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Em fuxicos se fazem ciência e arte João Marcelo Iglesias da Câmara, Isabel Cafezeiro, Ricardo Kubrusly, Edwaldo Cafezeiro, Carmem Gadelha 1 Resumo: Somos cinco em pleno fuxico. Conversamos sobre a ciência, o fazer científico, a arte e suas práticas. Costuramos os retalhos, descosturamos aquilo que, na ciência, se diz neutro e universal. É evidente, para nós, que a ciência é o alinhavo de panos diversos. Fazer ciência, então, é como fazer arte, artesanato, literatura, discursos. Ciência, tanto quanto as coisas da vida. Isto já foi dito antes, mas convém estar sempre lembrando. Descrevemos, aqui, um encontro imaginado, que nasceu de perguntas enviadas por e-mail. Isto foi crescendo das formas mais diversas: pequenas conversas presenciais, pequenas gravações, pedaços de textos já pensados, escritos e publicados, além das questões ainda (e sempre) em processo de amadurecer. Os personagens desta conversa são panos de diferentes cores, padrões e texturas: pensamentos dos campos da arte, literatura, matemática e computação que se costuram em pequenos pedaços, sem uma direção controlada. O fuxico traz à luz modos de pensar e fazer que se efetivam de forma muito aderente às demandas do local e do tempo, às coisas que pressionam o senso comum a por-se em causa. Esse mesmo modo de pensar é também conformador das ciências, mas está camuflado sob normas e métodos, de onde sobressai apenas o que se apresenta de acordo com os discursos legitimados. Isto camufla, inclusive, as regras do próprio discurso. Aqui nos interessam as formas como 1 João Marcelo Iglesias da Câmara é aluno do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Isabel Cafezeiro é Professora Associada do Instituto de Computação da UFF e Professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Ricardo Kubrusly é Professor Titular do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Carmem Gadelha é Professora Associada da Escola de Comunicação da UFRJ e Professora do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Edwaldo Cafezeiro é Professor Titular Emérito da Faculdade de Letras da UFRJ.

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Em fuxicos se fazem ciência e arte

João Marcelo Iglesias da Câmara,

Isabel Cafezeiro,

Ricardo Kubrusly,

Edwaldo Cafezeiro,

Carmem Gadelha1

Resumo: Somos cinco em pleno fuxico. Conversamos sobre a ciência, o fazer científico, a

arte e suas práticas. Costuramos os retalhos, descosturamos aquilo que, na ciência, se diz

neutro e universal. É evidente, para nós, que a ciência é o alinhavo de panos diversos. Fazer

ciência, então, é como fazer arte, artesanato, literatura, discursos. Ciência, tanto quanto as

coisas da vida. Isto já foi dito antes, mas convém estar sempre lembrando. Descrevemos,

aqui, um encontro imaginado, que nasceu de perguntas enviadas por e-mail. Isto foi

crescendo das formas mais diversas: pequenas conversas presenciais, pequenas gravações,

pedaços de textos já pensados, escritos e publicados, além das questões ainda (e sempre)

em processo de amadurecer. Os personagens desta conversa são panos de diferentes cores,

padrões e texturas: pensamentos dos campos da arte, literatura, matemática e computação

que se costuram em pequenos pedaços, sem uma direção controlada. O fuxico traz à luz

modos de pensar e fazer que se efetivam de forma muito aderente às demandas do local e

do tempo, às coisas que pressionam o senso comum a por-se em causa. Esse mesmo modo

de pensar é também conformador das ciências, mas está camuflado sob normas e métodos,

de onde sobressai apenas o que se apresenta de acordo com os discursos legitimados. Isto

camufla, inclusive, as regras do próprio discurso. Aqui nos interessam as formas como

1 João Marcelo Iglesias da Câmara é aluno do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Isabel Cafezeiro é Professora Associada do Instituto de Computação da UFF e Professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Ricardo Kubrusly é Professor Titular do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Carmem Gadelha é Professora Associada da Escola de Comunicação da UFRJ e Professora do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Edwaldo Cafezeiro é Professor Titular Emérito da Faculdade de Letras da UFRJ.

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essas duas dinâmicas – a que transparece nas linguagens e métodos científicos; e a outra,

comprometida com as questões que a vida apresenta – se relacionam e interdependem. O

fuxico e seus modos de pensamento e operação nos ajudam a refletir sobre estas dinâmicas,

ou seja, sobre a ciência e seus processos de construção. Este texto tem como objeto o fuxico

e o fuxicar. Não se trata de método científico (balizas e procedimentos), nem de criação

artística (inserida em regimes também específicos de pensamento). Abraçamos um

processo que, como tal, pode mudar a toda hora, tensionando a inclusão e a exclusão de

pontos de vista. Confrontam-se discursos e obstruem-se fronteiras para expor artifícios e

artimanhas na luta pela obtenção de hegemonia científica ou excelência poética. Valem

tanto os consensos quanto os dissensos.

Em fuxicos...

Elaboramos aqui algumas especulações que necessitam lugar para serem

apresentados, visto que não se encaixam, nem em forma nem em conteúdo, nos tradicionais

simpósios dos congressos científicos. A dificuldade: é justamente para cientistas e

pesquisadores que queremos falar, já que nosso objetivo é pensar a ciência e o fazer

científico por outros ângulos, olhares supostamente diversos dos referenciais da própria

ciência. Achamos um lugar! Neste Décimo Quinto Seminário Nacional de História das

Ciências e das Tecnologias, o simpósio temático “Poética dos Números” nos convida:

O objetivo deste simpósio é permitir que uma diversidade de trabalhos que

necessitam de lugar para a apresentação de suas conquistas e ansiedades

encontrem lugar. O simpósio pretende reunir pesquisadores que vêm

desenvolvendo estudos sobre matemática, filosofia, computação, história, artes,

de maneira imbricada com as diversificadas ciências, pretendendo assim,

identificar tanto as análises referentes aos antigos conceitos quanto as novas

abordagens utilizadas. Essas novas interpretações deslocam do exato para o

inexato e paradoxalmente do sensível para o abstrato as interpretações do mundo

físico, que já não podem acontecer distante das ditas humanidades.

Nosso tema, como já foi dito, é ciência e o fazer científico. A forma de apresentação é em

fuxico: conversas entre pesquisadores, e sendo fuxico, e sendo ciência, é verdade-mentira,

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tanto quanto na arte. Diga-se, aliás, que problematizamos justamente a hierarquização dos

saberes que legitima a ciência numa ordem de superioridade sobre os outros saberes,

incluindo a arte.

João é artista de teatro, aluno do programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola

de Comunicação da UFRJ, onde Carmem é professora. Durante o segundo período de 2015,

Carmem e Isabel ministraram juntas o curso “O trágico e a cena contemporânea” onde foi

relatada uma prática com fuxicos. João se interessou pelo assunto e enviou perguntas por

mail a Isabel. São essas perguntas, neste texto, que submetemos a possíveis respostas ou

simples desdobramentos de raciocínio compartilhado. João é o “perguntador”, provocado,

abre espaço a problemas. Em fuxico, essas perguntas desencadearam um encontro

imaginado a cinco cabeças, que embora (ainda) não tenha acontecido, relatamos aqui em

detalhes:

Isabel, eu li o texto que você me mandou sobre o fuxico. Esse com o título “Que teus olhos

sejam atendidos”, que foi publicado nos Anais do Scientiarum História VIII. É um texto

explicativo sobre a metodologia fuxico, a partir do método fuxico, certo? Como se chegou

à ideia do fuxico?

João, o fuxico surgiu de forma tão inesperada que a gente tem que parar e repensar todo o

processo. Uma aluna do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das

Técnicas da UFRJ foi assistir a um seminário usando uma blusa enfeitada com fuxicos. Foi

dessa boniteza que surgiu a ideia de levar o fuxico para a sala de aula, onde discutíamos

ciência e literatura. Aconteceu assim, sem nenhuma pretensão, eu acho. Levamos várias

linhas e agulhas e retalhos de pano cortados em círculos e fomos fazendo, sem muita

explicação, ao mesmo tempo em que as discussões sobre a ciência aconteciam, ao redor de

uma mesa de fórmica branca. Os panos coloridos se espalharam na mesa; e fomos

discutindo a ciência através de textos literários, que era a proposta do curso. Os fuxicos, nós

não discutíamos. Íamos fazendo, alinhavando, puxando o fio, um por um, sem nenhum

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objetivo em vista, além de encher a caixa. Assim, passeamos por Machado de Assis,

Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Cora Coralina, ouvimos maracatu. Não há

método e nem metodologia. Como foi, Ricardo, que passamos a associar a nossa ação de

fazer fuxico com nosso tema de estudo, a ciência?

Percebemos que a lógica do fazer científico está mais para a lógica do fazer fuxico do que

para o método científico, já que a ciência é uma construção coletiva, legitimada por um

grupo de pessoas; daí, não tem como ser neutra e tampouco universal. Então a nossa

abordagem é trazer, para perto de nós, a nossa vida, a nossa ciência. O fuxico virou ciência

assim como o lado de dentro e o lado de fora se confundem na fita de Möbius: não há um

momento definitivo, é tudo um caminhar. Os matemáticos sabem disso, né, Isabel?

Sim, sabem, embora raramente admitam. O matemático Fernando Q. Gouvêa, no seu artigo

“Was Cantor surprised?” diz claramente que uma prova não é uma prova, até que algum

leitor matemático, de preferência um considerado competente, diga que é. Disse isso

porque estudou as cartas trocadas entre Cantor e Dedekind. Os matemáticos sabem que a

matemática é uma construção e que é legitimada pelo coletivo de matemáticos.

Existe algum outro texto sobre o não-método fuxico criado por vocês, Ricardo?

O fuxico, assim como a ciência, gera movimento. Nunca é uma construção pura e nem

linear, porque estamos sempre a puxar um fio. Esse texto do Scientiarum causou muita

controvérsia. A princípio não foi aceito porque a comissão entendeu que fuxico remete a

“falar mal, fazer o mal”. Isto gerou um movimento de reações vindas de diversas partes

inesperadas, que viram a ciência no mecanismo do fuxico, uma coisa misturada, como na

vida. Um dia, a Carmem me disse algo sobre esse “mal” que pregaram na nossa testa e na

do fuxico. Quer retomar isso, Carmem?

Sim. De fato, “fuxicar” pode significar “falar mal”: de alguém, de alguma coisa; dizer,

insinuar ou afirmar algo duvidoso sobre alguém; gerar e alimentar boatos. Fuxicar também

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pode ser mexer no que está quieto e causar algum rebuliço. Certa negatividade ou

leviandade pode circular na roda de fuxico, mas também alegria, descompromisso,

produção de ironia para o que ou quem se acha muito certo; na acepção positiva, o fuxico

seria libertador exatamente por sua capacidade indagadora e desestabilizadora das

convicções. Nada disso provém de consulta a dicionário. Recorro à intuição e a sugestões

que me ocorrem quando o fuxico e um trabalho sobre ele é associado ao mal, justamente

em um encontro de cientistas. Lembro-me de Roland Barthes: “O plural é o Mal”, porque

foge à unidade fundadora e sustentadora da verdade, o “Bem”, tendo esse bem vinculações

com a criação divina e a unidade de todas as coisas Dele provenientes; o bem platônico,

que só pode habitar o mundo das idéias perfeitas; o bem associado à verdade científica, que

finge não estar sujeita à adesão e ao consenso. O bem é uma verdade que se naturaliza

exatamente porque faz esquecer as circunstâncias de seu engendramento, as

institucionalizações, os poderes em nome dela arregimentados. Aqui tratamos tanto da

verdade científica quanto da verdade moral. Escapando a estes procedimentos de verdade, é

claro que o fuxico só pode habitar a morada do mal, só pode ser demoníaco. E serão maus

cientistas todos aqueles que interrogarem, fuxicosamente, o lado não revelado, complexo,

escondido da verdade; o fuxico pode ser uma feroz ameaça justamente quando expõe a

fragilidade da fronteira entre o falso e o verdadeiro. Aproveito para lembrar outro aspecto

de nossos fuxicos: eles são feitos também por homens, que costuram tanto as conversas

quanto os panos. Em mais este aspecto, tudo parece conspirar para uma confirmação: o

fuxico, uma atividade feminina (portanto não pertencente ao modelo civilizatório do macho

europeu), só pode ser aberração que tem o topete de apresentar-se como parte constituinte

de um processo de construção de idéias reivindicadoras da dignidade científica ou artística

e literária. Desculpe, Ricardo, prolonguei minha interrupção ao que você dizia,

respondendo à pergunta do João sobre se há mais textos sobre o fuxico.

Texto sobre o fuxico escrito por nós? Acho que apenas esse. Mas nossos trabalhos, meu e

da Isabel, sobre a matemática, levantam essa questão que revisitamos com o fuxico. Falam

sobre a matemática que é vivida e experimentada, sobre o vínculo das ideias com as coisas

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que estão no mundo. Não há pensamento sem fuxico, nem fuxico que não pense o mundo.

A palavra falada, escrita ou mesmo pensada fuxica em nossos sentidos, nossos modelos de

mundo; o fazer científico é apenas fuxico. O Cafezeiro aborda também esta questão nos

estudos dele sobre discurso. Quer falar sobre isso, Cafezeiro?

Sim, no meu livro Discurso e Texto, Dimensão Simbólica e Cidadã do Português Brasileiro

e Africano, da Editora Achiamé, eu argumento que os nexos são os vínculos. Há o vínculo

entre as partículas componentes de um texto, mas também há o vínculo entre o discurso,

fixado pelo texto, e a coisa sobre a qual se fala, as circunstâncias, os acontecimentos. É no

contexto em que o evento se dá que o texto se fixa e produz imagem, semelhança e

dessemelhança.

Peraí, Ricardo e Cafezeiro, eu quero dizer uma coisa sobre isso. Eu acho que a relação entre

o nosso trabalho sobre a matemática e o livro do Cafezeiro é mais ou menos a seguinte:

aconteceram no Brasil ao longo dos tempos manifestações em defesa da criação de uma

língua brasileira. Estes movimentos consistiram em reações ao português de Portugal

imposto como referência de uso correto da linguagem. Cafezeiro diz que as elites, de

acordo com seu domínio, oficializam as normas e, assim, o sentido conservador da

gramática. Ficam sempre à margem da norma oficial as criações populares (assim

chamadas exatamente por serem postas à margem) e as novas criações. Como consequência

do processo de colonização e a despeito de qualquer das línguas faladas no Brasil no século

XVI, o Português passou a ser a língua dos brasileiros. Mas, como ele diz, as semelhanças,

as analogias e as anomalias vão aflorando como uma constante crise nas representações.

Novos aspectos e sentidos são adquiridos pelo léxico e pela linguagem. A gramática

imposta e fixada não resiste ao fluxo das circunstâncias, dos acontecimentos, à necessidade

de expressão. Em crise, surge um novo falar, um novo discurso e uma nova gramática

estabelecida pelos falantes cuja legitimação entra em conflito com as normas impostas.

Assim como o discurso, a matemática hegemônica que nos é imposta não resiste ao fluxo

das circunstâncias, dos acontecimentos e à necessidade de expressão. Em conflito, emerge

uma outra matemática não legitimada, não reconhecida pela academia, mas em constante

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processo, resultado das demandas da vida. Daí, seja no discurso, seja na matemática, são

duas ciências: uma de Estado, mais abstrata, mais regrada, seguindo padrões estipulados

pela comunidade de cientistas, reconhecida pela academia; e a outra, uma ciência “menor”,

muito vinculada às demandas da vida. Quer falar, Carmem?

Acho esse tema apaixonante. Há também uma arte de Estado, que constitui toda a tradição

moderna pós-renascentista. É interessante destacar que até aquele momento, ciência e arte

não se distinguiam como regimes de pensamento tão distantes. A arte dizia respeito ao

modo como se construíam os artefatos de uso diário (doméstico ou instrumental de guerra e

manufatura); arte era também o modo de lidar com determinados temas do saber e dos

discursos. A arte podia ser magia e ciência. A racionalidade renascentista se encarrega de

separar os saberes entre os que cuidam da razão e os que tratam da sensibilidade; um

recorte, aliás, bem platônico, só que reconhecendo no sensível algum nível de acesso à

verdade das coisas. Aí se inventam a literatura (com o advento da imprensa muda

inteiramente nossa relação com as narrativas) e a arte, separadas da ciência. É curioso

observar que a pintura renascentista e clássica é notável em ilustrar e dar visibilidade a esta

separação: o espaço da tela é simetricamente organizado, concebido e ocupado por leis de

proporções; esse espaço reflete o sujeito bipartido em razão e sensibilidade. O ponto de

fuga restabelece a orientação espacial: ele é aquilo de onde tudo diverge e para onde tudo

converge. No século XVII, não nos esqueçamos que a Terra tornou-se redonda e o universo

descentrado; a representação remete a representações para mostrar que a ordem das coisas

não dadas a ver pelo quadro obedece à mesma ordem estabelecida pelo quadro. Esta arte é

tomada como sinônimo de beleza, porque supõe-se que aquela geometria desenha e

representa a própria beleza e perfeição dos teoremas. Quando falamos de arte e ciência de

Estado, dizemos muitas coisas: a separação entre a arte soberana, voltada para a eternização

do sereno poder dos reis; e a arte dita popular, que se manteve na rua, indagando e

desafiando as proporções. A partir do século XIX, mesmo declarando-se contra toda

normatividade, a arte não deixou completamente de ser vista na cisão hierárquica entre a

“alta” e a “baixa” cultura. Deleuze se refere tanto à arte menor quanto à literatura e à

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ciência menor, para designar expressões não controladas por e não pertencentes às

hegemonias e aos poderes. Aquelas expressões que falam de um povo ainda inexistente,

mas em constante devir. Um povo por vir precisa ser pensado numa condição de pequena

saúde; os muito robustos e crentes de si próprios engendram fascismos de todo tipo. Acho

importante, Isabel, lembrarmos dessa questão e desse desafio de abrir fendas, enxergá-las

naquilo que parece inteiriço e coerente. É nessas aberturas que se instalam as indagações,

mas também os espaços de criação, seja científica ou artística. Afinal, os dois regimes de

pensamento parecem não se distinguir neste aspecto. Nesta indistinção, pode instalar-se a

liberdade de pensar e inventar uma vida, um povo. A condição é saber que o processo

define-se pelo seu inacabamento.

Estes termos “Ciência de Estado”, “ciência menor” e “arte menor” são de Deleuze, no Mil

Platôs (v.5) e em Crítica e clínica. Ele argumenta que a Ciência de Estado se desenvolve

num espaço estriado, como um tecido. O tear estabelece fronteiras na largura; assim o pano

cresce infinitamente, mas controlado em uma de suas dimensões. Já a “ciência menor” é

como o feltro, um espaço liso, praticado pelos povos nômades; é também como o

“patchwork” americano, onde as peças são costuradas sem restrições de limites. Para nós, o

“patchwork” é semelhante ao fuxico. As duas ciências necessitam uma da outra, mas estão

em permanente tensão. A Ciência de Estado se justifica na ciência menor: usa as questões

da vida como justificativa para sua própria existência e desenvolvimento. Mas quando já

está fortalecida e legitimada, ela passa a subestimar as questões da ciência menor como

sendo de menor importância. E a ciência menor está sempre exercendo a sua importância,

trabalhando nos chamados espaços alternativos de sobrevivência. É precisamente nessa

tensão que queremos atuar, sem abdicar de nenhuma forma de fazer científico.

Os autores aparecem ao final do texto; essa equipe é formada por docentes e discentes?

Alguém de fora do departamento? Como se formou o grupo de criação?

Como dissemos, foi na aula. Eu, Isabel e Cafezeiro oferecemos uma disciplina “Ciência e

Literatura” pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas da

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UFRJ, no primeiro semestre de 2015. Era uma turma formada por alunos de áreas diversas,

que contava também com a presença atuante e constante de vários professores da UFRJ,

incluindo Carmem.

Sim, eu também estava lá fazendo fuxico. Nas primeiras aulas, em que a Isabel não estava,

resolvemos fazer uma dinâmica mais organizada, seguindo a sequência da roda. Cada um ia

fazendo seus comentários relacionando ciência e o texto lido. Depois que veio o fuxico,

essa ordem já não foi mais possível. O fuxico estabeleceu uma outra dinâmica, relatada no

texto que você leu, João:

Há uma mesa grande e branca. Vão chegando, alunos e professores dos mais diversos cantos, dos mais

diversos campos de saber, e sentam-se em torno da mesa. O debate corre, a partir de textos literários

previamente selecionados, e o fuxico, derramado sobre a mesa, se oferece em agulhas, linhas, tesouras e

círculos de retalhos já cortados. O fazer-fuxico provoca a desdisciplina: desloca o floco de luz de quem seria

o ator principal e assim, dissipa a escuridão do que seria um espaço-teatro caixa-preta. Deslizam sobre a mesa

a tesoura, a linha. O fuxico desdomestica quem seria a plateia: os atores não permanecem sentados, ouvintes.

Levantam-se, falantes, e circundam a mesa para buscar o que está longe, ou para buscar conserto em um

ponto mal dado. Há um barulho periférico, burburinho. O pensar constrói-se com o fazer, estimulado pelos

textos em discussão, guiado pelo coser das agulhas. Desordem: Por vezes o burburinho se mostra mais

interessante do que o tema que circula na mesa, então, invade a cena e traz para a mesa assuntos não

previstos. Outras vezes é o tema proposto que se infiltra nas pequenas conversas periféricas ganha novas

roupagens, multiplica-se. Não se sabe mais o que é dentro, o que é fora. Ah! A Fita de Möbius... e lá vem a

matemática!

Deixa eu falar uma coisa...

Espera aí, Isabel, só pra eu terminar.... surfar pela banda

Isabel, a proposta inicial sempre foi a escritura de um texto conjunto, ou isso surgiu ao

longo dos encontros, como uma necessidade do encontro?

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A proposta da escrita em conjunto era uma ideia inicial bastante vaga. Queríamos escrever

um artigo científico que causasse algum tipo de estranhamento aos cientistas e

pesquisadores. No início a ideia era escrever sobre a ciência, mas no lugar de usar

referências e citações de cientistas, usaríamos as falas dos personagens, ou seja, seriam os

personagens, e não os cientistas, que dariam legitimidade ao nosso ponto de vista. Por

exemplo, a fala de Policarpo Quaresma poderia ser usada em algum trecho sobre a Língua

Brasileira, Simão Bacamarte sobre a ciência, etc. Mas isso nem chegou a ser proposto em

aula, porque o fuxico embalou de primeira. Já no final do curso, abrimos um texto

compartilhado e escrevemos uma primeira proposta. Os alunos foram enviando seus

fuxicos (pedaços de texto) e eu ia costurando. Isto foi diferente do que fazemos aqui agora,

já que cada um de nós está costurando seu fuxico diretamente no texto. Na conversa

presencial, o olhar faz a costura de um fuxico no outro, já que direciona a palavra para

quem vai falar em seguida. Aqui, como não temos o olhar, estamos tendo o cuidado de

deixar claro na fala anterior uma dica para quem vai falar em seguida. Não tem método,

não... é espontâneo. Tudo depende do que é possível e conveniente fazer a cada momento.

Quer falar Carmem?

Não acho que nada seja espontâneo, porque tudo se inscreve em contextos, memórias e

desmemórias. A própria falta de método acaba por requerer um método, explicitamente ou

não. O “possível e conveniente” em “cada momento” não é um detalhe, nem diz respeito à

espontaneidade, mas ao que que cada um traz de sua vivência, entrecruzando-a com a dos

outros. Aí a coisa é bem lúdica, mas pode ser perturbadora. O que Isabel acaba de dizer me

lembrou uma peça, feita por um colega seu agora, João no PPGAC, o Diogo Liberano.

Quando ele fazia a graduação em Direção Teatral, realizou um de seus exercícios cênicos

com uma adaptação de Esperando Godot, de Beckett. Foi um trabalho lindo, que depois se

apresentou em muitos teatros do Rio e fora dele. Acontece que a cena (os atores e seus

improvisos) foi paulatinamente obrigando o texto a desfazer-se até quase nada restar dele.

As entrelinhas e demais espaços vazios foram sendo preenchidos por situações que cada

vez mais se afastavam de Beckett para acolher os improvisos. Isto parece banal, mas

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constitui um desafio permanente: aprender a lidar com o imprevisto. Isabel e eu assistimos

a uma apresentação do que agora se chama Vazio é o que não falta, Miranda. É muito

inquietante, para o espectador, jamais saber se o que está vendo foi ensaiado ou não, se faz

parte ou não de uma provocação agressiva e debochada, se o que está sobre o palco

obedece a algum propósito ou simplesmente não tem objetivo ou sentido nenhum. Ocorre

que o próprio vazio de sentido produz sentidos múltiplos (diabólicos), em todas as direções,

incontrolavelmente. O paradoxo do título não poderia ser mais preciso. O fuxico funciona

um pouco assim, na acolhida do que parece sem importância, mas que pode oferecer

imensas surpresas se colocado em posições e relações inesperadas.

Carmem, tem uma vontade no fuxico de aproximação de ciência e arte, ou isso é

consequência de uma vontade de dissolver hierarquias e com isso revelar aproximações?

Penso que toda aproximação implica também a potencialização dos atritos. Talvez isso

indique jogos de saberes postos entre a arte e a ciência, como no Renascimento; embora se

mostre a separação, evidenciam-se também anseios de expressar uma à outra. E vemos que

separação é também união, aliança. As perfeitas proporções geométricas mostram a sua

beleza na forma sensível da arte de um Da Vinci, por exemplo. Hoje, não podemos

esquecer as tensas relações da arte com a ciência no âmbito das tecnologias da imagem etc.

Mas é claro que não posso deixar de dizer do anseio de desierarquização que perpassa

nossas discussões. Aliás, isso diz respeito ao próprio exercício do pensar artístico e do

pensar científico na Universidade. Ouvi há dias uma bela fala de uma professora do IFCS

que realçava os avanços democráticos dos últimos anos no Brasil, com as políticas de cotas,

bolsas etc. Mas ela indagava também se fomos capazes de mudar nossos regimes de

funcionamento e lógicas operacionais para acolher este “outro”, negro, pobre, portador de

saberes locais e não consagrados, considerados pouco dignos do apreço científico e

acadêmico. Isto aponta, tanto na arte quanto na ciência, o prejuízo imenso que sofremos

todos, em termos de formulação de projetos democráticos includentes, libertos do domínio

da hegemonia dos saberes ocidentais. Leiam-se, aqui, saberes europeus, brancos,

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masculinos, altamente capitalizados pela economia. É claro que não podemos dispensar

esses saberes em nome de nacionalismos ingênuos. Trata-se de abrir espaços a expressões

de minoria, mas talvez isto não baste. Seria necessário articular de maneira mais afirmativa

o local e o global, de modo que as políticas de minoria construam redes horizontais de

saber/poder. Uma estudante negra carioca terá projetos diferentes de uma negra paulista ou

nigeriana; as políticas feministas sul-americanas provavelmente nada têm a dizer a uma

feminista árabe. O que fez a universidade para - junto a esse novo estudante não branco e

pobre, que mora nas periferias - por em causa a validade dos saberes impostos e

transmitidos? Sobre tudo isso o fuxico, com sua errância e multiplicidade, tem muito a

dizer. A propósito, no fuxico não há periferia ou centro. Aliás, ele evidencia que, ao

considerarmos algo periférico, é bom lembrar, como na banda de Möbius: o dentro é o fora

e vice-versa.

Inexato, exato anexato

Ricardo, você acha que eu posso dizer que o fuxico é uma maneira de trafegar pelos

arquivos críticos, filosóficos, científicos do mundo, através de operações que trazem vida a

este arquivo, que o colocam em estado de devir?

Eu acho que não, que tal “fuxico opera nos arquivos críticos-filosóficos-científicos em

devir vida” se quiseres muito usar 'devir'... não devemos dar bola nem pra Deleuze.

Eu, misturada a todos, continuo a me chamar Carmem. Por isso, discordo um pouco do

Ricardo. Nada me custa atender e cumprir certos protocolos acadêmicos de citação e

referência ao legado de que dispomos. Afinal, dissemos antes que a ciência maior e a

menor vivem aos abraços e às turras; por mais que desgramaticalizemos nossos falares,

sempre voltaremos a uma certa gramática; algo se mantém nas rupturas, de tal modo que

possamos continuar, fazer e desfazer; somos eternas penélopes. Deleuze e Guattari, por

exemplo, têm um lindo momento, acho que em Mil platôs (v.5), onde eles falam do espaço

posto entre a ambição ao exato e a presença teimosa do inexato. O problema está na

Page 13: Em fuxicos se fazem ciência e arte - 15snhct.sbhc.org.br · Fazer ciência, então, é como fazer arte, artesanato, literatura, discursos. Ciência, tanto quanto as coisas da vida

dicotomia. Admitindo o anexato, que não é nem um nem outro, abraçamos um pensamento

mais disposto para a criação.

Então, Ricardo e Isabel, vamos fechar. Cada um manda um fuxico.

Isabel: Se Brás Cubas escreveu suas memórias, coisas vividas ditas pelo morto, nós aqui,

muito vivos, dizemos em tom presente o encontro que não vivemos.

Ricardo: Se o outro lado é esse lado, como nos ensinam distraidamente as matemáticas, eu

me pergunto se não seríamos apenas rãs coaxando em um charco azul galáxia?