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micheliny verunschk–é escritora. É autora dos livros de poesia Geografia íntima do deserto (Landy, 2003), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003), A cartografia da noite (Lumme Editor, 2010) e maravilhas banais (Martelo Casa Editorial, 2017). Publicou, entre outros romances, Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2015.

Lições da Vertigem

Primeiro as minhas mãos passaram a se contorcer, os braços formigando como se descargas mínimas de eletricidade se movessem sob a pele ou como se formigas, as formigas do verbo formigar, centenas delas, se movessem num ir e vir frenético e contínuo. O fervilhamento começava nos antebraços e irradiava em direção aos ombros e às mãos. Chegando aos ombros, estes começavam a se contrair em direção ao peito, e chegando às mãos, estas se retorciam para dentro, os dedos em direção às palmas, sem qualquer obediência. Braços e mãos de uma louca.

Depois comecei a ter pequenos sufocamentos, uma súbita dificuldade de fazer com que o ar chegasse até os pulmões.

Como se uma asma temporã me ameaçasse com o seu gatilho. Geralmente acontecia durante o sono, eu acordava, então, agitada, procurando ar com o desespero de quem sente que está prestes a morrer. Muitas vezes após recuperar o ar, começavam os movimentos serpiginosos, o meu corpo me avisando que algo estava sabotando o sistema. Como se eu tivesse, de uma hora para a outra, me transformado na Senhorita W, relato de caso que li, certa vez, numa revista de psiquiatria. Ou como se eu estivesse me tornando uma personagem de ficção, a pobre louca na torre do castelo.

Hoje, quando todos esses sintomas estão distantes pelo tempo, quando os movimentos pseudoneurológicos foram romanticamente associados ao meu sofrimento por reminiscências, conforme Freud, posso talvez vasculhar imperfeitamente aqueles dias.

Eu estava no colégio quando senti a dor. Nunca a sentira antes, uma dor ao longo da barriga, uma dor que repuxava um órgão, não sei que órgão, por dentro. Ligaram para os meus pais, mas não conseguiram localizá-los. Me ofereceram um analgésico e um professor se apresentou para me levar em casa. Eu gritava e gemia. Já em casa, eu só queria um lugar para me encolher, para me acalmar. Ou a presença da minha mãe. Alguém que me dissesse que eu não estava morrendo.

Não se preocupe, vai passar, o professor falou com autoridade.

Mas você deveria ver o que está acontecendo com os seus peitos. Eles estão crescendo demais, não acha?

Posso examinar? As mãos daquele homem levantando a

minha blusa me fizeram pensar que não era eu quem estava ali. Que era algo a que eu

assistia, como uma espectadora distante, na última fileira do teatro.

Ele está me ajudando. A dor vai passar. Tenho certeza. Ele sabe o que está fazendo.

Sim, já estão bem crescidos. Você precisa mesmo ir a um médico, não é?

Mas não diga que examinei, não diga a ninguém, eu não tenho diploma para isso.

Posso vê-los? Não conte a ninguém. São durinhos, não é? Estão doendo?

Talvez tenha sido esse o disparador. É muito possível que tenha sido essa a origem daquele balé incômodo e patético. Quando mais tarde o sangue desceu pela minha calcinha, eu gritei sim, como uma louca, não ainda a louca contorcida, que só apareceu mais tarde, mas a louca ensanguentada, minhas mãos sujas pela boca, pelas faces, pelos olhos, pelo cabelo. Minha certeza de que ia morrer aquele dia.

Minha filha, fique calma, isso é assim

mesmo. Você vai se acostumar, e essa é a voz de mamãe, tentando me conter e me conduzindo para o chuveiro onde a água escorria, vermelha, pelo chão.

Ou talvez tenha sido outra a história, porque lembro bem que procurei o professor para agradecer a ajuda, e só há relativo pouco tempo é que posso compreender o motivo de ele ter sido esquivo na ocasião e do quanto eu era ingênua para perceber que havia sido abusada.

Então, procurando outra hipótese para meus movimentos involuntários, para minha respiração suspensa, e depois para a tremedeira que passou a me acometer toda vez que ouvia um ruído inesperado, penso que talvez tudo tenha origem na queda do avião.

Morávamos há três quadras da Praça da Felicidade, lugar onde costumava ir todos os fins de tarde, uma praça como as outras, bancos, árvores, crianças, velhos

jogando seus jogos de tabuleiro. Uma rotina circular e monótona até a noite em que o monomotor caiu, arrastando três casas, matando 25 pessoas, se aninhando entre os escombros da felicidade, um pássaro feio, retorcido, flamejante sem, no entanto, ser uma fênix. Acordamos todos, eu, meus pais, e o bairro inteiro, sob seu estrondo, seu pio horrível, suas explosões.

Passei a ter pesadelos recorrentes com aeronaves caindo. Num deles, a tarde transcorria quente e azul, o avião ao longe, no horizonte, e apenas eu na varanda de casa observando ele se aproximar, se aproximar mais e tanto, com suas hélices ensurdecedoras, com seu calor de centro do sol. Nessas histórias, eu sempre morria ao final e passei a dispensar o uso do ventilador no quarto porque não era raro que o sonho confundisse as hélices dos aviões sonhados com as pás do eletrodoméstico

e isso estendesse o inferno para o estado sobressaltado da vigília.

O que o Dr Herbert diria a Lynda Coldridge, no romance da senhora Lessing? Diria que transtornos dissociativos se caracterizam pela perda parcial ou completa das funções normais de integração das lembranças, da consciência, da identidade, das sensações imediatas e do controle dos movimentos corporais? Diria que qualquer tipo de movimento assim pode acontecer em episódios dissociativos, movimentos como tremores, espasmos, contrações, convulsões, paralisias etc? Diria que tudo isso pode desaparecer, como desapareceu, em algum momento? Diria para ela isso, além da palavra “escreva”?

Continuo perseguindo aquele tempo. E me pergunto se não foi a morte dos meus irmãos, muito tempo antes do abuso e da queda do avião, que desencadeou as contrações, as

pequenas paradas respiratórias, os tremores e depois a vertigem que me acometeu. Sim, a vertigem, aquele rápido e quase automático apagamento dos sentidos a cada vez que a minha mãe elevava a voz, e penso que talvez isso se ligasse de algum modo aos gritos que ela deu quando chegaram os dois corpos em casa, as duas crianças abraçadas como se abraçadas pudessem enfrentar a tromba d’água que os colheu aquele sábado. É tão feia a morte por afogamento, destrói tanto a inocência, seja da paisagem, seja de alguém que nunca viu aquilo, a morte inchando os pulmões como bexigas. Talvez a vertigem tenha começado porque me senti morrer com os meus irmãos.

Ou talvez nada disso, talvez eu seja apenas a Senhorita W, um caso clínico inventado numa revista de psiquiatria fictícia, um relato fabulatório e atravessado por desventuras para apreciação do leitor, do

primeiro leitor, eu mesma, eu que escrevo esta narrativa, eu que não sei mais se escrevo ou se sou lida, eu que lembro vagamente de haver levado um tiro quando criança num assalto ou terá sido numa briga entre meu pai e minha mãe, eu que nem sei se o que concluo agora é a minha vida ou um salto, um deslumbrante salto dentro das palavras.

Escreva, escreva. Foi isso que o Dr Herbert falou.

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