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  • ALIANA (2011)

    HOLOS, Ano 27, Vol 4 201

    PESQUISA (AUTO)BIOGRFICA E (AUTO)FORMAO CRTICA DO PROFESSOR DE LNGUA INGLESA

    Priscila Aliana Instituto Federal do Rio Grande do Norte Campus Ipanguau

    [email protected]

    Artigo submetido em setembro/2011 e aceito em setembro/2011

    RESUMO

    Este artigo busca estabelecer relaes entre a pesquisa autobiogrfica e a autoformao crtica de professores de Lngua Inglesa. O termo crtico aqui retomado no sentido marxista que Paulo Freire adotou e difundiu. Essa autoformao crtica, ento, um processo que tem o professor como figura central de sua prpria formao e que o impulsiona rumo ao que chamaremos de engajamento poltico-pedaggico. A pesquisa autobiogrfica pretende que, a partir da narrativa de si, o narrador retome sua histria, sua

    formao e sua atuao profissional para ressignific-las. Ao contar suas experincias, o narrador est se submetendo a um processo de reflexo e (auto)formao elaborando sua biografia educativa (Dominic, 1984, e Josso 1986, apud Josso, 2010). A presente pesquisa aponta um importante potencial crtico-reflexivo e transformador na abordagem autobiogrfica como ferramenta de autoformao docente.

    PALAVRAS-CHAVE: pesquisa (auto)biogrfica, ensino de Lngua Inglesa, pedagogia crtica.

    (AUTO)BIOGRAPHICAL RESEARCH AND (SELF)EDUCATION OF THE ENGLISH LANGUAGE TEACHER

    ABSTRACT

    This paper aims to establish relations between autobiographical research and critical self-education of EFL teachers. Here the term critical is taken in the Marxist sense that Paulo Freire adopted. Such critical self-education is a process that places the teacher in the central role of his own education; a process that pushes the teacher towards what we will call political-pedagogical engagement. Autobiographical research intends that, through the narrative of oneself, the narrator revisits his own history, education and

    professional practice to re-signify them. While telling his experiences, the narrator is subjecting himself to a process of reflection and (self)education building his educative biography (Dominic, 1984, and Josso 1986, apud Josso, 2010). The present research points to an important potential of transformation and critical reflection within the autobiographical approach as a tool in teachers self-education.

    KEY-WORDS: (auto)biographical research, ELT, critical pedagogy

  • PESQUISA (AUTO)BIOGRFICA E (AUTO)FORMAO CRTICA DO PROFESSOR DE LNGUA INGLESA

    INTRODUO

    Este artigo busca estabelecer (ou explicitar) relaes entre a pesquisa autobiogrfica e a autoformao crtica de professores de Lngua Inglesa (doravante LI). Quando uso o termo crtico retomo-o no sentido marxista que Paulo Freire adotou e difundiu. Essa autoformao crtica, ento, um processo que tem o professor como figura central de sua prpria formao e que o impulsiona rumo ao que chamaremos de engajamento poltico-pedaggico.

    Tomo aqui a liberdade de no usar quaisquer dos recursos de impessoalizao comuns ao domnio discursivo acadmico (como a utilizao da primeira pessoa do plural) e de referir-me a mim mesma como sujeito explcito de cada posicionamento adotado neste artigo. Tomo essa liberdade para dar a este estudo um carter mais condizente com a abordagem metodolgica escolhida a pesquisa autobiogrfica parte essencialmente da narrativa de vida e os pesquisadores que a adotam frequentemente referem-se a si prprios na primeira pessoa do singular. Confira-se, por exemplo, as obras Experincias de vida e formao, de Marie-Christine Josso (2010), e Memria e sociedade: lembranas de velhos, de Ecla Bosi (2004).

    A pesquisa autobiogrfica pretende que, a partir da narrativa de si, o narrador retome sua histria, sua formao e sua atuao profissional para ressignific-las. A respeito da abordagem autobiogrfica, Dias (2008) escreveu:

    Os trabalhos que desenvolvemos sob a orientao dessa abordagem, em especial das estrias de vida, tomam a narrativa de si como metodologia de pesquisa e processo de formao, por acreditarmos que as experincias de vida narradas constituem um referencial daquilo que foi apropriado pelos sujeitos na sua histria de vida (...). (p. 222)

    Assim, ao contar suas experincias, o narrador est se submetendo a um processo de reflexo e (auto)formao elaborando sua biografia educativa (Dominic, 1984, e Josso 1986, apud Josso, op. cit.). Busco, ento, transformar a produo deste trabalho num processo de reinveno de mim mesma como professora de LI.

    Desde o ingresso no curso de Licenciatura em Letras (com habilitao em Lngua Portuguesa, Lngua Inglesa e suas respectivas literaturas), percebo um afastamento intrigante entre minha formao especfica como professora de LI e aspectos poltico-educacionais. As instncias formativas direcionadas ao ensino de Lngua Portuguesa (LP) estavam permeadas de um engajamento apaixonante, revelando relaes de poder entre as diversas variedades de nossa lngua materna (bem como seus usurios), demonstrando como um ensino que parta da realidade do aluno premissa para uma educao emancipadora. Eram discusses acaloradas: debates acerca da natureza poltica da educao, da impossibilidade de um ensino neutro, do carter potencialmente reprodutor ou transformador da escola. Diversos nomes de estudiosos surgiam com bastante frequncia (Srio Possenti, Marcos Bagno, Magda Soares, dentre outros), mas nenhum era to constante como Paulo Freire. O processo de alfabetizao no fazia parte oficialmente de nossa formao universitria, mas o mtodo de alfabetizao desenvolvido por Paulo Freire era tomado como ponto de partida para o ensino de LP, constantemente.

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    J nos espaos voltados nossa formao como professores de LI, as discusses assumiam um carter bastante diverso do descrito acima. Presos numa dinmica perversa e autogeradora, muitos de ns chegavam ao ensino superior sem um conhecimento satisfatrio da prpria LI que os permitisse, por exemplo, acompanhar tranquilamente as aulas (ministradas na lngua-alvo). Percebia-se que aqueles jovens que estavam ali imbudos do desejo de ensinar LI precisavam, antes de tudo, aprender a prpria LI curiosamente uma lngua que deveria ser ensinada eficientemente na Educao Bsica. Em se tratando desta ltima, eu mesma sou testemunha desse problema: era considerada por meus colegas e professores como uma usuria bastante competente de LI, mas reconhecia e reconheo que essa competncia no foi fruto de minha formao escolar. Antes, foi um conhecimento adquirido em cursos de LI (bastante caros, por sinal). Seria justo que a aprendizagem de LI um direito garantido por lei dependesse desse tipo de recurso? Faz sentido que um direito de todo estudante brasileiro passe a ser exclusivo daqueles de maior poder aquisitivo?

    Talvez por essa realidade complicada as discusses sobre educao permaneciam restritas aos debates em torno do ensino de LP. Quando tratvamos de LI, a preocupao maior era aprender a prpria LI, sempre. medida que disciplinas essencialmente pedaggicas iam se incorporando aos nossos horrios de aula (Psicologia da Aprendizagem, Psicologia do Desenvolvimento, Estrutura e Funcionamento do Ensino, Introduo Educao, etc.) as discusses eram para mim extremamente estimulantes. Como potencial professora de LP, cada discusso fazia muito sentido para mim e eu conseguia perceber claramente as relaes entre tais disciplinas e o ensino de lngua materna. Meu papel poltico-educacional como professora de LP se desenhava claramente diante de mim. Mas como professora de LI, eu me via como um oceano de dvidas: se no h educao neutra, se todo professor se posiciona politicamente a favor de uma coisa e contra outra (como o prprio Paulo Freire (2008) postulava), qual o papel poltico do professor de LI na Educao Bsica? Como posso, enquanto professora de LI, assumir um engajamento poltico-pedaggico dentro e fora da sala de aula?

    A graduao acabou e as dvidas persistiram. O convvio com outros professores de LI despertava ainda mais inquietaes: o discurso de muitos colegas partia de uma perspectiva conteudista estrutural (o ponto de partida das aulas, do recorte curricular, das atividades selecionadas e dos trabalhos desenvolvidos era, necessariamente, um tpico gramatical) e essencialmente tecnicista no que diz respeito aos mtodos e s tcnicas de ensino. Por vezes, quando indagados por mim acerca de nosso papel como educadores, as respostas vinham totalmente vazias de um posicionamento poltico-educacional explcito1. Tericos da educao como o prprio Paulo Freire eram frequentemente definidos por meus colegas como bonitos no papel, mas impossveis na prtica. Aquelas respostas no me convenciam: como Paulo Freire pode ser impossvel na prtica se as reflexes dele surgiram justamente a partir da prtica? Esta inquietao desencadeava outras: como impossvel adotar ideias de Vygotsky em sala de aula se elas explicam justamente como o sujeito

    1 Digo explcito porque obviamente um posicionamento poltico sempre vai existir em toda ao educativa. De maneira simplista, se um professor no trabalha pela transformao de uma realidade, trabalha, mesmo sem querer, pela manuteno dessa realidade. O discurso abordado aqui no trazia nenhuma preocupao com transformao social a partir da prtica daqueles docentes, apenas da prtica de professores de outras reas.

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    aprende? Como eu no posso compreender a LI a partir das relaes sociais (e, portanto, de poder) que permeiam a linguagem, como prega(ra)m Foucault (2001, apud Santos Filho, 2008), Bagno (2008), Koch (2006) e Soares (2008) se a LI uma lngua sujeita s mesmas condies de produo que qualquer outra? Seria preciso compreender a aprendizagem no como um fenmeno que parte da interao do sujeito com o outro e com o seu objeto de conhecimento, mas como um processo mecnico e reprodutor; seria preciso entender lngua no como um espao sociointeracional, mas como um sistema de regras, uma ferramenta opaca, vazia de nuances, que no sofresse influncias sociais, histricas, geogrficas nem polticas. Se eu no compartilho com essa viso simplista da minha profisso, as questes permanecem e servem de fora motriz at hoje.

    Minha trajetria docente se confunde com a busca por respostas satisfatrias s perguntas levantadas aqui. Considero-me hoje uma professora de LI com uma viso e uma prtica emancipadoras e permeadas do engajamento poltico-educacional que ora advogo. Mas se essa formao crtica no se deu no mbito formativo primordial a universidade como se deu ento? Que experincias de vida e formao esto to vivas hoje em minha memria que permeiam toda a minha prtica e minhas percepes atuais? Na busca por respostas a estas perguntas a abordagem (auto)biogrfica constitui um caminho metodolgico bastante pertinente. Importa ento revisarmos algumas ideias de autores recorrentes nas pesquisas (auto)biogrficas. A partir deles, estabeleo relaes entre essa corrente metodolgica e a formao crtica do professor de LI utilizando-me, posteriormente, de meu prprio percurso formativo.

    CONSIDERAES SOBRE A PESQUISA AUTOBIOGRFICA

    H uma crescente produo bibliogrfica hoje acerca de educao partindo da abordagem (auto)biogrfica. Destaco a coleo Pesquisa autobiogrfica Educao (editada pelas editoras EDUFRN e Paulus), cuja apresentao diz que Em Educao, a pesquisa (auto)biogrfica amplia e produz conhecimentos sobre a pessoa em formao, as suas relaes com territrios e tempos de aprendizagem e seus modos de ser, de fazer e de biografar resistncias e pertencimentos. Reunindo pesquisadores de diversas instituies, a coleo constitui uma fonte importante de material sobre essa abordagem. Cito aqui os volumes seis (Narrativas de formao e saberes biogrficos (2008), organizado por Passeggi e Barbosa) e sete (Pesquisa (auto)biogrfica: cotidiano, imaginrio e memria (2008), organizado por Souza e Passeggi). Elenco tambm as obras previamente citadas de Marie-Christine Josso e Ecla Bosi, sendo que a primeira tambm integra a coleo mencionada. H ainda um artigo importante para minha compreenso inicial da pesquisa (auto)biogrfica: Formao e autoformao: uma discusso sobre memrias, histrias de vida e abordagem autobiogrfica, de Marlia Duran (2009), tambm colaboradora da referida coleo.

    A abordagem (auto)biogrfica no ainda um ponto pacfico em termos epistemolgicos. Duran (2009) explicita essa questo ao afirmar que

    (...) a luta pelo reconhecimento de um estatuto cientfico ao mtodo biogrfico mantm-se viva no campo das Cincias Sociais, e entendemos tambm que sua introduo em outros

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    campos do conhecimento, em especial nos campos da Educao e da Psicologia Social, tem provocado grandes debates terico-epistemolgicos, como aqueles de cunho mais ideolgico. (p. 27)

    A autora aponta que, para Finger (1988), o mtodo biogrfico uma reao tradio positivista do fazer cientfico. Esse papel de mtodo alternativo tambm exposto por Ferrarotti (apud Duran, op. cit.), que diz o seguinte:

    Subjetivo, qualitativo, alheio a todo esquema hiptese-verificao, o mtodo biogrfico projeta-se partida fora do quadro epistemolgico estabelecido das cincias sociais. A sociologia no aceitou o desafio que lhe era lanado por esta diversidade epistemolgica, e fez tudo para reconduzir o mtodo biogrfico para o interior do quadro tradicional. E a que preo! Por meio de um duplo desvio epistemolgico, procurou-se utilizar o mtodo biogrfico, anulando completamente a sua especificidade heurstica. (p. 28)

    O mtodo biogrfico surge como resposta a uma necessidade das Cincias Sociais: necessidade de uma nova metodologia, de uma antropologia do concreto, do cotidiano. Entretanto, a Sociologia se apropria dele ainda sob a gide da tradio epistemolgica, utilizando-o de maneira reducionista, como mera fonte para coleta de dados, como um corpus o pesquisador recorre ao relato biogrfico para dele retirar um ou outro elemento isolado e no leva em conta o carter integral, a unidade de sentido desse relato.

    Duran segue explicando que, a princpio, as caractersticas que tornam o mtodo biogrfico to atraente seriam justamente aquelas que limitariam sua cientificidade. Entretanto, ela recorre novamente a Ferrarotti para encontrar uma soluo para esse impasse epistemolgico:

    Ao retomar a discusso do mtodo biogrfico, ao retomar a posio de Sartre do universal singular, Ferrarotti prope uma opo metodolgica: Se todo indivduo a reapropriao singular do universal social e histrico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutvel de uma prxis individual (1979). Entendemos que esta opo metodolgica retoma o debate epistemolgico sobre o papel da subjetividade na elaborao do conhecimento. (p. 29)

    nessa retomada da subjetividade que, para mim, reside a riqueza do mtodo biogrfico: se para o quadro epistemolgico dominante o cientista deve libertar-se de sua substncia humana e renunciar pessoa, sociedade e cultura2 para poder produzir conhecimento, este quadro emergente simplesmente reconhece que isso no possvel. Quem fala, sempre fala de um determinado lugar no tempo e no espao, assume sempre um ponto de vista. Retomando Paulo Freire, podemos afirmar que o mtodo biogrfico resolve uma velha falcia acadmica: a de que a cincia neutra e objetiva. Neutralidade uma iluso nos dois lados do ciclo gnosiolgico, tanto na escola, onde o conhecimento formal essencialmente se difunde, quanto na academia, onde o conhecimento formal essencialmente produzido.

    Ecla Bosi (2004) traz reflexes importantes acerca do papel social da memria. A autora pressupe a existncia de um estofo social da memria, tomado em si, independente do conceito filosfico mais geral que se possa ter da atividade mnemnica (p. 43).

    2 J o v c h e l o v i t c h ( 2 0 0 8 ) , a p u d D u r a n , o p . c i t .

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    Retomando os estudos de Henri Bergson, a autora estabelece uma questo bastante importante para o que proponho aqui: a relao entre a percepo (atualizada) e a lembrana (percepo passada e guardada como representao inconsciente). Na realidade, no existe percepo que no esteja impregnada de lembranas (Bergson (1959), apud Bosi). A partir dessa afirmao, podemos entender que tudo aquilo que aprendo, tudo aquilo que meu corpo apreende inclusive ideias relacionadas ao meu trabalho docente no se d de maneira pura, objetiva, neutra; antes, toma forma em minha mente moldando-se quilo que vivenciei e que sobrevive em minha mente inconsciente. Percebo o mundo hoje a partir de todas as vivncias que minha memria retm. Para Bergson, a lembrana tem um papel to importante que Bosi escreve (e Duran retoma) o seguinte:

    (...) a memria permite a relao do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representaes. Pela memria, o passado no s vem tona das guas presentes, misturando-se com as percepes imediatas, como tambm empurra, desloca essas ltimas, ocupando o espao todo da conscincia. A memria aparece como fora subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (p. 47)

    Como matria prima do mtodo biogrfico, a memria, resgatada sob a forma de lembrana narrada, permite ao sujeito tomar conscincia de elementos que definem como ele se relaciona com suas percepes atuais. Se o sujeito adota hoje um dado posicionamento, a narrativa autobiogrfica vai conduzir esse sujeito s experincias de vida e formao que delineiam esse posicionamento. A narrativa autobiogrfica uma prtica de linguagem constitutiva da prpria memria que se resgata. No processo de relato autobiogrfico, eu me distancio de mim mesma, estabelecendo uma relao dialgica comigo, e nesse distanciamento eu consigo alcanar um nvel mais alto de criticidade em relao ao que lembro e percebo. A partir do trabalho autobiogrfico o sujeito tambm pode dar-se conta de seu maior ou menor grau de passividade diante da prpria formao. Para Pineau (1988, apud Duran, op. cit.) a narrativa de vida estimula a explicitao de dinmicas sociais implcitas que podem ser aprisionantes. Fica claro ento o potencial emancipador do mtodo biogrfico (Duran, op. cit., p. 31). Elaborar uma biografia educativa promove reflexes importantes do sujeito sobre sua formao e sua prtica, tensionando lembrana e percepo atual eis o fundamento de um professor crtico-reflexivo, capaz de formar-se a si prprio.

    Josso (op. cit.) oferece, na pgina 47, uma ideia de como se constitui uma biografia educativa: material narrativo constitudo por recordaes consideradas pelos narradores como experincias significativas de suas aprendizagens, da sua evoluo nos itinerrios socioculturais e das representaes que construram de si mesmos e do seu ambiente humano e natural. interessante perceber que no se trata de esmiuar todo e qualquer detalhe da vida do narrador a prpria memria, no momento em que o mediador da narrativa a evoca, faz vir tona (lembrar, em francs souvenir que vem de sous venir, vir de baixo, emergir) aquelas percepes que, por terem sido mais significativas que outras, permanecem como representaes inconscientes e interferem nas percepes atuais. Assim, o sujeito-narrador de uma (auto)biografia educativa deve ter em mente a seguinte pergunta-motriz: o que aconteceu para que eu viesse a ter as ideias que eu tenho hoje? (p. 143).

    Um ponto importante deste trabalho a criticidade que espero de um docente com

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    compromisso poltico-educacional. Algum poderia se perguntar o que essa criticidade, o que esse compromisso teria a ver com a abordagem autobiogrfica. Alpio Casali (2008) traz j no ttulo de seu estudo um indcio de resposta: O legado de Paulo Freire para a pesquisa (auto)biogrfica. Ao longo de todo o artigo, o educador que inaugurou mundialmente o pensamento pedaggico crtico indicado como um docente em permanente formao de si mesmo. Esse processo formativo se dava, segundo Casali, em grande parte por meio da narrativa de si. O autor explica:

    No consta que Paulo Freire tenha se referido explicitamente pesquisa (auto)biogrfica como um aporte terico-metodolgico particularmente importante para a pesquisa em educao e para uma prtica educativa crtica. No obstante, no difcil perceb-lo e inscrev-lo como um autor inteiramente sintonizado com esse aporte, inclusive porque ele o praticou espontaneamente, de distintas maneiras, ao longo de todo o seu percurso intelectual, poltico e pedaggico. Disso temos vrios sinais. (p. 34)

    O autor prossegue e retoma na pgina seguinte uma declarao impactante dada informalmente pela viva de Freire, Ana Maria: Paulo compreendia que as histrias de vida eram (so) muito importantes: quem fala sobre sua vida se sente sujeito da histria. De fato, um elemento bsico do mtodo de Freire era a oportunidade dada aos alunos (adultos trabalhadores, analfabetos, pobres, escanteados e desumanizados) de falarem ao professor sobre sua prpria realidade. Essa realidade era, assim, ensinada ao professor, colocando os alunos-narradores numa posio que nunca antes eles haviam experimentado. Eles eram os sujeitos da aula. A partir dessa narrativa, Freire incentivava seus alunos reflexo sobre o que eles acabaram de contar, num exemplo simples e interessante de (auto)formao pelo relato autobiogrfico.

    Alm de se fazer mediador da autobiografia de outros, Paulo Freire tambm se muniu dessa ferramenta para formar a si continuamente ao adotar como gnero predominante em seus textos o testemunhal, memorial e historiogrfico (p. 35). Casali segue fazendo uma anlise da bibliografia de Freire que mostra como a narrativa de si est presente nela. Dos vrios exemplos possveis, elejo Medo e Ousadia o cotidiano do professor (Freire e Shor, 1986), um livro escrito em forma de dilogo entre seus autores. Cito um trecho que evidencia o carter autobiogrfico das reflexes que o livro traz:

    Paulo. (rindo) Sim! Meu comeo tambm foi assim, faz muitos anos. A grande diferena que primeiro fui professor de sintaxe portuguesa. Adorava fazer aquilo! Claro que, naquele tempo, eu estava longe da compreenso necessria do condicionamento social da linguagem. Mas comecei como voc.

    Ira. Eu gostava de gramtica quando era garoto! Era um quebra-cabea. Aprendi as estruturas e fazia experincias com frases. Mas, a gramtica e a escrita no eram s quebra-cabeas pra mim. Eu as usei como degraus para ascender socialmente. (p. 29)

    Percebem-se claramente as marcas de um discurso autobiogrfico que constitui, ele mesmo, a matria de reflexo acadmica e pedaggica. A subjetividade no mascarada aqui, como acontece bastante nos gneros textuais do domnio acadmico: o envolvimento do estudioso com seu objeto de estudo fica naturalmente evidenciado sem que isso prejudique a validade do estudo em si. De maneira fluida, as reflexes sobre uma pedagogia crtica e emancipadora vo se desenhando ao longo do livro, especialmente no tocante a Shor, que

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    indaga Freire constantemente sobre como pode um professor tornar-se um professor libertador e vai, a partir de suas prprias experincias e frustraes, se descobrindo, se ressignificando como um professor que j tem uma prtica libertadora.

    Ficam claros: (1) o carter emancipador da narrativa de si; (2) o potencial da pesquisa autobiogrfica para a ressignificao da prtica docente e (3) o virtual pensamento crtico desenvolvido a partir da narrativa de si. Sobre os fundamentos lanados at agora, retomo a seguir a narrativa de mim previamente interrompida. Elencarei trs momentos que considero chave para minha formao: os dois primeiros dizem respeito a leituras autnomas; o terceiro tem a ver com meu ingresso como docente na rede pblica de educao.

    ENGAJAMENTO POLTICO-PEDAGGICO DE UMA PROFESSORA DE LI: GNESE

    Com pouco mais de um ano de graduada, distanciada de instncias de formao continuada de professores, dei incio a uma busca solitria por material de leitura para minha autoformao. Dentre muitos achados, destaco um texto que considero divisor de guas na construo de minha prtica docente. Trata-se do artigo O educador em lngua dominante e o desenvolvimento sustentvel, de Maria Ceclia Piccoli (2006). Esse artigo me despertou grande alvoroo, pois pela primeira vez eu me via diante de uma obra acadmica voltada para o ensino de LI no numa perspectiva meramente metodolgica ou conteudista: as reflexes que a autora suscitava diziam respeito ao papel do professor de LI como um educador preocupado com a formao crtica de seu aluno. Ao longo da leitura, tive a sensao de que lia coisas nas quais sempre havia acreditado mas nunca havia conseguido dizer. Seguem alguns trechos:

    Percebe-se que o professor de lngua estrangeira mantm-se afastado do contexto educacional propriamente dito e preocupa-se apenas em transmitir os contedos lingusticos. Esses professores tm evitado considerar o ensino de lngua estrangeira como parte relevante da educao integral do ser humano, desconhecendo muitas vezes as razes e os porqus do ensino de pelo menos uma lngua estrangeira como aspecto fundamental na educao de sujeitos. (p. 2)

    Essas palavras calaram profundamente dentro de mim. Pela primeira vez em minha trajetria acadmica e profissional eu ouvia um estudioso comentando o distanciamento que eu sempre percebera na graduao distanciamento entre nossa formao como professores de LI e questes poltico-educacionais.

    Os cursos de formao de professores especialistas no tm contemplado eficazmente os aspectos relativos educao e formao de cidados. Somado a essa situao vemos ainda que em congressos, workshops e palestras de TEFL e de TESOL3 no so oportunizadas

    3 Teaching English as a Foreign Language e Teaching English as a Second Language: ensino de ingls como lngua estrangeira ou como segunda lngua.

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    discusses que relacionem metodologias, abordagens e tcnicas com temas de educao em lngua inglesa. (p. 2, grifo meu) Este trecho estende esse distanciamento para alm da universidade: para a autora,

    mesmo os espaos de formao continuada de professores de LI se mantinham alheias a qualquer debate de cunho educacional. Em outras palavras, Piccoli desmascara a falta de uma formao crtico-reflexiva do professor de LI. Mas o elemento que mais me surpreendeu na leitura do trabalho em questo, aquele que me despertou maior euforia intelectual, no dizia respeito apenas a esse distanciamento denunciado. Segue um trecho ilustrativo:

    A lngua inglesa pode ser considerada como lngua franca, lngua internacional ou lngua global. Contudo, aps a pesquisa realizada, optei pela definio e uso da lngua inglesa como lngua dominante, uma vez que considero este termo eficaz para transmitir a ideia do domnio, da fora e da presso com relao ao uso da lngua. (...) A expresso lngua dominante mostra, com efeito, tanto a fora que a lngua inglesa tem ainda hoje no mundo, como a energia daquilo que tem sido praticado pelo principal e mais rico dono desta lngua: a manipulao e o domnio econmico, poltico e tambm cultural das demais naes, desenvolvidas ou no, do globo terrestre (p. 11). A partir desta reflexo, uma srie de inquietaes sobre meu objeto de trabalho

    encontrou, enfim, um encaminhamento. Questes acerca das relaes de poder envolvendo o ensino de LI tiveram uma direo: ora, se uma determinada linguagem est sendo ensinada formalmente, porque essa linguagem goza de mais prestgio que outras e estas ltimas sero avaliadas e julgadas na medida em que se aproximam ou no daquela primeira. E ainda: linguagens esto sempre atreladas a grupos sociais; o poder e o prestgio de uma dada linguagem no se devem a sua estrutura, sonoridade ou qualquer outra caracterstica intrnseca. O valor que se atribui a uma linguagem est diretamente ligado ao poder e ao prestgio de que desfrutam seus usurios. Essa questo j vinha sendo debatida havia anos pelos pesquisadores dedicados ao ensino de Lngua Portuguesa (vide Ilari, Geraldi, Soares, Freire, Bagno e outros), mas no costumava aparecer nos estudos nem na sala de aula de LI.

    Um segundo momento de grande valia para minha caminhada rumo a uma autoformao crtica foi a leitura de um livro que j citei aqui: Medo e ousadia: o cotidiano do professor, que teve (e tem) um papel importantssimo nas minhas reflexes e na minha autocrtica. Foi durante a leitura desse livro que eu consegui relacionar com alguma

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    segurana o iderio freireano minha prtica como professora de LI.

    Freire e Shor, como mencionei previamente, debatem acerca de como pode um professor assumir uma postura libertadora. Chamo ateno para um elemento especfico da obra: o momento em que Freire estabelece dois papis bsicos do professor de linguagem (o professor reacionrio e o professor libertador). A partir dessa dicotomia, ele elenca posturas de um e de outro:

    Pense em dois professores de ingls. Um, reacionrio convicto que no quer ouvir falar em mudana social. Pensa que todas as coisas que existem so boas e devem ficar como esto, que os que fracassam so responsveis pelo seu prprio fracasso. (...) Ento o professor libertador usa uma abordagem diferente no que diz respeito linguagem, ao ensino, aprendizagem. Sabe muito bem que a linguagem um problema ideolgico. A linguagem tem a ver com as classes sociais, sendo que a identidade e o poder de cada classe se refletem na sua linguagem. Mas o professor libertador tambm sabe que o padro que hoje governa a linguagem muito elitista. Os poderes que governam a sociedade como um todo tm um padro atravs do qual julgam a linguagem. Se o professor libertador quer ensinar competentemente, deve conhecer bem o critrio da elite atravs do qual a linguagem valorizada. um critrio de linguagem difcil de ser alcanado pelas pessoas comuns de baixa extrao econmica [...]. Ao entender os aspectos elitistas e polticos do uso padronizado da lngua, o professor libertador evita culpar os estudantes pelo choque entre sua prpria linguagem e as formas em vigor. Sabendo disso o professor libertador trabalha com os estudantes, que devem obter um bom domnio do ingls padro e de seu uso correto. (grifo meu, pp. 88-89) O contexto em que se inscreve o trecho acima de LI como lngua materna, mas me

    permitiu fazer uma srie de paralelos com o ensino de LI como lngua estrangeira: (1) a ideia de que h, sempre, na relao de poder entre classes diferentes, a relao de poder entre linguagens diferentes (este princpio aplicvel a diferentes lnguas e a variedades sincrnicas de uma mesma lngua); (2) a essncia social da linguagem e das relaes em que ela se insere; (3) a essncia poltica do ensino de (uma determinada) linguagem na educao formal; (4) o posicionamento poltico que o professor assume (necessariamente) em sua prtica, por mais que no se d conta disso.

    Percebi que, se eu desejasse assumir o papel de professora libertadora, eu precisava levar em conta: (1) a relao de poder entre a LI e as demais lnguas, sobrepujando-as e se caracterizando como Lngua Dominante em relao nossa; (2) a LI no acontece, inclusive em solo brasileiro, descontextualizada. Ela tem um carter social e se d no espao social; (3) o ensino de LI nas escolas brasileiras est imbudo de um contedo poltico que a maioria de seus professores insiste em no ver e no debater, sob pena de recair numa prtica arraigada em fundamentos reacionrios e elitistas.

    O ltimo momento que retenho em minha memria como fundante da docente que sou hoje o meu ingresso como professora de LI na rede pblica de ensino. a partir daqui, sem dvida, que uma srie de elementos que eu j trazia, ainda incipientes, alcanou terreno frtil e pde, finalmente brotar. Tambm nesse novo espao de trabalho que muitos outros debates geralmente novos para mim vieram agregar-se a minha prtica.

    No tempo em que era professora de escolas privadas, eu lembro que procurava discutir com meus alunos sobre questes ideolgicas envolvendo (o ensino de) LI. Explicava-

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    lhes sobre a nomenclatura lngua dominante e questionava-os quando surgia uma demanda de carter assimilador de elementos culturais estadunidenses ou anglfonos. Entretanto, no me sentia confortvel nem motivada para ir muito alm disso: primeiro, eu mesma ainda no sentia muita segurana nessa nova perspectiva de trabalho: como um discurso, sim, mas como conduzir esse discurso emancipador aos procedimentos, realidade prtica da sala de aula? Em segundo lugar, a dinmica de escolas privadas em geral no estimula as conversas e a troca de ideias entre professores, menos ainda o desenvolvimento de projetos didticos alternativos. Em geral, trabalha-se em diversas escolas diferentes, o que faz o professor estar na escola apenas para ministrar as aulas e no dispor de tempo para atividades no turno inverso, por exemplo. Alm disso, se ganha por hora, e muito dificilmente o dono de uma escola vai remunerar as horas extraclasse do professor-funcionrio. H ainda a questo do livro didtico, que custa caro ao aluno e, por isso, pesa sobre os ombros do professor a obrigao de realizar todas as atividades propostas no material. O livro didtico acaba adotando o professor, em vez de se dar o contrrio. Essa obrigao resulta em carga horria quase totalmente preenchida pelo uso do livro.

    Como se no bastassem todos esses elementos, o professor da rede privada que no se posiciona politicamente em consonncia com seu patro precisa tomar cuidado. Como no goza de estabilidade, h a tendncia aprisionante de tentar imprimir um carter neutro a sua prtica. Assim, mesmo um professor libertador, comprometido poltica e pedagogicamente, pode sentir-se acuado e intimidado.

    Quando comecei a trabalhar na rede pblica, tive uma sensao emancipadora. Pensei agora sim eu vou conseguir ser uma educadora de verdade. Aqui, eu estarei livre pra ser a professora libertadora de que Freire e Shor falaram. Aqui, eu poderei combater a ideia de ingls como lngua franca, romper com a iluso de neutralidade que tanto permeia o ensino de LI e desenvolver projetos para muito alm de qualquer livro didtico.

    De fato, senti-me, pela primeira vez, livre para seguir experimentando caminhos para uma prtica libertadora e para me deixar guiar por um compromisso poltico-pedaggico, sem amarras, sem medo de um patro elitista ou de clientes pagantes que se julgassem no direito de ditar as normas da minha prtica docente. Devo, inclusive, mencionar um certo espao de autoformao e um interlocutor especfico, ambos muito importantes para meu processo de autoformao. O espao a reunio pedaggica. O interlocutor, o pedagogo. No caso que narro, a pedagoga, para ser mais exata.

    Num primeiro momento, as reunies pedaggicas tinham um carter mais administrativo. Entretanto, quando a nossa equipe pedaggica teve liberdade para planejar as reunies de acordo com as demandas de nossa escola, cada reunio se transformava num importante momento de reflexo acerca de nossas prticas pedaggicas. Curiosamente, bastantes reunies assumiam um carter de pesquisa (auto)biogrfica, posto que nos era oportunizado que relatssemos experincias de formao e de trabalho uns para os outros, num processo educativo mtuo.

    Cheia de perguntas sobre como me tornar uma professora cada vez mais libertadora, eu procurava constantemente a pedagoga da escola para pedir orientao e compartilhar angstias. Tambm orientada pelo pensamento freireano, ela muitas vezes devolvia minhas

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    perguntas com outras perguntas. Em momento algum houve uma postura de oferecer respostas prontas, mas uma abertura e um incentivo para juntas descobrirmos um direcionamento para minha prtica em sala de aula e tambm para que eu desenvolvesse mais segurana e autonomia nesse percurso. Fui descobrindo, aos poucos, que o fato de ter perguntas a responder no deveria nem precisava ser fonte de medo. Medo, aqui, de acabar assumindo o papel reacionrio que minha formao acadmica como professora de LI desenhou para mim. Eram precisamente as minhas dvidas e meus questionamentos os agentes que no me permitiriam tomar esse rumo. Eram minhas dvidas e meus questionamentos que me ajudariam a desenvolver uma prtica docente crtica e reflexiva.

    CONSIDERAES FINAIS

    A partir de um exerccio de rememorao e narrativa da prpria trajetria, um sujeito capaz de, relembrando, ressignificar seu passado; refletindo, ressignificar seu presente. Em termos de formao docente, a narrativa autobiogrfica constitui uma ferramenta rica de possibilidades, posto que possibilita uma formao de si mesmo. O professor retoma seus processos formativos e sua trajetria profissional, construindo uma compreenso mais profunda de como se tornou o professor que . Tal compreenso colabora para a criticidade de si mesmo, de sua prtica, de seu relacionamento com seus alunos e outras instncias escolares, de suas posturas poltico-pedaggicas, de suas crenas, de suas leituras de mundo.

    A escrita de minha prpria narrativa de vida por mais breve que um artigo acadmico a obrigue a ser me proporcionou reflexes relevantes sobre como me tornei a professora que sou hoje. Retomando a inquietao diante da discrepncia entre duas formaes distintas que tive na graduao (professora de LP e LI), percebo que aquela falta no foi necessariamente uma ausncia formativa. Houve um processo formativo consciente em andamento de ambos os lados, s que embasados em diferentes concepes de lngua, aprendizagem e educao. Foi justamente minha percepo da tenso entre essas concepes que exerceu papel fundamental no desenho que minha prtica docente assumiria. Hoje reflito tambm sobre o que representaria a formao de um sujeito para o ensino de uma lngua estrangeira prescindindo da formao voltada para sua lngua materna. Talvez no seja interessante, ao menos em instituies pblicas de ensino superior, no formar professores sobre a base de nossa lngua materna. nela que reside nossa mais profunda identidade, nela que nos fundamos como cidados, ela que nos define a subjetividade. Penso hoje sobre como minha formao em ensino de LI foi e imprescindvel para minhas reflexes mais inquietantes e vejo com cautela a ideia de cursos de graduao em Letras direcionados para uma lngua estrangeira apenas.

    Relembrar meu momento de descobertas com Piccoli, Freire e Shor evoca a certeza de que todo professor precisa, pelo bem de sua prtica (e consequentemente pelo bem da educao) de um fator que lhe constantemente negado: tempo. Tempo para estudar, tempo para refletir, tempo para produzir. Pensando na realidade do RN, notrio que pouqussimas instituies de ensino proporcionam isso. Quando eu mesma li esses textos, estava desempregada. Possivelmente, se tivesse que sustentar uma famlia naquela poca,

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    trabalharia pela manh, tarde e noite de segunda a sexta. E mesmo aos sbados, em cursos de lnguas. Outra concluso a que chego que hoje, a formao crtica de um professor de LI depende de uma autonomia que a universidade no tem sucesso em fomentar. Tendemos, como professores, a reproduzir as prticas que vivenciamos como alunos. No se pode esperar que um graduando v, por si s, estabelecer uma srie de pontes entre elementos que nos so apresentados em compartimentos como educao emancipadora e ensino de LI; como o papel transformador do professor e o planejamento de uma aula. Ainda que no se ofeream respostas, um curso de Letras LI precisa, ao menos, problematizar o papel poltico do professor de LI. Se no h um direcionamento delineado, essencial que ao menos essa ausncia, essa falta seja evidenciada. Assim, percebo minha prpria trajetria formativa como anmala.

    No tocante ao meu ingresso numa instituio de ensino pblica e s reunies pedaggicas como espaos efetivos de (auto)formao, esse sentimento de exceo cresce. O relato de colegas de diversas reas em relao s reunies pedaggicas que frequentam (isso nas mais variadas instituies de ensino) no mostra essas reunies como eficientes, produtivas ou mesmo relevantes. No raro ler no discurso de um professor uma profunda descrena em relao atuao do pedagogo em sua formao, no processo de crtica e reflexo de sua prtica. Levanto ento a possibilidade de que seja necessria uma reviso no apenas da formao de professores de LI, mas tambm da formao do pedagogo figura que vai acompanhar o professor e que o professor deveria ver (como eu vi e vejo) como um parceiro na jornada da formao de si mesmo.

    Percebo que a pesquisa autobiogrfica tem de fato muito a colaborar para a (auto)formao do professor de LI. Relembrar e relatar essas experincias oportuniza um momento de reviso, de transformao dos fatos passados em inquietaes presentes que caminharo em direo a reflexes futuras. A narrativa de mim que produzi neste trabalho me mune de elementos de que no dispunha antes como as reflexes que desenvolvi acima. Tenho, aps a elaborao deste texto, mais conscincia de quem sou e do que me leva a s-lo. Qual o potencial transformador desse instrumento metodolgico num grupo de formao continuada de professores? Isso j pode constituir outra investigao.

    Resta-me um forte senso de preocupao aps visitar minha trajetria formativa. Preocupao por perceber que os caminhos que me levaram a desenvolver uma prtica questionadora, ansiosa por ser poltico-pedagogicamente comprometida, so caminhos muito pouco trilhados. So caminhos sem sinalizao, meras trilhas no meio da mata, talvez. O caminho pavimentado, com placas indicativas e postos de descanso um caminho que passa ao largo da reflexo crtica de que Paulo Freire se utilizou tanto e pregou tanto; passa ao largo da percepo de que, como professores de linguagem, seremos agentes reprodutores a servio de uma linguagem mais poderosa que a nossa se no levarmos em conta o contexto de nosso aluno, se no respeitarmos sua identidade, se no tornarmos nosso aluno e sua realidade o ponto central de nossas aulas se no pusermos nosso aluno em seu lugar de direito: sujeito do processo educativo. Penso que este trabalho de pesquisa acaba aqui mas no pode, de modo algum, encerrar a viagem.

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