprio investimento em pensar em uma imagética do filho que não é

legítimo, mas bastardo, como indica o nome da obra, ou seja, no que não entra

como principal, mas como sobra, reflete uma posição reflexiva de

deslegitimação de uma tradição sanguínea e familiar. Revela-se, desse modo,

uma aposta no laço de dessemelhança e descontinuidade que é desdobrado pelo

tom subversivo da obra – no sentido de subverter a representação de Debret

sobre o Brasil colônia nas pinturas aqui mostradas. Este desdobramento ganha

imagem escancarada no imenso rasgo que corta a tela e faz o espectador ter

contato com um avesso do quadro, com as vísceras sangrentas da História. O

avesso, parte não mostrada e interdita, a interioridade e, sobretudo, por onde se

certifica a qualidade de acabamento de um objeto, aparece cru, sangrento e em

formato de vagina. Não parece ser por acaso que em ambos os pratos a ênfase se

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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recai sobre a exploração e a objetificação do corpo feminino bem como vemos

explicitamente nas relações tidas nos quadros.

Vemos, com isso, que o que impulsiona ainda mais a denúncia é a forma

com que os corpos femininos aparecem na pintura. Representações de corpos

que fogem à intenção secular de conferir à nudez feminina um caráter ideal e

celestial, ou o chamado “nu artístico”, chocam os espectadores e provocam

posturas moralistas como as que observamos ultimamente nos casos da

exposição Queermuseu, de Porto Alegre, que continha obras de Varejão.

Rechaços a obras de arte ocuparam os noticiários destes últimos meses

questionando, especialmente, a nudez que neste caso não foi considerada “nu

artístico”.

O paradoxo que se cria entre os tipos de nudez pode ser pensado a partir de

Didi-Huberman (1999) e suas definições de uma nudez (nakedness) que é de

cunho sexualizante, embaraçoso e ofensivo em contrapartida a uma nudez

(nude) que projeta um corpo harmônico, ideal e, portanto, artístico. Pensando no

caso de O Nascimento de Vênus, de Botticelli, sabemos que o quadro se refere a

própria mitologia do nascimento da deusa. A esse respeito, Didi-Huberman

defende que a nudez da Vênus não é considerada ofensiva (nakedness), pois é

tratada como “representação” de um mito. Ou seja, neste caso, as fontes

literárias funcionam como uma vestimenta que isola a “ofensividade” do corpo

exposto. Sua nudez está justificada pela ilustração do mito, a figuração de uma

narrativa originária. Entretanto, o que faz o nu de Botticelli não ser considerado

ofensivo e os de Varejão sim?

A diferença determinante parece estar exatamente no caráter da narrativa

originária. Concluindo que os quadros Filhos Bastardos também apontem para

uma narrativa originária do Brasil, o “mito originário” de Adriana Varejão

escapa da concepção de originário ao apostar na fratura e enfocar, sobretudo, o

horror do relato. A leitura da dicção de Botticelli como não ofensiva, para Didi-

Huberman e Warburg, se daria pelo efeito de deslocamento do horror dos mitos.

Para estes

Botticelli parece não conservar em seu quadro senão o pudor, parece

ocultar todo o horror do relato originário cujo sistema íntegro de

polaridades míticas conhecia, no entanto, via Poliziano. Trabalho de

deslocamento, posto que unicamente os “elementos secundários”

guardam o pathos da cena. (DIDI-HUBERMAN, 1999, p. 49)1

1 Tradução minha.

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Enquanto Varejão toca exatamente no que há de violento dos mitos, na

ferida aberta, percebemos um outro lugar de enunciação. Os corpos nus de

Varejão aparecem vestidos de elementos simbólicos que expõe um gesto crítico

em relação a própria narrativa “originária” e a forma com que estas são

enunciadas. Um lugar que tensiona variáveis como o conceito de humano e

inumano, de discurso e contra-discurso e, sobretudo, de estéticas de olho e de

corpo. As pinturas parecem se estabelecer em posição diferente de certas obras

naturalistas cujo rigor científico e historicista por trás da narração era uma

preocupação, casos em que a própria narração é desvalorizada, em que vale

menos a linguagem e o trabalho com esta do que o teor de verdade, de

fatualidade, de extra-linguagem de um texto ou obra de arte. Ao desarticular a

representação estrangeira da colonização do Brasil em seu tom de verdade, o

que Adriana Varejão parece fazer é rearticular e produzir novas formas de

fotografia da História.

Não se trata exatamente de um enfoque para uma “verdade” da História,

mas percebemos mesmo assim uma tendência à visão. Mesmo assim, configura-

se uma nova forma de tentativa de “transparência”, de expor uma “verdade”, ou

seja, ainda se trata de “fazer ver” ou “retratar”. Se, por um lado, os pratos de

Varejão operam por uma repetição que rompe com certos lugares comuns e

instauram uma outra lógica, por outro podemos dizer que tal denúncia funciona

como um band-aid social, um conceito da própria Sussekind, apaziguando o

lado não mostrado da História e dando um conforto ao espectador.

Na poesia brasileira contemporânea, a poeta Angélica Freitas, em um

universo muito diferente, propõe, como Varejão, uma dicção pautada no

discurso dos outros. Um procedimento de cortar e colar que expõe lugares

comuns sobre a mulher e o corpo feminino sem, em contrapartida,

adquirir/assumir/adotar um tom prontamente reivindicativo. Podemos dizer que

a criticidade dos poemas de Angélica não se dá exatamente por um tom

feminista, mas justamente por uma questão de procedimento: um jogo de

repetição dos discursos e o humor ácido. Observemos alguns fragmentos de

poemas do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012):

querida amiga, dicas para conservar

melhor o seu útero:

a gente nunca sabe quando vai precisar

do nosso útero –

em repouso

é tão pequeno e precioso

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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por isso é bom mantê-lo

num lugar seguro

longe da luz

a uma temperatura

de 36 graus

se alguém insistir para vê-lo

diga: bem rapidinho

não faça barulho

(FREITAS, 2012, p. 64)

Vemos no trecho do poema “Um útero é do tamanho de um punho”, de

Freitas, que este remonta uma fala que nos remete ao tom das revistas femininas

(como em “querida amiga, dicas para conservar melhor o seu útero”). O útero

aparece como algo que deve ser tratado e conservado no lugar do que

normalmente seria a pele ou os cabelos. Aparece, no lugar dos elementos de

feminilidade, como um órgão que necessita cuidados referentes a melhor

performance de gênero. No entanto sua conservação implica também um

resguardo. Um paradoxo entre velar e desvelar que garante, ao mesmo tempo

sua boa forma – em caso de utilidade – e seu obscurantismo, como lugar do não

mostrado. E quando mostrado é por muita insistência e exige rapidez e silêncio.

O trecho explora uma dualidade a qual o feminino como um todo é exposto

através de um jogo com palavras que se dá pela repetição.

Trata-se, desta forma, de um trabalho com a linguagem que pode funcionar,

assim como os quadros de Varejão, como uma denúncia. Os lugares comuns são

trabalhados como uma colagem e as colagens carregam em si um deslocamento

de certa articulação de objetos para a montagem de uma nova disposição, de um

novo jogo. Nesta nova disposição a origem dos objetos já não é o ponto central.

Admitir que o poema se estabeleça como uma colagem é também neste caso

borrar a ideia de origem dos discursos. Realça-se, em contrapartida, um outro

jogo que se forma, uma outra composição. Há, tanto nas repetições de Freitas

quanto nas de Varejão, um gesto de corte que retira a petrificação e imobilidade

dos discursos hegemônicos e os abre a novos modos de interpretação e

significados.

No entanto, se os pratos de Varejão, demonstram continuar a apontar para

os fatos históricos e para o extralinguagem. Por outro lado, a poética corporal de

Freitas estaria na contramão, na dimensão do não vísivel e obscuro. Pensando,

então, na superfície da obra de Varejão como que tendendo ao “olho”, a um

paradigma óptico de conhecimento central para a modernidade, o contato com

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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seus grandes pratos nas galerias de arte e museus permitem uma percepção

diferente de suas reproduções em um livro. Enquanto observava seus enormes

pratos em uma exposição na Carpintaria no RJ – chama-se atenção para o

tamanho, pois não se trata de um prato de tamanho usual (1,10 cm x 1,40 cm) –,

foi possível notar uma reverberação sonora que chama a atenção ao nos

colocarmos ao centro da pintura. Uma experiência que pode se relacionar com o

próprio gesto do prato: reverberar narrativas e chamar atenção por seu tom. Isto

é, apesar de um conteúdo que tende à visão pode ocorrer também uma

percepção da obra que vai ao caminho oposto dessa “transparência”, algo que

extrapola o visual partindo para uma dimensão também corporal ou táctil.

Se, de um lado, o olho de Varejão se arrasta para uma dimensão também

tátil, de corpo; de outro, o útero que atravessa os poemas de Angélica e a

palavra mulher ecoam ecoam ecoam até que seus significados preestabelecidos

sejam suspensos. As noções de corpo recuperadas e repetidas nos pratos ou no

poema ficam também suspensas e se abrem a uma possibilidade outra de corpo,

assim como uma possibilidade outra de experiência com a linguagem – de uma

linguagem sem garantias de significado. Esta ruptura no corpo, assim como o

rasgo na tela do prato se assemelham ao instante do grito, a uma enunciação que

ao mesmo tempo é eloquente e ao mesmo tempo silêncio e promove a

instabilidade dos lugares comuns – nos corpos dos discursos e nos discursos

sobre os corpos. Dessa forma, enquanto em Varejão o olho demonstra seu

toque, se explora um avesso do corpo, uma negativa da História, há também a

subversão de um corpo bem organizado, de um corpo fechado, de um corpo

humano. Há uma brecha para o grito.

Referências

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. João Barrento (Orgs. e trad.). Belo

Horizonte: Autêntica Editorial, 2012.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada: desnudez, sueño, crueldad. Trad.

Juana Salabert. Buenos Aires: Editorial Losada, 1999 [2005].

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac

Naify, 2012.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Pérola imperfeita: a história e as histórias na obra

de Adriana Varejão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.

SUSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua

história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Editora Achiamé Ltda., 1984.

O corpo nu Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Pinturas

DEBRET, Jean-Baptiste. Um jantar brasileiro. 1827. Aquarela. 15,7 x 21,9 cm

DEBRET, Jean-Baptiste. Empregado do governo saindo a passeio. 1820-1830.

Aquarela. 19,2 x 24,5 cm

VAREJÃO, Adriana. Filho Bastardo I. 1992. Óleo sobre madeira. 1,10 x 1,40 x

10cm

VAREJÃO, Adriana. Filho Bastardo II. 1995. Óleo sobre madeira. 1,10 x 1,40

x 10cm

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Vozes esquecidas:

o ser-animal de Vidas Secas e uma comparação

com A Hora da Estrela

Maria Júlia Santana Valério

Aluna de Português - Latim na UFRJ

“sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?”

Estudar literatura é um grande desafio. Se optarmos pela literatura clássica

(entendendo “clássica” como um sinônimo de literatura canônica e deixando de

lado, por um momento, toda uma discussão ao redor dessa palavra), corremos o

risco de repetir muito do que já foi dito, afinal, grandes críticos e críticas já se

debruçaram em estudos sobre Graciliano Ramos e Clarice Lispector, os dois

grandes autores de quem tratarei neste trabalho. Como já disse Ítalo Calvino em

seu texto Por que ler os clássicos?: “Um clássico é um livro que nunca

terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” Um clássico é um livro que, a

todo momento, está sendo (re)lido e sempre colocado à mesa para novas

discussões.

Por isso, busco analisar Vidas Secas, um romance muito estudado, mas que

mesmo assim deve ser trazido à discussão novamente. A crítica social que o

romance carrega parece mais atual do que nunca. Em um momento no qual

diversos discursos de ódios estão cada vez mais presentes, se faz ainda mais

necessário trazer à tona discussões presentes no livro. O romance de Graciliano

Ramos nos faz pensar no que é ser um indivíduo capaz de se inserir na

sociedade e qual é a linha tênue que separa o humano do animal. Ele mostra

como condições extremas e miseráveis fazem as pessoas se (trans)formarem em

seres que habitam essa linha, sem saberem para que lado ir, sem serem

humanos, sem serem animais, graças à pobreza em que os personagens são

obrigados a viver. Assim, os personagens centrais do livro, Fabiano, sinha

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, estão presos ao ambiente

inóspito em que nasceram: o sertão nordestino.

No entanto, a conjuntura atual nos pede mais: não basta olhar para o pobre,

o miserável, o ser-animal que está à margem da sociedade, mas parece distante

da nossa realidade, afinal, não é só o retirante nômade, que não tem lugar para

se estabelecer, que está sofrendo pela crescente onda de ódio que se espalha

pela sociedade. Precisamos, também, olhar para aquele que está ao nosso lado,

mas por algum motivo não conseguimos enxergar. Precisamos olhar para a

datilógrafa, para a alagoana moradora da rua do Acre que divide um quarto com

três Marias. Precisamos olhar para Macabéa, para as Macabéas.

Vilma Arêas já estabeleceu uma relação entre Vidas Secas e A Hora da

Estrela, como podemos ver em Clarice com a ponta dos dedos, livro de Vilma

Âreas: “Não deixa de ser curioso que Clarice comece sua história no momento

em que Graciliano, quatro décadas antes, em Vidas Secas, finalizara a sua, com

seus personagens rumo à cidade grande.” (ARÊAS, 2005, p. 75). Ambos

romances parecem tratar, de formas distintas, daqueles que foram empurrados

para a margem da sociedade até estarem totalmente fora dela.

A relação de dependência entre o homem e a natureza física em Vidas Secas

tece um ambiente caótico e inóspito, que possibilita todas essas mudanças que

vão contra o considerado “normal” e “comum” na sociedade. Da mesma forma,

Macabéa está em um constante processo de apagamento, uma vez que não pode

ser encaixada em praticamente nenhuma categoria social; é uma datilógrafa com

pouco domínio da língua culta, que se perde com palavras difíceis; é uma

católica que não acredita em Deus, mas acredita “em tudo que existe e o que

não existe também”; sua cor é “encardida”: não é negra, branca ou parda; até

mesmo a sua condição como mulher é perdida: “Pois até mesmo o fato de vir a

ser uma mulher não parecia pertencer a sua vocação. A mulherice só lhe

nasceria porque até no capim vagabundo há desejo de sol.” (LISPECTOR,

1998, p. 28)

Vidas Secas é composto por cinco personagens centrais unidas por laços

familiares: Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e

Baleia. A relação de cada personagem com a natureza é de extrema intimidade,

não havendo uma distinção clara entres os personagens a princípio humanos e

os personagens animais. Seria plausível que Baleia, por ser um cachorro, tivesse

uma relação mais íntima com a natureza do que os humanos em questão.

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Contudo, por serem pessoas tão distantes da civilização, miseráveis e sem

perspectiva nenhuma de mudança, a distância entre o humano e o animal vai se

estreitando e, consequentemente, a distância entre o humano e a natureza física.

São pessoas que vivem o aqui e agora, não têm a capacidade de pensar em um

futuro distante, estão tão acostumadas a esse estilo de vida que não acreditam,

na maior parte do tempo, que haja algo de diferente esperando por elas. Essa

incapacidade de pensar no futuro de forma clara, de pensar além do instantâneo,

é comumente associada aos animais.

São pouquíssimas as vezes em que os personagens voltam o pensamento

para o futuro. Conforme a história segue, Fabiano se queixa de uma série de

perguntas que os meninos têm feito. De acordo com ele, os meninos poderiam

perguntar o que quisessem quando a seca acabasse. Até lá, eles deveriam se

ocupar com as coisas realmente importantes, coisas relacionadas a gente “da

laia deles”. “Um dia… Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse

direito… Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia.

Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso” (RAMOS, 1998, p. 24).

Nesses casos, há sempre algo que trava o pensamento. Isso está estreitamente

relacionado à visão limitada de Fabiano em relação ao futuro.

Eles procuram colocar-se no lugar que lhes pertencem, agindo como se eles

fossem diferentes de outros personagens do livro (e de fato são) como seu

Tomás da bolandeira ou o dono da fazenda onde Fabiano e a família se alojam.

Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da

bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que

era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem.

Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem

rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa

arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. (RAMOS, 1998, p. 23).

Percebe-se que o questionamento aqui é sobre uma coisa considerada

simples, quase banal: o direito ou não a ter uma cama. A cama torna-se artigo

de luxo para os personagens, uma vez que seus pertences pessoais não podem ir

além do que cabe em um baú para que eles não precisem deixá-los quando a

seca chegasse novamente. Assim, sinha Vitória desenvolve uma obsessão pela

possível posse de uma cama que fosse diferente da cama de varas em que o

casal dormia. Ter uma cama significaria mais do que um conforto. Significaria

estabilidade e possibilidade de permanência em um só lugar.

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse,

não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre

tinha sido assim, desde que se entendera. E antes de se entender, antes

de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins.

(RAMOS, 1998, p. 23).

Há a visão de que a seca faz parte do mundo assim como ele é. Não existe

sequer a possibilidade de que ela deixe de ocorrer. É algo determinado,

enraizado. “Sempre tinha sido assim, desde que se entendera” e não seria

diferente. De fato, para Fabiano e sua família, essa é a única realidade possível:

a realidade é estar confinado - no sentido de que não há saídas - em um

ambiente inóspito, um ambiente em que raras são as chances de sobrevivência.

Poucas são as vezes - talvez haja uma única vez - em que essa perspectiva é

deixada de lado, como é o caso do trecho a seguir:

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.

Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano,

criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam

depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam

diferentes deles. (RAMOS, 1998, pag. 125-126).

Não à toa essa parte, destinada ao final do romance, fecha o ciclo construído

a partir dessa estrutura peculiar, no qual não há uma conexão clara entre os

capítulos, tornando o romance semelhante a um livro de contos, composto por

segmentos. É apenas no (re)início do ciclo da seca que sinha Vitória começa a

pensar sob uma nova perspectiva: a possibilidade de eles encontrarem um lugar

onde finalmente possam se estabelecer.

Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava

contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem

onde era. Repetia docilmente as palavras de sinha Vitória, as palavras

que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam

para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas

fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias.

Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,

acabando-se como Baleia. (RAMOS, 1998, pag. 126).

É notável que o que os torna humanos vai se desfazendo. Essa constatação

de que eles são diferentes das outras pessoas citadas no romance, de que não

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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podem prever um fim para a seca, como seu Tomás da bolandeira poderia, e,

por isso, não podem, quase nunca, pensar sobre o futuro, faz com que eles se

aproximem da animalidade: luta bruta e imediata pela sobrevivência. Ou seja,

os personagens têm a eterna preocupação de colocarem-se no lugar que lhes é

disponível. No lugar do sertanejo que, dentro do status quo brasileiro, nem

gente é, é bicho, e merece viver como tal. Pensando, é claro, na visão

tradicionalista do lugar do animal na sociedade.

Da mesma forma, Macabéa vive em um mundo em que não há perspectiva

de mudança em sua vida. Mais de uma vez, no decorrer do romance, o narrador

afirma que a nordestina sequer tem noção de sua existência. Ela apenas vive,

sem se questionar quem é, porque, caso o fizesse, “cairia estatelada no chão”.

“Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. (...) Por falta de quem

lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim”

(LISPECTOR, 1998, p. 26-27). Essa conformidade está presente em todos os

personagens aqui mencionados, dando a sensação de que isso é um problema

social, da pobreza aparentemente inerente aos respectivos personagens.

Outra característica mais animal do que humana que está presente muito

claramente no romance é a falta das palavras. De alguma forma, ou os

personagens nunca aprenderam a falar como as outras pessoas ou, se

aprenderam, esqueceram-se, graças ao isolamento que sofrem. O papagaio, só

mencionado postumamente, só era capaz de imitar os sons da Baleia, isto é, os

latidos. Essa é uma constatação do comportamento da família, uma vez que é

característico do papagaio repetir tudo o que ouve. Se não há ninguém para

escutar, o animal não vai falar. “Resolvera de supetão aproveitá-lo como

alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não

podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco.” (RAMOS,

1998, p. 8). “O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra,

pôs-se a contar baixinho uma história. Tinha o vocabulário quase tão minguado

como o do papagaio que morrera no tempo da seca.” (RAMOS, 1998, p. 55)

Surge, então, uma questão narrativa. Como pode o narrador expressar-se em

um romance em que os personagens mal conhecem a linguagem oral? Ele vai

tentar adequar, através das palavras, a situação da família, de forma que o leitor

letrado entenda. Os personagens são incapazes de fazer mais do que alguns

sons, grunhidos e onomatopeias. Sendo assim, o narrador utiliza-se de um

vocabulário de um escritor bem preparado, mas não está presente nos

personagens - que têm um léxico quase nulo. Essas marcas estão tanto no texto

Vozes esquecidas Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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usual, uma vez que eles não são capazes de proferir palavra alguma, possuindo

pensamentos difusos, quanto em palavras de caráter um pouco mais científico

ou erudito, como “hidrofobia” - nome menos popular para a doença “raiva”.

Apesar disso, o texto é considerado limpo, sem muitos recursos estilísticos (ou

esse seria o próprio recurso estilístico) e seco assim como seu título, “tosco e

elementar” para utilizar as palavras de Antonio Candido. Essa é uma

contradição estruturante do romance: a inarticulação dos personagens e a

articulação do narrador. E o que as une é o estilo conciso, enxuto, seco.

Por isso este livro apresenta um passo além da simplicidade e pureza de

linhas, já plenamente realizadas em São Bernardo: vai ao tosco e ao

elementar. Paulo Honório e Luís da Silva (protagonistas de São

Bernardo e Angústia respectivamente) pensam, logo existem; Fabiano

existe, simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como

o dos filhos e da cachorra Baleia (CANDIDO, 2006, p. 64)

Assim, vemos que ambos romances trazem a voz, mesmo que mínima,

daqueles que não tiveram oportunidade de se articular. Uma voz que não pode

ser articulada em palavras, é apenas um som, ou vários sons, já que esses

personagens são incapacitados de lidarem com as palavras. Seja por causa da

ignorância da fala, como Fabiano e a família, seja por causa da incapacidade de

pensar em si mesmos como seres humanos, como Macabéa. Permitir que essas

vozes sejam ouvidas é um ato político.

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Entre G e I

Rafaela Miranda

Uma pequena introdução

Começo não com Monodrama – que é o foco desta apresentação – mas sim

com Livro das Postagens, o último lançamento de Carlito Azevedo. Se, por

acaso, fosse possível resumi-lo em uma frase ou em um verso, faria coro com a

personagem canina: O autor deveria estar aqui. Este pequeno enunciado em

repetição é o mote do livro. A presença dessa figura autoral é exigida a todo

tempo. Ela não deveria, por exemplo, se preocupar com as cartas do rabino ou

com falar ao telefone com a modelo, nem se espantar com as previsões do

astrônomo, que, segundo o cão, são tudo suposições. Ao autor é dada outra

tarefa: ter seu rosto desfigurado por causa de uma surra dada, nas palavras

caninas, por suspeitos na insuspeita colina.

O Livro das postagens veio de um hiato de sete anos sem publicações de

Carlito, pelo menos não ao que se diz a respeito do objeto livro. Ele viria a

publicar poemas diversos em revistas dispersas – mas insisto aqui em falar deste

em particular por entender a sua publicação como uma continuação à sua tarefa

de poeta. E também porque precisava adiantar para poder retornar. Um fluxo

regressivo do ano de 2016 ao ano de 2009, que foi o ano de lançamento de

Monodrama. Num texto sobre este, Gustavo Silveira Ribeiro diz que

Monodrama propõe uma complexa meditação sobre a catástrofe, experiência

fundamental do tempo presente, através da elaboração de imagens que

procuram dar conta, ao mesmo tempo, da dimensão social e coletiva da

destruição.

E é justamente a dimensão social e coletiva da destruição o ponto de

aproximação que tentamos aqui alcançar, trazendo para perto Livro das

postagens de Monodrama. Tentar ver nos poemas o ponto em que a mais ínfima

figuração da linguagem – que é o social e o coletivo – se encontre com o

privado, o particular, que é o caráter do poema que tem por nome uma letra: H.,

do livro Monodrama.

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Entre a G e a I

Nos estudos de aquisição da linguagem, entendemos que a criança nasce

dotada da capacidade de realizar um número infinito de sons, mesmo aqueles

que não estão presentes em sua língua materna ou os que estão fora da

linguagem, como o balbucio. Com o tempo, os dados linguísticos, que recebe ao

ser exposta a uma dada comunidade linguística, se cristalizam, e ela passa a

produzir apenas os fonemas que estão presentes em sua língua materna. A

aquisição se relaciona, assim, com uma perda. Adquirir uma língua é fixar esses

seus dados e perder outros que não a pertencem.

No primeiro capítulo de Ecolalias, Daniel Heller-Roazen trata dessa perda

surpreendente e paradoxal que é a aquisição da linguagem. Perdemos, ou diria

ele, esquecemos, (d)essa capacidade de realização de um punhado de fonemas

para aprendermos a executar um número finito de sons. A fixação dessa língua

corresponde também à fixação desse indivíduo na sociedade: ele tem seus

direitos (e deveres). Adquirir uma língua, assim, diz respeito, também, a se

incluir numa comunidade.

Agora, o que está nessa língua já fixada e já não se ouve é efeito da

aproximação excessiva e relacional que o falante nativo tem com sua língua

materna. Aquele que porta uma língua – ou seja, todos nós – distingue algo,

ainda que inconscientemente. E é dessa dificuldade de perceber o óbvio que

atentamos no pequeno comentário de Florência Garramuño sobre o poema H.,

de Monodrama. Na verdade, não seria errado dizer que ela, a princípio, fala da

letra h (em minúsculo) para partir para o poema H. (aqui maiúsculo e

pontuado). Sem mais digressão, ela diz dessa consoante: la letra muda del

portugués, la letra que no habla, la letra cuya lengua está trabada. A

observação é simples: em português, assim como em algumas línguas que usam

o alfabeto latino, a letra h é muda.

Dessa descrição de Garramuño pode-se ouvir a atividade/passividade da

letra: ao mesmo tempo que não é possível ser ouvida, ela encabeça palavras

(verbos, adjetivos, nomes comuns e próprios), vai à frente – enquanto trava a

língua – no silêncio. Dá nome a um poema.

Em Monodrama, H. narra as primeiras reações à notícia da morte de sua

mãe. De cara, é um telefonema de uma mulher cujo nome desconhecemos, que

avisa do estado de saúde da mãe. A mulher do telefone, a princípio, parece ser

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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uma estranha ao poeta (pelo choro da mulher do outro lado da linha) mas, logo

depois, notamos que, na verdade, ela é alguém que faz parte do convívio dele

(ela me diz soluçando que está preocupada comigo, que ela tem seus maridos e

filhos junto dela o tempo todo, mas que eu agora estou sozinho como nunca

estive antes).

É importante ressaltar que esse poema é todo escrito em prosa, ele se alonga

de um lado a outro da pauta, sua extensão e seu corpo se assemelham a um rio

que saiu de seu leito, como diria Garramuño. Diferentemente de outros poemas,

em que o corte dos versos era visível. Aqui, em H., como também em Margens,

a escrita em prosa parece acentuar outro tom para o que o poeta irá dizer. A

falta dos cortes é a falta de controle sobre o pensamento, não é à toa que, numa

de suas rememorações, Carlito destaca seu gesto repetitivo e ansioso de dar

voltas pela casa e de dizer insistindo para si mesmo: onde há obra não há

loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever. Como Hamlet – o

filho – que andava feito uma assombração pelo castelo aterrorizando seus

convivas e dizendo coisas desconexas do tipo: palavras, palavras, palavras,

Carlito tem seu próprio reino – a antiga casa em que passou a infância – e tenta

ordenar, com palavras, o caos que é a ideia apavorante da perda de sua mãe.

H. se desdobra em quatro partes, todas nomeadas de forma sintética, como

uma palavra que resumisse os tópicos. A primeira é H., depois Beijo, seguido de

Motores e Ritual. E cada uma dessas quatro partes se abre em outras quatro

partes enumeradas.

‘Beijo’ é uma palavra-recurso utilizada para nos despedirmos de alguém que

temos intimidade. Beijo, aquilo que ali no livro aprendemos a chamar de poema,

dá nome e inicia mais uma seção, mais um dos pontos altos do livro:

I.

Depois de encaminhar “H.” por e-mail para alguns amigos, no intuito de

avisá-los da morte de minha mãe e consciente de que não conseguiria

escrever outra coisa qualquer sobre o assunto, descobri que na pressa de

escrever para não enlouquecer, acabei revelando o que até o pequeno

Stephen Dedalus quando ainda vestia calças curtas já se envergonhava

de ser levado a admitir frente aos colegas de internato. Quando eu me

encontrava em casa à noite, mais precisamente no horário em que minha

mãe era posta por suas acompanhantes para dormir, lá pelas 20 horas, eu

costumava dar-lhe um beijo de boa noite, no qual ela parecia encontrar

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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agora menos a continuidade de um costume antigo do que certa doçura

narcótica que eu não lhe sabia recusar. Dirigia-me ao seu quarto e

costumava encontrá-la já quase adormecida. À luz reduzida do abajur,

beijava a testa daquele imenso inseto preso no âmbar.

O poema ganhar nome de Beijo e, por isso, estar no espaço que cabe a um

título, desloca o lugar esperado de uma despedida. Ele já se inicia dando adeus e

quando chega ao fim esse poema esquisito, o poeta se prepara muito

emocionadamente para a despedida final do corpo físico da mãe: “Este é o

último, viu? Muito obrigado pela paciência. Te amo”. E beijei a lona.

Em Motores, a penúltima parte, a escrita continua como se fossem flashes

da memória do poeta. Aqui, ele relata como era escrever ao som da máquina de

hemodiálise e da lava-roupas antiga, presentes em sua casa. E há de se notar o

tom de endereçamento desse poema. Primeiro, o narrador está distante quando

fala do processo de escrita de figuras que só conhecemos através das iniciais de

seus nomes: A., B., M. e W. Depois, a presença do pronome de tratamento

‘você’ nos faz lembrar com quem o poeta fala. E, se pudermos pensar junto da

lógica dos flashes de cinema, a câmera-olhar se volta para H. e fala através do

pronome: [...] advertir a enfermeira responsável por você [...] de que algo não

ia bem [...] com seu corpo.

Voltando ao livro Ecolalias de Daniel Heller-Roazen, o autor separa um

capítulo para falar da letra h. Logo no início, ele diz:

Una letra, como cualquier otra cosa, debe enfrentar, tarde o temprano,

su destino: com el paso del tiempo, todo signo escrito termina cayendo

en desuso. [...] Sin embargo, un grafema enfrenta más de una manera de

morir. (2008)

As formas de um grafema cair em desuso podem tanto ser de forma natural,

isto é, os falantes aos poucos vão deixando de lado até que ele desapareça, ou

pode ser por imposição. Como no caso da reforma ortográfica que sofreu a

língua russa no ano de 1708, Pedro o Grande decretou que uma série de grafias

gregas deveriam sair imediatamente do alfabeto cirílico. E não só: séculos mais

tarde, já no regime soviético, representantes linguísticos decidiram que mais

uma série de letras deveriam não mais aparecer impressas.

Motivos para o desaparecimento de um grafema podem ser tanto de cunho

político, como religioso ou filosófico. Alguns grafemas, inclusive, podem

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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desaparecer diversas vezes, como é o caso da letra h. Os linguistas a

caracterizam como som aspirado ou como uma fricativa glotal, sendo ela

presente em quase todas as línguas que usam o alfabeto latino. Mas, como

salienta Heller-Roazen, o valor que ela tem pode variar de uma língua para

outra.

Na língua portuguesa, h pode ocupar três posições nos vocábulos. Na

posição inicial, que é conhecidamente muda, em que a grafia de uma palavra

que começa com h é preservada por motivos filológicos. Ela pode vir

acompanhada de uma consoante (como c, l, n) para a formação de dígrafos ou

no final de palavras para indicar acentuação, como no caso de sons

onomatopaicos e de interjeições.

Mas ainda que h seja muda, quando a transportarmos para o poema, ela

ganha um som próprio. H. em letra maiúscula carrega em si uma mensagem, ela

é o assunto do e-mail que Carlito envia a seus amigos avisando da morte de sua

mãe.

Voltando à parte que cabe à linguística, h tanto como som quanto como

signo, teve um caminho trilhado de obsolescência. Seus múltiplos tratamentos

em diversas línguas e seu desaparecimento ocasional em algumas delas, tiraram

de h seu estatuto de letra. Em grego antigo, h vira uma apóstrofe para a

marcação de espíritos. Ela ali não é uma letra, ela assinala a aspiração de um

sopro áspero para o diferenciar de um sopro suave.

Voltando ao poema, h é aquela que mesmo morta tem o que dizer. H., na

verdade, é Hilda e de sua voz (imaginária para nós) se ouve:

- Comparada com a larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada

tocar, ver e ouvir que nos espera, a morte no sono, como dizem que

coube a Chaplin, vale o que valem as dez costelas partidas, as orelhas

arrancadas, os dedos decepados, a laceração horrível entre o pescoço e a

nuca, a equimose larga e profunda nos testículos, o fígado lacerado, o

coração lacerado, o rosto inchado irreconhecível, os hematomas, última

forma física assumida por Pasolini neste louco planeta que agora, para

você, gira também sem mim.

Ao término do livro, fica a exposição à violência indecente e vergonhosa

que conhecemos tão bem, mas de tão cotidiana a esquecemos.

Entre G e I Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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No alfabeto, se pudéssemos reverter a linearidade e consecutividade da

linguagem, diríamos abcdefg e um salto para i. Mas entre a ‘g’ e a ‘i’ ficaria um

vazio, nossos ouvidos resistiriam. Algo se viraria para nós e nos pediria que não

a esquecêssemos. Como não se pode esquecer por exemplo das palavras de

Nancy:

o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro,

sentido de ponta-cabeça com relação a lógica mais geral da presença

como aparecimento, como fenomenalidade, ou como manifestação [...]

o esquema teórico e intencional regulado pela ótica vacila. [...] Estar à

escuta é estar ao mesmo tempo no fora e no dentro, estar aberto de fora e

de dentro.

Nancy também diz: a partilha de um dentro/fora, divisão e participação,

desconexão e contágio. Da mesma forma que Carlito se pergunta ao perceber o

vazamento da água suja da vergonha. O que ele recebe? Ele mesmo responde:

Algo cinético e fluido.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Carlito. Livro das postagens. 1. ed. - Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.

AZEVEDO, Carlito. Monodrama: edición bilingüe / comentado por Flora

Sussekind; con prólogo de Florencia Garramuño. - 1ªed. - Buenos Aires:

Corregidor, 2011.

GARRAMUÑO, Florencia. De abanicos abiertos y poesía en movimiento. In:

Monodrama: edición bilingüe

NANCY, Jean-Luc. À escuta. Edições Chão da Feira, Belo Horizonte, 2014.

RIBEIRO, Gustavo Silveira. A experiência da destruição na poesia de Carlito

Azevedo. In: O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 69-81, 2014.

ROAZEN-HELLER, Daniel. Ecolalias - sobre el olvido de las lenguas. Primera

edición. - Buenos Aires: Katz Editores, 2008.

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Modalidades de desprendimento:

leitura de um poema de Alberto Caeiro

Rafaela Lima

Introdução

Em seu livro Fernando Pessoa, Aquém do eu, além do outro,capítulo

intitulado“Caeiro Zen”,Leyla Perrone Moisés estabelece um paralelo entre a

poética de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e a

filosofia Zen budista. Nessa interpretação, Moisés se debruçou sobre vários

aspectos em comum entre a filosofia presente nas obras de Caeiro e o Zen,

inclusive sobre a prática do desprendimento, conceito produtivo para se pensar

os dois extremos comparativos.

A aproximação entre Oriente e Ocidente foi proposta também a partir do

Oriente, através do livro Mística: Cristã e budista, livro em que Daisetsu

Suzuki, uma das figuras de maior importância no Zen budismo, explica as bases

dos principais ensinamentos do Zen budismo e expõe comparações entre o

pensamento oriental e um momento específico da teologia cristã.

A partir da leitura do poema “Deste modo ou daquele modo”, do livro O

guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, pretende-se demonstrar a existência

de uma relação colateral entre o desprendimento na poesia de Caeiro e no Zen

budismo, levando naturalmente em consideração não só as afinidades, mas

também as diferenças entre uma obra poética e uma tradição religiosa milenar.

Aspectos do desprendimento

No Ocidente, o conceito de desprendimento deriva da palavra de origem

alemã Abgeschiedenheit cunhada pelo frade dominicano Johann Eckhart (p.

XII), que, devido ao seu título universitário, ficou conhecido como Meister

(mestre) Eckhart. Segundo a concepção Ocidental, o desprendimento pode ser

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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definido como um estado no qual o indivíduo se liberta do apego aos bens

materiais e de qualquer sentimento, vontade e pensamento, isto é, desvencilha-

se do “ego” (do narcisismo, em termos psicanalíticos), característico do ser

pensante. Com isso, a dicotomia entre sujeito e objeto seria anulada e o sujeito

alcançaria um estado que Eckhart (apud Suzuki 1976, p. 29) descreve da

seguinte forma: “a única coisa que deseja é ser um só e o mesmo, pois ser isto

ou aquilo é querer ser alguma coisa. Quem é isto ou aquilo é alguém; mas o

desprendimento não quer inteiramente nada”. No Oriente, como observado por

Suzuki, a noção de desprendimento para o Zen budismo encontra uma outra

terminologia, a Vacuidade. Para Suzuki, a própria filosofia budista da vacuidade

pode ser expressada de diversas maneiras, como “estado de identidade”, o

Nirvana, iluminação ou “existencialidade”, e pode ser conceituada como um

estado em que “o espírito está despido de todos os seus possíveis conteúdos,

exceto ele próprio” (1976, p.39-41). O estado que o indivíduo alcança na

Vacuidade é análogo ao estado que o indivíduo alcança através do

desprendimento e, por isso, Suzuki afirma que o desprendimento Ocidental e a

vacuidade Oriental são somente duas formas diferentes de se referir a um

mesmo conceito. Esse conceito pode ser observado nos poemas de Caeiro, ao

propor um “não pensar e sim sentir”. Assim como no trecho:

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu

Caeiro parece buscar “um outro modo” de viver, sentir e escrever nesses

versos.

Como observado por Perrone Moisés (1990, p.124), Caeiro se preocupa,

assim como os mestres Zen, em fornecer um caminho, uma salvação para seus

discípulos/leitores, para que sejam capazes de “fugir” do jeito de pensar

ocidental. Pensamento este que, segundo Moisés, “parte de pressupostos

racionalistas e abstratizantes” (p. 159). Porém, o que Caeiro pretende ensinar

depende primeiramente de um esvaziamento. Por isso, Moisés faz a seguinte

observação acerca do modo de ensinar de Caeiro: “Em Caeiro, o vazio se

reverte em pleno. ‘Não pensar em nada’ é abrir espaço para um Universo.”(p.

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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159) E esse caminho é suscitado por Caeiro através da exposição de seus

sentimentos e experiências. Assim como no seguinte trecho do poema:“o meu

pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado/ porque lhe pesa o fato de

que os homens o fizeram usar.” E é dessa forma que também os mestres do Zen

descrevem a experiência e o caminho necessário para alcançar a iluminação, e

com ela o desprendimento,como citado por Suzuki:

A experiência de iluminação significa ultrapassar o mundo da psicologia

abrindo os olhos-prajna (da sabedoria) e olhando dentro do reino da

Realidade Suprema, e aportando do outro lado do rio Samsara, onde

todas as coisas são vistas em seu estado de “identidade”, no caminho da

pureza. (1976,p.51)

Vê-se que a simbologia do rio, como caminho para atingir o

desprendimento, é comum em ambas as filosofias.

Seguindo os passos de um indivíduo que parece continuar buscando o

estado de “desprendimento”, Caeiro segue com seus ensinamentos nos versos:

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um

homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem ora mal

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Observamos que o processo de despojamento não é simples e que somente

depois de muito percorrer o caminho é que este pode ser alcançado. Observa-se

ainda que o principal caminho para o desprendimento, para Caeiro, é o “sentir e

não pensar”, caminho este que é comum aos Zen budistas. E é justamente esse

“sentir e não pensar” uma das bases dos ensinamentos do Zen descritos por

Suzuki, que diz:

O conhecimento a não ser que seja acompanhado de uma experiência

pessoal, é superficial e nenhuma espécie de filosofia pode ser construída

sobre tão vacilante alicerce. [...] seja qual for o conhecimento que o

filósofo tenha, deve ele provir de sua experiência, e essa experiência

consiste em ver. (1976, p. 47).

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Sob a ótica de Suzuki, e a partir da leitura dos versos já citados, podemos

observar a necessidade de Caeiro em usar suas experiências como alicerce de

seus ensinamentos, o que o possibilita transmitir seus conhecimentos através

dos versos. E, aparentemente, depois de passar pelas experiências, de trilhar o

caminho, de atravessar o rio a nado, este alcança uma nova percepção do

mundo, enxergando-o agora “de outro modo”, como nos trechos “Ainda assim

sou alguém,/ Sou o Descobridor da Natureza,/ Sou o argonauta das sensações

verdadeiras,/ Trago ao Universo um novo Universo/ Pois trago ao Universo ele

próprio”. Percebe-se através desse trecho ainda que o autor tem consciência de

que a mudança do mundo, esse “novo Universo” não se construiu a partir de

uma mudança externa, ou seja, do próprio universo, mas sim uma mudança que

ocorreu no próprio autor, que encontrou esse “novo eu”, “esse novo modo de

viver” ao, aparentemente, ter alcançado o desprendimento e, por conseqüência,

ter transpassando a barreira que separa o sujeito do objeto. Esse novo modo de

viver pode ser observado também nos versos que seguem:

Isto sinto, isto escrevo,

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos.

Neste trecho, que finaliza o poema, observa-se um Caeiro diferente daquele

do início. Ele já não se mostra dominado pelo pensamento racional e em uma

constante luta contra si mesmo e suas vontades, mas sim um novo Caeiro

vivendo, experimentando e,principalmente, sentindo. Neste momento, já é

possuidor de um “saber” adquirido após, aparentemente, alcançar o

desprendimento. Esse saber, que é comum ao iluminado Zen budista, não é

definitivo nem permanente, permitiu-o viver como “um ser natural”.

Encontrando as diferenças

A partir das semelhanças descritas acima, podemos agora encontrar a

principal diferença entre a poética de Caeiro e o Zen. E essa não está

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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relacionada necessariamente ao conceito de desprendimento, porém é

indispensável descrevê-la. A filosofia de Caeiro, encontrada no poema

analisado, não tem por objetivo forçar as pessoas a um novo modo de viver, mas

sim demonstrar que existe um “outro modo” de ver e viver, ficando como

escolha individual seguir os passos do mestre Caeiro ou não. Por outro lado, a

filosofia do Zen busca tornar os seus ensinamentos parte da própria existência

do indivíduo. Conclusão semelhante foi obtida por Perrone Moisés, que diz

respeito aos poemas de Caeiro: “As propostas de Caeiro não pretendem ser

argumentativas nem aliciantes. Seus poemas se propõem mais como um

exemplo de saída existencial, na postura pessoal”(p. 115). E sobre o Zen

budismo a afirma: “O objetivo do Zen é educar a nossa “mente cotidiana”(1990,

p. 120), isto é, levar-nos a praticar a arte da naturalidade existencial.

Desprendimento em forma

O desprendimento da filosofia de Caeiro pode ser encontrado inclusive na

própria forma do poema, a qual o autor não parece demonstrar preocupação em

relação a métrica, ritmo ou rima. Como nos trechos “Podendo às vezes dizer o

que penso,/ E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,/ Vou escrevendo

meus versos sem querer...” Bem como o Zen budismo que, segundo Suzuki, tem

como preocupação primordial a experiência, e não os modos de expressá-la.

Neste ponto, Caeiro pode ser comparado a Eckhart, se olhado a partir do ponto

de vista de Suzuki que diz: “Seu pensamento não está, de modo algum, nas

palavras. Ele as transforma em instrumento para seus próprios objetivos”(1976,

p. 40).É isso que Caeiro parece fazer ao utilizar a sua sabedoria única para

compartilhar conosco uma proposta sobre outro modo de viver uma vida de

desprendimento. Tal desprendimento em relação a forma e ao “fazer sentido”

também foi observado por Moisés tanto nas obras de Caeiro quanto nos koan e

mondo – diálogos baseados em perguntas e respostas e que são utilizados como

forma de ensinar aos discípulos do Zen budismo a entender e alcançar a

iluminação. O esforço que Caeiro faz para alcançar esse desprendimento, ou

seja, alcançar o que seria como uma iluminação para os budistas, essa forma

única e desprendida de utilização das palavras no poema, está presente

principalmente nos seguintes versos:

Procuro dizer o que sinto

Modalidades de desprendimento Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito

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Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras a ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.

Nestes versos é possível identificar ainda um Caeiro em fase de transição

entre o pensamento analítico e o pensamento “livre”. Ele mesmo percebe que

ainda há muitos pensamentos críticos que funcionam como “um corredor do

pensamento para as palavras”, ou seja, algo que como ser analítico o impede de

comunicar a ideia que quer expressar. Ideia essa que, devido a limitações

linguísticas, por vezes torna-se inexprimível. Por isso Caeiro tenta, em seus

poemas transcender, as significações das palavras, tentando desprendê-las

inclusive de seus significados arbitrários.

Conclusão

Somando-se o referencial teórico a análise do poema “deste modo ou

daquele modo”, observa-se que, apesar da distância geográfica e temporal, foi

possível encontrar semelhanças entre a poética de Alberto Caeiro e a filosofia

Zen budista, como a ideia de “sentir e não pensar”, bem como, e

principalmente, o conceito de desprendimento, conceito este no qual se

fundamentam ambas as filosofias. Dito isto, ao expressar a sua “jornada” para

alcançar o desprendimento neste poema, Caeiro de fato consegue ensinar, assim

como os mestres do zen, um outro modo de viver.

Referências

Eckhart, Johann. Sobre o desprendimento e outros textos. 1ª ed. Alfred J. Keller.

São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Manshi, Kiyozawa. O esqueleto de uma filosofia da religião. 1ª ed. Ricardo

Sasaki. Belo Horizonte: Nalanda, 2014.

Suzuki, Daisetsu. Introdução ao zen-budismo.10ª ed. Murillo Nunes de

Azevedo. São Paulo: Pensamento-cultrix, 2005.

Suzuki, Daisetsu. Mística: cristã e budista. 1ª ed. David Jardim. Belo

Horizonte: Itatiaia, 1976.

Watts, Alan. O que é o Zen?. 1ª ed. Verus editora. São Paulo: Verus, 2009.

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Moisés, Leyla. “Caeiro Zen”. in Fernando Pessoa aquém do eu, além do outro.

2ª ed. São Paulo: Martins fontes editora, 1990, p.113-159.

Pessoa, Fernando. O Eu profundo e os outros eus: seleção poética. 1ª ed.

Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980, p. 162-164.

Albuquerque, Eduardo Basto. Entre a história e a experiência: o budismo

japonês de DaisetzTeitaro Suzuki. Nures, São Paulo, Edição nº 10 - Ano 4,

2008.

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