319
INTERAÇÃO NA FALA E NA ESCRITA

6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

�������� �� ���� � ��� �����

Page 2: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

PROJETO DE ESTUDO DA NORMA LINGÜÍSTICA

URBANA CULTA DE SÃO PAULO

(PROJETO NURC/SP - NÚCLEO USP)

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. Adolpho José MelfiVice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITASPresidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

Endereço para correspondência

Comissão EditorialPROJETO NURC/SP – NÚCLEO USP FFLCH/USPÁrea de Filologia e Língua PortuguesaAv. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel: (011) 3091-4864e-mail: [email protected]

VendasLIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel.: 3091-3728 / 3091-3796

HUMANITAS-DISTRIBUIÇÃO

Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTelefax.: 3091-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.br/humanitas

Humanitas – FFLCH/USP – março/2002

���������

Page 3: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

2002

��������� ������ �� � ������������ ���

����� ������ ������ � �� ������� ��� ������� �� ���� ������ �� ��������

�������� � �������������������� � � ������� ������ ������� � � ��

��!���� ��� "����� � �#����� �$%��� ��� & ���� '(� ���)�������� �������

#����� * ������ ������ � �� ��� ��� +����� ����,��%-� � .����� ������

)�������� ��� / ���

ISBN: 85-7506-054-6

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

���������

�������� �� ���� � ��� �����

���� ������ 0���(1

Page 4: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

Copyright 2002 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP

Série PROJETOS PARALELOSVol. 1 ANÁLISE DE TEXTOS ORAIS

Vol. 2 O DISCURSO ORAL CULTO

Vol. 3 ESTUDOS DE LÍNGUA FALADA

Vol. 4 FALA E ESCRITA EM QUESTÃO

Vol. 5 INTERAÇÃO NA FALA E NA ESCRITA

I61 Interação na fala e na escrita / organizado por Dino Preti .— São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

322p. (Projetos Paralelos-NURC/SP, 5)

Publicação do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta deSão Paulo (Projeto NURC/SP – Núcleo USP)

ISBN 85-7506-054-6

1. Sociolingüística 2. Análise do discurso 3. Conversação 4.Comuni- cação verbal 5. Português do Brasil 6. Língua escrita I. Preti, Dino II. Série

CDD 417

HUMANITAS FFLCH/USPe-mail: [email protected]

Tel.: 3091-4593

Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação EditorialMª Helena G. Rodrigues - MTb 28.840

DiagramaçãoMarcos Eriverton Vieira

EmendasWalquir da Silva - MTb 28.841

Projeto de CapaJoceley Vieira de Sousa

Arte Final da Capa, Digitalização e Tratamento de ImagensDiana Oliveira dos Santos

Revisãodos autores

Page 5: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................. 7

Breve notícia sobre os autores ................................................................. 11

Normas para transcrição dos exemplos .................................................. 15

l. Interação em anúncios publicitários ................................................ 17Diana Luz Pessoa de Barros

2. Alguns problemas interacionais da conversação ............................. 45Dino Preti

3. Marcas da subjetividade e intersubjetividadeem textos conversacionais ................................................................. 67Paulo de Tarso Galembeck

4. A colaboração do ouvinte na construção do enunciadodo falante – um caso de interação intraturno .................................. 89José Gaston Hilgert

5. Interação, gênero e estilo ................................................................ 125Beth Brait

6. A dinâmica das interações verbais: o trílogo ................................. 159Leonor Lopes Fávero e Zilda Gaspar O. Aquino

7. Estruturas de participação e interação na sala de aula ................ 179Luiz Antônio da Silva

8. A revista Veja: interação e ensaio ................................................... 205Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade

Page 6: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

6

Interação na fala e na escrita.

9. O espaço da interação autor/leitor na gramática tradicional:um estudo de caso ........................................................................... 227Marli Quadros Leite

10. Uso e abuso de provérbios .............................................................. 253Hudinilson Urbano

Page 7: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

APRESENTAÇÃO

Esta obra contém dez trabalhos inéditos de autoria dos pesquisadoresdo Projeto NURC/SP, realizados a partir de pesquisa e reflexão sobre osfenômenos da língua falada, não apenas referentes ao material recolhidopelo Projeto, mas também a outros corpora mais limitados (embora, nempor isso, menos representativos das variações lingüísticas). Incluem-se en-tre os textos analisados também os escritos, não raro em cotejo com a fala,acentuando-se a idéia, hoje muito aceita entre os estudiosos da língua, deque ambas as modalidades constituem um mesmo continuum, diversificadoapenas nos gêneros textuais.

O grupo NURC/SP que colaborou, nos cinco livros que compõem acoleção “Projetos Paralelos” conseguiu abranger um leque de temas bemvariados e muitos deles abordaram aspectos da linguagem ainda não estuda-dos no Brasil. São aproximadamente cinqüenta textos (muitos dos quais, naverdade, longos ensaios) em que a fala e a escrita são analisadas em váriosgêneros textuais, situações de comunicação e variedades socioculturais defalantes.

A utilidade desses trabalhos tem sido testada nesses anos todos, peloamplo número de citações e referências de Colegas, professores e pesquisa-dores, bem como de graduandos e pós-graduandos de todo o Brasil, em seustrabalhos de pesquisa na universidade.

Os volumes 2, 3 e 4 já estão em segunda edição e o 1 (Análise detextos orais) já alcançou sua 5ª edição. Este, hoje, é, praticamente, um livro-texto em muitos cursos universitários de língua e lingüística, pois aborda, deforma didática, temas básicos do texto oral, à luz da teoria da Análise daConversação.

Page 8: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

8

Apresentação

Como o próprio título diz, este livro, volume 5 da mesma coleção,trata, em seus dez artigos, de problemas interacionais, em vários gênerostextuais, que incluem desde os diálogos gravados pelo Projeto NURC/SPaté a discussão de temas em contextos falados ou escritos variados, como osanúncios publicitários de bancos, o “diálogo” escritor/leitor em um artigo derevista, o debate de TV, a sala de aula.

A linha teórica em que os estudos são realizados é variada: SemióticaDiscursiva, Teoria da Enunciação, Análise Dialógica do Discurso, Análisedo Discurso, Análise da Conversação, com predomínio desta última.

Passemos rapidamente pelo conteúdo dos artigos, para que o leitorforme uma primeira idéia da obra que vai ler:

No texto de abertura, “Interação em anúncios publicitários”, DianaLuz Pessoa de Barros detém-se na análise da escolha das pessoas no discur-so publicitário dos grandes bancos, mostrando como se produzem efeitos desentido que favorecem a aproximação ou distanciamento entre destinadorese destinatários. Seu artigo, na perspectiva da Semiótica Discursiva de linhafrancesa, mostra, também, como o processo de escolha das pessoas tem rela-ção com a língua falada e como suas variações contribuem para a construçãoda identidade dos destinadores (os bancos).

Dino Preti demonstra como é possível, num breve segmento de textoconversacional, retirado do diálogo D2 n. 434 NURC/SP, encontrar exem-plos expressivos de ocorrências comuns em um texto falado, como estraté-gias conversacionais e sua falácia na interação; manifestações de poder deum interlocutor sobre outro; colaboração mútua do que resulta o que deno-mina de “discurso a dois”; perda e conservação da imagem social dos falan-tes (face); efeitos de reprodução do “discurso do outro” etc. Trata-se de umtexto de evidentes propósitos didáticos, para leitores que se iniciam no estu-do da interação na língua falada.

Também trabalhando com o corpus do NURC/SP, Paulo de TarsoGalembeck estuda as marcas da subjetividade e intersubjetividade na conversa-ção, enfatizando o seu papel interativo. Estuda os elementos que indicam, demodo direto, a presença dos interlocutores no diálogo: pronomes, formas ver-bais de primeira e segunda pessoas e marcadores conversacionais de valor fático.

Page 9: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

9

Interação na fala e na escrita

O texto de José Gaston Hilgert trata de um problema da conversação,em nível de micro-interação intraturno, que ocorre quando um falante, aoformular seu enunciado, hesita, em busca de uma formulação desejada (tur-no interrompido ou em construção), recebe uma contribuição explícita deseu interlocutor (segmento colaborativo) e aceita a integração que lhe ésugerida na continuidade de seu enunciado (incorporação do segmentocolaborativo). Portanto, o autor discute um dos problemas fundamentais dainteração, ou seja, o princípio de colaboração entre os falantes. O corpus desua pesquisa foi constituído por três inquéritos do Projeto NURC/SP.

Em “Interação, gênero e estilo”, Beth Brait retoma a discussão doprocesso interacional, iniciada em alguns de seus artigos anteriores (inclusi-ve os publicados nesta coleção), relacionando, agora, interação com estilo egêneros discursivos, dentro de uma linha teórica considerada por ela como“um conjunto de procedimentos analíticos, um arcabouço teórico que, em-bora não formando um corpo acabado de conceitos e formas de aplicação, estáarticulado no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin e seu círculo, indepen-dentemente da discussão a respeito da autoria individual de cada trabalho”.

Leonor Lopes Fávero e Zilda Gaspar Oliveira de Aquino, em seutexto “A dinâmica das interações verbais: o trílogo”, discutem, com base emconversas espontâneas e em um debate público na televisão, a ação dos me-canismos lingüísticos na interação, bem como as marcas de cooperação quese expressam numa conversação em que participam três falantes.

O processo interacional em sala de aula, em que se envolvem profes-sor e alunos, com os mais diversos tipos de participação, é o tema do texto“Estruturas de participação e interação na sala de aula”, de Luiz Antônio daSilva, em que o autor procura diferenciar o discurso de sala de aula do dis-curso ensino/aprendizagem. Seu corpus de pesquisa inclui três inquéritos doNURC/RJ e um do NURC/SP.

A relação entre o texto da mídia impressa e o leitor é o objetivo doartigo “A revista Veja: interação e ensaio”, em que Maria Lúcia da CunhaVictório de Oliveira Andrade estuda o problema, a partir do texto “Ensaio”,de Roberto Pompeu de Toledo, publicado semanalmente na revista, e dareação dos leitores na secção “Cartas” do mesmo semanário.

Page 10: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

10

Apresentação

Marli Quadros Leite se detém nos problemas de interação entre ogramático – no caso Júlio Ribeiro – e seus leitores, por meio da “análise doenunciado, centrada em dados lingüísticos que revelam o status do sujeito,ou, em outros termos, a subjetividade de um autor que visa a alcançar seupúblico e com ele interagir”. Em “O espaço da interação autor/leitor na gra-mática tradicional: um estudo de caso”, a autora levanta dados que compro-vam a presença do leitor no texto gramatical estudado.

No último texto da obra, “Uso e abuso de provérbios”, HudinilsonUrbano estuda o papel do provérbio na interação verbal, situando-o nos maisdiversos contextos e situações e procurando, ainda, discutir o problema desua permanência e diversificação nos dias atuais, como recurso de comuni-cação e estilo.

Ao entregarmos mais este livro aos estudiosos de Letras e Lingüísti-ca, pretendemos, ainda uma vez, divulgar o trabalho de um grupo que, semmuito alarde, vem há, pelo menos, duas décadas, dedicando-se à análise dosmateriais gravados pelo Projeto NURC/SP e, ao mesmo tempo, acompa-nhando com interesse a evolução dos estudos sobre a língua falada, sua en-trada gradativa nos programas dos cursos de graduação e pós-graduação eaté sua presença, embora ainda tímida, no curriculum do ensino secundáriode língua portuguesa.

Por outro lado, também, a presença de uma linguagem com grandepoder de divulgação, a da mídia impressa e falada, tem merecido nesta e emnossas últimas obras, estudos que revelam que nossos pesquisadores estãopreocupados com outras formas de interação, além da revelada pelos docu-mentos gravados pelo Projeto NURC/SP. Por exemplo, a linguagem da tele-visão, da imprensa falada, da publicidade, dos bate-papos da internet, etc.Mas, também, as variantes lingüísticas de menor prestígio, já discutidas nes-ta coleção, como, por exemplo, em nível lexical, o vocabulário gírio.

Como em outros momentos já afirmamos, estamos ansiosos por co-nhecer as impressões, as críticas, as sugestões de nossos colegas e pesquisa-dores sobre o trabalho que realizamos. Nesse sentido, nosso e-mail continuaà disposição, para uma interação mais perfeita com nossos leitores ou, seestes preferirem, nossa sede no prédio de Letras da USP.

D.P.

Page 11: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

11

Breve notícia sobre os autores

BREVE NOTÍCIA SOBRE OS AUTORES

BETH BRAIT é crítica, ensaísta, professora do LAEL, Programa dePós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, da PUC/SP, e Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Lingüística Geral daFFLCH da USP. Fez doutorado (1981) e livre-docência (1994) na USP, epós-doutorado na École de Hautes Études em Sciences Sociales Paris/Fran-ça. Foi crítica militante de literatura na Jornal da Tarde e outros periódicospaulistas durante as décadas de 70 e 80. Além de sua principal obra, Ironiaem perspectiva polifônica, participou de muitas outras em co-autoria, oucomo organizadora. Tem, também, muitos artigos publicados em obras co-letivas, entre os quais aqueles que escreveu para os dois primeiros livros dasérie “Projetos Paralelos – NURC/SP”

DIANA LUZ PESSOA DE BARROS, professora titular de Lingüís-tica, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo, foi presidente da ABRALIN e tem desenvolvido e orientadopesquisas, bem como publicado obras, principalmente nas áreas de Teoria eAnálise de Textos, Semiótica Discursiva e Análise da Conversação. Princi-pais livros: Teoria do discurso – fundamentos semióticos; Teoria semióticado texto; Dialogismo, polifonia e intertexto: em torno de Bakhtin (em co-autoria com José Luiz Fiorin); Os discursos do descobrimento.500 e maisanos de discursos (org.).

DINO PRETI, professor titular (aposentado) de Filologia e LínguaPortuguesa da Universidade de São Paulo e, atualmente, professor associa-do de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

Page 12: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

12

Interação na fala e na escrita.

é Coordenador Científico do Projeto NURC/SP (Núcleo USP) e seus traba-lhos se encontram nas áreas de língua oral, vocabulário popular (principal-mente gíria urbana) e Sociolingüística. Tem realizado pesquisas em áreasinterligadas: Sociolingüística e Análise da Conversação, Sociolingüística eLiteratura Brasileira. Principais publicações: Sociolingüística: os níveis defala; A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica (PrêmioJabuti 1984); A gíria e outros temas; A linguagem dos idosos.

HUDINILSON URBANO é doutor pela Universidade de São Paulo,na área de Filologia e Língua Portuguesa. Tem-se dedicado ao estudo espe-cífico da língua falada, com participação ativa dentro do Projeto NURC/SP(Núcleo USP) e Projeto da Gramática do Português Falado no Brasil. Nosdois projetos realizou e publicou, individualmente ou em co-autoria, pesqui-sas sobre estratégias e mecanismos de produção do texto oral. Obra: Oralidadena Literatura (o caso Rubem Fonseca).

JOSÉ GASTON HILGERT é professor titular de Lingüística e Lín-gua Portuguesa da Universidade de Passo Fundo/RS. Doutorou-se emFilologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Suas pes-quisas e publicações estão centradas no estudo e na descrição do uso dalíngua falada em reais situações de interação. Durante várias temporadasespecializou-se nessa área, na Universidade de Freiburg, na Alemanha. Estáorganizando e publicando os materiais do Projeto NURC/RS com o título deA linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre. É pesquisador do Pro-jeto da Gramática do Português Falado do Brasil, participando do subgrupode estudos que investiga as estratégias de construção do texto falado. Escre-veu um importante ensaio sobre os bate-papos na Internet publicado no vo-lume 4 desta coleção.

LEONOR LOPES FÁVERO é professora titular de Lingüística daFFLCH-USP e professora titular de Língua Portuguesa da PUC-SP. Sua es-pecialidade abrange os campos da Lingüística Textual, Análise da Conver-sação e História das Idéias Lingüísticas. Autora de várias obras como As

Page 13: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

13

Breve notícia sobre os autores

Concepções Lingüísticas no Século XVIII, Coesão e Coerência Textuais,Oralidade e Escrita: Perspectivas para o Ensino da Língua Materna (em co-autoria com Maria Lúcia da C. V. de Oliveira Andrade), além de inúmeroscapítulos de livros e artigos publicados em periódicos no Brasil e no exterior.

LUIZ ANTÔNIO DA SILVA é doutor pela Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP, onde leciona na área de Filologia eLíngua Portuguesa. Participa do grupo de pesquisadores do Projeto NURC/SP e tem desenvolvido pesquisas na área de Análise da Conversaçâo. Alémde artigos em revistas especializados, é autor da obra O nome e seus deter-minantes, publicada pela editora Atual.

MARIA LÚCIA DA CUNHA VICTÓRIO DE OLIVEIRA ANDRA-DE é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas daFFLCH-USP, onde leciona Língua Portuguesa, desde 1992. Defendeu Mes-trado em Língua Portuguesa, na PUC/SP, em 1990, sobre o tema Contribui-ção à gramática do português falado: estudo dos marcadores conversacionaisentão, aí, daí. Doutorou-se em Semiótica e Lingüística pela USP, em 1995,com a tese Digressão: uma estratégia na condução do jogo textual-interativo.Trabalhou como pesquisadora auxiliar no Projeto da Gramática do Portu-guês Falado no Brasil. Atualmente, é pesquisadora do Projeto NURC-SP etem trabalhado com as estratégias de polidez nas entrevistas. Escreveu, emco-autoria com Leonor Lopes Fávero e Zilda Gaspar Oliveira de Aquino,Oralidade e Escrita: perspectivas para o ensino de língua materna, publica-do pela Editora Cortez, em 1999. É autora do livro Relevância e Contexto: ouso de digressões na língua falada, publicado pela Editora Humanitas/FAPESP,em 2001. Tem capítulos e artigos publicados individualmente e em co-auto-ria, sobre Lingüística Textual e os estudos de língua falada, em livros, revis-tas especializadas e anais de congressos nacionais e internacionais.

MARLI QUADROS LEITE leciona na área de Filologia e LínguaPortuguesa na Universidade de São Paulo, onde defendeu Mestrado e Dou-torado. Tem trabalhado nas áreas de Análise da Conversação, Sociolingüística

Page 14: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

14

Interação na fala e na escrita.

e Historiografia Lingüística. Realizou estudos de pós-doutorado na França,na École Normale Supérieure de Lettres e Sciences Humaines e na Universitéde Paris VII. Publicou a obra Metalinguagem e discurso: a configuração dopurismo brasileiro.

PAULO DE TARSO GALEMBECK é mestre em Língua Portuguesapela PUCSP (1980) e doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP(1990). Foi professor de Língua Portuguesa na USP (1984 a 1988) e lecio-nou a mesma disciplina na UNESP/Araraquara (1988 a 2000). Após apo-sentadoria, ingressou na UEL instituição em que ministra aulas de Lingüís-tica e Língua Portuguesa. Foi pesquisador – bolsista do CNPq (1993 a 1994)e tutor do Grupo PET/Letras da UNESP/Araraquara (1994 a 2000). Desen-volve trabalhos na área de Língua Falada e Análise da Conversação, tendocerca de trinta trabalhos publicados em coletânea de textos e publicaçõesespecializadas. Orienta trabalhos de Mestrado e Doutorado, mas tem parti-cular interesse na formação de jovens pesquisadores (Iniciação Científica).

ZILDA GASPAR OLIVEIRA DE AQUINO é coordenadora do Cur-so de Letras e Professora Titular de Língua Portuguesa nas Faculdades Oswal-do Cruz e Professora Convidada do Curso de Pós-Graduação em LingüísticaAplicada da Universidade de Taubaté (UNITAU). Seus trabalhos encontram-se na área de Análise da Conversação. No mestrado, realizado na PUC/SP,pesquisou A Mudança de Tópico no Discurso Oral Dialogado; no doutora-do, realizado no programa de Semiótica e Lingüística Geral da USP, anali-sou o Conflito na Conversação. Auxiliou as pesquisas do Subgrupo Organi-zação Textual- Interativa, do Projeto de Gramática do Português Falado noBrasil. Já apresentou suas pesquisas em congressos nacionais e internacio-nais e esses trabalhos estão publicados em vários anais e revistas especiali-zadas. Atualmente, é pesquisadora do Projeto NURC-SP e tem trabalhadocom as estratégias de polidez nas entrevistas e debates. Escreveu, em co-autoria com Leonor Lopes Fávero e Maria Lúcia da C. V. de Oliveira Andra-de, Oralidade e Escrita: perspectivas para o ensino de língua materna, pu-blicado pela Editora Cortez, em 1999.

Page 15: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

15

Breve notícia sobre os autores

NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Incompreensão de palavras ( ) do nível de renda ( )ou segmentos nível de renda nominal

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado(com o gravador)

Truncamento (havendohomografia, usa-se acentoindicativo da tônica e/outimbre) / e comé/ e reinicia

Entonação enfática maiúscula porque as pessoas reTÊMmoeda

Prolongamento de vogal econsoante (como s,r) ::podendo

aumentarpara ::::ou mais ao emprestarem...

éh ::: ... dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção

Interrogação ? e o Banco... Central...certo?

Qualquer pausa ... são três motivos... ou trêsrazões... que fazem com quese retenha moeda... existeuma... retenção

Comentários descritivos dotranscritor ((minúscula)) ((tossiu))

* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP nº 338 EF e 331 D2

Page 16: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

16

Interação na fala e na escrita.

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Comentários que quebram aseqüência temática daexposição; desvio temático - - - - ...a demanda de moeda - -

vamos dar essa notação - -demanda de moeda pormotivo

Superposição, simultaneidadede vozes ligando as A.na casa da sua irmã

linhas B. sexta-feira?A.fizeram LÁ...B. cozinharam lá?

Indicação de que a fala foitomada ou interrompida emdeterminado ponto. Não noseu início, por exemplo. (...) (...) nós vimos que

existem...

Citações literais ou leiturasde textos, durante a gravação “ ” Pedro Lima...ah escreve

na ocasião... “O cinema fa-lado em língua estrangeiranão precisa de nenhumabaRREIra entre

nós”...

OBSERVAÇÕES:1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.)2. Fáticos: ah,éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?)3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros em itálico.4. Números: por extenso.5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa).6. Não se anota o cadenciamento da frase.7. podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::...(alongamento e pausa).8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto- e-

vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquertipo de pausa.

[

[

[

Page 17: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

17

Interação na fala e na escrita

INTERAÇÃO EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS

Diana Luz Pessoa de Barros

1.Considerações iniciais: interação, comunicação esignificação1

A interação será examinada, neste estudo, na perspectiva da se-miótica discursiva de linha francesa.

Para a semiótica, os sujeitos participam de dois tipos de relações:entre sujeito e objeto, relação que simula a do homem com o mundo,sobre o qual age; entre sujeitos, relação que simula as de comunicação einteração entre os homens. Toda comunicação é uma forma de manipu-lação, em sentido amplo, ou seja, deve ser entendida como uma relaçãoem que o destinador exerce, principalmente, um fazer persuasivo e odestinatário, um fazer interpretativo.

Os sujeitos envolvidos na comunicação não são lugares vazios esim casas cheias – de valores, de crenças, de projetos, de aspirações, dedesejos, de sentimentos. A comunicação entre os homens distingue-senesse aspecto, entre outros, das relações entre máquinas, na telecomuni-cação ou na informática. Com base nessas considerações, é possível re-conhecer, de um lado, um sujeito que procura convencer o outro de algu-ma coisa, levá-lo a acreditar em algo, a sentir de uma certa forma e a

1 Neste item são retomadas considerações apresentadas, em 2001, no INPLA (Triálogoseloqüentes), na PUC-SP, em debate sobre a interação.

Page 18: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

18

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

fazer o que se quer que ele faça; de outro, um sujeito que interpreta o quelhe é proposto, que verifica se algo parece e é ou não parece e não éverdadeiro, e que acredita ou não em seu interlocutor, partilha ou nãocom ele sentimentos, emoções, crenças, ações. A relação que se estabe-lece entre os sujeitos envolvidos na comunicação, tal como concebida nateoria semiótica, é uma relação de interação. Nesse quadro, em estreitarelação com a comunicação e a manipulação, a interação se define comoum fenômeno sociocultural e discursivo (no seu sentido amplo e nãoapenas no dos textos verbais). Deve-se observar ainda que a relação deinteração pode ser de cooperação ou de conflito, que pressupõe semprealguma forma de cooperação.

Se a interação está relacionada com o processo de comunicação,está ela também ligada à construção de sentidos. Bakhtin foi pioneiro notratamento da relação entre interação e significação, ao ocupar-se de doistipos de “diálogos”: entre os interlocutores de uma comunicação, entreos discursos e textos produzidos e comunicados em uma sociedade. Oautor mostra que os sentidos se constroem na relação e que, conseqüen-temente, a intersubjetividade não apenas é condição do funcionamentoda linguagem, ou seja, não apenas funda a linguagem, mas também criaa subjetividade. É na interlocução que se constroem os interlocutores eos sentidos da interação, que, dessa forma, são sempre plurais.

As relações entre sujeitos que definem a interação são de tiposdiferentes – racionais ou inteligíveis, sensoriais, emocionais ou afetivos– e resultam de estratégias também de ordens diversas. No primeiro tipo,o da interação racional ou intelectual, as estratégias de persuasão e deinterpretação são, principalmente, os procedimentos discursivos que pro-duzem efeitos de objetividade. Em outras palavras, os objetos de comu-nicação são modalizados como proveitosos ou prejudiciais, obrigatóriosou dispensáveis, possíveis ou impossíveis, com base em suas qualidades“objetivas”. No segundo tipo, o da interação sensorial, as estratégias depersuasão e interpretação são procedimentos que visam à construção deefeitos de subjetividade, enquanto aproximação corporal ou sensorial, deordens diversas – visuais, táteis, gustativas e outras – e que podem levar,em última instância, à interação estésica. Nesse caso, no das relações

Page 19: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

19

Interação na fala e na escrita

estésicas, os objetos de comunicação são ditos belos ou feios, harmônicosou desarmônicos, e assim por diante, conforme ainda o quadro de valoresde diferentes estéticas. Finalmente, no terceiro tipo, o da interação afetivaou passional, as estratégias de persuasão e de interpretação são constituí-das por procedimentos que buscam o estabelecimento de efeitos de subje-tividade afetiva. São estabelecidos laços afetivos de amor, de interesse, deconfiança, de cumplicidade, de antipatia, entre os sujeitos que interagem.

2.Enunciação e interação

Do que foi dito no item anterior, pode-se concluir que os efeitosde sentidos mais gerais que a interação produz são o de cooperação e o deconflito, admitindo cada um deles a determinação pela objetividade epela subjetividade (sensorial ou afetiva). A interação, seja ela cooperati-va ou de conflito, será dita objetiva ou subjetiva. Os efeitos de objetivi-dade e de subjetividade dos discursos decorrem dos modos diversos pe-los quais a instância da enunciação projeta e produz seu texto-enunciado.As estratégias são, principalmente, as de escolha das categoriasenunciativas de pessoa, de tempo e de espaço desses textos-enunciados.A partir daí, dois tipos de discursos podem ser distinguidos: os projetadosem primeira (e segunda) pessoa, no tempo do “agora” e no espaço do“aqui”, que caracterizam uma enunciação enunciada, e os organizadosem terceira pessoa, no tempo do “então” e no espaço do “lá”, que sãoditos enunciados enunciados. Os discursos do primeiro tipo (enunciaçãoenunciada) produzem, geralmente, efeitos de sentido de aproximação daenunciação e de relação dialógica entre sujeitos, pois se apresentam comosimulacros da enunciação. Em outras palavras, constroem interações comefeitos de subjetividade e, portanto, predominantemente sensoriais eemocionais. Os discursos do segundo tipo (enunciado enunciado) pro-duzem, por sua vez, os efeitos de distanciamento da enunciação e de umcerto “monologismo” ou autoritarismo das verdades “únicas” e “objeti-vas”. Constroem, por conseguinte, interações com efeitos de objetivida-de e, predominantemente, racionais ou intelectuais.

Page 20: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

20

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Neste estudo serão examinadas apenas as pessoas do discurso emanúncios publicitários, publicados na imprensa escrita. Como os anún-cios são textos sincréticos, em que a expressão é tanto verbal quantovisual, não são apenas os diferentes pronomes marcadores da pessoa nalíngua que produzem os efeitos de aproximação e distanciamento da enun-ciação ou de objetividade e subjetividade acima mencionados. Há outrosrecursos – topológicos, de localização no espaço, de dimensão, de foca-lização, de relações de cores e de formas – que constroem esses efeitos.Neste trabalho, porém, a análise restringir-se-á ao exame das escolhaspronominais para a determinação das pessoas do discurso.

A opção pelo exame de anúncios publicitários deveu-se ao fato deque em tais textos, com função dominante apelativa ou conativa, no di-zer de Jakobson, as estratégias persuasivas – e, particularmente, as op-ções no interior da categoria de pessoa – são muito diversificadas. Osanúncios analisados são anúncios de bancos publicados na imprensa es-crita em 2000 e 2001.

Três aspectos serão observados neste estudo:

1) as relações de interação que se estabelecem nos anúncios e osefeitos de sentido que neles se produzem, em decorrência dasdiferentes escolhas de pessoas;

2) as relações entre o modo como se organizam as pessoas nosanúncios e na língua falada, já que é do senso comum conside-rar que os anúncios usam uma modalidade lingüística bastantepróxima da fala;

3) as relações existentes entre as escolhas de pessoas e as identi-dades e alteridades construídas nos anúncios.

Conforme foi dito, a perspectiva teórica da análise é a da semióti-ca discursiva, em cujo quadro teórico conceituou-se anteriormente a in-teração. Para o exame da categoria de pessoa foram retomados, nessequadro teórico, sobretudo um trabalho já publicado na série Projetos Pa-ralelos – NURC – SP, sobre as relações entre fala e escrita (Barros, 2000),

Page 21: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

21

Interação na fala e na escrita

um outro sobre enunciação e língua falada, apresentado no Congresso daABRALIN, em Fortaleza, e publicado em livro de homenagem a DinoPreti (Barros, 2001) e os estudos semióticos sobre a enunciação, princi-palmente os de Fiorin (1996).

No primeiro estudo mencionado (Barros, 2000), a intenção foimostrar que não se pode separar fala e escrita de forma estanque, pois osdiscursos se situam entre as posições ideais de fala e de escrita. No se-gundo (Barros, 2001), a partir da caracterização ideal ou “pura” de fala,em que foram considerados, para os atores, a construção “coletiva” ou“individual” do texto, a alternância ou a ausência de alternância de pa-péis (a simetria ou a assimetria), os efeitos de aproximação ou distancia-mento da enunciação e os de descontração ou formalidade, examinou-seo modo de apresentação da enunciação nos textos falados conversacionais.Restringiu-se o exame ao uso da categoria de pessoa e aos efeitos resul-tantes dos diferentes empregos em inquéritos do Projeto NURC, do TipoD

2 – Diálogos entre dois informantes (Castilho e Preti, 1987).

Na fala, os discursos são, por princípio, enunciações enunciadas eproduzem os efeitos de aproximação da enunciação e de relação dialógicaentre sujeitos. Das variações de usos decorrem diferenças de efeitos desentidos. Esse estudo (Barros, 2001) será utilizado para a comparaçãoentre os procedimentos de enunciação (pessoas) da língua falada e osempregados nos anúncios examinados.

3. Análise dos anúncios

Nos anúncios, instala-se uma relação de interação entre o destina-dor do anúncio e seu destinatário, explicitados ou não no texto. Alémdisso, o texto estabelece internamente outra ou outras relações de comu-nicação, internas à primeira, e que assumem no texto geral do anúncio opapel argumentativo de exemplos, ilustrações, modelos, etc.

Serão analisadas as relações de enunciação do primeiro tipo, istoé, as que se estabelecem entre o destinador e o destinatário do texto glo-bal do anúncio, em que o destinador visa a persuadir o destinatário a

Page 22: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

22

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

manter-se ou a tornar-se cliente do banco, a acreditar no banco e emsuas qualidades, a preferi-lo em detrimento dos demais, a identificar-secom ele, afetiva e corporalmente, a amá-lo, a confiar nele e assim pordiante.

3.1. Categoria de pessoa e interação

Os discursos dos anúncios são tanto enunciação enunciada, quan-to enunciado enunciado, conforme se observa nos exemplos a seguir:

Nós cuidamos bem de tudo que você quer bem (enunciação enunciada– anúncio de seguros do Bradesco);

Quem tudo quer, investe no Itaú (enunciado enunciado).

Nas enunciações enunciadas dos anúncios ocorreram 7 diferentesorganizações da categoria de pessoa, conforme o quadro que segue:

Destinador Destinatário

a 1ª pessoa do singular (eu) 2ª pessoa do singular (você)

b 1ª pessoa do plural (nós inclusivo) Implícito (você ou vocês)

c 1ª pessoa do plural (nós) em lugar da 2ª pessoa do singular (você)

1ª do singular

d 1ª pessoa do plural (nós) em lugar da 3ª pessoa (ele) em lugar da 2ª pessoa

1ª do singular

e 3ª pessoa (a gente) em lugar da 1ª do 2ª pessoa do singular (você) ou 3ª pessoa

plural ou da 1ª do singular (ele) em lugar da 2ª

f 3ª pessoa (ele) em lugar da 1ª do 2ª pessoa do singular (você)

singular

g 3ª pessoa (ele) em lugar da 1ª do 3ª pessoa (ele) em lugar da 2ª pessoa

singular

Page 23: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

23

Interação na fala e na escrita

Nos enunciados enunciados dos anúncios, além do emprego da 3ªpessoa, que os caracteriza, ocorreu o uso da 2ª pessoa você em lugar da 3ªindeterminada.

a) Enunciação enunciada: eu vs você

Não há praticamente anúncios em primeira pessoa do singular, ouseja, os bancos não se dirigem a seus clientes dizendo eu. A relação eu vsvocê produz, por excelência, os efeitos de aproximação da enunciação,de subjetividade, de relação dialógica ou recíproca entre sujeitos. Os ban-cos evitam, portanto, tanto a relação muito próxima com o cliente e umaexcessiva intimidade, quanto a reciprocidade e o equilíbrio entre eles,que ocorrem quando destinador e destinatário se colocam no mesmoquadro enunciativo. O uso da relação entre eu e você caracteriza, por issomesmo, interações informais, íntimas e espontâneas, na conversação face-a-face ideal. São características do franco-falar de Bourdieu (1979), deconversas menos elegantes, distintas e polidas. Esse modo de falar quasenão aconteceu nos anúncios, pelos motivos apontados.

Houve um único caso de uso de eu (1ª pessoa do singular) nomaterial examinado. Trata-se de anúncio de cartão do Banco Santander,em que no eu se confundem o ator Pedro Cardoso (da narrativa-ilustra-ção interna sobre as vantagens do banco) e o banco, conforme se vê nacitação e na imagem que seguem:

Você já tem o meu cartão? (meu, de Pedro Cardoso, e meu, do bancoSantander).

Então deveria ter. Porque o supercartão é o único que tem...

Page 24: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

24

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

O caráter intimista e informal da interação fica assim ambigua-mente na relação entre Pedro Cardoso e o destinatário do anúncio e entreo banco e o cliente. Mais à frente, no mesmo anúncio, a 1ª pessoa ésubstituída pela 3ª: Cartão todo banco tem. Supercartão só o Santander.

Se os anúncios evitam o uso da primeira pessoa do singular comodestinador, isso não acontece com a 2ª do singular como destinatário,conforme se poderá perceber nas demais combinações enunciativas. Alémdisso, se os anúncios preferem não usar o grau maior de intimidade, issonão impede que ocorram diferentes gradações de formalidade.

Page 25: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

25

Interação na fala e na escrita

b) Enunciação enunciada: nós inclusivo (eu + você + eles= nós, os brasileiros)

O uso do nós inclusivo nos anúncios produz, além dos efeitos desubjetividade e de aproximação da enunciação, próprios do uso da 1ªpessoa, o efeito de sentido de identificação com o destinatário, de anula-ção da distância entre o banco-destinador e o cliente-destinatário, quesão apresentados como sujeitos que pensam e sentem da mesma forma.Não há diálogo, não há reciprocidade de papéis, já que os papéis do eu edo você não se separam, não se distinguem, mas, ao contrário, se confun-dem numa “massa amorfa” comum. O efeito é de ausência de interação,substituída pela identificação do destinador e do destinatário. Esse uso émuito freqüente nos bancos que se apresentam como bancos nacionais,como bancos de todos os brasileiros. O nós é, assim, nós, os brasileiros(eu, você e eles). Há usos do nós inclusivo também em outras situações,produzindo outros efeitos de sentido (nós, os homens em geral: Todosnós fazemos planos para a vida; A nossa vida é cheia de momentosinesquecíveis, como o dia da chegada do primeiro Itaucard), mas sãomenos freqüentes do que nos bancos nacionais. Os textos e anúncios queseguem mostram alguns dos usos de nós, brasileiros:

Nossas estrelas foram brilhar em Sydney (com a bandeira sem estrelas,em anúncio do Banco do Brasil, por ocasião das Olimpíadas).

Page 26: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

26

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Sydney 2000. Nosso coração está apertado de emoção (Banco doBrasil).

Conheça a primeira página de nossa história. Bradesco, o banco queajuda a escrever a história do nosso País, traz de volta a carta de PeroVaz de Caminha. (passagem do nós, inclusivo, para a 3ª pessoa,Bradesco, em lugar da 1ª, e volta para o nós, inclusivo).

A Austrália é uma mina de ouro, prata e bronze. E estes são os nossosgarimpeiros (fotografia da Comitiva Olímpica Brasileira). Estamos comvocês. Boa sorte, Brasil (Banco Real). (Nesse anúncio há também umaclara mudança de interação: passa-se do efeito de identificação do nós,inclusivo, para um nós, 1ª pessoa do plural em lugar da 1ª do singular).

Page 27: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

27

Interação na fala e na escrita

As mudanças de interação no decorrer dos anúncios são bastantefreqüentes, sobretudo as do tipo da ocorrida no anúncio do Bradesco, emque é extraído do nós, inclusivo, a figura do banco (o Bradesco). Veja-seo mesmo procedimento nos anúncios que seguem:

Uma vitória que o Banco do Brasil faz questão de comemorar e incen-tivar sempre. Para que nossos atletas continuem superando seus limi-tes, no esporte e na vida.

O Banco do Brasil apóia mais um produto da nossa terra.

c) Enunciação enunciada: nós (em lugar de eu) vs você

O uso da primeira pessoa do plural em lugar da primeira do singu-lar amplia e dilui o eu, em um nós (da empresa, dos funcionários, dadiretoria). Esse nós tem uma pitadinha de modéstia e de valorização dotrabalho em equipe e, ao mesmo tempo, de autoridade do grupo, do con-junto (Fiorin, 1996: 96). Na interação, portanto, a intimidade é atenuadapela substituição do eu pelo nós, embora a relação nós vs você seja o usomais informal nos anúncios de bancos, devido tanto ao uso da 1ª pessoa,mesmo que do plural, para o destinador, quanto ao emprego da 2ª pessoapara o destinatário. É o mais próximo que se chega do ideal da fala “pura”,recíproca, subjetiva, dialógica, próxima da enunciação. O emprego devocê para o destinatário produz os efeitos de cumplicidade e comprome-timento com o cliente, de interesse por ele, que é, dessa forma, colocadocomo a finalidade primeira das ações do banco. A combinação entre asubjetividade e a intimidade atenuada do nós com a cumplicidade e ocomprometimento do você é usada, principalmente, em anúncios afetivos,emocionais, e não aparece com freqüência muito grande no material ana-lisado. É menos empregada, por exemplo, do que o arranjo ele (o banco)vs você, que será examinado a seguir, no item f. Alguns exemplos deanúncios mais emocionais em que se empregam nós vs você são apresen-tados abaixo (são anúncios, sobretudo de seguro e previdência, doBradesco):

Page 28: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

28

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Nós cuidamos bem de tudo que você quer bem. (seguro Bradesco).

Para nós, o mais importante da sua árvore genealógica não é o passado.É o futuro. (previdência Bradesco).

Há 5 anos nossa árvore faz parte da paisagem do Rio. Você é nossoconvidado. (institucional Bradesco).

O emprego de nós vs você é mais usual em anúncios em que esseuso alterna com o de ele (o banco) vs você, ou, mais raramente, com nósvs ele (o cliente, o brasileiro). Nesses casos, somam-se os efeitos desentido dos usos que se alternam, como nos exemplos que seguem:

Você entra com o sonho. Nós entramos com o dinheiro. O Unibancorealiza o seu sonho (nós vs você e ele (o banco) vs você).

Ganhamos o prêmio da Academia pela melhor direção. Real Seguros.Eleita melhor seguradora de automóveis pela Academia Nacional deSeguros e Previdência. Lembre-se disso na hora de fazer ou renovar oseguro do seu carro (nós vs você e ele (o banco) vs você).

Nós ficamos agradecidos, mas não surpresos. Porque sabemos o quan-to fazemos para conquistar você. Aliás a maioria dos brasileiros reco-nhece que nós estamos melhorando. Para sermos mais exatos: 79%(nós vs você e nós vs eles (os brasileiros)).

d) Enunciação enunciada: nós (em lugar de eu) vs ele (ocliente, em lugar de você)

Esse uso também não ocorre muito nos anúncios examinados portrês razões: em primeiro lugar, devido à intimidade atenuada e à relativainformalidade do uso do nós; em segundo lugar, e principalmente, peloafastamento entre banco e cliente, decorrente do emprego da 3ª pessoaem lugar da 2ª; em terceiro lugar, pela assimetria criada em decorrênciado uso combinado de nós vs ele. O uso da 3ª pessoa pela 2ª produz oefeito de exclusão do outro da troca lingüística, de deslocamento do des-tinatário de uma posição simétrica e recíproca em relação ao eu ou aonós. O outro, o destinatário, é colocado em um lugar especial de que

Page 29: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

29

Interação na fala e na escrita

decorrem, os efeitos de respeito, consideração, afeto ou de desrespeito,desconsideração, desprezo (Fiorin, 1996: 87-89). O emprego do nós poreu, juntamente com o de ele por você, acentua o desequilíbrio de papéisentre o destinador e o destinatário, a não-reciprocidade da comunicação,o afastamento entre banco e cliente, podendo criar os efeitos de sentidomencionados de respeito e de consideração, ou de desinteresse e dedesconsideração. Dessa forma, essa combinação de pessoas é usada emgeral apenas nos anúncios que querem reforçar o papel temático ou afigura do destinatário, merecedor de consideração, e, ao mesmo tempo,graças ao nós, manter com ele uma relativa aproximação e informalidade.Observem-se os casos abaixo:

Nossa homenagem a quem trabalha todos os dias para construir umpaís melhor. 28 de outubro. Dia do Servidor Público. (Itaú-Banerj) (acen-tua-se o papel temático de servidor público).

Parabéns São Paulo. No que depender de nós você está em boas mãos.(Bradesco) (é reforçada a figura de São Paulo e há, além disso,alternância com nós vs você).

Nosso maior cliente é o Brasil. (Itaú) (acentua-se a figura do Brasil).

O uso de nós vs ele alterna, em geral, com o de outras estratégiasno mesmo anúncio. A alternância ocorre sobretudo com empregos depessoas que produzam os efeitos contrários de proximidade e reciproci-dade, como foi o caso no anúncio mencionado no item anterior de varia-ção entre nós vs você e nós vs ele. Outra alternância empregada nosanúncios é aquela em que a intenção é reforçar o distanciamento, a não-reciprocidade, mas para produzir os efeitos de afastamento educado, po-lido, respeitoso e elegante. Esse uso vai ocorrer em bancos como oCitibank, que procuram construir uma imagem de elegância e refina-mento, mas, ao mesmo tempo, buscam uma certa cumplicidade ou maisintimidade com o cliente. Os exemplos que seguem ilustram essa varia-ção de estratégias e efeitos:

Sacou (ela, mulher da fotografia) o dinheiro guardado para o filho sobnossa orientação. O Citibank não é um banco (...), mas tem rendido

Page 30: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

30

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

ótimos resultados para os clientes. E ótimos clientes para o Citibank.Citibank. Só o melhor para você (alternância entre nós vs ele (cliente),ele (Citibank) vs ele (cliente), ele (Citibank) vs você)).

Queria (ele, homem da fotografia) investir nos fundos do Citibank.Sugerimos os da concorrência. O Citibank agora distribui fundos deoutros bancos. Os melhores fundos, diga-se de passagem. Isso signifi-ca que além dos fundos que ele já oferece, você também pode investirnos (...) (alternância entre nós vs ele (o cliente), ele (Citibank) vs você).

Nos dois textos citados dos anúncios do Citibank, constroem-se,com os usos das pessoas, os efeitos de afastamento respeitoso e polido(3ª pessoa em lugar da 2ª), de uma certa proximidade entre o banco,enquanto funcionários que dão assessoria e informações ao cliente, e ocliente (1ª pessoa do plural e 2ª do singular). Forma-se a imagem de umbanco sério, educado e refinado, mas que se aproxima do cliente, naquiloque é necessário para lhe dar garantias de bons investimentos e resulta-dos.

No entanto, por temor dos efeitos negativos do excessivo afasta-mento entre banco e cliente, do desinteresse e do desprezo, a combina-ção nós vs ele não é, como foi verificado, muito usada nos anúncios.

As mesmas estratégias, portanto, dependendo das combinaçõesque façam com outros procedimentos, podem determinar de forma posi-tiva ou negativa os efeitos de sentido que constroem. O afastamento,decorrente do uso em questão é ora evitado, por significar desinteresse,ora procurado, por indicar elegância, educação, refinamento.

e) Enunciação enunciada: a gente (em lugar de nós ou deeu) vs ele (em lugar de você)

O emprego da 3ª pessoa a gente no lugar da 1ª do singular ou doplural, como ocorre em geral com o uso da 3ª pessoa em lugar da 1ª,enfraquece ou atenua sobretudo os efeitos de aproximação da enuncia-ção, de subjetividade, de reciprocidade, e de igualdade entre os interlo-

Page 31: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

31

Interação na fala e na escrita

cutores, próprios da enunciação enunciada. Neste item, examina-se ape-nas o caso do uso de a gente, que pode ser considerado um caso híbrido,pois se perde, pouco a pouco, nesse emprego, o efeito de diferença depessoa (entre a 3ª e a 1ª), em favor do de variação de formalidade (a genteproduz o efeito de informalidade dos usos mais populares, em relação aonós, mais formal, por exemplo).

Nos anúncios, os usos de a gente não são muito numerosos, massubstituem todos os casos de nós mencionados: nós inclusivo; nós, emlugar de eu, tanto na relação com ele, quanto na com o cliente, em lugarde você. Todos os usos produzem os efeitos acima mencionados de acen-tuação da informalidade da relação e de atenuação da subjetividade e daaproximação da enunciação, variando o grau de reciprocidade e de igual-dade entre os interlocutores, conforme a gente se relacione com o desti-natário em 2ª ou 3ª pessoas. Em outras palavras, constrói-se uma relaçãoinformal, mas não subjetiva, entre os diferentes, entre os que ocupamposições e cumprem papéis diferentes (mais diferentes se o destinatáriofor ele, mais próximos se for você).

Observem-se os exemplos a seguir:

– a gente, em lugar de nós, na relação a gente vs ele (informalidadeentre diferentes)

Estes prêmios não são apenas do Itaú. São de todos que se relacionamcom a gente (há, além disso, alternância com o papel social Itaú).

Uma conquista que a gente faz questão de dividir com os exportadoresbrasileiros.

– a gente, em lugar de nós, na relação a gente vs você (informalidadeentre diferentes, mas cúmplices)

Nas quadras, no campo e na cidade a gente joga junto com você. Sem-pre buscando bons resultados. (Banco do Brasil).

Investir no Itaú é tão fácil que para complicar um pouco a sua vida nósoferecemos mais de 40 opções (...). Não perca tempo, converse com agente, invista e faça um bom negócio agora mesmo. (nesse caso, odestinador aparece como Itaú (papel social em 3ª pessoa), nós e a gen-te, provavelmente para evitar o emprego pouco usual da forma maisculta conosco, em lugar de com a gente.

Page 32: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

32

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Ainda bem que o valor de mercado do seu carro a gente garante. (segu-ro Banco do Brasil).

A gente não cuida apenas do seu carro, também cuida de você. Se poracaso você sofrer um acidente, ligue imediatamente para a UnibancoAIG Seguros. A gente manda na hora um especialista em emergências(...).

– a gente, em lugar de nós inclusivo (nós, os homens, nós, os brasi-leiros) (informalidade entre sujeitos identificados na inclusão).

Impossível esconder o nosso lado criança (...). Esse prêmio é a provade que a gente nunca deve esquecer o nosso lado criança. (BankBoston).

O primeiro Itaucard a gente nunca esquece, ou melhor lembra deletodos os dias.

f) Enunciação enunciada: ele (em lugar de eu ou nós) vsvocê

Como já foi dito, a partir dos estudos de Fiorin (1996), o uso da 3ªpessoa em lugar da 1ª atenua ou enfraquece a intimidade, a subjetivida-de, a reciprocidade ou a igualdade dos laços estabelecidos entre os inter-locutores e acentua a assimetria e o distanciamento das relações. Esseemprego, combinado com o da 2ª pessoa, que como também foi visto,reforça, ao contrário, o interesse pelo destinatário e a cumplicidade e ocomprometimento com ele, produz assim os efeitos de um destinador(banco) objetivo e diferente do destinatário, confiável, graças à objetivi-dade e aos papéis que assume a 3ª pessoa, e que se relaciona de modocúmplice, comprometido e interessado com o destinatário (você, clien-te), finalidade primeira das ações do banco. O banco diferencia-se docliente para poder, com os atributos que possui, mas não o cliente, agirem favor do cliente, colocar-se a seu serviço. Esses parecem ser os efei-tos mais procurados nos anúncios, pois o uso da combinação ele (emlugar de eu) vs você é o mais freqüente nos anúncios de todos os tipos debancos. Os exemplos são muitos e acentuam sempre a relação de cum-plicidade e comprometimento entre o banco e o cliente, diferentes, masligados por interesses comuns, em que a assimetria é entre um banco que

Page 33: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

33

Interação na fala e na escrita

pode e quer fazer e um cliente que quer algo e depende do banco paraobtê-lo. Observem-se os casos que seguem:

Este é mais um dos serviços que o Banco Real desenvolveu pensandoem você.

Se você procura recursos para garantir a energia da sua empresa, lojaou até mesmo sua casa, o Unibanco tem a solução sob medida.

É o Banco do Brasil na internet, mais completo, mais rápido, maissimples, onde você, ganha tempo para ser mais você.

Investimentos podem ser vistos de muitos lados. O Bradesco semprevê o melhor lado para você.

O melhor parceiro que sua empresa pode ter lá fora tem a mesmanacionalidade que a sua: o Itaú.

Conte com o Banco Real para realizar todos os seus planos. Para rea-lizar todos os seus desejos. Para realizar todas as suas vontades. FelizNatal. Feliz 2001. Que toda a felicidade do mundo se realize para vocêe para a sua família.

Itaú e Telefônica. Unindo tecnologia para oferecer o melhor a você.

Algumas considerações são necessárias sobre o preenchimentoda 3ª pessoa, do destinador, ou da 2ª, do destinatário: a 3ª pessoa podeaparecer de forma indeterminada, a ênfase recaindo, nesse caso, no vocêdo destinatário e, portanto, nos efeitos de cumplicidade e comprometi-mento; podem ser empregados papéis sociais (temáticos e figurativos)na posição de destinador, com o conseqüente reforço desses papéis narelação com o destinatário; pode haver alternância entre você e papéistemáticos no lugar do destinatário, com melhor definição assim dos pa-péis do destinatário; podem ser usados nomes próprios nas casas do des-tinador e do destinatário, no último caso em alternância com o você, paracriar efeitos de realidade, verdade e credibilidade.

A indeterminação do destinador ocorre sobretudo com o uso dosverbos no imperativo e, como foi dito, são os casos em que mais seacentua o uso de você e, conseqüentemente, a cumplicidade e o compro-metimento. O destinador não está explicitado. Os exemplos que seguemmostram esses usos:

Page 34: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

34

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Compre seu carro num clique. Acesse o Itaúmotors pelowww.itau.com.br. Lá, cliente Itaú encontra o carro que tanto queria,com financiamento rápido e seguro, descomplicado.

Se você tem 60 anos ou mais, participe. Se não tem estimule alguém aparticipar. Participe do 3º Prêmio Banco Real de Talentos da Maturida-de. mais um prêmio para sua vida.

Nos outros casos, a questão é a dos papéis sociais, sejam elestemáticos (servidor público, o exportador brasileiro, etc) ou figurativos(nomes próprios, principalmente). O emprego dos papéis temáticos tema função sobretudo racional de reforçar as qualidades objetivas do bancoou de seu cliente, o uso dos papéis figurativos ancora o discurso na “rea-lidade”, ou seja, produz efeitos de realidade e, a partir daí, de credibilida-de e confiança.

Para o destinador são usados os papéis temáticos de gerente,funcionário, empresa, corretor, que mantêm relações metonímicas com obanco, ou de paráfrases como o Banco que tem mania de segurança, quemantêm laços metafóricos com o banco:

O Itaú International Cash Management foi desenvolvido para faci-litar o gerenciamento de sua empresa. Por meio do sistema “officebanking” você movimenta contas no exterior, administra e acompanhaoperações de comércio exterior, faz transações e negócios internacio-nais.

Para o destinatário são empregados, em geral, os papéis temáticosque delimitam grupos no conjunto indiscriminado de clientes – funcio-nário público, acionista, exportador, investidor, cliente de um dado ban-co, entre outros:

BB Crédito Turismo. Seu extrato já vem com direito a férias. ClienteBanco do Brasil tem crédito pré-aprovado (...). Solicite seu financia-mento em qualquer agência Banco do Brasil, nos terminais de Auto-Atendimento, via Internet ou Palm Top.

O Bradesco oferece um pacote de vantagens e benefícios para quem éestagiário do CIEE. Veja só o que você ganha (...).

Page 35: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

35

Interação na fala e na escrita

Acesse o Itaú Banking e a Internet sem acessar seu bolso. Cliente Itaúagora tem no mínimo 4 meses de acesso grátis e ilimitado à Internetpela América Online.

Os papéis figurativos concretizam e individualizam o destinadore o destinatário e produzem os efeitos de realidade e de credibilidade.

Para o destinador, os papéis figurativos são construídos com osnomes do banco ou dos gerentes ou outros funcionários. Os anúncios cons-troem, em geral, um texto interno, como uma narrativa sobre o bom aten-dimento e outras qualidades do banco, com as personagens dos gerentes eclientes personalizados. Essas personagens são, em alguns casos, usadascomo metonímias do banco, na interacão entre o banco e você.

O Itaú tem tudo. Só falta você. Abra já a sua conta.

Na hora de trabalhar, trabalhar, na hora de relaxar, relaxar. E na hora depagar contas, relaxar. Deixe o Itaú cuidar disso para você.

Se você quer ser tratado como filho único, a Lúcia Helena do Unibancofaz isso por você. A Lúcia Helena, gerente do Unibanco, pode ofere-cer os investimentos mais rentáveis e os produtos mais completos domercado. Além disso, para complementar o atendimento que a LúciaHelena oferece, você conta também com o Unibanco 30 horas parafazer suas aplicações, realizar empréstimos e verificar saldos.

Mauro Leme conhece muito do mercado financeiro e trabalha noHSBC. Por isso pode ajudar você a garantir, no futuro, o seu padrão devida, através do plano Máxima Previdência mais adequado ao seu per-fil.

Banerj e Itaú. Oferecendo muito mais conveniência, agilidade e rapi-dez para você.

Já para o destinatário, os papéis figurativos são criados com no-mes próprios de clientes, com o uso de Você, com maiúsculas ou determi-nado, ou com a figurativização pela imagem, de preferência, fotográfica.Há um caso especial, de anúncios do Itaú, em que se cria identificaçãosensorial entre o destinador e o destinatário, com a substituição, no logotipodo banco, do nome Itaú por Você ou por nome próprio de cliente (Nina,Pedro, etc.). Observem-se os exemplos e os anúncios que seguem:

Page 36: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

36

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

O Itaú tem tudo. Só falta você. Abra já a sua conta. Procura-se umcliente mais ou menos com o seu perfil, com a sua idade e que moremais ou menos lá na sua casa. Quando não puder passar no banco, é sóusar o Real Internet Banking e o Real Internet Empresa, viu seu Luís?Pode ser do sítio mesmo.

Page 37: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

37

Interação na fala e na escrita

Uma última observação vem reforçar a importância do empregoda combinação ele (em lugar de eu) com ou sem especificação de papéistemáticos e figurativos, e de você, alternando ou não com papéis temáti-cos e figurativos, nos anúncios de bancos. Os slogans dos bancos usamtodos (a exceção é o BankBoston) essa combinação, com figurativizaçãodo destinador e sem tematização ou figurativização do destinatário você:

Itaú. Feito para você.

Unibanco. Bancando seus sonhos.

Banco Real. O banco da sua vida.

Bradesco. Colocando você sempre à frente.

Citibank. Só o melhor para você.

g) Enunciação enunciada: ele (em lugar de eu) vs ele (emlugar de você)

Nesse último caso de enunciação enunciada, como a terceira pes-soa é usada nas duas posições, na de destinador e na de destinatário, hámuitas vezes confusão com o enunciado enunciado e efeitos de sentidopróximos desse tipo de discurso. Há marcas, porém, que permitemdiferenciá-los, principalmente a alternância, com outros casos de enun-ciação enunciada (nós vs você, nós vs ele, ele vs você). Essa escolhaenunciativa produz os efeitos de sentido já mencionados do uso da 3ªpessoa pela 1ª – atenuação da aproximação da enunciação e da subjetivi-dade – e do emprego da 3ª pessoa pela 2ª – enfraquecimento da igualda-de e da reciprocidade entre os interlocutores. Em outras palavras, aconte-ce a acentuação, em parte, já que se trata do uso da 3ª pessoa pela 1ª epela 2ª e não do emprego simples da 3ª pessoa, da objetividade e daracionalidade na imagem do banco e da diferença na relação entre bancoe cliente.

Mudou (ela, figurativizada pela fotografia) para o Citibank porque oseu banco fazia só o que ela queria. “Pois não”, “sim Senhor”, “estamosprovidenciando”. São frases que você ouve na maioria dos bancos, in-

Page 38: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

38

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

clusive no Citibank (ele (Citibank) vs ela (cliente) alterna com ele(Citibank) vs você).

O Itaú trabalhou 12 meses para oferecer aos seus clientes o melhorbanco. Veja os resultados (ele (Itaú) vs ele (seus clientes) alterna comele (Itaú) vs você).

Nesse tipo de escolha, como em todos os usos da 3ª pessoa, sejameles em lugar da 1ª ou da 2ª pessoas, sejam eles nos enunciados enunci-ados, procura-se, também, enfatizar papéis temáticos, criar efeitos derealidade e de verdade com as personalizações figurativas e estabelecerlaços de convencimento racional e de confiança e credibilidade entre osinterlocutores. Há, porém, gradações, conforme os usos, obtendo-se maiorobjetividade e credibilidade nos discursos do tipo dos enunciados enun-ciados, que serão examinados a seguir.

h) Enunciado enunciado: ele vs ele

O enunciado enunciado, projetado em 3ª pessoa, produz, comofoi já apontado, a ilusão de afastamento da enunciação, de objetividade,de frouxidão e assimetria dos laços interativos, de desigualdade entre osinterlocutores posicionados fora do quadro enunciativo, de um discurso“monológico”. Apagam-se as evidências de comunicação e de interação,em favor da objetividade dos dados, dos fatos. São, em geral, emprega-dos nesses discursos tabelas, números, nomes, datas, lugares que produ-zem os efeitos já mencionados de realidade, de confiança, de credibili-dade. Esse tipo de discurso é utilizado sobretudo pelos bancos que queremconstruir imagens de objetividade e seriedade e/ou de refinamento, sofis-ticação, educação, já que há pouca proximidade afetiva ou emocional.São usados, além das estratégias racionais acima mencionadas, recursossensoriais estéticos. Apaga-se a imagem de banco massificado, mas ínti-mo do cliente e com ele comprometido, dos usos anteriores, e constrói-sea de um banco com atendimento exclusivo e refinado, mas distanciado,elegante, adequado ao cliente que gosta de exclusividade e detesta “inti-

Page 39: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

39

Interação na fala e na escrita

midades”. A exclusividade do atendimento não depende, portanto, daintimidade e da passionalidade das relações entre banco e cliente. Bancoe cliente cumprem cada qual seu papel, sem misturá-los ou confundi-los,e reforçam-se seus papéis sociais, temáticos e figurativos. O banco ofe-rece assessoria especializada e exclusiva, o cliente vive com elegânciaseu papel, ou sua vida de papel. O melhor exemplo desse tipo de discursoé dado pelos anúncios do BankBoston. Os exemplos abaixo foram sele-cionados de diferentes bancos:

Pessoas especiais merecem destaque. Destaque no que dizem, desta-que no que fazem, destaque no que escolhem. Ser cliente BankBostoné apenas uma conseqüência. BankBoston. Simplesmente primeira classe.

Ética e responsabilidade social. Valores são muito importantes (BancoReal).

Bradesco Corporate. O primeiro a receber o certificado de qualidadeISO9002 no relacionamento com grandes grupos empresariais.

Quanto mais as pessoas conhecem o mercado financeiro, mais elasgostam do Unibanco Strategy.

Itaucard. O único cartão que tem um Itaú de vantagens.

Uma iniciativa assim só poderia contar com a adesão do Bradesco evem reforçar ainda mais a transparência e a ética do Banco no mercadode capitais e com seus acionistas.

O Banco do Brasil trabalha 24 horas por dia para oferecer soluçõespersonalizadas que fazem a diferença para os seus clientes.

O Itaú investe no Brasil.

Certificação Digital do Banco do Brasil. Mais uma novidade do Bancoque tem mania de segurança. Segurança nunca é demais. Aliás quantomais segurança melhor. É por isso que o Banco do Brasil (...).

Observem-se nos exemplos os papéis temáticos e figurativos usa-dos: Banco do Brasil, Bradesco Corporate, funcionários públicos, Brasil,acionistas, grandes grupos empresariais, pessoas especiais, banco quetem mania de segurança e outros.

Page 40: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

40

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

i) Enunciado enunciado: ele vs você (em lugar de ele)

Os efeitos de sentido de objetividade, afastamento e assimetria dodiscurso de um enunciado enunciado, são, algumas vezes, atenuados como uso da 2ª pessoa você em lugar da 3ª pessoa indeterminada. O efeito desentido desse emprego é o de personalização dos enunciados impesso-ais, o de introdução do sujeito indeterminado na “situação de enuncia-ção, como se fosse parte dela” (Fiorin, 1996: 90). Recupera-se, portanto,uma certa cumplicidade e reciprocidade na interação, “apagadas” no enun-ciado enunciado. Como o discurso continua a ter as marcas do enunciadoenunciado explicitadas na posição do destinador e implicitadas na dodestinatário, essa recuperação é apenas parcial, uma camada de compro-metimento e dialogismo sobre outra de afastamento, desigualdade eassimetria, como se observa nos trechos que seguem:

Você pega as suas economias, investe no lugar certo e acaba compran-do o carro certo, o apartamento certo. Certo?

Itaucard. É tanta vantagem que todo mundo quer um. Com um Itaucardno bolso você não conta vantagem, você conta com vantagens todos osdias.

Você paga suas compras de qualquer valor com o Cartão Bradesco naRede Visa Electron pelo menos uma vez por mês e ganha um serviçode assistência que inclui guincho, envio de combustível, táxi e muitomais, totalmente grátis.

Quem tem um Itaucard não tem um cartão de crédito qualquer. Tem oúnico cartão de crédito aceito em milhares de estabelecimentos nomundo inteiro e que pode oferecer um Itaú de vantagens. E o melhor éque você não precisa ficar juntando pontos nem esperando para teressas vantagens.

Quem tem SuperCheque Santander fica tranqüilo. Só ele tem juros de-crescentes. Quanto mais você usa menos juros você paga.

Page 41: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

41

Interação na fala e na escrita

3.2. A categoria de pessoa nos anúncios e na língua falada

O exame da categoria de pessoa nos anúncios permite comparar aorganização das pessoas e a interação entre os interlocutores neles encon-tradas com as da língua falada e, conseqüentemente, com as da escrita.

A organização das pessoas nos anúncios constrói, como foi visto,três efeitos de sentido principais:

1 – o efeito de sentido de identificação entre destinador (banco)e destinatário (cliente), com o uso do nós inclusivo;

2 – o efeito de sentido de comprometimento, com o emprego devocê;

3 – o efeito de sentido de objetividade e assimetria na interaçãocom o uso da 3ª pessoa, nos discursos de enunciado enunciado.

O texto de Lotman sobre os conceitos de vergonha e de medo(1981) pode ajudar a bem entender os sentidos produzidos nessasinterações. Lotman considera que há culturas em que as relações sãoreguladas pela vergonha – são as do nós, dos iguais – e outras que sãoregidas pelo medo – as dos diferentes, colocados como eles.

No primeiro tipo de interação, a identificação obtida pelo nós in-clusivo faz pensar em relações regulamentadas pela vergonha. Os anún-cios não tratam da vergonha, mas de seu contrário positivo, no mesmoâmbito de valores, isto é, do orgulho (de nossos atletas, de nossa gente,de nossas coisas e feitos).

No segundo e no terceiro tipos de interação, a dissimetria da relação(nós vs você, ele vs você, ele vs ele), que instala sujeitos diferentes, poisainda que variem os graus de aproximação, não estão eles na mesma situa-ção de enunciação, estabelece, portanto, o regime do medo. Uma vez mais,são os contrários positivos do alívio e da segurança que são usados nosanúncios. Alguns raros anúncios, em geral de seguros, e nem sempre bemsucedidos, tratam do medo, como nos exemplos que seguem:

Page 42: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

42

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

Vai que seu anjo da guarda é daqueles que se enfiam em qual-quer cantinho para cochilar. É melhor você fazer um seguro Itaú.

Muro vive atravessando a rua sem olhar. Ainda bem que o valorde mercado do seu carro, a gente garante (Banco do Brasil).

Você vai pegar a estrada ou é ela que vai te pegar? A estrada écheia de imprevistos. Ainda bem que o seguro completo para oseu carro, a gente garante (Banco do Brasil).

Na maior parte dos anúncios, porém, emprega-se, como foi vistonos exemplos dos itens anteriores, o alívio e a segurança de poder contarcom um banco interessado e/ou objetivo.

Na fala “ideal”, retomando os estudos citados de início (Barros,2000 e 2001), predominam a enunciação enunciada eu vs você e os efei-tos de subjetividade, reciprocidade e proximidade enunciativa. Confor-me os textos se aproximem mais ou menos desse modelo “puro”, po-dem-se acentuar ou atenuar os sentidos da interação da fala “ideal”.

A interação eu vs você praticamente não ocorreu nos anúncios,sendo a relação nós vs você, também pouco freqüente, a que mais seaproximou desse modelo de fala.

Como foi apontado, os anúncios preferem produzir os efeitos deausência de interação, com a identificação entre o destinador e o destina-tário, graças ao nós inclusivo, ou de interação assimétrica, em graus va-riados, ao colocar ora o destinador, ora o destinatário, ora ambos fora dasituação de enunciação. No primeiro caso (ele vs você), os efeitos são deobjetividade e seriedade do banco e, ao mesmo tempo, de comprometi-mento com o cliente. No segundo caso (nós vs ele), os sentidos são o derelativa subjetividade do banco e de afastamento educado e polido docliente. No último caso, apaga-se a interação, com o discurso em 3ª pes-soa, e o banco e o cliente são construídos como sujeitos diferentes, obje-tivos, educados, polidos, sofisticados.

Os textos falados e os dos anúncios encontram-se nos casos emque a fala atenua ou acentua os efeitos de aproximação enunciativa, desubjetividade, de reciprocidade e de informalidade, isto é, quando usanós, a gente e você, em lugar da 3ª pessoa indeterminada.

Page 43: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

43

Interação na fala e na escrita

Em síntese, os anúncios usam a categoria de pessoa para produziros efeitos de não-interação, seja com a identificação do nós inclusivo,seja com a 3ª pessoa do enunciado enunciado, afastando-se assim da fala“ideal”, ou os de interação assimétrica, chegando, nesses casos, um pou-co mais perto da fala, em graus diferentes de aproximação, conforme foivisto.

4. Considerações finais: a categoria de pessoa e aconstrução de identidade

As diferentes escolhas das pessoas do discurso nos anúncios queforam examinados mostram que esses procedimentos contribuem para aconstrução das identidades dos bancos anunciantes. Cada banco apre-senta seu modo de ser, em decorrência, entre outros recursos, dos dife-rentes empregos de pessoas nos discursos. Três blocos identitários sedestacam: o dos bancos nacionais-sociais, que usam os nós inclusivo(nós, os brasileiros, os paulistas, etc) para criar identificação sensorial eafetiva entre o banco e o cliente, com os sentimentos de patriotismo e deorgulho de nossa gente, de nossas coisas e de nossos atletas; o dos ban-cos cúmplices ou comprometidos, que não se confundem com os clien-tes, mas com eles se comprometem, por eles se interessam, a eles sededicam, e que, para tanto, empregam o você do destinatário; o dos ban-cos sérios, refinados, elegantes, sofisticados, que utilizam o discurso em3ª pessoa, do enunciado enunciado, com os sentimentos de distancia-mento educado e polido.

A análise da categoria de pessoa nos discursos dos anúncios per-mite assim que se conheçam as identidades que cada banco constróinesses anúncios, e, a partir daí, os valores em circulação na nossa socie-dade.

Page 44: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

44

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Interação em anúncios publicitários

5. Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail (1981). Le principe dialogique. Paris: Seuil.BARROS, Diana Luz Pessoa de (2000). Entre a fala e a escrita: algumas reflexões

sobre as posições intermediárias. In. PRETI, Dino (org.). Fala e escrita em ques-tão. São Paulo: Humanitas, p. 57-77.

BARROS, Diana Luz Pessoa de (2001). Enunciação e língua falada. In: Urbano, H.,Dias, A.R.F, Leite, M. Q., Silva, L.A., Galembeck, P. de T. (Orgs.) Dino Preti eseus temas: Oralidade, Literatura, Mídia e Ensino. São Paulo: Cortez, p. 51-61.

BOURDIEU, Pierre (1979). La distinction. Critique sociale du jugement. Paris:Minuit.

CAMPOS, Norma Discini de (2001). Estilo e semiótica. Tese de doutoramento,FFLCH-USP.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de e PRETI, Dino (orgs.). (1987). A Cidade de SãoPaulo. Vol. II – Diálogos entre dois informantes. São Paulo: T. A. Queiroz/FAPESP.

FIORIN, José Luiz (1996). As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática.GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph (s/d). Dicionário de semiótica.

São Paulo: Cultrix.

Page 45: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

ALGUNS PROBLEMAS INTERACIONAIS DACONVERSAÇÃO

Dino Preti

Considerações iniciais

O conceito de interação pode ser entendido em sociedade sob oponto de vista da reciprocidade do comportamento das pessoas, quandoem presença uma das outras, numa escala que vai da cooperação ao con-flito. De uma maneira geral, pode-se partir desde uma simples co-pre-sença em que dois indivíduos se cruzam na rua e que, mesmo sem seconhecerem, se observam, guardam distância e desviam-se para não sechocarem, o que já demonstra uma ação conjunta e socialmente planeja-da, até a interação com um único foco de atenção visual e cognitiva,como a conversação, em que os falantes por um momento se concentramum no outro e se ligam, não só pelos conhecimentos que partilham, mastambém por outros fatores socioculturais, expressos na maneira comoproduzem o seu discurso e conduzem o diálogo. Pode-se denominar aprimeira, isto é, a interação pela simples co-presença, de não focalizada;e, a segunda, em que se inclui a conversação face a face, de focalizada.(Cf.Goffman, 1961: 7). Este último enfoque, que inclui a interação conversa-cional, será objeto deste estudo.

A palavra conversação abrange um grande leque de atividades decomunicação verbal, desde as falas descompromissadas do dia-a-dia, atédiálogos com temas pré-determinados, que podem, à medida que decor-

Page 46: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

46

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

rem, ir-se modificando, em função das circunstâncias criadas pela pró-pria interação. A rigor, os falantes criam um texto em conjunto, colabo-rando ou contra-argumentando ou, às vezes, até completando-se, paralevarem adiante o diálogo

Na análise de um processo interacional focalizado, numa conver-sação, ou mesmo em parte dela, pode-se observar a possibilidade de pla-nejamento (ou replanejamento) dos falantes, bem como suas estratégiasdiscursivas, ao longo da conversação, que podem resultar em sucesso ounão de sua argumentação; as possíveis manifestações de poder ou solida-riedade entre os interlocutores, que podem refletir-se na simetria ou assi-metria dos turnos; a colaboração mútua na realização do “discurso a dois”,observável até em nível de construção dos enunciados; a conservação oua perda da face, expressão social do eu individual; a fluência conversa-cional e sua relação com os conhecimentos prévios ou partilhados; asformas de tratamento e as variações socioculturais da linguagem; o usode narrativas ou a reprodução do “discurso do outro”; etc.

Para discutir alguns desses problemas interacionais na conversa-ção, vamos acompanhar o desenvolvimento de um segmento de um tex-to do Projeto NURC/SP (D2 n.º 343) entre dois falantes cultos, de sexodiferente, convidados para realizar um diálogo de 80 minutos, sobre otema “a cidade e o comércio”, que lhes foi dado minutos antes do inícioda gravação. Trata-se de dois irmãos, o primeiro locutor (L.1) engenhei-ro, 26 anos; a segunda locutora (L.2), psicóloga, 25 anos. Além deles, háa audiência passiva de uma documentadora (Doc.), que só participa es-poradicamente na conversação, quando se trata de realinhar o tema ousugerir tópicos para sua continuação.

Texto

...................................................................................................................................

L1 bom é uma opinião particular minha aí não é que se espere...é é ofuncionamento... da massa humana né?... você não consegue diz/

Page 47: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

47

Interação na fala e na escrita

chegar assim digamos você ... PROva que uma coisa éverdaDEIra... e por admitir que ela é verdadeira você passa aatuar com a verdade... mas você primeiro tem que sentir a verda-de para depois atuar com ela né?... em Psicologia tem muito dissoné? é nada né? você pega um indivíduo... que ele é... um elemen-to né?... independente do funcionamento de uma ciDAde ((somde buzina)) que tem um montão de indivíduos... então a cidade...eu faço analogia com o indivíduo... e::... o::: o elemento queforma a cidade ou vários seres humanos com:: sei lá parte docorpo do indivíduo né?... então se você:: éh:: não está bem preci-sa de uma terapia... mas não está:: indo tão mal você não vaifazer terapia fa/ah:: “fulano faz terapia” o cara “não não faço”aíum dia que ele fica be/mal pra burro entra numa fossa não sabemais o que fazer

L2 aí que ele começa a ficar bem

[

L1 se estrepa todo...

L2 mesmo porque aí que vai procurar ajuda né?

[

L1 aí... ele vai procurar terapia né?

L2 uhn uhn

L1 eu acho que é equivalente com a cidade... a hora que a cidade ficabem ruinzinha né?...

L2 é que os mecanismos são diferentes né? porque eu não sei sefunciona o:: ao mesmo nível sabe... o cara procura terapia oudigamos a cida::de...procurar uma terapia porque chegou um pontoassim porque aí é:::...

L1 não não não não

L2 é bem tribal né?

[

L1 mas não em termos de terapia em termos... a terapia é um veículode solução de problemas no caso... certo?

L2 uhn uhn

L1 problema emocional para a cidade seria... saneamento...despoluição... seria analogia de terapia com o indivíduo... vocêentendeu?... acho que eu estou comparando um:: um:: um ummacro com um micro...

L2 mas você vê que esse saneamento...

Page 48: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

48

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

[

L1 o problema

L2 se você continuar com a analogia... inclusive se você pensar::...

[

L1 esse saneamento é o seguinteseria uma PARte... sei lá ou um governo ou alguma coisa queimPÕE... alguma coisa

L2 uhn uhn

L1 ao que é subordinado na cidDAde...

[

L2 tá...

L1 ou seja... na hora que o indivíduo vai procurar... um::... uma tera-pia o superego dele está levando o corpo dele... para a terapia...

L2 sim tudo bem

L1 o governo levaria a cidade...() medidas restritivas

[

L2 mas... isso aí é:: é:: a:: o saneamentopara mim ((tosse)) se continuar com essa analogia seria ((ruídosprovenientes de defeito técnico de gravação)) e você:: elimina osintoma o que acontece?... aparecem outros

L1 não eu acho que você já já saiu do () você já está ()

[

L2 não eu... eu vejo assim...

L1 a eliminação de sintomas?

L2 não mas... o saneamento... sabe você não vai eliminar causa queprovocou a a poluição por exemplo... () pensar em termos de::culpa coletiva por exemplo

[

L1 é só que isso não tem importan/...certo? massó que não tem nada que ver uma coisa com outra porque... naPsicologia... se você... só elimina o::efeito não elimina a causa...você chega a dizer que você pode... muDAR... o problema de umlugar para outro né?... agora uma

[

L2 mas o problema continua o mesmo

L1 cidade não é isso você eliminou a poluição acabou... nã/nã/nã

Page 49: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

49

Interação na fala e na escrita

não:: tem um análogo assim da cidade grande tipo... vontade dos...habitantes de poluir... não...

L2 eu acho que tem

L1 não

L2 eu acho que tem um sentido sim por trás

[

L1 a cidade nesse sentido nãoteria uma psiquê da cidade né?... eu não estou comparando a psiquêdo indivíduo com a da cidade ()...estou estou comparando... opsiquê do indivíduo com a terapia para poluição da cidade () certo?

[

L2 uhn uhn

L1 esquecendo... particularidades

[

L2 uhn

L1 da psiquê

L2 então acontece por aCAso assim por... falta de::... ah:: de planeja-mento

[

L1 poluição

L2 tal é?

L1 é::

L2 e:: eu já acho que não

L1 por exemplo se você construísse seu carro você pensaria em po-luição?... não... por quê?... porque se teu carro polui se se você saidetrás do escapamento fala “tudo bem”... agora mil carros andan-do causa um problema... é diferente da... do do do () talvez vocênão tenha... joguei uma analogia errada... você já envolveu a psiquêquer jogar a psiquê em cima

L2 ((risos))

L1 da cidade

L2 eu não sei que para falar do problema assim concreto materialrealmente não interessa muito sabe?

L1 uhn

L2 não:: não tem muita ressonância para mim... inclusive:::

L1 é porque senão seria o seguinte a cidade pequena não tem esses

Page 50: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

50

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

problemas... não é::? Não dá para fazer analogia criança adulto...

L2 como assim?...

L1 a criança tem uma psiquê o adulto tem outra psiquê num numestágios diferentes... de...

[

L2 uhn

L1 desenvolvimento... então:: você pode dizer “ criança::...quandopassa para adulto então amadure acontece uma série de coisas”...uma cidade pequena para uma cidade GRANde você não podedizer... “ provavelmente ela amaduREce então () apresentou pro-blemas porque... cresceu”...não

L2 não mas são dois mecanismos...

[

L1 quando era pequena e quando era grande... elamesma... problemática básica... só que... quando ela cresceu issose::: se torna... aparente... não tem que ver com nada de mudan-ça... tipo amadurecimento... certo? a cidade pequena tem carro...já que o número de carros é pequeno então não tem trânsito...

L2 uhn

L1 okay? cidade grande também tem carro você pega uma cidadepequena a proporção de carros por indivíduo pode ser maior atéque uma cidade grande e não ter congestionamento... e todos oscarros da cidade pequena podem fazer uma fumaceira desgraça-da que vão:: poluir a cidade...

L2 o problema seria mais quantitativo?

L1 então seria uma é... é são quantidades de poluição por quantidadede área existente né?... circulação de ar etc...

L2 produção...

L.1 sugestão...

L.2 e Doc. ((risos))

[

L.1 para continuidade

Doc. sugestões... e a opinião de vocês a respeito do metrô?

(NURC/SP 343. Cf. Castilho & Preti, 1987: 21-5)1

1 Símbolos usados na transcrição:

( ) incompreensão; / truncamento; ... qualquer pausa; :: alongamento; [ sobreposição devozes; maiúsculas entoação enfática; (( )) comentários descritivos do transcritor.

Page 51: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

51

Interação na fala e na escrita

1. Planejamento ou replanejamento do texto falado

Entre as muitas diferenças discutíveis entre língua falada e escritaestá a que aponta a primeira como atividade não planejada. Essa e outrasdistinções absolutas são, hoje, contestadas por lingüistas, como Marcuschi(2001: 37), que pretendem que haja um continuum entre as duas modali-dades de língua, de tal sorte que há gêneros escritos que se aproximam dafala (bilhetes, inscrições murais etc.) e gêneros orais que lembram a es-crita (palestras, discursos oficiais etc.)

Se concordarmos com essa posição, podemos dizer com Ochs(1979) que existe em ambas as modalidades um “planejamento restrito”,dependendo do gênero do texto, das finalidades e das circunstâncias emque é produzido. Parece-nos evidente, portanto, que, na língua escrita,até uma inscrição mural revela um mínimo de planejamento (ninguémquer deixar testemunhada a sua ignorância, ainda que a autoria do escritonem sempre seja declarada ou suposta). Da mesma maneira, um textooral, pelo menos, em princípio, também se revela planejável ou, como secostuma afirmar, continuamente replanejável.

De fato, quem principia uma conversação tem, pelo menos, umtema e uma mínima organização das idéias que irá desenvolver, até mes-mo com o objetivo de manifestar interesse no seu interlocutor. Com ocorrer do diálogo, com a alteração normal dos tópicos e subtópicos, podehaver a necessidade de construir uma argumentação que implique umreplanejamento do discurso. Daí podermos concordar com Koch, quan-do afirma:

1. [A conversação natural face a face] é relativamente planejável deantemão, o que decorre, justamente, de sua natureza altamenteinteracional; assim, ela é localmente planejada, isto é, planejada ereplanejada a cada novo “lance” do jogo.

2. O texto falado apresenta-se em se fazendo”, isto é, em sua pró-pria gênese, tendendo, pois, a “pôr a nu” o próprio processo desua construção.

Page 52: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

52

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

3. O fluxo discursivo apresenta descontinuidades freqüentes, devi-das a uma série de fatores de ordem cognitivo/interativa e quetêm, portanto, justificativas pragmáticas.

4. O texto falado apresenta, assim, uma sintaxe característica, sem dei-xar de ter como fundo a sintaxe geral da língua. (Koch, 1992: 69)

Se tomarmos um diálogo, no início ou em vários pontos de seudesenvolvimento, podemos observar que os falantes replanejam sua or-ganização discursiva, em função das necessidades de compreensão, deenvolvimento, de participação, de convencimento de seu interlocutor.As estratégias conversacionais, portanto, consistem em táticas que seempregam para atingir esses e outros fins na interação. Tais procedimen-tos levam sempre em conta as condições situacionais do diálogo, isto é,os fatores pragmáticos que cercam a interação (onde ocorre o diálogo,quem são os interlocutores, o grau de intimidade que os une, os conheci-mentos partilhados que pressupõem, o tema de que tratam, a presença deuma audiência ativa ou co-participante etc.)

Assim, se o falante não conhecer seu interlocutor, se o diálogo forocasional, não esperado ou se for o resultado de um encontro com regrase objetivos determinados previamente, por exemplo, tais condições sãoessenciais para o desenvolvimento da conversação e para que seja levadaa bom termo. No primeiro caso, em geral, existe um primeiro momentoem que os falantes estudam e aguardam as reações do interlocutor, nosentido de empregarem as melhores táticas para chegar a um “modusvivendi interacional” (Goffman, 1989: 18), que lhes permita interagircom êxito. No segundo, há regras impostas pela situação de comunica-ção, que não podem ser esquecidas, como no caso das gravações doProjeto NURC/SP, em que os falantes recebem um tema para desenvol-ver, em presença de uma documentadora (audiência), podendo seus dis-cursos, não raro, revelarem variações de formalidade. Em ambos os casos,o diálogo se desenvolverá em condições de maior ou menor simetria, o quepode, também, ser indício de poder social de um interlocutor sobre o outro.

Portanto, ao se iniciar um diálogo ou um segmento dele, com aapresentação de um novo tópico, os falantes levam em conta todas asinformações que cada um tem a respeito do outro ou dos demais. Com

Page 53: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

53

Interação na fala e na escrita

isso, organizam-se as primeiras ações, definindo-se até possíveis lide-ranças na seqüência dos turnos.

Essas informações que cada falante tem ou obtém, num primei-ro momento, sobre o outro, definirão também suas estratégias na con-versação. Conforme afirma Goffman, “quando um indivíduo projetauma definição da situação e com isso pretende, implícita ou explicita-mente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente exerceuma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e atratá-lo de acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito deesperar”. (op. cit. p. 21)

Assim, no segmento de texto apresentado, considerando o temaque devem desenvolver, os dois interlocutores já partem de um conheci-mento prévio sobre a profissão de cada um e procuram demonstrá-lo nodecorrer do diálogo. L.1 começa o seu discurso, considerando sua condi-ção de engenheiro, portanto, em princípio, um conhecedor do tema (trans-formações urbanas, na cidade de São Paulo) que planeja ligar à especia-lidade de sua interlocutora (Psicologia). Sua estratégia (uma analogiaentre cidade e homem), em princípio, revela, claramente, a intenção deaproximar assuntos nem sempre conciliáveis, a fim de facilitar a intera-ção e demonstrar, de um lado, sua competência no assunto e, de outro,seu conhecimento, também, da área científica em que sua interlocutoraatua. E, portanto, criar o modus vivendi conversacional, que lhe permitater êxito em seu discurso:

L 1 então a cidade... eu faço analogia com o indivíduo... e::... o::: oelemento que forma a cidade ou vários seres humanoscom:: sei lá parte do corpo do indivíduo né?

Ao mesmo tempo, L.2 reage, como psicóloga, declarando que aaproximação lhe parece estranha:

L 2 uhn uhn é que os mecanismos são diferentes né? porque eu nãosei se funciona

Page 54: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

54

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

o:: ao mesmo nível sabe... o cara procura terapia ou digamos acida::de... procurar uma terapia porque chegou um ponto assimporque aí é::: é bem tribal né?

Definida sua estratégia, L.1 se propõe a continuar com a compara-ção inicial. Com sua insistência, percebe-se uma posição indecisa de acei-tação de L.2, que se configura como uma interlocutora bem mais passivaque seu companheiro.

Como o diálogo se desenvolve quase sempre conduzido por L.1 emonitorado por L.2, seria de esperar-se que a estratégia discursiva de L.lconduzisse a bom termo a conversação, no sentido de convencer L.2acerca das idéias dele sobre os problemas da cidade. No entanto, tal nãoocorre, porque, como lançou mão de uma analogia ousada, enreda-senos próprios argumentos e acaba, ele mesmo, por renegá-los. A confu-são gera a sua perda da face e os risos de L.2:

L.l (...) agora mil carros andando causa um problema... é diferenteda... do do do () talvez você tenha... joguei uma analogia erra-da... você já envolveu a psiquê quer jogar a psiquê em cima dacidade

[

L.2 ((risos))

A perda da face, em geral, pode levar a uma situação tensa e com-prometedora da interação. Mas, neste texto, como há certa artificialidadena situação, de vez que se trata de um diálogo com objetivos puramentelingüísticos, embora também haja uma ruptura na interação, L.1 aindatentará prosseguir com a comparação, todavia verá esgotada a sua capa-cidade de imaginar e recorrerá à suspensão do seu discurso, pedindo àdocumentadora, que sugira um novo tópico, para a continuação do diálo-go. Mais uma vez, ocorrerá uma perda da face, que motivará risos:

L.1 então seria uma é... é são quantidades poluição por quantidade deárea existente né?...circulação de ar etc....

Page 55: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

55

Interação na fala e na escrita

L 2 produção...

L.1 sugestão...

L.2 e Doc. ((risos))

[

L.l para continuidade

Doc. sugestões... e a opinião de vocês a respeito do metrô?

Assim, embora o planejamento não possa ser encarado como umdos fatores que diferenciam a fala da escrita (cf. Marcuschi, op. cit. p.42), temos aqui um exemplo de como uma estratégia mal planejada podelevar a um fracasso irreparável na condução do discurso. Observe-seque, se se tratasse de um texto escrito, o fator tempo não se imporia comoum obstáculo e seria possível ao autor reescrever, modificar ou até subs-tituir o argumento por outro sem qualquer prejuízo. Na língua oral, emtese, isso também seria possível, em muitos casos. Mas em outros, comoocorre no texto que examinamos, a dinâmica da conversação torna areparação impossível, porque L.1 não tem um tempo maior para a refle-xão, acaba perdendo-se e reconhecendo que sua analogia estava errada esem condições de ser mantida.

Na conversação do dia-a-dia, observamos, com freqüência, essaimpossibilidade de replanejamento, quando um dos interlocutores ficaacuado, enredado em sua própria argumentação, o que pode levar a umconflito, se insistir nela. No texto analisado, nem tanto pela oposição dainterlocutora, mas pela própria incoerência do argumentos, L.1 sente queo replanejamento é impossível e acaba por entregar a face.

2. Gênero dos falantes e manifestações de poderou solidariedade

Como se trata de um diálogo que envolve participantes de sexodiferente, embora ambos representem um status social semelhante, valea pena lembrar aqui um problema largamente estudado pela Sociolin-

Page 56: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

56

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

güística Interacional: o diálogo entre homem e mulher e a provável in-fluência do gênero no discurso de cada um.

Parece que, em geral, pode-se considerar que a mulher está maispropensa a aceitar o papel de ouvinte, deixando ao homem a participaçãomuito mais ativa de expositor de suas opiniões. E, de certa maneira, aconseqüência desse fato é que os homens costumam (Tannen, 1996: 22)dominar o turno, arrebatando, com mais freqüência, a palavra de suasinterlocutoras, o que pode revelar uma ação que tem o poder como moti-vação. Assim, numa pesquisa realizada por analistas da Universidade deSanta Bárbara, Califórnia, na década de 70 do século passado, concluiu-se que era maior o índice de interrupções da fala dos homens sobre a faladas mulheres, o que revelaria um aspecto psicossocial de opressão da-queles sobre estas. Tal conclusão foi posteriormente contestada, a partirde diferenças de conceito de sobreposição e interrupção. (Cf. Murray &Covelli, 1988).

É evidente que as transformações sociais do fim do século passa-do parecem indicar que certos costumes, tradicionalmente aceitos, queindicavam uma preponderância do homem nas interações, recebem hojeuma reação, tendente a alterar a posição subordinada em que habitual-mente se encontrava a mulher.

Mas é preciso considerar, acima de tudo que, como o diálogo cons-titui uma produção lingüística articulada, a interação dos falantes depen-de de fatores diversos, que se colocam acima de uma generalidade que sepretenda adotar como regra de análise do diálogo entre interlocutores degênero diferente. Numa sociedade como a brasileira, tradicionalmentemasculinista, talvez seja possível notar, ainda hoje, dependendo dos am-bientes, uma atuação muito mais ativa do homem nas interações.

Em nosso texto, por exemplo, observamos uma participação bemmaior do falante masculino, limitando-se L.2, na maior parte do segmen-to, a um acompanhamento do interlocutor, por meio de marcadores doouvinte (uhn, tá, tudo bem). Além disso, não encontramos um estratégiaconversacional que defina a atividade de L.2 no diálogo. Sua tomada deturno, quase sempre, se processa a partir da natural entrega do interlocutore não há, geralmente, interferências no turno de L.1.

Page 57: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

57

Interação na fala e na escrita

Por outro lado, há um número considerável de frases incompletas,devido aos constantes assaltos ao turno, por parte de L.1. Tal fato noslevaria a pensar numa assimetria do diálogo, o que representa um claroindício de poder na interação.

No segmento analisado, encontramos dezoito sobreposições, masnem todas constituem interrupções, pois, em geral, L.2 sobrepõe paraindicar monitoramento (tá, uhn). Nas vezes em que procura tomar o tur-no, para expressar uma idéia contrária ou contribuir no turno dointerlocutor, este não permite e continua, obrigando L.2 a desistir, abor-tando seu assalto ao turno. Por outro lado, as sobreposições de L.1 sem-pre têm sucesso, pois não só interrompem o pensamento de L.2 ou coin-cidem com ele, mas até alteram seu desenvolvimento:

L.2 aí que ele começa a ficar bem

[

L.l se estrepa todo...

L.2 mesmo porque aí que vai procurar ajuda né?

[

L.1 aí... ele vai procurar terapia né?

L.2 uhn uhn

Nesse trecho, observamos que na primeira sobreposição de L.l, háuma tentativa de se antecipar ao pensamento de L.2, só que a idéia de L.1é oposta a que L.2 ia dizer (começa a ficar bem/se estrepa todo). Toda-via, influenciada por seu interlocutor, L.2 altera o curso de seu pensa-mento e continua a partir da fala de L.1 (mesmo porque aí que vai procu-rar ajuda né?). Ainda nessa frase de L.2, vai existir uma sobreposição deL.l, tentando advinhar o que sua interlocutora iria dizer (aí... ele vai pro-curar terapia né?).

Mas esses exemplos poderiam ser vistos, também, como um tipode sobreposição de vozes, denominado “sobreposição cooperativa, istoé mais de apoio do que de obstrução, evidência não de dominação, masde participação; não de poder, senão da dimensão paradoxalmente rela-

Page 58: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

58

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

cionada, a solidariedade” (Tannen, 1996: 72). É o que se poderia, tam-bém, denominar de “discurso a dois” (Preti, 1988:230).

A predominância do discurso de L.1 sobre L.2, neste segmento,poderia ser atribuída, por outro lado, a fatores interacionais específicosdesse diálogo, pois a sobreposição ou interrupção do discurso pode de-correr, também, do estilo dos falantes, do maior conhecimento do assun-to tratado, da intenção de contribuir com o discurso do interlocutor, vi-sando a uma continuação natural do diálogo.

É certo, porém, que, raramente, L.2 procura contradizer L.1, a fimde negar a possibilidade de uma analogia entre o homem e a cidade. E,quando o faz, em geral, não consegue concluir:

mas você vê que esse saneamento... se você continuar com a analogia...inclusive se você pensar::...

.................................................................................................................................................................

não eu... eu vejo assim...

.................................................................................................................................................................

não:: não tem muita ressonância para mim... inclusive:::

..................................................................................................................................................

não mas são dois mecanismos...

Enfim, talvez, o fato de haver uma predominância do falante degênero masculino nem sempre pode, necessariamente, ser atribuído aum princípio geral de opressão do homem sobre a mulher na conversa-ção, mas à coincidência de uma série de fatores interacionais que podemestar agindo sobre esse segmento do diálogo examinado.

Mas o certo é que o fracasso da estratégia discursiva de L.1 sedeve muito mais à inadequação das bases de sua analogia, do que à opo-sição de L.2.

Page 59: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

59

Interação na fala e na escrita

3. Formas de tratamento

A intimidade entre os interlocutores está expressa pela formapronominalizada de tratamento você com valor de pronome de segundapessoa, integrada no que Robinson (1977) chama de semântica da soli-dariedade (solidary semantic). Tratamento que podemos considerar nor-mal, tendo-se em conta o fato de que os interlocutores são irmãos.

Todavia, o uso dessa forma pronominalizada adquire, às vezes,uma outra função interativa, servindo como referência a uma terceirapessoa indefinida, a quem o falante atribui a ação, conforme ensina Ne-ves (2000: 463): “O pronome você, embora seja forma de pessoa envol-vida no discurso (segunda pessoa), pode indicar referência genérica. Aindeterminação, nesse caso, é muito forte (você = uma pessoa, seja qualfor)”. É o que podemos observar ao longo do segmento estudado:

L2 (...) se continuar com essa analogia e você:: elimina os sintomaso que acontece?... aparecem outros

...........................................................................................................................................................

L.1 é só que isso não tem importan/...certo? mas só que não tem nadaque ver uma coisa com outra porque... na Psicologia... se você...só elimina o:: efeito não elimina a causa... você chega a dizer quevocê pode ... muDAR... o problema de um lugar para outro né?

...............................................................................................................................................................

L.1 okay? Cidade grande também tem carro você pega uma cidadepequena a proporção de carros por indivíduo pode ser maior atéque uma cidade grande e não ter congestionamento...

O uso da forma pronominalizada você, nesse sentido genérico (oque também pode ocorrer com o pronome eu), serve, na interação, paraimaginar, não o que o interlocutor, mas qualquer outra pessoa possa vir afazer. Constitui um elemento expressivo, pois reforça os argumentos dofalante, aproxima-o do interlocutor e contribui para dramatizar o diálo-go. Sua presença pode alternar-se com um referente indefinido como ocara ou ele:

Page 60: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

60

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

L.1 (..) então se você:: éh:: não está bem precisa de uma terapia... masnão está:: indo tão mal você não vai fazer terapia fa/ah:: “ fulanofaz terapia” o cara “não não faço” aí um dia que ele fica be/malpra burro entra numa fossa não sabe mais o que fazer se estrepatodo

O segmento estudado nos mostra o uso muito freqüente da formapronominalizada você, por L.1 (18 vezes) e isto talvez possa ser explica-do pela insegurança com que o falante quer levar avante sua estranhaanalogia. Ele tenta introduzir sempre o interlocutor no seu discurso, parasentir sua participação efetiva na linha de sua argumentação. É um recur-so interativo que objetiva o envolvimento do ouvinte.

4. Marcadores conversacionais interativos

Ainda decorrência de uma estatégia conversacional inadequada esua conseqüente insegurança em conduzir a argumentação do discurso,há a presença constante de marcadores conversacionais interativos, nodiscurso de L.1 que testam continuamente o ouvinte como a sugerir que,não só acompanhe seus argumentos, mas também “comprometa-se” comeles. Esses marcadores fazem parte do que se poderia chamar “sintaxe dainteração”, na língua falada (Marcuschi, 1986: 72). Embora pequeno, osegmento inclui os marcadores né? (11 ocorrências), não é?, você enten-deu?, certo? (3 ocorrências) okay? Eles não têm apenas um valor fático,pois sua presença indica que o falante solicita a aceitação dos seus argu-mentos pelo ouvinte, embora esse, como ocorre nas interrogações retóri-cas, não se pronuncie.

No discurso de L.2 o número desses sinais é muito menor, indi-cando que a falante, como se disse, não previu uma estratégia discursivae se limita, ao longo do diálogo em ouvir ou discordar rapidamente dasconfusas idéias de seu interlocutor. Por outro lado, o fato de L.1 exercerum domínio no diálogo, também, pode justificar a presença menor demarcadores interativos em L.2.

Page 61: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

61

Interação na fala e na escrita

5. Informalidade

Embora o texto que estamos vendo se constitua a partir de umasituação aparentemente formal, com um tema oferecido pela documen-tadora para discussão, observa-se que, com o decorrer do diálogo, consi-deradas as condições de intimidade entre os falantes, atinge-se, em vá-rios momentos, a uma situação de informalidade, que é a característicafundamental da conversação natural. Os falantes se envolvem no tema ehá uma propensão para o uso de uma linguagem coloquial, que se afastado que poderíamos esperar para um diálogo gravado entre dois profissi-onais que discutem um tema social. Talvez, a própria recomendação ha-bitual da documentadora do Projeto, no sentido de que a conversação sepaute pela naturalidade, também tenha influído:

L.1 (...) mas você primeiro tem que sentir a verdade para depois atuarcom ela né? .. em Psicologia tem muito disso né? é nada né? vocêpega um indivíduo... que ele é.. .um elemento né?... independen-te do funcionamento de uma ciDAde ((som de buzina)) que temum montão de indivíduos... então a cidade... eu faço analogiacom o indivíduo...e::: o::: o elemento que forma a cidade ou vá-rios seres humanos com:: sei lá parte do corpo do indivíduo né?...então se você:: éh:: não está bem precisa de uma terapia... masnão está indo tão mal você não vai fazer terapia fa/ah:: “fulanofaz terapia”o cara “não não faço”aí um dia que ele fica be/malpra burro entra numa fossa não sabe mais o que fazer

L.2 aí que ele começa a ficar bem

[

L.1 se estrepa todo

Nesse trecho observamos uma busca deliberada de informalidadepor parte de L.1. Alguns usos de seu discurso demonstram uma rupturacom uma linguagem que vinha sendo mais controlada, em função daprópria situação de comunicação. Assim, o emprego de alguns verbosbem típicos da linguagem falada em nível coloquial, pega (influênciaitaliana no português popular de São Paulo), que ocorre, também, emoutros momentos do texto estudado; de vocábulos e expressões intensifi-

Page 62: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

62

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

cadores (montão, pra burro), de gírias (fossa, estrepa), de formas vocativaspopulares (cara) indicam um propósito de interagir mais intimamentecom a interlocutora.

Além disso, outro recurso que facilita o processo interacional como ouvinte, porque atrai sua atenção, é a reprodução do discurso do outro(ou discurso relatado), que sempre traz para o texto elementos dedramatização da fala citada, uma vez que o falante, não apenas repete oque ouviu ou imagina que alguém possa ter dito (como é o caso do seg-mento analisado), mas, freqüentemente, o faz recriando até mesmo ainflexão, o ritmo, o tom de voz do outro. Muito comum em narrativasorais, o discurso relatado se aproxima também dos diálogos imaginadospelo falante, no momento em que atribui ao ouvinte (ou a um falanteindefinido) perguntas e respectivas respostas que ele poderia ter expres-sado:

L.1 por exemplo, se você construísse um carro você pensaria em po-luição?... não... por que? porque se teu carro polui se se vocêsai detrás do escapamento fala “tudo bem”...

..................................................................................................................................

L. então:: você pode dizer “criança::... quando passa para adultoentão amadurece acontece uma série de coisas”... uma cidadepequena para uma cidade GRANde você não pode dizer... “pro-vavelmente ela amaduREce então apresentou problemas por-que... cresceu”...

Nesse jogo retórico, o falante, por um lado, facilita ou tenta facili-tar o entendimento do ouvinte, pensando por ele, perguntando e respon-dendo por ele, o que lhe permite dar maior fluência ao próprio discurso,evitando a interrupção ou a perda do turno.

A informalidade de outras partes do texto também se revela emconcordâncias menos rígidas, nos moldes da linguagem popular brasilei-ra, como, por exemplo, no uso já generalizado entre nós, de pronomesadjetivos da segunda pessoa (teu), referindo-se ao tratamento com a for-ma pronominalizada (você):

Page 63: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

63

Interação na fala e na escrita

L.1 (...) porque se teu carro polui se se você sai detrás do escapamento

Além disso, observamos que o constante uso de você com refe-rente indefinido, como vimos acima, quando abordamos as formas detratamento, também é uma marca do registro coloquial, que L.1 empregacom freqüência.

6. Fluência

Apesar de tratar-se de dois falantes cultos, informantes do ProjetoNURC/SP e que possuem instrução universitária (exigência básica doProjeto na qualificação de seus falantes), observa-se que, em vários mo-mentos, ocorre uma falta de fluência em seu discurso, seja em nível sin-tático, seja em nível discursivo, com incoerências na linha argumentati-va.

Pode-se dizer que isso ocorre em qualquer nível de falante, aolongo de uma conversação e constitui mesmo uma característica da lín-gua falada, considerada a constante possibilidade de refeitura dos enun-ciados e, também, os conhecimentos partilhados pelos falantes o que osautoriza a interromper os enunciados, tão logo percebam que o ouvinte jásabe a que estão referindo-se.

O próprio sistema conversacional, constituído de troca de turnos,contribui para que haja um grande número de frases abandonadas, reto-madas, refeitas, em virtude da alternância dos falantes que, não raro, sesobrepõem, assaltam o turno com a preocupação de interagir (colaboran-do ou discordando) com o interlocutor. E, nesse sentido, o texto apresen-ta vários exemplos de quebra da fluência, observados nos cortes sintáti-cos e retomadas dos enunciados:

L.2 mas você vê que esse saneamento...

[

L.1 o problema

Page 64: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

64

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

L.2 se você continuar com a analogia... inclusive se você pensar::...

[

L.1 esse saneamento é o seguinteseria uma PARte...sei lá ou um governo ou alguma coisa queimPÕE...

E, também, encontrados nas pausas, hesitações e reformulações:

L.1 bem é uma opinião particular minha aí não é que se espere... é é o

funcionamento... da massa humana né?... você não consegue diz/chegar assim digamos você

....................................................................................................................

L.1 (...) agora mil carros andando causa um problema... é diferenteda... do do do talvez você não tenha...

Mas o aspecto que nos chama mais a atenção no texto é umadisfluência conversacional em nível discursivo, motivada, não por insu-ficiência na expressão lingüística, mas pelo desconhecimento do assunto(Cf. Crescitelli, 1997: 116). Os interlocutores interagem conduzidos pelafalsa analogia de L.1 e, não raro, perdem sua coerência no desenvolvi-mento do tema, chegando ao impasse, no final do segmento, de não te-rem como continuá-lo. L.1, então, recorrerá à ajuda da documentadora,que optará pela mudança de tópico:

L.1 sugestão...

L.2 e Doc. ((risos))

[

L.1 para continuidade

Doc. sugestões... e a opinião de vocês a respeito do metrô?

Page 65: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

65

Interação na fala e na escrita

Considerações finais

A análise que empreendemos de alguns problemas interacionaisnos mostra que, nos textos produzidos em co-autoria, o discurso dosfalantes apresenta soluções e estratégias conversacionais que emergemdo próprio andamento da conversação. Quer dizer, cada diálogo, até omais simples e rápido fragmento de conversação pode mostrar-nos pro-blemas interacionais dos mais variados.

E esses problemas vão desde os mais comuns, como a sobreposiçãode vozes, que viola o princípio fundamental de qualquer conversação(“fala um de cada vez”), até outros mais raros, como o que ocorre notexto examinado, em que os interlocutores não sabem mais como conti-nuar o texto que estavam elaborando em conjunto, pelo desconhecimen-to do assunto.

Para o analista, um dos desafios da Análise da Conversação é adiversidade natural do ato conversacional, cuja organização, conformesabemos, é orientada para e pelos participantes. Quando suas estratégiase soluções não dão certo, a conversação pode desorganizar-se e ela só serecompõe pela mudança radical do tópico. Discorrendo sobre a análisede problemas interacionais decorrentes da desorganização da conversa-ção (mais especificamente sobre o sistema de tomada de turnos e as so-breposições que podem ocorrer) Crescitelli, apoiada em idéias deLevinson, afirma:

Uma forma de verificação disso é observar o que acontece quando al-gum “obstáculo” ocorre, ou seja, quando a organização não opera daforma prevista. Espera-se que os falantes tentem reparar o obstáculoou, de forma alternativa, façam inferências de um tipo particular, emfunção da ausência do comportamento esperado, e ajam de acordo comisso. (Crescitelli, op. cit. p. 24)

No texto analisado, observamos, ao final, não só a interrupção dodiscurso de L.1, mas também a incapacidade de L.2 em reparar o obstá-culo, tomando o turno, na sua vez de falar, e continuando com o diálogo.

Page 66: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

66

PRETI, Dino. Alguns problemas interacionais da conversação

A documentadora (audiência), cuja interferência é solicitada, só resolve-rá o problema pela mudança do tópico. A interação dos falantes, pois, serompe abruptamente.

Embora tenhamos trabalhado com apenas um segmento de umlongo texto de 80 minutos, podemos afirmar que a desorganização mo-mentânea da conversação é um fenômeno que ocorre com alguma fre-qüência, podendo precipitar o fim do diálogo, com prejuízo para a ima-gem social dos falantes, conforme vimos.

Referências bibliográficas

CASTILHO, Ataliba & PRETI, Dino (org.) (1987). A linguagem falada culta nacidade de São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz: FAPESP, v. II.

CRESCITELLI, Mercedes Fátima de Canha (1997). Disfluência conversacional emfalantes cultos. São Paulo: Universidade de São Paulo. Tese de doutorado.

GOFFMAN, Ervin (1961). Encounters: Two Studies in the Sociology of Interaction.Indianopolis: Bob-Merrill.

_______. (1989). A representação do eu na vida cotidiana. 4.ed. Trad. Maria CéliaS.Raposo. Petrópolis: Vozes.

KOCH, Ingedore Villaça (1992). A inter-ação pela linguagem.São Paulo: Contexto.MARCUSCHI, Luiz Antônio (1986). Análise da conversação.São Paulo: Ática._______. (2001). Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo:

Cortez.MURRAY, Stephen & COVELLI, Lucille (1988). Women and Men Speaking at the

Same Time. North-Holland: Journal of Pragmatics, v. 12, p. 102-11.NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do Português. São Paulo:

Editora UNESP, 2000.OCHS, Elinor (1979). Planned and Unplanned Discourse. In: GIVÓN, Talmy (ed.)

Discourse and Syntax. New York: Academic Press, v. XII, p. 5l-80.PRETI, Dino (1988). A língua oral: a sobreposição de vozes como um elemento da

sintaxe de interação no ato conversacional. In: Estudos Lingüísticos XVI – Anaisdo Seminário do GEL. Taubaté: Universidade de Taubaté, p. 229-36

ROBINSON, W. Peter (1977). Linguagem e comportamento social. Trad. de JamirMartins. São Paulo: Cultrix.

TANNEN, Deborah (1996). Género y discurso. Trad. Marco Aurélio Galmarini.Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós.

Page 67: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

MARCAS DE SUBJETIVIDADE EINTERSUBJETIVIDADE EM TEXTOS

CONVERSACIONAIS*

Paulo de Tarso Galembeck

Considerações iniciais

Este trabalho discute a presença das marcas de subjetividade eintersubjetividade em textos conversacionais, com a finalidade de evi-denciar o papel por elas exercido na construção dos referidos textos.Enfatiza-se, sobretudo, a função dessas marcas no estabelecimento emanutenção das relações entre os participantes do diálogo e na definiçãodos papéis dos mesmos no processo de negociação dialógica. Adota-se,como hipótese de trabalho, a noção de que todo sujeito constitui umaentidade dúplice, já que o “eu” só pode instituir-se como tal em face do“outro”. A noção de sujeito é reversível e transitiva, e disso decorre ocaráter dialógico da linguagem e a existência de um componente inter-pessoal nos textos, sobretudo nos textos falados.

De acordo com essa perspectiva, incluem-se entre as marcas desubjetividade e intersubjetividade todos os elementos que indicam, de

* O levantamento e a classificação das ocorrências e a tabulação dos dados foram efetuadospela aluna Camila Bambozzi Veasey, concluinte do curso de Letras na FCL de Araraqua-ra/UNESP e bolsista FAPESP/IC. O autor agradece ao Prof. Wagner Ferreira Lima, daUniversidade Estadual de Londrina, a cessão de vários textos citados na bibliografia.

Page 68: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

68

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

modo direto, a presença dos interlocutores no diálogo: pronomes e for-mas verbais de primeira e segunda pessoas, marcadores conversacionaisde valor fático, lexicalizados (certo?, né?) ou não (ahn ahn, uhn).

O trabalho compõe-se de duas partes. Na primeira, dedicada àfundamentação teórica, expõe-se inicialmente o conceito de sujeito, e,em seguida, discute-se o caráter dialógico da linguagem. Encerram essaprimeira parte considerações referentes ao componente dialógico ou in-terpessoal do discurso falado. A segunda parte é dedicada ao exame dasmarcas de subjetividade e intersubjetividade de acordo com uma série devariáveis.

O córpus do trabalho é constituído pelos inquéritos n.º 062, 333,343 e 360. Esses inquéritos pertencem ao tipo diálogo entre dois infor-mantes (D2) e acham-se publicados em Castilho e Preti (1987). De cadainquérito foram extraídos fragmentos correspondentes a quinze minutosde gravação.

1. Fundamentação

1.1 A noção de sujeito

Morin (1996, p. 45 e ss.) define sujeito como o indivíduo, consi-derado em duas dimensões: a autonomia e a dependência. Com efeito, osujeito é autônomo, e tem consciência de que é um indivíduo único,dotado de identidade própria. Mas esse indivíduo autônomo está ciente,ademais, de que depende de outros seres (da mesma ou de outra espécie)para construir a própria individualidade.

Associado à noção de sujeito, surge o conceito de identidade, ouseja, a consciência que o indivíduo tem de si mesmo, de suas particulari-dades, de que ele permanece o mesmo, ainda que se leve em conta apersonagem do tempo. Contudo, a noção de identidade também é dupla,pois o indivíduo só a adquire a partir da interação com outros seres.

Page 69: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

69

Interação na fala e na escrita

Os conceitos de sujeito e identidade têm pois, dupla face: para aexplicitação de ambos é necessário considerar não só o indivíduo em si,mas igualmente os outros seres, com os quais se mantêm relações dedependência.

Por isso mesmo, a noção de sujeito baseia-se em dois princípios,inseparáveis e associados, o princípio da exclusão e o da inclusão.

O princípio da exclusão baseia-se na instituição do “eu” comoelemento único e central: é a consciência da individualidade e da subjeti-vidade. Mas a exclusão pressupõe a inclusão, pois o “eu” só existe emfunção do outro com o qual mantemos relações (“você”) e de outrosseres com os quais nos integramos (“nós”). Em outros termos, pode-seadmitir que o ser humano – dotado de linguagem e cultura – institui-se asi mesmo como um ser único (o “eu”, seguramente, não tem plural, mas,do mesmo modo, ele não pode deixar de levar em consideração o interlo-cutor (“você”) e o grupo no qual ele se insere (“nós”). O “eu” isolado nãoexiste, porque o sujeito e o outro se complementam e é nessa comple-mentaridade que o ser humano pode exercitar a sua liberdade, como talentendida a capacidade de escolha.

1.2 Dialogismo: o “eu” e o outro

A idéia de que o “eu” e o outro são instituídos a partir da interaçãopela linguagem já havia sido formulada por Bakhtin (1986, p. 32 e ss.).Esse autor coloca o princípio dialógico como pilar de sua concepção delinguagem e, pode-se admitir, também, de sociedade e do mundo. Odialogismo – segundo o mesmo autor – é a condição para que o discursotenha um sentido pleno e, igualmente, para que por meio dele se possaevidenciar a relação existente entre linguagem e vida.

Como assinala Barros (1999, p. 2), “Bakhtin concebe o dialogismocomo o princípio constitutivo da linguagem. Examina-se, em primeirolugar, o dialogismo discursivo, desdobrando em dois aspectos: o da inte-ração verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, o da

Page 70: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

70

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

intertextualidade no interior do discurso”. Neste texto, enfoca-se o pri-meiro desses aspectos, qual seja, a presença dos participantes do ato co-municativo no estabelecimento do sentido desse ato.

O conceito de dialogismo resulta da interação verbal que oenunciador e o enunciatário estabelecem entre si no espaço criado pelotexto. Ora, esse conceito faz com que o sujeito perca o papel central (emesmo exclusivo) na construção do texto. Ao contrário, a noção de su-jeito torna-se múltipla, pois incorpora outras vozes, ou pelo menos a vozdo outro. Aliás, em diversos trechos do capítulo primeiro da obra citada,Bakhtin enfatiza dois pontos que merecem ser salientados: o papel dooutro na determinação do sentido e o fato de que nenhuma palavra éexclusivamente nossa, já que, nos vários enunciados, nota-se a presençade outras vozes que não a do próprio sujeito.

Em forma de síntese, pode-se afirmar que, para Bakhtin, a nature-za dialógica constitui uma característica intrínseca e essencial da lingua-gem: o “eu” pressupõe o “outro”, ambos estão inseparavelmente ligadose interagem pela linguagem. O sujeito discursivo é, portanto, múltiplo.

As idéias de Bakhtin coincidem com a postulação de Morin, jáque ambos concebem o sujeito como um ser múltiplo, que interage e secomplementa com o outro. Deve-se ressalvar, porém, que Bakhtin,embasado nas idéias do materialismo histórico-dialético, considera osujeito a partir de uma perspectiva histórica e social. Essa característica,aliás, é uma resultante do próprio caráter dialógico da linguagem.

1.3 Língua falada e dialogismo

1.3.1 Tendências no estudo da conversação

Barros (1999, p. 3) menciona o fato de que a relação dialógica(“eu” e “você”) tem sido tratada por várias disciplinas lingüísticas: análi-

Page 71: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

71

Interação na fala e na escrita

se da conversação, semiótica narrativa e discursiva, análise do discurso,pragmática, teoria da enunciação. Eggins e Slade (1997, p. 23 e ss.),por sua vez, citam as principais correntes ou abordagens da análise dediálogos espontâneos: perspectivas de base sociológica e etnometodo-lógica (análise da conversação); abordagens sociolingüísticas (etnografiada fala, com ênfase no contexto; sociolingüística interacional, baseadada contextualização do discurso); corrente lógico-filosófica (teoria dosatos de fala: a conversação como uma seqüência de atos de fala; prag-mática: máximas do comportamento conversacional); correntes estru-tural-funcionais (a escola de Birmingham: especificação da estruturada troca conversacional; a lingüística sistêmica funcional: interpreta-ção funcional e semântica da conversação; análise crítica do discurso).

Em todas essas tendências manifesta-se, com maior ou menorênfase, o princípio do dialogismo. Isso, aliás, é óbvio, já que na interaçãoface-a-face o reconhecimento da presença do outro e o desdobramentodo sujeito se tornam mais marcantes. O “outro” é um ser concreto e,como tal, o discurso falado traz marcas específicas da sua presença.

Este trabalho segue uma das vertentes das abordagens estruturais-funcionais, a lingüística sistêmica funcional. As razões dessa escolhaserão explicitadas na seqüência do trabalho.

1.3.2 A lingüística sistêmica funcional

As correntes incluídas na rubrica das abordagens sistêmico-funci-onais (a escola de Birmingham e a lingüística sistêmica funcional) temem comum o fato de descreverem a conversação como um nível autôno-mo, altamente organizado (Taylor e Cameron, 1987, p. 5, citados porEggins e Slade, op. cit., p. 43). Nos trabalhos dessa linha teórica, busca-se compreender as características da estrutura da conversação e, tam-bém, relacionar essa estrutura mais ampla com outras unidades, níveis eestruturas da linguagem.

Page 72: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

72

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

A opção pela vertente sistêmico-funcional decorre do fato de elaser, dentre as várias correntes citadas, aquela em que o caráter dialógicoda linguagem e a presença são mais marcantes. Essa característica advémde duas postulações da vertente, as quais são mencionadas a seguir: oreconhecimento de que há diferentes tipos de significado (entre eles, ointerpessoal) e o estabelecimento de diferentes níveis de significação (gra-matical, semântico, discursivo, referente ao gênero textual).

Eggins e Slade (op. cit., p. 48 e ss.) mencionam mais três espéciesou camadas de significação: a ideacional, a interpessoal, a textual. Naprimeira, encaixam-se os significados acerca do mundo e as diferentesrepresentações da realidade; a segunda consiste na negociação acercados papéis e relações sociais (status, contato, intimidade, filiação); o si-gnificado textual relaciona-se com a própria mensagem (coesão, ênfase,conhecimentos prévios).

Essas três camadas são simultâneas e interdependentes, já quepodem ser encontradas em unidades lingüísticas de diferentes níveis:palavra, sintagma, frase, texto. Além disso, unifica-as o fato de serem,simultaneamente, funcionais (pois em todas se consideram a conversa-ção como uma atividade com propósito e finalidade definidos) e semân-ticas (todas partem da noção de que a conversação é um processo deproduzir significados). Esses dois traços, aliás, encontram-se na formu-lação de Halliday (1973, p. 34), segundo o qual a linguagem é como édevido aquilo que tem de fazer, ou seja, a linguagem é simultaneamenteum meio de interação social e de criar significados. Halliday ainda acres-centa que essas três camadas estão representadas na linguagem porquesão complementares, ou seja, cada qual pressupõe os outros dois. Pode-se citar alguns exemplos: o partilhamento das idéias e conceitos(ideacional) está associado à negociação de papéis, assim como à relaçãoentre os interlocutores do tema associa-se aos processos de estruturaçãodo texto (componente textual).

Halliday, no mesmo texto já citado fala em três metafunções, quecorrespondem aos três tipos de significado já expostos e constituem ele-mentos reguladores e organizadores da atividade lingüística. O citadoautor, ademais, revela preocupações com os aspectos cognitivos e enu-

Page 73: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

73

Interação na fala e na escrita

mera as três metafunções que organizam o contexto. Essas três outrasmetafunções (denominadas também “registros”) correspondem às ca-madas de significação:

Metafunção da linguagem Metafunção do contexto

– ideacional – campo

– textual – modo

– interpessoal – teor

O campo consiste no foco que incide sobre o assunto e o delimita,o modo relaciona-se com os conhecimentos prévios partilhados, e o teorrefere-se aos papéis e relações sociais. Cada uma das variáveis de regis-tro (metafunções contextuais) é realizada, no plano da expressão, poruma das metafunções que organizam a linguagem. O que foi dito podeser enunciado de outra forma: pode-se considerar as metafunções con-textuais como a dimensão mais ampla de certas situações que possuemconseqüências predizíveis no plano da estruturação do texto e do enun-ciado.

Cabe reiterar que essas três camadas são interdependentes e com-plementares. Desse modo, as marcas de subjetividade e intersubjetividadenão se situam apenas na camada interpessoal e no teor (papéis e relaçõessociais). Ao contrário, as marcas de interpessoalidade estão presentes naestruturação do texto, na relação do assunto e do ponto de vista em queele vai tratado, nos procedimentos de contextualização e saliência, naescolha de itens lexicais e na seleção gramatical.

Acrescente-se ainda, que a noção de interpessoalidade é múlti-pla. Poyton (1985) e Martin (no prelo), ambos citados por Eggins eSlade (op. cit., p. 52 e ss.), mencionam quatro dimensões da variávelteor:

a) as relações de status, que podem ser definidas previamente (pro-fessor/aluno, por exemplo) ou, então, estabelecidas durante o pro-cesso de interação;

Page 74: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

74

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

b) o envolvimento afetivo: manipulação de sentimentos (positivosou negativos) em relação ao interlocutor;

c) o contato: dizem respeito à familiaridade entre os interlocutores ea freqüência com que as relações se estabelecem. O contato (as-sim como o envolvimento afetivo) dependem do gênero textual:há gêneros que favorecem o distanciamento (situações com pa-péis definidos: aulas, interrogatórios, por exemplo), assim comohá gêneros que propiciam um envolvimento mais acentuado (de-bates, discussões);

d) orientação para a filiação (família, escola, local de trabalho), quecontribui decisivamente para o estabelecimento da identidadesocial e da imagem recíproca dos interlocutores. A filiação podeser vista como algo positivo, que fornece o contato (por exemplo,a participação no mesmo grupo religioso) ou como um dado ne-gativo (por exemplo, certos grupos como os adolescentes rebel-des, os skinheads).

Este trabalho vai enfocar sobretudo a dimensão do contato e dasrelações interpessoais, pois este é o papel mais relevante das marcas deprimeira e segunda pessoas. São elas, aliás, que indicam de modo diretoa presença dos interlocutores e o fato de o discurso estar voltado para oestabelecimento de relações interpessoais.

Este trabalho centra-se no componente interpessoal (teor), pois ospronomes e desinências da primeira e segunda pessoas constituem asmarcas mais evidentes das relações dialógicas. A eles, com efeito, cabe afunção de instituir os papéis dos participantes da interação verbal (o “eu”e o outro, ou seja, o falante e ouvinte) como marcas específicas da pre-sença dos interlocutores. São, assim, marcas intrínsecas de subjetividadee intersubjetividade, característica que se torna mais nítida na conversa-ção (simétrica) já que nela há uma constante alternância entre o “eu” e ooutro. Além disso, como assinalam Eggins e Slade (op. cit., p. 49 e ss.),a conversação é “governada” antes pelos significados interpessoais quepelos componentes ideacionais ou textuais: a tarefa primordial da con-versação é a negociação da identidade e das relações sociais. Em verda-de, o componente ideacional (assuntos tratados) constitui apenas o panode fundo para o estabelecimento das relações entre os interactantes.

Page 75: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

75

Interação na fala e na escrita

2. Análise das Ocorrências

As marcas de subjetividade serão estudadas a partir de seis variá-veis: tipo de marca; interlocutor que a produz; a quem elas se dirigem;grau de envolvimento entre os interlocutores; relação com o desenvolvi-mento tópico; valor de atenuação das marcas.

2.1 Tipo de marca

As marcas de subjetividade e intersubjetividade são classificadasde acordo com as subcategorizações que constam da tabela a seguir:

Tabela I. Tipo de Marca

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %

L 32 (20) 36 (25) 36 (22) 32 (20) 25 (14) 23 (12) 31 (23) 29 (21)P 11 13 10 05 18 16 14 13N 05 06 05 49 04 03 06 06C 40 45 60 54 67 58 56 53L – marcadores conversacionais lexicais (certo?, entende?, sabe?).

P – marcadores conversacionais proposicionais (eu acho que, você vê).

N – marcadores conversacionais não-lexicalizados (ahn, uhn).

C – expressões não-convencionalizadas como marcadores conversacionais.

Os números entre parênteses no item L (marcadores lexicais) indicam a quantidade

desses marcadores que têm marcas de pessoa (sabe?, entende?).

A maior parte dos indicadores de interpessoalidade é representadapor expressões não-convencionalizadas que possuem marcas específicasde pessoa (verbos e pronomes).

Essa característica é particularmente nítida nos fragmentos em queo informante manifesta opiniões ou pontos de vista, ou, então, relata suasexperiências pessoais:

Page 76: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

76

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

(1) L1 olha eu costumo dizer:: ao meu primo-irmão e mais irmão doque primo e ao seu irmão... (Miro) Leal... éh que eu gosto tantode teatro que não vou ao teatro... (por) o teatro nacional... estarme desgostando de uns tempos para cá está me desgostando... aopar de muitas coisas positivas havia tanta coisa negativa... ahn::queeu me sentia roubada de meus momentos de lazer de descanso naminha casa (...)

(NURC/SP, 333, L. 809-816)

O componente interpessoal tem importância particular nos textosconversacionais, pois neles tende a existir uma relação simétrica entre osinterlocutores. Por isso mesmo, as marcas de pessoalidade constituemum traço intrínseco dessa modalidade de texto e, assim, não necessitamser assinaladas por expressões conversacionais e recorrentes, como é ocaso dos marcadores conversacionais.

Verifica-se, ademais, que a maior parte dos marcadoresconversacionais (lexicais e proposicionais) que denotam subjetividadetraz marcas específicas de pessoa. Aliás, nos marcadores proposicionaisde valor interpessoal, essas marcas constituem uma constante:

(2) (A informante trata da escolha profissional da filha, e do currículodo curso de Decoração.)

L1 não eu dei u::uma rápida olhada sabe? mas vi matérias interes-santes para ela assim dentro de outras...ah::carreiras... essa se defi/eh acho que::se define... uhn para... esse ramo... agora a outragêmea... ela... como vai va::i o que está tudo muito bom::

(NURC/SP, 360, L. 1281-1285)

No exemplo anterior, o marcador lexical (sabe) e o proposicional(acho que) possuem marcas de pessoa. Aliás, se for somado o total deindicadores de subjetividade que possuem essa marca, verifica-se queeles representam a ampla maioria das ocorrências. Veja a soma das por-centagens desses marcadores nos diferentes inquéritos: Inq. 062: 83%;Inq. 333: 83%; Inq. 343:86%; Inq. 360: 86%.

Page 77: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

77

Interação na fala e na escrita

Os marcdores lexicais que não possuem marcas de pessoa e aque-les representados por expressões não-lexicalizadas foram incluídos entreas marcas de subjetividade por possuírem valor fático. Os primeiros,geralmente, incluem-se entre os marcadores de busca de aprovação dis-cursiva (né?), ou os de confirmação ou assentimento.

(3) (O informante comenta o fato de que a oferta de empregos emSão Paulo atrai muita gente.)

L1 (...) então isso CHAma... um fluxo de gente para São Paulo... quemuita gente quer poDAR... para não crescer mais... ((tossiu)) quea gente não importa ricaço essas coisas né? ricaço vai para o Riosei lá qualquer outro lugar certo?

(NURC/SP, 343, L. 120-124)

Os marcadores lexicais que indicam confirmação ou assentimen-to figuram em textos inseridos:

(4) (A informante comenta o fato de o pai tê-la incutido a cursarDireito.)

L2 (...) ele [o pai] achava que essa a que teria mais possibilida::de dedi/ de diversificação depois... e quando as outras eram mais espe-cíficas... né?

L1 certo

L2 um médico era só medido o engenheiro era só engenheiro (...)

(NURC/SP, 360, L. 1542-1546)

Os marcadores não-lexicalizados de valor fático também figuramem turnos inseridos e, em sua maioria, indicam concordância ou assenti-mento:

(5) (O informante comenta o valor da apresentação para a obtençãode empregos.)

Page 78: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

78

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

L2 eu não diria somente... existe muito também e::... é apresentaçãoentende?

L1 uhn uhn

L2 eu acho que::hoje em dia não basta você somente ser... capacita-do porque::tem muita gente que... não tantas qualidades quantodeterminados... com/ éh::competidores em determinados cargose::... na hora de escolher vem você porque é meu amigo certo?(...)

(NURC/SP, 062, L. 621-628)

2.2 Quem produz a marca de subjetividade

As marcas de subjetividade são produzidas, em sua maior parte,por aquele que detém o turno. É o que pode ser verificado pelo quadro aseguir:

Tabela II. Interlocutor que produz a marca de subjetividade

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %F 82 93 90 81 94 82 89 85O 04 05 15 14 10 08 10 10R 02 02 06 05 11 10 06 05F – Falante.

O – Ouvinte (falante ocasional: turnos inseridos).

R – Discurso reportado.

A maior parte das marcas de subjetividade e intersubjetividade éproduzida pelo próprio falante. Esse fato pode parecer óbvio, uma vezque o detentor do turno é responsável pela formulação dos enunciados epelo desenvolvimento do tópico. No entanto, dos dados acima pode serextraída a seguinte conclusão: as marcas de pessoalidade participam daconstrução do texto conversacional, ao lado do desenvolvimento do tó-pico, dos procedimentos de contextualização e dos elementos coesivos.

Page 79: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

79

Interação na fala e na escrita

Cabe recordar, a esse respeito, que no texto conversacional manifestam-se três componentes ou níveis de significação, o ideacional, a interpes-soal, o textual. As marcas de subjetividade e intersubjetividade asso-ciam-se na produção do texto, ao desenvolvimento e partilhamento dasidéias e conceitos e aos procedimentos de coesão e estruturação textual.

As marcas produzidas pelo ouvinte correspondem geralmente aturnos inseridos, representados por marcadores conversacionais que de-notam concordância ou assentimento. É o que se verifica no exemplo aseguir, no qual também estão assinaladas as marcas produzidas pelo fa-lante:

(6)

L1 quando não é éh não é dia do meu marido ir para a faculdade... eufico por Pinheiros e volto para casa agora em dois dias da sema-na... eu levo faculdade também não é?

[

L2 ahn ahn

L1 e::depois volto para mas chego já apronto o outro para ir à esco-la... o menorzinho... e fico na::quela lides domésticas

L2 [ ahn ahn

L1 e::uma coisa e outra... e::... agora à tarde dois vão para a escolamas... tem ativi/ os que ficam em casa têm atividades extras...

L2 [ uhn uhn

L1 então é um corre-corre realmente... não é? (...)

(NURC/SP, 360, L. 152-165)

As marcas que figuram em fragmentos de discurso direto ou re-portado são pouco numerosas e apresentam a particularidade de não sereferirem aos interlocutores reais, mas a outras pessoas, cujas falas sãoincorporadas ao discurso do interlocutor.

(7) (A informante relata um episódio ocorrido em sua passagem porFlorianópolis.)

Page 80: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

80

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

L2 (...) mas todas as mulheres estão trabalhando em renda... e::entãou/duas delas vieram falar conosco... então ela disse assim “ahnda/dona::ahn::façavor de me dizer uma coisa... a a senhora asenhora vê novela?”... eu digo “vejo” “que que a senhora estávendo?”... eu estava vendo aquela coisa... naquela ocasião eu es-tava vendo uma novela de Tupi.. ela disse... “escuta uma coisapor favor me diga... a Maria morreu?...”

(NURC/SP, 333, L. 422-430)

2.3 A quem se dirigem as marcas produzidas pelofalante

As marcas produzidas pelo falante podem ser autocentradas (pri-meira pessoa) ou heterocentradas (segunda pessoa e marcadores de valorfático). Veja-se o exemplo a seguir, no qual figuram marcadores de am-bos os tipos:

(8) não o::eu eu senti um choque quando eu adentrei a faduldadeentende? porque::você sempre ouviu dizer... que seria um negó-cio diferente isso aquilo... eu as aulas que eu tive dentro duma...faculdade foi normalmente como eu tive no científico e no giná-sio... era::mais um::professor ali na frente... explanando... vocêlevantando questões... simplesmente... dificilmente maior parti-cipação do aluno... agora... parece que está havendo mais... con-junto havendo mais digamos assim... o aluno está... trabalhandomais... o professor distribui os temas você que pesquisa né? nãosei se é porque eu fiz curso à noite... era dessa maneira entende?...mas... para mim o::que eu faço atingiu lógico e está... me deuvisão ampla eu... hoje eu... leio um jornal eu sei o que eu estoulendo... pelo menos os... acho que... bagagem eles me deram cer-to?

(NURC/SP, 062, L. 402-417)

O informante expõe, nesse fragmento, a sua reação ao adentrar naFaculdade e faz algumas sugestões para melhorar o ensino. Trata-se, pois,de um discurso autocentrado, porque o locutor relata a sua experiência e

Page 81: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

81

Interação na fala e na escrita

discute os benefícios que o curso lhe trouxe. Predominam, pois, as mar-cas de primeira pessoa (sublinhadas com um traço); mesmo assim, sãonítidas as marcas de segunda pessoa e os fáticos (assinalados por doistraços). Isso significa que a presença do outro é muito nítida, mesmo nodiscurso autocentrado: ao falar de si, o locutor não deixa de reconhecer apresença explícita do outro, ou seja, ao instituir-se como sujeito e delimi-tar sua individualidade, o falante reconhece a presença do outro. O sujei-to é, pois, dúplice, bifacial, e seu discurso deve equilibrar a presença de simesmo e do outro. Nota-se, ainda, que as ocorrências com o pronomevocê – no exemplo citado – têm valor de indeterminação , mas foramincluídos entre os marcadores voltados para o ouvinte, por terem umnítido valor fático.

Em fragmentos centrados não no sujeito, mas no desenvolvimen-to de um assunto, predominam as marcas voltadas para o ouvinte.

(9)

L2 (...) porque a hista/a histeria está praticamente desaparecendo né?sabe antigamente era::você pega... há trinta anos atrás... Europavocê encontrava os casos de histeria aqueles histeria de conver-são né? que o cara... tem um ATA::que ali na sua frente... isso nãoacontece mais... sabe... eu não sei te explicar como é que se deu amudança... mas... caso assim... é muito difícil de você encontrar...(...) você encontra muito mais o que? esquizo... e depressão... queno fundo estão muito ligado né?

(NURC/SP, 343, L. 1345-1356)

O quadro a seguir mostra a distribuição das marcas auto eheterocentradas:

Page 82: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

82

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

Tabela III. A quem estão voltadas as marcas de subjetividade e intersubjetividadeproduzidas pelo falante.

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %A 20 24 32 36 40 43 31 35H 62 76 58 64 54 57 58 65A – Marcas autocentradas.

B – Marcas heterocentradas.

O predomínio das marcas heterocentradas constitui um índice se-guro de que, na conversação, o falante reconhece que o “eu” não existesem o “você”, aliás, ele sabe que a condição de falante é transitória e queseu discurso deve incorporar o outro. O “eu”, com efeito, só pode insti-tui-ser como tal numa relação transitiva e binária, e disso decorre a fre-qüência com que o informante assinala, de modo explícito, a presença dointerlocutor.

Acrescente-se que os procedimentos para indicar a primeira pes-soa do plural (nós, a gente) foram incluídos entre as marcas heterocentra-das, já que, por meio delas, o falante implica e envolve o seu parceiroconversacional.

2.4 Grau de envolvimento

Consideram-se, nesta variável, dois graus de envolvimento: o mai-or, caracterizado pela presença de marcas de primeira e segunda pessoas,e o menor, no qual essas marcas não se manifestam. Veja-se a tabela aseguir:

Page 83: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

83

Interação na fala e na escrita

Tabela IV. Grau de envolvimento entre os interlocutores.

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %M 51 58 67 60 85 74 68 65E 37 42 44 40 30 26 37 35M – Maior envolvimento.

E – Menor envolvimento.

Verifica-se o predomínio das marcas que trazem a indicação di-reta da presença dos interlocutores (pronomes e desinências verbais deprimeira e segunda pessoas). Esse fato ocorre em todos os inquéritos,mas particularmente no Inq. 343, no qual é maior o grau de envolvi-mento entre os interlocutores, assim como os assuntos tratados (os pro-blemas da cidade e o comportamento dos seres humanos) são deveraspolêmicos.

O predomínio das marcas que denotam maior envolvimento entreos interlocutores é devido ao fato de serem elas as que indicam, de mododireto, a participação dos interlocutores no processo de interação verbal.Desse modo, são elas as que mais se prestam a indicar os papéis dosinterlocutores na construção do texto conversacional, nas relações queentre eles se estabelecem e se desenvolvem e no espaço comum que criaa partir dessa relação.

2.5 Relação com o desenvolvimento tópico

A maior parte das marcas de subjetividade e intersubjetividadenão está ligada ao desenvolvimento do tópico ou assunto. É o que podeser verificado por meio da tabela a seguir:

Page 84: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

84

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

Tabela V. Relação com o desenvolvimento tópico

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %T 14 16 21 19 21 18 19 18N 74 84 90 81 94 82 86 82T – Ligada ao elemento tópico (elemento coesivo).

N – Não ligado ao desenvolvimento tópico.

As marcas de interpessoalidade que mantêm relações com o de-senvolvimento tópico, são representadas por marcadores proposicionaisde opinião, geralmente construídos com verbos de valor cognitivo: achoque, creio que, você sabe que e assemelhados. Considera-se que essasexpressões têm valor coesivo, porque elas ampliam o tema, geralmentemediante a introdução de uma explicação:

(10)

L2 (...) quanto mais você se distancia da natureza... mais você... per-de a percepção a noção de que as coisas... se dão em ciclos...então acho que para uma pessoa que viva assim... próxima... a a...por exemplo campo né?... natureza mesmo... então ela está vendoo sol nascer morrer... a::... plantas crescerem morrerem... colheirae... plantação

L1 ahn ahn

L2 então para ela acho que não é tão difícil aceitar quando alguémmorre (...)

(NURC/SP, 343, L. 841-851)

Acrescenta-se que os marcadores de opinião de valor atenuativoassinalam que se trata de uma opinião pessoal, marcadamente indivi-dual. Por isso mesmo, eles possuem um valor de subjetividade acentua-do, já que usados não só para assinalar a presença do interlocutor noprocesso interacional, como também para diminuir a responsabilidadedo falante em face do juízo exposto. Em outros termos: os marcadores de

Page 85: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

85

Interação na fala e na escrita

atenuação com marcas de subjetividade preservam a auto-imagem cons-truída pelo falante (face), e são igualmente utilizados para provocar noouvinte o efeito desejado. Essa dupla destinação constitui uma evidênciabastante positiva acerca do fato de que a noção de sujeito é binária etransitiva: a marca do sujeito traz, em si, o reconhecimento de que essamarca assinala a presença em face do interlocutor.

2.6 Valor de atenuação

Os procedimentos de atenuação são utilizados para diminuir a forçailocutória do enunciado e, desse modo, figuram especialmente nas situa-ções em que o falante se expõe de forma direta: pedidos, atendimento depedidos ou recusa em fazê-lo, perguntas diretas ou indiretas, respostas, ma-nifestação de opinião (Galembeck: 1997, p. 136). No córpus deste trabalho,os marcadores de atenuação com marcas de primeira e segunda pessoas sãorepresentados sobretudo por expressões eu acho que e assemelhadas:

(11) (L2 discorre acerca do barulho das máquinas)

L2 (...) aquelas máquinas baruhentas e tal e mesmo atualmente...o::barulho de trânsito a polui/a poluição... auditiva acho que temuma função de tranqüilizar... eu não sei se a analogia está certamas outro dia eu pensei né? (que você) o silêncio na... na selva ésinal de perigo né? (...)

(NURC/SP, 343, L. 792-796)

Com os marcadores acho que e eu não sei se, a informante mani-festa dúvida e incerteza, já que não está plenamente convicta da forçados seus argumentos. Com essa manifestação, ela se resguarda de possí-veis questionamentos e objeções.

Pela tabela a seguir, fica evidenciado que a maioria das marcas desubjetividade e intersubjetividade não é empregada com valor de atenu-ação ou preservação da imagem do falante.

Page 86: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

86

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

Tabela VI. Valor de atenuação das marcas de subjetividade e intersubjetividade.

Inq. 062 333 343 360

N % N % N % N %S 14 16 21 19 20 17 18 17N 74 84 90 81 95 83 86 83S – Com valor de atenuação.

N – Sem valor de atenuação.

Verifica-se que a maior parte das marcas de subjetividade e inter-subjetividade não é empregada com valor de atenuação. Isso significaque a atenuação é apenas uma das funções dos indicadores de interpes-soalidade. Trata-se, em verdade, de uma função derivada, que se associaà função mais importante, que é a indicação da presença dos interlocuto-res. Mencione-se, ainda, que nem todos os marcadores de atenuação pos-suem marcas de primeira e segunda pessoas: na realidade, esse fato sóocorre com um número limitado de atenuadores (os marcadores de opi-nião: eu acho, para mim, na minha opinião, e assemelhados; marcadoresde dúvida: se não me engano).

A atenuação não se manifesta nem mesmo nos marcadores con-versacionais que denotam o envolvimento do ouvinte.

(12) (O informante discorre acerca da sua rotina de trabalho)

L1 bom você vê é::normal aquilo né?... levanta-se cedo... vou lá parao meu serviço quando é mais ou menos meio dia... já estou na ruané? (...)

(NURC/SP, 062, L. 102-105)

Reitere-se, em forma de conclusão, que o papel principal das mar-cas de subjetividade é indicar as relações que se estabelecem entre osinterlocutores. A atenuação é simplesmente uma das manifestações es-pecíficas da intersubjetividade.

Page 87: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

87

Interação na fala e na escrita

Considerações finais

Enfatizou-se, neste trabalho, que o sujeito da enunciação é sempreum intersujeito, já que o indivíduo que se institui como falante acabaelegendo, do mesmo modo, um determinado paralelo conversacional.Esse fato decorre do caráter dialógico da linguagem: qualquer ato delinguagem (escrita ou falada) pressupõe um interlocutor. Aliás, é pelodiálogo, pela relação com o interlocutor, que o ser humano se instituicomo ser histórico, situado em dado contexto social. Por isso mesmo, asteorias que analisam a conversação (em particular as abordagens sistê-mico-funcionais) ressaltam o componente significativo de natureza in-terpessoal.

O caráter dialógico da linguagem e o componente interpessoaltornam-se patentes ao examinar-se o papel exercido pelas marcas de sub-jetividade e intersubjetividade. Com efeito, a análise das variáveis revelaque as marcas indicativas da presença e da participação dos interlocuto-res possuem certas características evidenciadoras do papel das mesmasno estabelecimento da significação interpessoal: a maioria dos indicado-res de subjetividade apresenta marcas de segunda pessoa; as marcas po-dem ser auto ou heterocentradas, ou seja, estão voltadas para o falante ouo ouvinte, embora as últimas predominem, o que evidencia o caráterdialógico da linguagem. Verifica-se, ademais, que as marcas de subjeti-vidade indicam um alto grau de envolvimento entre os interlocutores (jáque possuem marcas de pessoa); não estão ligados ao desenvolvimentotópico nem possuem valor de atenuação.

Deve ficar claro que as marcas que foram focalizadas não são osúnicos procedimentos a assinalarem a presença dos interlocutores. Háoutros procedimentos de construção do texto falado que também mar-cam a presença dos interlocutores: processos de reformulação (paráfrasee correção), parênteses de esclarecimentos, procedimentos de contextua-lização, entre outros. Nenhum deles, porém, assinala de forma clara edireta a presença dos interlocutores como as marcas estudadas neste tra-balho.

Page 88: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

88

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Marcas de subjetividade e intersubjetividade em...

Referências bibliográficas

BARROS, Diana Luz Pessoa de (1999). Dialogismo, polifonia e enunciação. In:_____ e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia e enunciação: emtorno de Bakhtin. São Paulo.

BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov) (1986). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Pro-blemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. 3ª. ed.Trad. de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São Paulo:Hucitec.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de e PRETI, Dino (orgs.) (1997). A linguagem faladaculta na cidade de São Paulo. Materiais para o seu estudo, v. III. Diálogo entredois informantes. São Paulo: T. A. Queiroz/FAPESP.

EGGINS, Suzanne e SLADE, Diana (1997). Analysing casual conversation. Londonand Washington: Cassel.

GALEMBECK, Paulo de Tarso (1997). Preservação da face e manifestação de opi-niões: um caso de jogo duplo. In: PRETI, Dino (org.). O discurso oral culto. SãoPaulo: Humanitas.

HALLIDAY, Michael A. K. (1973). Explorations in the functions of language.London: Longman.

MORIN, Edgar (1996). A noção de sujeito. In: SCHNITMAN, Dora Fried (org.).Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Trad. de Jussara Haubert Rodrigues.Porto Alegre: Artes Médicas.

Page 89: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

A COLABORAÇÃO DO OUVINTE NACONSTRUÇÃO DO ENUNCIADO DO

FALANTE – UM CASO DE INTERAÇÃOINTRATURNO

José Gaston Hilgert

1.É impossível não interagir na produção dotexto

Um fato lingüístico tem existência enquanto for texto ou consti-tuinte de um texto. E todo texto, como enunciado, é produto da enuncia-ção, a qual pressupõe um eu enunciador, cuja existência institui um tuenunciatário. Tal fato implica admitir que todo texto tem natureza dialo-gal. Essa característica se estende do texto escrito mais formal ao bilhetemais despretensioso; da fala solene da academia à conversação informaldo cotidiano.

A natureza dialogal determina, portanto, a produção de qualquertipo de texto, uma vez que, conhecendo o destinatário, o destinador atri-buirá características específicas a seu texto em função do interlocutor.Em outras palavras, o leitor e o ouvinte sempre serão participantes ativosna construção do texto. Kerbrat-Orecchioni (1995: 14) considera que

desde a fase da codificação (“encodage”), anteriormente a qualquer res-posta ou simples reação provinda do destinatário, este já se encontra

Page 90: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

90

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

inscrito no discurso do emissor, explicitamente às vezes (por meio demarcas de alocução), implicitamente sempre, na medida em que o emis-sor considera permanentemente a imagem que ele se construiu de seudestinatário e as competências que lhe atribui.

Na construção do discurso do destinador as escolhas lingüísticas,as estratégias argumentativas, o estabelecimento dos implícitos, aexplicitação maior ou menor de conhecimentos prévios e outros aspectossão co-determinados pelo destinatário. “O enunciador constrói no discur-so todo um dispositivo veridictório, espalha marcas que devem ser encon-tradas e interpretadas pelo enunciatário. Para escolher as pistas a seremoferecidas, o enunciador considera a relatividade cultural e social da ‘ver-dade’, sua variação em função do tipo de discurso, além das crenças doenunciatário que vai interpretá-las” (Barros, 1990: 63).1

2. O objeto de estudo no contexto da interaçãoconversacional

Na linha dessas reflexões, considere-se, agora, o texto conversa-cional. A conversação é sempre uma atividade social, de natureza lin-güística, construída por interlocutores em interação, na medida em quealternam os papéis de falante e ouvinte. No mínimo dois interlocutores,em situação face a face, interagem, falando, alternadamente, sobre umtema, cuja abordagem não foi previamente planejada. Essas condições,nomeadamente a situação face a face e a simultaneidade entre o ato defalar e o planejamento do que é falado, desencadeiam uma série de pro-blemas na formulação da conversação. O problema mais comum talvezseja o decorrente do “trabalho da denominação” (Benveniste, 1990: 25).No curso da conversação, ele se manifesta ora pelas inúmeras hesita-ções do falante, traduzidas em variadas formas lingüísticas ou paralin-

1 O grifo na citação é nosso.

Page 91: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

91

Interação na fala e na escrita

güísticas (enunciados inconclusos, repetições, alongamentos, pausas pre-enchidas ou não, etc.); ora por reiteradas reformulações parafrásticas oude correção; ora, ainda, por variados recursos gestuais e mímicos queintegram toda interação conversacional.

Em geral, cada falante, na evolução de seu turno, busca ele pró-prio saídas para seus problemas de formulação.

Veja-se este segmento:

(1)

(F1) que jo/que jogos em geral as pessoas... em que jogos as pessoasgostam assim de dedicar-se na praia?...

(F2) na praia jogos?... bom o que eu vejo lá:: na na praia o pessoal jogamuito aquelas... raQUEtes assim... jogavam VÔlei... é tênis depraia que se chama aquele com raquete é tênis de praia (Hilgert,1997, p. 102)

Observa-se que, na resposta de F2, a denominação “tênis de praia”decorre de um “laborioso” processo de busca, já que a resposta à per-gunta de F1 não ocorre prontamente. A busca começa com a retomadada pergunta que F2 faz a si mesma, como um recurso de tomada deturno. Segue então uma referência metonímica (“aquelas raQUEtes”)ao tipo de jogo a identificar, antecedida de hesitações manifestas no alon-gamento de “lá::” e na repetição de “na na” e seguida de “assim”, palavrade sentido vago e indefinido. A seguir, F2 nomeia outro jogo comum napraia (“Vôlei”), mas não o que desejava informar a seu interlocutor. Fi-nalmente lhe ocorre a denominação própria (“tênis de praia”), cuja iden-tificação é metadiscursivamente anunciada (“que se chama”) e ratificadapela repetição.2

Há passagens, porém, em que o falante, diante do problema deformulação, recebe explícita colaboração do ouvinte para completar seu

2 A referência metonímica “aquelas raQUEtes” e a menção de “Vôlei” são, segundoRoubaud (apud Blanche-Benveniste, 1990: 27), casos de “aproximação lexical” notrabalho de denominação.

Page 92: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

92

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

enunciado. Esta colaboração pode ser possibilitada ou até solicitada pelofalante por meio de diferentes manifestações ou, então, ser oferecidapelo ouvinte, por iniciativa deste, sujeita a ser, em qualquer um dos casos,referendada ou não pelo primeiro.

Descrever a colaboração entre os interlocutores, neste nível demicrointeração, em contexto intraturno, é o objetivo específico deste tra-balho.3 E para que seu propósito seja percebido com maior clareza peloleitor, situa-se, na seguinte passagem, um exemplo do objeto de estudo:

(2)

Doc (F2) e:: além desses jantares dançantes as festas a senhora vai aalguma outra festividade?

[

Inf (F1) ah:: também ( ).... quando (tenho que ir)... sempre é em funçãodessa socieDAde que meu marido está já está há dez anos... as-sim:: na diretoria... uma vez ele era tesouREIro... outra vez vice-presidente outra:: agora ele é::... eu disse vice-presidente aindaagora né? mas não vice-presidente é o outro... ele FOI no anopassado... ele é:: como é que se diz a pessoa que cuida doCLUbe... que toma:: não é ecônomo é o que toma conta assimdo::... dessa parte:: que ele tem que cuidar da das Obras tudo

Doc (F2) diretor patrimonial

Inf (F1) di/diretor:: do patrimônio... é isso... né? (Hilgert, 1997: 98)

3 Gülich (1986) realizou um estudo de natureza similar, ao investigar construçõescolaborativas de enunciados entre jovens alemães, estudantes de francês, e suaprofessora, falante nativa desta língua, em interações de sala de aula. Há evidente-mente aspectos que aproximam o trabalho de Gülich com o que aqui se pretendedesenvolver, particularmente no que se refere aos princípios teórico-metodológicos.Mas, do ponto de vista do objeto investigado, eles são inteiramente distintos:Gülich descreve interações entre falantes nativos e não nativos, mostrando que osproblemas de formulação, especialmente dos não nativos, decorrem de seu domínioainda precário da língua francesa, o que os impele a pedir repetida ajuda à professorapara buscar alternativas de formulação; o presente trabalho aborda a interaçãosempre entre falantes nativos, e de língua portuguesa, tendo todos, em princípio, amesma competência lingüístico-comunicacional.

Page 93: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

93

Interação na fala e na escrita

Como se pode observar, os interlocutores em interação são infor-mante (F1) e documentador (F2). Considerando a fala em negrito, logono início, com o alongamento de (“é::”), F1 sinaliza uma interrupção doenunciado que vem construindo, por não encontrar de imediato a formu-lação desejada. Como esta definitivamente não lhe ocorre, explicita me-tadiscursivamente (“como é que se diz”), na seqüência, o seu pedido decolaboração na busca da denominação da função do marido. E prosse-gue, nesse sentido, oferecendo informações ao interlocutor relativas a talfunção (“a pessoa que cuida do CLUbe...”), primeiramente em termosgerais e, depois, com dados específicos (“toma conta assim do::... dessaparte:: que ele tem que cuidar da das Obras tudo”), além de, antes dessesdetalhes, excluir uma denonimação (“não é ecônomo”) que F2 eventual-mente pudesse sugerir.

Terminado esse complexo percurso metadiscursivo de pedido decolaboração, F2 propõe a denominação “diretor patrimonial”, que é acei-ta por F1. Prova disso está no fato de com ela, brevemente reformulada(di/diretor:: do patrimônio...), dar continuidade a seu turno, além de ratifi-car explicitamente (é isso... né?) que a solução dada ao problema deformulação foi adequada.

O exemplo apresentado e sua análise mostram que o objeto deestudo deste trabalho se restringe a um tipo de interação em que doisinterlocutores, F1 e F2,4 interagem de forma que este colabora na cons-trução do enunciado daquele, constituindo-se, portanto, uma microinteraçãointraturno.5

Tal atividade implica uma organização seqüencial em três etapas:6

a) a interrupção do turno (enunciado) por F1, sinalizada por recursos

4 Daqui para frente, F1 sempre identificará o falante que interrompe o enunciado porforça de algum problema de formulação, e F2, aquele que presta a sua colaboraçãopara dar continuidade ao enunciado interrompido.

5 A denominação “microinteração intraturno” pode ser questionada, mas ela distin-gue o tipo de interação em pauta das interações conversacionais em geral, pelo fatode estas ocorrerem por meio da alternância de turnos e não nos limites de um únicoturno.

6 Cf. Gülich, 1986: 167.

Page 94: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

94

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

vários; b) a colaboração de F2; c) a recepção e a integração da colabora-ção na continuidade do enunciado de F1. No decurso do trabalho, a pri-meira parte será identificada como enunciado ou turno interrompido ouem construção; a segunda, como colaboração, segmento colaborativo,elemento colaborativo, proposta de complementação, sugestão colabora-tiva; e, finalmente, a terceira será a aceitação ou recepção e a integraçãoou incorporação do segmento colaborativo na continuidade ou comple-mentação do enunciado ou turno de F1. O desenvolvimento da interaçãopor meio da integração dessas três etapas constitui, portanto, o presenteobjeto de estudos.

Como o aspecto mais evidente no tipo de interação aqui em estudoé a colaboração entre interlocutores, é indispensável que se defina osentido desse termo na interação conversacional. Com efeito, uma con-versação só se estabelece com base no princípio da cooperação. “Porisso o caráter cooperativo de um comportamento interacional não é umtraço de estratégia interacional, mas um requisito de necessidade lógicapara que se constituam ações coordenadas” (Marcuschi, 1987: 18). Nes-se sentido, um comportamento cooperativo não implica necessariamentecolaboração,

pois cooperar é agir dentro dos pressupostos racionais dos empreendi-mentos mútuos, ao passo que colaborar é agir de acordo com a naturezasubstantiva das demandas conversacionais. (...) A cooperação é umaespécie de fundamento da interação ao passo que a colaboração é umtraço qualitativo (Idem, 1987: 18).

Tendo em conta essa acepção de colaboração, considera-se, por-tanto, neste trabalho, especificamente a atitude do falante que sugere aointerlocutor uma alternativa de formulação na construção de seu enun-ciado, uma postura colaborativa, na medida em que, por meio dela, re-vela sintonia com o desenvolvimento do tópico conversacional, atençãoao desenvolvimento do turno do interlocutor e interesse na perfórmancedeste na seqüência conversacional.

Page 95: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

95

Interação na fala e na escrita

3. Princípios metodológicos e a delimitação deum corpus

Historicamente, as análises e descrições das interações conversa-cionais têm sido conduzidas pelos princípios etnometodológicos, mesmoque a eles nem sempre tenha sido feita explícita referência nos trabalhos.Sabe-se que a Etnometodologia é uma corrente dissidente da tradicionalsociologia americana, e o princípio dessa dissidência reside no fato deque, “contrariamente à sociologia, que procura saber como os indivíduosagem em situações já definidas fora deles e preexistentes a suas interações,a etnometodologia vai tentar compreender como os indivíduos vêem, des-crevem e propõem em conjunto uma definição da situação” (Coulon,1995: 20). Nessa perspectiva, Garfinkel7 (1967: 01) indica que seus estu-dos

abordam as atividades práticas, as circunstâncias práticas e o raciocíniosociológico prático, como temas de estudo empírico. Concedendo àsatividades corriqueiras da vida cotidiana a mesma atenção que habitual-mente se presta aos acontecimentos extraordinários, tentaremoscompreendê-los como fenômenos de direito pleno.

Na linha desses princípios, a conversação foi eleita como objeto deinvestigação primordial da Etnometodologia – por ser, indiscutivelmente,a atividade cotidiana mais comum – com propósitos evidentemente soci-ológicos e não lingüísticos. Isso fica claro nestas palavras de Sacks (apudGülich, 1987: 7):

Não foi por especial interesse pela linguagem ou em razão de algumaformulação teórica do que seria estudado, que comecei com conversa-ções documentadas com gravador. Mas, simplesmente, porque as pode-

7 Harold Garfinkel é tido como o pai da Etnometodologia. Nasceu em 1917. Fez seusestudos doutorais em 1946, na Universidade de Harvard, e, em 1967, publicouStudies in Ethnomethodology, considerado o livro fundador da Etnometodologia.

Page 96: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

96

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

ria manipular e estudar repetidas vezes; também, conseqüentemente,porque outros poderiam apreciar o que eu havia estudado e fazer o quelhes permitisse sua capacidade, se, por exemplo, pretendessem se habi-litar a discordar de mim.

De toda forma, os etnometodólogos8 constituíram, no dizer deCoulon (apud Gülich, 1987: 8), a “corrente lingüística” da Etnometodologia.E, na medida em que os relatos de suas pesquisas foram recebidos noâmbito dos estudiosos da linguagem, seus métodos de investigação e des-crição abriram novos horizontes para a descrição da conversação comoobjeto de estudo lingüístico que, até então, se desenvolvera preponderan-temente à luz dos princípios de estudo da língua escrita ou, ao menos,tendo esta como referência comparativa.

Dessa forma, as descrições lingüísticas das conversações começa-ram a explicitar os “métodos”9 como os interlocutores conduziam a cons-trução colaborativa do texto e de seus sentidos, determinados pelas contin-gências da situação face a face, do contexto, do conhecimento e influênciamútuos e outros fatores confluentes, revelando-se, assim, na construção dotexto, valores lingüístico-discursivos até em formas que, outrora, eram con-sideradas de natureza expletiva ou então identificadas como ruídos no pro-cesso da comunicação. É esta mentalidade analítica etnometodológica, noestudo de um fato lingüístico, que conduz este trabalho.

O corpus da pesquisa é constituído de todas ocorrências do fatointeracional em foco, nos inquéritos 343, 62 e 360 do projeto NURC/SP,publicados em Castilho e Preti (1987) que correspondem a 233 minutosde fala. Como o espaço deste trabalho não permite apresentar as análi-ses de todas as ocorrências interacionais identificadas, serão apresenta-dos os resultados delas, antecedidos sempre de análises representativasde tipos de interações identificados por características comuns.

8 Mencionam-se como os pioneiros da análise etnometodológica da conversação A.Cicourel, H. Sacks, E. A. Schegloff, G. Jefferson e J. Schenkein.

9 “Método” é aqui empregado num sentido pré-científico, ou seja, no sentido de umametodologia usada pelos indivíduos de um grupo social na realização de suas ativida-des cotidianas.

Page 97: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

97

Interação na fala e na escrita

4. Análise e interpretação dos dados

Os 55 casos de interação levantados no corpus podem inicialmen-te ser classificados em dois conjuntos: o primeiro reúne aqueles em que,para buscar uma saída para a continuidade da formulação, os interlocuto-res desenvolvem um tópico específico, explicitamente metadiscursivo,centrado, tematicamente, no problema a resolver; e o segundo conjunto éconstituído dos demais casos em que a sugestão do ouvinte é integradaao enunciado do falante, de forma a dar continuidade imediata ao fluxode seu turno, dispensando todo e qualquer comentário metadiscursivo.No corpus deste trabalho, um único exemplo constitui o primeiro conjun-to, que a seguir vem transcrito e analisado.

(3)

L1 – você assistiu àquele filme... aquele ator americano lá — ahn comoé que se chama? —

L2 – o:: Banzé no Oeste?

L1 – não... não... é::... conta a história do oeste mais ou menos verdadeirané? naquele... naquela guerra que teve... acho que entre o sul e nonorte...

L2 – a guerra da secessão?

[

L1 – um general lá...

L2 – uhn...

L1 – não... foi um general lá que matou uma::... cacetada de índio...

[

L2 – uhn

L1 – ator famoso aí... – como é que chama o desgraçado aí fez o Midnightcowboy –

L2 – ahn... o... ah já sei dos... – ai como é que se chamava – eh:::... comDustin Hoffmann né?...

L1 – uhn...

Page 98: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

98

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

L2 – sei qual é

[

L1 – (então você ainda se lembra) nesse filme... (p. 34)10

Na seqüência de sua formulação não ocorre a L1 o nome do filmea que se quer referir. Esse problema é triplamente sinalizado: pela pausadepois de “filme...”; pela tentativa de evocar o nome de um ator renomadoque nele estrelou; e, finalmente, pelo apelo metadiscursivo explícito. L2acorre então com uma resposta, da qual, porém, não tem certeza, já quea propõe em tom de pergunta.11 L1 nega categoricamente a sugestão eacrescenta uma seqüência de informações que possam trazer à lembran-ça de um dos interlocutores o nome do filme. Na relação dessas informa-ções, não ocorre agora a L1 o nome de um certa guerra, vindo o proble-ma de formulação já anunciado desde o início do turno: a interrupção doenunciado começado com “é::... e seu reinício com “conta”; a correçãode “naquele” por “naquela” intercalada por pausa; a pausa depois de“teve...”, a incerteza traduzida por “acho”, na menção de dadosidentificadores da guerra e, finalmente, a pausa depois de “norte...”. Aesta altura do turno, L2 intervém novamente com uma pergunta (“a guer-ra da secessão?...”), não manifestando certeza, portanto, de que ela po-deria traduzir a alternativa de formulação satisfatória. L1, de toda forma,desconhece a proposta de L2 e segue o seu turno, agora tentando lem-brar-se do filme por meio de um general que matara muitos índios e quefora representado por um ator famoso de um outro filme, o “Midnightcowboy”. Nessa fala final, L1 sinaliza, com pausas e alongamentos, como uso de termos indeterminadores do tipo “lá”e “aí” e, particularmente,com o recurso metadiscursivo “como é que chama o desgraçado aí”, oseu problema de formulação e, em decorrência, aguarda colaboração deL2. Este, ainda que iniciando o turno de forma hesitante (“ahn... o... ah”),

10 Todos os segmentos textuais analisados, a partir deste, vêm acompanhados dapágina em que se localizam, na obra de Castilho e Preti, 1987.

11 Gülich (1986: 172-73) denomina essa entonação interrogativa e outros recursos defunção idêntica de “marcadores de incerteza”.

Page 99: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

99

Interação na fala e na escrita

assegura metadiscursivamente (“já sei”) que tem uma proposta de solu-ção, à qual, contudo, só chega após uma interrupção (já sei dos...), umaformulação metadiscursiva (“ai como é que se chamava”) e um alonga-mento seguido de pausa (“eh:::...”). E, ao sugerir o nome (“DustinHoffmann”), ainda o faz em forma de pergunta, revelando mais uma vezincerteza e esperando do interlocutor uma resposta ratificadora ou não.Mas L1 parece que desistiu de seu intento inicial de nominar um filme eretruca a L2 com um simples sinal do ouvinte (“uhn...”). L2 ainda tentacontinuar o seu turno sobre a questão do problema de formulação empauta, mas é logo interrompido por L1, que retoma o tópico sobre o filme,mesmo sem lembrar-se do nome.

Observa-se, portanto, que se abre um tópico paralelo, de estruturaextremamente complexa, para resolver um problema de denominação.L1, explicitamente solicita e implicitamente insinua pedidos de colabora-ção de L2 na solução do problema. Este intervém em três ocasiões, semter sucesso em nenhuma delas. E, na medida em que formula suas pro-postas, também acena a L1 que lhe ratifique as sugestões dadas ou atécolabore com a formulação adequada, conforme se verifica no turno emque se menciona o ator Dustin Hoffmann. Enfim, o trabalho colaborativodos interlocutores para a busca de uma denominação foi longo, sem che-garem, no entanto, a bom termo. Como se disse, no corpus analisado,esse é um caso de exceção, mas não é incomum nas conversações docotidiano e mesmo nos registros do Projeto NURC/BR em geral. Jubran(2000: 01), observando dados de um corpus formado por inquéritos dostipos D2, DID e EF, constata, em várias passagens, que

a presença de operações de seleção lexical no corpo do texto promovebreve suspensões do fluxo informacional, operando um desvio do tópi-co discursivo para a atividade de elaboração do texto. Desse modo, ossegmentos que têm por foco o próprio processamento lingüístico afas-tam-se da função ideacional predominante nos enunciados tópicos eassumem a função metadiscursiva, na medida em que se voltam para oato de dizer, evidenciando a ́ mise-en-scène´ do sistema lingüístico.

Page 100: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

100

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

Além do fragmento (3), só há ainda uma única passagem, nocorpus analisado, em que F1 formula metadiscursivamente um pedidode complementação de seu enunciado, mas sem abrir um tópicoparentético para chegar ao termo desejado. Veja-se o exemplo:

(4)

L1 – porque antes... havia uma::... há/ havia os procuradores... semconcurso e:: recebiam outro nome você sabe?

[

L2 – era só advogado do Estado...

L1 – advogados do Estado...

L2 – é... ( ) depois éh depois passou a carreira para ser procuradores doEstado... (p. 158)

Com a resposta a sua pergunta, L1 conclui o enunciado interrom-pido.

Excluindo essas duas passagens, nas demais 53 interações docorpus, F1 não pede explicitamente que o interlocutor sugira uma alter-nativa de formulação, mas este interpreta a sinalização da interrupção doenunciado como um pedido implícito ou ao menos como uma oportunida-de para uma intervenção colaborativa. E assim que é expressa, ela é –com raras exceções, como se verá – explícita e diretamente incorporadano fluxo sintático-semântico do turno interrompido, ao qual, então, é dadacontinuidade de formulação, como mostram estes dois segmentos:

(5)

L1 – não inclusive eu estava respondendo para você:: colega... o o o::fato de eu ter escolhido a profissão do do...

L2 – economista...

L1 – economista né? (R) ... então realmente::... eu fiz o ginásio estavafazendo o ginásio...(p. 70)

(6)

Page 101: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

101

Interação na fala e na escrita

L1 – porque realmente houve assim uma:: ... uma fuga... do engenheiroda da... da área de produção... dos laboratórios de experiênciaspara... para a...

L2 – área administrativa

L1 – área administrativa... (R) hoje ele realmente:: se encontra emgrande percentagem na Área administrativa... (p. 74)

Observa-se que, em ambos os casos, L1 interrompe o seu turno,sinalizando a busca de uma formulação respectivamente por meio de “dodo...” e “para... para a...”. Essas hesitações ensejam a colaboração deL2, a qual, por ser prontamente aceita por L1, é imediatamente repetidae, assim, integrada no turno em desenvolvimento.

É desse procedimento padrão, nas interações em estudo, que seocupará este trabalho daqui para frente, analisando, nesta ordem: a) aintegração da colaboração na continuidade do enunciado interrompido; b)a natureza do segmento colaborativo, considerando especialmente o seucondicionamento sintático-semântico em relação à parte do turno já for-mulada; c) o lugar da ruptura, na estrutura sintática em construção, e asformas de sua sinalização.

4.1. A integração da colaboração na continuidadedo enunciado interrompido

4.1.1. Analisando os dados, constatam-se variações na for-ma de o falante aceitar e perceber semanticamente a cola-boração do interlocutor e de integrá-la no enunciado in-terrompido. Com base nelas, podem-se identificar os se-guintes tipos de interações:

a) O primeiro vem caracterizado pelos exemplos (5) e (6), em queo termo sugerido é repetido (R) pelo falante do turno em cons-trução e, assim, nele integrado.

Page 102: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

102

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

b) No segundo, o falante incorpora em seu turno a colaboraçãodo interlocutor por meio de uma retomada parafrástica (P), comomostram estes segmentos:(7)

L1 – sei lá estão falando muito nisso viu? poluição do ar agora é::

L2 – é tema do momento né?

L1 – é a moda mesmo... (P)

L2 – é... é a moda... (p. 66)

(8)

L1 – mas nesse meio tempo eu já estava trabalhando e procurei real-mente... uma uma profissão... que se::

L2 – enquadrasse

L1 – coadunasse (P)mais (com) aquele tipo de serviço... (p. 70)

(9)

L1 – bom nós estávamos só só retomando::... você estava falando so-bre... sobre o problema do

Doc – o ensino

L2 – ah sobre o problema da:: dos métodos de ensino atualmente(P) entende? (p. 71)

(10)

L1 – mas pelo que me consta... TUdo é importado ainda... não existeNAda assim...

L2 – nada nosso...

L1 – por enquanto desenvolvido aqui... (P) (p. 96)

As ocorrências desses dois tipos constituem a ampla maioria nocorpus, e as retomadas parafrásticas são todas heteroparáfrases hete-roiniciadas, podendo ter, em relação ao segmento sugerido, uma estruturasintático-lexical simétrica, desenvolvida ou reduzida (cf. Hilgert, 1993:103-27).

Page 103: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

103

Interação na fala e na escrita

c) Num terceiro tipo de interações, a sugestão do interlocutorsofre uma correção (C), como se verifica nesta passagem:(11)

L1 – a... classe não é grande... dos procuradores do Estado

com quantos estão agora?

[

L2 – estamos mais ou menos...

L1 – uns mil e poucos?

L2 – não uns oitocentos (C)

L1 – oitocentos é nem chega a mil

[

L2 – (é) (p. 155)

Esta é a única ocorrência desse tipo no corpus, tratando-se tam-bém de uma heterocorreção heteroiniciada.

d) Num quarto tipo, a sugestão do interlocutor é explicitamentenão aceita, distinguindo-se da anterior por não acompanhar umacorreção, como a seguir se observa:

(12)

L1 – (...) e faz um movimento assim como estivesse caval/cavalgando

L2- ahn (ri)

L1 – e agarra a máquina assim ( ) ((ri))

L2 – queria estar num cavalo

L1 – por quê? analogia... ele está cavalgando né? então ele é o::... o::...

L2 – ((ri)) o rei do oeste ahn

L1 – não tem oeste aqui... ((ri))

L2 – não tudo bem:: eu sei entendi (p. 33-4)

e) Finalmente, num quinto tipo, L1, que está construindo o seuturno, simplesmente desconhece a colaboração de L2, como re-gistram estas passagens:

Page 104: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

104

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

(13)

L1 – então fica cada vez o seu trabalho... éh... mais especializado e...

mais envolvido num... num... por um montão de gente

[

L2 – com outras pessoas para para

L1 – ( ) quem? – como é que se diz – que... controla?... se isso não tem...alguma coisa para controlar (p. 39)

(14)

L1 – sei lá... nós estaremos... diferentes né?

L2 – oi?

L1 – nós estaremos diferentes assim... posição::... atitudes...

L2 – mais estabilizados preferivelmente né?

[

L1 – em esquemas um pouco diferentes... (p. 43-4)

(15)

L1 – então poderia surgir uma solução do tipo todos se arrebentarem aomesmo tempo...

Doc – no penhasco né?

[

L2 – para a sobrevivência da raça né?

L1 – ahn?

Doc – no penhasco... em vez do mar... quer dizer uma outra solução elesachariam...

L1 – não eu estou dizendo que... seria fácil o pifar a solução deles que éum sistema simples... (p. 58)

Comparando esses cinco tipos entre si, verifica-se uma verdadeiragradação na percepção semântica do segmento de colaboração por partede F1, no momento de integrá-lo em seu enunciado. Essa percepção vemgraduada na seguinte seqüência: repetição > paráfrase > correção > nega-ção > desconhecimento. Em outras palavras, ela vai desde a aceitaçãoplena da sugestão de F2 até o total desconhecimento de sua colaboração.

Page 105: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

105

Interação na fala e na escrita

Do ponto de vista da sintonia entre os interlocutores, a repetição ea paráfrase podem revelar um alto grau de confluência na abordagemtemática da conversação, sugerindo a negação e o desconhecimento si-tuações de conflito ou, ao menos, pouca disposição para acatar as inter-venções colaborativas.

4.1.2. No que respeita à integração sintática do segmentocolaborativo no enunciado em construção, distinguem-sedois grupos de interações: no primeiro, o absolutamentepredominante, proposta a sugestão de F2, com ela F1 dáimediata continuidade à formulação do turno; no outro, omenos comum, ao fazer a incorporação, seja por repetiçãoou por paráfrase, F1 retoma parte do enunciado anterior àintervenção do interlocutor, como atestam estes exemplos:

(16)

L1 – bom nós estávamos só só retomando::... você estava falando so-bre... sobre o problema do

Doc – o ensino

L2 – ah sobre o problema da:: dos métodos de ensino atualmenteentende? (p. 71)

(17)

L2 – então tanto que quando eh chega a ponto de até às vezes ele éh éhele:: escrever Para a faculdade... pedindo... os melho/ ah os nomesdos melhores alunos... dos últimos anos... para poder eh poderprocurar

[

L1 – localizar

L2 – para poder localizar... porque Realmente a dificuldade é grande(p. 160)

Page 106: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

106

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

(18)

L2 – porque é mais difícil procu/ ah:: querer:::... um diretor deempre::sa::... um::: um vice-presidente de empresa... entre pesso-as mais jovens... aí::

L1 – sempre são mais...

[

L2 – então::

L1 – vividos

[

L2 – são pessoas mais vividas porque aí a experiência é muitíssimoimportante... tá?

L1 – ah sim (p. 162)

(19)

L1 – e:: ele segue os

L2 – ahn ahn

L1 – salários dos::

L2 – jogadores

L1 – ele segue os salários dos jogadores... através da:: revistaPlacar...(p. 170)

4.1.3. Finalmente, do ponto de vista da ratificação explíci-ta da aceitação do segmento colaborativo, por meio de ummarcador específico, distinguem-se as aceitações marcadasou não. As ocorrências predominantes são as nãomarcadas, sendo raras as outras. O corpus só registra estasquatro:

(20)

L2 – mas parece que não vai dar nada porque::...

L1 – já...

L2 – já::... ( )

[

L1- expirou o prazo

Page 107: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

107

Interação na fala e na escrita

L2 – é já expirou o prazo mas está havendo ainda eles estão... eles têmuma esperança (p. 151-152)

(21)

L2 – então em todas elas existem algum pro/ existem procuradores...

em diversas procuradorias você... vê o caso...

o seu marido está

[

L1 – ele é da procuradoria da secretaria

[

L2 – ( )

L1 – dos transportes

L2 – é trabalha junto ah à Secretaria dos Transportes... (p. 157)

(22)

L1 – AH:: então eles vão requisitar os...

[

L2 – então o problema... é é o que eles cha-ma de head hunter

L1 – ahn

[

L2 – é conseguir... Esses:: funcionários

L1 – captar a simpatia

[

L2 – captar a...

L1 – desse pessoal

[

L2 – exatamente desses funcionários e trazê-los (p. 162)

(23)

L2- mas também tem um pouco de dificuldade porque não podemfalar nem para a esposa...porque eles não sabem que tipo de vida...

éh vive o casal

[

Page 108: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

108

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

L1 – a família vive isso

L2 – não é?... então nem pra a esposa pode ser dito... (p. 163)

Identificam-se “é”, “é”, “exatamente” e “isso” respectivamentecomo os marcadores em questão. O comum é, portanto, que eles não semanifestem na incorporação do segmento colaborativo na continuidadedo enunciado. Na verdade, essa ratificação é redundante, já que ela ocorre,implicitamente, quando F1 repete ou parafraseia a sugestão na continui-dade do enunciado. A sua ausência também pode se explicar em razãoda fluência com que os dois interlocutores interagem na construção cola-borativa do turno, fluência que decorre do mesmo nível de competêncialingüística, de conhecimentos prévios de mundo comuns e, também, dograu de disposição com que ambos desenvolvem em sintonia a conversa-ção. Pode-se lançar a hipótese de que quanto menos complexo é o traba-lho de busca de uma formulação, menor será a possibilidade de incidên-cia de marcadores de ratificação. O texto (2), por exemplo, registra umratificador ( “é isso”) após longa seqüência paralela na busca da formu-lação desejada. Neste caso, o ratificador, acaba soando como um ele-mento de confirmação do “achado”.

Finalmente, cabe lembrar que o corpus não registra as ratifica-ções não verbais que, muitas vezes, ocorrem, seja por meio de um acenode cabeça, seja por outras manifestações faciais. Esse fato também podedispensar a incidência de ratificações verbais.

4.2. A natureza sintático-semântica do segmentocolaborativo

O segmento colaborativo é ao mesmo tempo determinado por fa-tores sintáticos e semânticos na evolução do enunciado em construção.

4.2.1. Das 53 ocorrências do corpus, a quase totalidadedelas se insere no contexto sintático do enunciado inter-

Page 109: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

109

Interação na fala e na escrita

rompido – somente oito não seguem essa regra –, dando a elecontinuidade fluente a partir da ruptura, como revelam estesexemplos:

(24)

L1 – (...) e faz um movimento assim como estivesse caval/cavalgando

L2 – ahn (ri)

L1 – e agarra a máquina assim ( ) ((ri))

L2 – queria estar num cavalo

L1 – por quê? analogia... ele está cavalgando né? então ele é o::... o::...L2 – ((ri)) o rei do oeste ahnL1 – não tem oeste aqui... ((ri))L2 – não tudo bem:: eu sei entendi (p. 33-4)

(25)

L1 – mas nesse meio tempo eu já estava trabalhando e procurei real-mente... uma uma profissão... que se::

L2 – enquadrasseL1 – coadunasse mais (com) aquele tipo de serviço... (p. 70)

(26)

L2 – porque daqui a pouco o pessoal vai começa::r a perder prazoporque::... chega um ponto

[

L1 – que o acúmulo é muito grande né? de...[

L2 – que o acúmulo é tão grande que não dá tempo dagente (p. 150-51)

Em (24), a repetição alongada do artigo definido seguido de pau-sas, ao mesmo tempo que sinaliza a ruptura, aponta para um substantivomasculino na complementação da oração predicativa; em (25), com aoração adjetiva claramente desencadeada, a expectativa pelo verbo quelhe dê continuidade é evidente; e, em (26), a continuidade com um argu-mento consecutivo é formalmente condicionada pela expressão “chega

Page 110: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

110

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

um ponto”, cujo uso, mais comumente na forma “chega a ponto tal”,desencadeia orações consecutivas.

Em todos esses casos da continuidade fluente, o segmento colabo-rativo costuma entrar no enunciado em construção de forma direta, istoé, sem retomar parte final do enunciado interrompido. As ocorrênciasque fogem a essa regra são muito poucas, como estas:

(27)

L1 – porque no que aumenta o perigo aumenta o controle... tudo óti-mo... okay? senão...

L2 – senão dança

L1 – dança mesmo... aí é... não é ano dois mil não (p. 60)

(28)

L2 – ele joga?

L1 – ele joga

L2 – ah

L1 – ele gostaria de:: jogar no::

L2 – no dente de leite

L1 – no dente de leite... mas o horário pra mim era ruim... (p. 169)

Em (27), L2, em sua colaboração, retoma “senão” e, em (28),“no”. O que vem retomado é precisamente o elemento por meio do qualé sinalizada a ruptura do enunciado, fato que também se verifica nasdemais ocorrências desse tipo.

No que se refere à inserção sintática do segmento colaborativo noenunciado em construção, mencionou-se, na abertura deste tópico, quealguns segmentos não seguiam a determinação do contexto sintático doenunciado interrompido. Vejam-se estes exemplos:

(29)

L1 – o que:: interessa é::... faturar... entende?... para eles pouco impor-ta:: às vezes a::

Page 111: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

111

Interação na fala e na escrita

L2 – o tempo de de trabalho né?

L1 – como você utiliza o seu tempo de trabalho... (p. 67)

(30)

L2 – nós estávamos com mui::to trabalho...muito trabalhoMESmo...estou vendo toda essa campanha de arrecadação de...ICM

L1 – certo

L2 – não sei quê... então está sendo::

L1 – acarreta mais trabalho para vocês...

[

L2 – acarreta... mas muiTÍSSImo... a gente trabalha... (p.148)

(31)

L2 – então em todas elas existem algum pro/ existem procuradores...

em diversas procuradorias você... vê o caso...

o seu marido está

[

L1 – ele é da procuradoria da secretaria

[

L2 – ( )

L1 – dos transportes

L2 – é trabalha junto ah à Secretaria dos Transportes... (p. 157)

Em (29), L2 quebra a determinação sintática imposta pelo artigo“a” e dá sua colaboração com uma expressão masculina. Fato seme-lhante se manifesta em (30), quando, em “sendo...”, se interrompe umaestrutura sintática que, na colaboração de L1, não tem continuidade, jáque o falante inicia um novo enunciado. Também em (31), L1 desconhe-ce a estrutura sintática em construção por seu interlocutor, introduzindooutro enunciado. Em resumo, nesses casos do corpus, verifica-se, nomomento da inserção do segmento colaborativo, uma quebra da seqüên-cia sintática determinada pelo enunciado interrompido.

Page 112: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

112

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

4.2.2. No que respeita à função sintático-semântica do seg-mento colaborativo na constituição do enunciado, algu-mas constatações são relevantes no corpus.

a) No sintagma oracional (sujeito + predicado), o segmento cola-borativo situa-se predominantemente à direita, isto é, no predicado,exercendo as funções de predicativo, complemento verbal ou fun-ções determinantes dos núcleos do predicado, como exemplificamestes segmentos:

(32)

L1 – (...) e faz um movimento assim como estivesse caval/cavalgando

L2 – ahn (ri)

L1 – e agarra a máquina assim ( ) ((ri))

L2 – queria estar num cavalo

L1 – por quê? analogia... ele está cavalgando né? então ele é o::... o::...

L2 – ((ri)) o rei do oeste ahn

L1 – não tem oeste aqui... ((ri))

L2 – não tudo bem:: eu sei entendi (p. 33-4)

(33)

L1 – mas nesse meio tempo eu já estava trabalhando e procurei real-mente... uma uma profissão... que se::

L2 – enquadrasse

L1 – coadunasse mais (com) aquele tipo de serviço... (p. 70)

(34)

L1 – não inclusive eu estava respondendo para você:: colega... o o o::fato de eu ter escolhido a profissão do do...

L2 – economista...

L1 – economista né? ... então realmente::... eu fiz o ginásio estavafazendo o ginásio... (p. 70)

(35)

L2 – ele joga?

Page 113: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

113

Interação na fala e na escrita

L1 – ele joga

L2 – ah

L1 – ele gostaria de:: jogar no::L2 – no dente de leiteL1 – no dente de leite... mas o horário pra mim era ruim... (p. 169)

Em (32), o elemento colaborativo constitui o núcleo do predicativo;em (33), o núcleo do predicado verbal; em (34), o núcleo do adjuntoadnominal e em (35), o núcleo do adjunto adverbial.

b) Nas raras vezes em que o segmento colaborativo exerce afunção de sujeito da oração, este é posposto ao verbo, como sepode ver nestes exemplos:

(36)L1 – o que:: interessa é::... faturar... entende?... para eles pouco impor-

ta:: às vezes a::L2 – o tempo de de trabalho né?L1 – como você utiliza o seu tempo de trabalho... (p. 67)

(37)

L2 – tem muita gente que fica chateada ou pelo menos desapontada...né?((risos)) e:: não é fácil ((risos))

L1 – contentar ...L2 – contentar ... então isso acontece muito (p. 165)

Com a mesma função que o segmento colaborativo tem em (36) e(37), o corpus só registra mais duas interações. Nelas, portanto, o seg-mento colaborativo também se situa à direita da estrutura oracional, gra-ças à inversão da ordem sujeito + predicado.

c) Em sintagmas super-oracionais (oração principal + orações su-bordinadas), todas as ocorrências do segmento colaborativo situ-am-se igualmente à direita, isto é, nas orações subordinadas.

Page 114: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

114

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

(38)

L2 – mas parece que não vai dar nada porque::...L1 – já...

L2 – já::... ( )

[

L1 – expirou o prazoL2 – é já expirou o prazo mas está havendo ainda eles estão... eles têm

uma esperança (p. 151-52)

(39)

L2 – mas também tem um pouco de dificuldade porque não podemfalar nem para a esposa...porque eles não sabem que tipo de vida...éh vive o casal

[

L1 – a família vive isso

L2 – não é?... então nem pra a esposa pode ser dito... (p. 163)

(40)

L1 – se eu não fizer direito as minhas visitas ou se eu passar três quatrodias interrompendo meu serviço porque estou cansado... eviden-temente

[

L2 – ganhará menos

L1 – vou faturar menos vou ganhar menos

L2 – lógico (p. 68)

Em (38), o elemento colaborativo faz parte da oração causal e, em(39), da objetiva. Já em (40), uma ocorrência rara, ele constitui a oraçãoprincipal, mas na condição de ter sido invertida a ordem do sintagmasuper-oracional (orações subordinadas + oração principal). Portanto, tam-bém no presente caso continua a regularidade já verificada no sintagmaoracional: os elementos colaborativos situam-se à direita nessas estrutu-ras sintáticas.

Essa localização à direita pode-se explicar por dois fatoresinterdependentes: a natureza do processo de formulação vinculada à ar-

Page 115: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

115

Interação na fala e na escrita

ticulação tema-rema, isto é, à distribuição das informações (dadas e no-vas) no desenvolvimento da conversação.

Com efeito, já se falou anteriormente que o texto conversacional,nas condições em que é produzido (abordagem de um tema em situaçãoface a face, sem preparação prévia anterior), tem todas as marcas deter-minadas pela simultaneidade do que falar e do como falar. Na medidaem que o texto vai nascendo, os interlocutores, num ir e vir vão se depa-rando com problemas de formulação e buscando soluções adequadaspara seus propósitos de comunicação. Nesse processo, no caso, por exem-plo, da busca de uma denominação, não é de imediato que F1 delega apossibilidade de F2 intervir. Antes ele tenta “aproximações lexicais” aotermo desejado, elimina possibilidades de denominação seguramente equi-vocadas – ver textos (1), (2) e (3) – ou usa outros recursos de contextua-lização semântica que possam trazer à memória do falante o termo dese-jado ou, então, desencadeiem a ajuda do interlocutor. Todo esse processoem direção à formulação desejada estabelece um quadro de informaçõesque, na perspectiva da articulação tema-rema, constituem o tema, isto é,a informação dada, e o termo procurado será o rema, ou seja, a informa-ção nova.

d) Uma outra constatação, já referida no item (a), é fato de que oelemento colaborativo tende a ocupar o núcleo do termo sintáticoque integra. Os exemplos do item (a) evidenciam esse fato, comotambém os dois seguintes:

(41)

L2 – (então a firma) não pode tirar das pessoas... dos seus própriosclientes não pode tirar:::... elementos

[

L1 – pessoal

L2 – não pode tirar pessoal quer dizer então tem que ser de:: firmasestranhas...né?... (p. 164)

Page 116: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

116

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

(42)

L1 – e:: ele segue os

L2 – ahn ahn

L1 – salários dos::

L2 – jogadores

L1 – ele segue os salários dos jogadores... através da:: revista Pla-car... (p. 170)

O fato de constituir preponderantemente o núcleo do termo sintá-tico aponta para o aspecto semântico de que, no processo da formulação,a colaboração no tipo de interação em análise, é primordialmente umtrabalho de denominação. F2 intervém para denominar, em geral, pormeio de substantivos (seres, coisas, fatos, etc..), adjetivos (atributos), ad-vérbios (circunstâncias), verbos (ações).

Casos que dão particular ênfase a esse processo de denominaçãose revelam quando a interrupção ocorre logo após o primeiro verbo cons-tituinte de uma locução verbal, cujo verbo principal é objeto de busca,conforme atestam estas interações:

(43)

L1 – então eu realmente estou procurando um local onde eu possa...onde eu possa:: estender... dar uma extensão ao meu curso

L2 – certo ... aplicar MAIS o seu curso né?

L1 – mais o meu curso... porque senão fica um potencial perdido...(p. 79)

(44)

L2 – porque normalmente quando tem muitos... e um começa...

L1 – a... bancar o...

L2 – a... a a ((riso)) a tomar atitudes mais ou menos autoritárias osoutros mesmos se encarrega/se encarregam de... (p. 142)

Note-se que, em (43), L1 faz seguir ao auxiliar “possa” dois ver-bos principais (“entender” e “dar”), que L2 ainda complementa com “apli-

Page 117: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

117

Interação na fala e na escrita

car”, propondo uma denominação mais precisa. Em (44), L1 intervémcom o principal “bancar”, que L2 retoma, na continuidade do enunciado,em forma parafrástica.

Finalmente, cabem ainda duas últimas observações sobre o seg-mento colaborativo:

e) Nem sempre F2, em seu intuito de colaborar, apresenta umaformulação completa que efetivamente dê continuidade ao turnointerrompido de F1. Às vezes, a tentativa de ajuda é entendidapelo interlocutor como um assalto ao turno, por isso a aborta ime-diatamente, conseguindo ela então somente apontar para uma certohorizonte de ajuda. Vejam-se estes exemplos:

(45)

L2 – foi visto que aquela era melhor... então foi posto quer dizer não foiuma escolha...

L1 – sem::

L2 – assim sem base

L1 – ( )

L2 – foi bem pensada bem escolhida (p. 146)

(46)

L2 – mas pelo pelo que chega à gente de terceiros parece que ela (aomenos) tentou lutar tentou lutar e::

L1 – não:::

L2 – não conseguiu... ela também está não sei a impressão que eutenho pelo menos... (p. 155)

Nos dois casos, L1 mal consegue insinuar seu desejo de colabora-ção, quando já é interrompido pelo interlocutor, o qual, porém, não deixade incorporar esse segmento inicial na continuidade de seu turno.

f) Quando se falou, anteriormente, da integração do segmentocolaborativo na seqüência do enunciado em construção, apontou-

Page 118: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

118

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

se para o fato de que, muitas vezes, F1, em vez de incorporar esseelemento nos termos exatos como ele foi apresentado por F2, oincorpora na forma de uma paráfrase. Pois, às vezes, o segmentocolaborativo também tem natureza parafrástico-corretiva em re-lação a um segmento do enunciado interrompido, como se podever nestes exemplos:

(47)

L2 – e as coisas de casa que a gente aten/ tem que atender normalmentecom crianças BRIgas que a gente tem que repartir

[

L1 – apartar

L2 – tem que apartar:: isso toda hora... mas:: aí (p. 148)

(48)

L2 – (então a firma) não pode tirar das pessoas... dos seus própriosclientes não pode

tirar:::... elementos

[

L1 – pessoal

L2 – não pode tirar pessoal quer dizer então tem que ser de:: firmasestranhas...né?... (p. 164)

Em ambos os casos, L1 intervém com uma ajuda quase simultâ-nea ao fato de L2 encontrar a sua formulação, mas ao dar continuidadeao enunciado, este opta pela sugestão do interlocutor, considerando-a, porisso, mais apropriada para o contexto em questão.

Page 119: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

119

Interação na fala e na escrita

4. 3. O lugar da ruptura, na estrutura sintática em construção, e as formas de sua sinalização

4.3.1. Quanto ao lugar da ruptura na estrutura sintáticado enunciado, são dispensáveis maiores considerações, jáque se tratou dele, quando se falou da função sintática dosegmento colaborativo e, portanto, do lugar que ocupa nossintagmas oracionais e super-oracionais. Em ambos eletende a se situar à direita, isto é, no predicado do sintagmaoracional e em alguma oração subordinada do sintagmasuper-oracional. É este, conseqüentemente, também o lu-gar da ruptura do enunciado em construção.

Em favor da precisão caberia acrescentar que, quando o segmen-to colaborativo constituir o núcleo de algum sintagma sub-oracional, háuma tendência de que a interrupção ocorra depois de algum determinantedesse núcleo: depois de artigo, se o núcleo for substantivo (24); depois depreposição (às vezes seguida de ou combinada com artigo), se for com-plemento verbal indireto, adjunto adnominal, complemento nominal ouadvérbio (6), (28), (34), (35); depois do verbo auxiliar, se o núcleo for overbo principal (17); depois do pronome relativo, se o segmento colaborativofor o predicado de uma oração adjetiva (25); depois da conjunção, se foruma oração adverbial (20); depois do verbo do predicado verbal, se for ocomplemento verbal (41); depois do verbo impessoal (ter, haver), se aajuda consistir no complemento desse tipo de verbo, conforme registraeste exemplo:

(49)

L2 – porque não são pessoas que direto “eu quero falar com o Zé daSilva” e o Zé da Silva atende do outro lado... né? tem::

L1 – o secretário da secretária

[

L2 – tem secretária... que querem as/saber o porquê:: o mo-tivo que quer falar com aquela pesso::a tudo isso... né?... (p. 163)

Page 120: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

120

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

Embora existam outros lugares de ruptura do enunciado, essessão os mais freqüentes, e todos eles se caracterizam pelo fato de sugeri-rem ou até de introduzirem a ocorrência do segmento colaborativo.

4.3.2. A sinalização da ruptura ocorre por meio das maisvariadas formas de hesitação: repetições em geral, especi-almente de elementos determinantes de núcleos nominais(artigos, preposições, etc..); alongamentos vocálicos em ge-ral; pausas; uso de formas de sentido vago e indefinido nocontexto (ahn, assim, aí, lá); manutenção de um mesmonível de entonação numa seqüência de elementos coorde-nados, sugerindo a continuidade dessa seqüência. Emgeral, várias dessas formas vêm combinadas, especialmen-te repetições com alongamentos, intermeadas de pausas.Esse fenômenos muitas vezes não se revelam de repente,no lugar da ruptura. Eles vêm se manifestando no decorrerda construção do enunciado, integrados a “aproximaçõeslexicais”, à invalidação de termos inequivocamente des-cartados e a outras formas.

Registre-se também que a sinalização de ruptura não é um pedi-do explícito de colaboração por parte de F1, mas é interpretada por F2como tal. Às vezes se observa que F1 identifica a intervenção de seuinterlocutor como assalto ao turno, fato que o leva a imediatamente darcontinuidade ao enunciado, dando a entender que a referida sinalizaçãode ruptura não tinha o propósito, nem implícito, de obter a intervençãode F2.

Em alguns casos não ocorre sinalização de ruptura, entrando F2,por sua própria iniciativa, com uma sugestão formulativa em geral sobre-posta, que F1, no fluir do enunciado nele incorpora, como mostra estapassagem:

(50)

Page 121: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

121

Interação na fala e na escrita

L1 – ele joga futebol de salão... então eu expliquei direitinho que serealmente for bom vocação eu:: não impedirei de seguir...mas sópra não dizer que a gente

L2 – certo cerceou...

[

L1 – tolheu cerceou aquela:: aquela ambição dele ma::s::...deixo praticar o esporte tudo mais e deixo seguir a carreira masdesde que ele tenha uma infraestru/ estrutura cultural... senão vaiser um boboca por aí não?... (p.169)

É possível que L1 tenha interrompido, por um breve instante, ofluxo do turno com a intervenção de L2, mas este não interveio em razãode alguma interrupção de seu interlocutor.

Considerações finais

Foi objetivo deste trabalho analisar um aspecto da interação con-versacional, identificado no fato de um enunciado, constituinte de umturno, ser construído por um falante com a colaboração de seu interlocu-tor. O normal é que, numa conversação, cada falante construa individual-mente o seu turno – obviamente determinado pela presença ad hoc doouvinte –, resolvendo, passo a passo, os problemas de formulação ineren-tes a essa construção. O ouvinte acena com os assim chamados “sinaisdo ouvinte” e tenta, por sua vez, tomar o turno, seja no “lugar relevante detransição”, seja a qualquer momento, na forma de “assalto ao turno”,instalando-se, assim, a alternância de turnos, que é a própria conversa-ção. O presente estudo, como se disse, focalizou a microinteração intraturno,analisando a colaboração de um F2 na construção do turno de um F1.

Teoricamente vinculou-se este trabalho ao preceito de que qual-quer texto tem natureza interacional, já que a existência do enunciadopressupõe o enunciador, ou seja pressupõe um eu que se institui simulta-neamente a um tu. Este princípio, portanto, atribui caráter dialogal a qual-quer texto. Se, no continuum tipológico dos gêneros textuais, focalizar-se especificamente o texto conversacional, esse caráter dialogal se

Page 122: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

122

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

explicita na construção participativa do texto, por meio da alternância deturnos em situação face a face e até, como se viu, na colaboração mútuaexplícita dos interlocutores na construção de um único turno.

Metodologicamente, o estudo conduziu-se pelos princípios etno-metodológicos, à luz dos quais cabe descrever os “métodos” adotadospelos interlocutores no desenvolvimento da interação social que se realizapor meio de uma conversação. Apesar de a Etnometodologia ter interes-ses sociológicos, sua mentalidade analítica trazida para o âmbito dos estu-dos lingüísticos permite desvelar as regularidades lingüísticas que subjazemao aparente caos de uma conversação.

Uma observação geral dos dados revelou que as interações emestudo se desenvolvem em três momentos: a interrupção do enunciadoem construção; a proposta de um segmento colaborativo; a incorporaçãodesse segmento na continuidade do enunciado. Embora os três momen-tos se integrem para constituir um único fato interacional, eles foramanalisados separadamente na descrição do corpus.

Em primeiro lugar, analisou-se como ocorre a integração do seg-mento colaborativo na continuidade do enunciado interrompido. Verifi-cou-se o procedimento preferencial de que F1 aceita a sugestão de F2 ea integra em seu turno, repetindo-a ou parafraseando-a . Muito raramen-te, corrige a colaboração, rejeita-a ou a desconhece. A integração ocorrepredominantemente de forma direta, isto é, o segmento colaborativo éacrescentado ao enunciado interrompido imediatamente depois do pontode ruptura, seguindo-se com fluência o enunciado interrompido. Em ca-sos menos freqüentes, F1 retoma parte do enunciado anterior à interven-ção do interlocutor e, só então, inserindo a colaboração, o conclui. Emalguns poucos casos, a colaboração é aceita por F1 com a manifestaçãode um termo de ratificação. As ocorrências predominantes, porém, sãoas não explicitamente ratificadas.

Em segundo lugar, considerando a natureza sintático-semânticado segmento colaborativo, observou-se que a absoluta maioria das ocor-rências se submete às determinações do contexto sintático-semântico doenunciado em construção. Raramente essa determinação é desconside-rada ou com ela rompe a colaboração.

Do ponto de vista do lugar que o elemento colaborativo ocupa na

Page 123: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

123

Interação na fala e na escrita

estrutura do sintagma oracional ou super-oracional, ficou evidente queele se situa predominantemente à direita nessas estruturas – admitindo-se a ordem sujeito + predicado / oração principal + orações subordinadas– isto é, no predicado ou em alguma oração subordinada, incorrendo sópor exceção no sujeito ou na oração principal, quando, então, se verificauma inversão na ordem da estrutura dos sintagmas. Essa localização àdireita revela que o falante tenta chegar ele próprio a uma solução formu-lativa, por meio de diferentes recursos, para só então interromper o enun-ciado e, assim, ensejar ao ouvinte a oportunidade de propor um segmentocolaborativo. Esse processo em direção à formulação desejada estabele-ce um quadro de informações que, na perspectiva da articulação tema –rema, constitui o tema, isto é, a informação dada, e o termo procuradoserá o rema, ou seja, a informação nova.

Constatou-se, também, que o segmento colaborativo constitui, pre-ferencialmente, o núcleo dos sintagmas que integra, o que, do ponto devista semântico, aponta para a sua função denominadora no construçãodo enunciado.

Em terceiro lugar, no que se refere ao ponto de interrupção do enun-ciado, ele se situa à direita dos sintagmas oracionais e super-oracionais, jáque é também esse o lugar preferencial de inserção do segmento colabora-tivo. É igualmente relevante a constatação de que, quando o segmentocolaborativo constitui o núcleo de algum sintagma, o ponto de ruptura tendea ocorrer depois de algum determinante antecedente desse núcleo.

No tocante à sinalização de ruptura do enunciado, o falante recorreàs mais variadas formas de hesitação. Excetuando-se as manifestaçõesmetadiscursivas, a sinalização de interrupção do enunciado não é um pedi-do explícito de colaboração, mas é interpretada pelo ouvinte como tal.

A análise feita não teve a pretensão de ser exaustiva e, por isso, asconclusões não devem ser vistas como definitivas. É importante que oestudo prossiga, analisando um conjunto de dados maior, mas as estrutu-ras preferenciais que aqui se observaram apresentam incidência tal que épouco provável não se confirmarem numa análise mais abrangente.

Page 124: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

124

HILGERT, José Gaston. A colaboração do ouvinte na construção...

Referências bibliográficas

BARROS, Diana L. P. de (1990). Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática.BLANCHE-BENVENISTE, Claire (1990) Le français parlé: études gramaticales.

Paris: CNRS.CASTILHO, Ataliba. T. de & PRETI, Dino (1987). A linguagem falada culta na

cidade de São Paulo: diálogos entre dois informantes. São Paulo: T. A. Queiroz /FAPESP.

COULON, Alain (1995). Etnometodologia. Petrópolis: Vozes.GARFINKEL, Harold (1967). Studies in Ethomethodology. Englewood Cliffs (New

Jersey): Prentice-Hall.GÜLICH, Elisabeth (1986). L, organisation conversationnelle des enoncés inachevés

et de leurs achèvement interactif en ´situation de contact´. DRLAV Revue deLinguistique 34-5, 161-82.

GÜLICH, Elisabeth (1987). L´approche ethnométhodologique dans l´analyse de fran-çais parlé: description des séquences conversationelles d´éxplication. Freiburg(Alemanha): Congresso de Romanística.

HILGERT, José Gaston (1993). Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In:Preti, Dino (org.). Análise de textos orais. São Paulo: FFLCH / USP.

HILGERT, José Gaston (1997). A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre:diálogos entre informante e documentador. Porto Alegre / Passo Fundo: Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade de Passo Fundo.

JUBRAN, Clélia C. A. S. (2000). A materialização lingüística da busca de denomina-ções em textos falados. Revista do GELNE. Fortaleza: UFC/GELNE, vol. 1, n. 2.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine (1995). Les interactions verbales (tome 1).Paris: Armand Colin.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (1987). Marcadores conversacionais no portuguêsbrasileiro: formas, posições e funções. Freiburg (Alemanha): Congresso deRomanística.

Page 125: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

INTERAÇÃO, GÊNERO E ESTILO

Beth Brait

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduossocialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razãopela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organizaçãosocial de tais indivíduos como pelas condições em que a interaçãoacontece.

(Bakhtin/Voloshinov)

A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontraoutra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não sejadireta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela literatura.

(Bakhtin/Voloshinov)

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim comotambém não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação dolocutor e do receptor produzido através do material de um determinadocomplexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quandohá contato dos dois pólos opostos.

(Bakhtin/Voloshinov)

Page 126: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

126

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

1. Considerações iniciais: retomando caminhos

Em artigos anteriores (Brait, 1997, 1998, 1999), tratei do proces-so interacional a partir de duas vertentes teóricas básicas, a saber, Análiseda Conversação e Análise Dialógica do Discurso, focalizando textos ex-traídos do material do Projeto NURC-SP. Neste trabalho, pretendo reto-mar a temática da interação tal qual foi tratada por Bakhtin e seu círculo,tendo por objetivo a ampliação e aprofundamento de alguns aspectos,considerando, para esse fim, dois outros conceitos relacionados à fonteteórica de base: gênero e estilo.

Assim sendo, o enfoque teórico recairá numa espécie de revisãodo conceito de interação estabelecido pela análise dialógica do discurso,1

bem como na maneira como a gênese desse conceito se articula com adiscussão a respeito de estilo e gêneros discursivos. Serão focalizados,aqui, três textos: Discurso na arte e discurso na vida (1926), Marxismoe filosofia da linguagem (1929) e “O problema dos gêneros discursivos”(1979). Os dois primeiros, assinados Bakhtin/Voloshinov, já na décadade vinte do século passado, inauguraram uma reflexão sobre o discurso,tanto na vida quanto na arte, apontando de maneira contundente para aimportância de um olhar mais atento para o fenômeno da interação, con-siderado como aspecto constitutivo da linguagem e, necessariamente,como fator a ser priorizado na análise e descrição de todas formas dediscurso e não apenas no diálogo enquanto estrutura de texto. É tambémnesses dois primeiros textos que se pode observar as relações estabeleci-das entre gramática e estilística, tomadas as duas de maneira diferentedos posicionamentos clássicos apresentados até aquele momento, e, con-seqüentemente, introduzindo novas perspectivas sobre estilo e gêneros,temas que, hoje, reaparecem sob várias formas nos estudos sobre a lin-guagem.

1 A Análise dialógica do discurso está sendo considerada aqui, como já explicitei em ou-tros trabalhos, um conjunto de procedimentos analíticos, um arcabouço teórico que, em-bora não formando um corpo acabado de conceitos e formas de aplicação, está articuladono conjunto das obras de Mikhail Bakhtin e seu círculo, independentemente da discussãoa respeito da autoria individual de cada trabalho.

Page 127: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

127

Interação na fala e na escrita.

O terceiro texto foi escolhido na medida em que vai colocar aquestão dos gêneros discursivos como temática central, retomando osaspectos que já estavam anunciados nos dois anteriores e estabelecendoa articulação com os demais aspectos que caracterizam a concepção delinguagem do círculo de Bakhtin e que, neste trabalho, estão circunscri-tos à interação e a estilo. Por uma série de circunstância, não serão discu-tidos outros livros, como é o caso, por exemplo, de Problemas da poéti-ca de Dostoiévski, que vai esmiuçar e particularizar a questão do estilono gênero “romance polifônico”. O alvo recairá sobre os textos de 26 ede 29, considerados fundadores da idéia de interação como constitutivada natureza da linguagem e sobre “O problema dos gêneros discursivos”que retoma e mobiliza interação a partir de gêneros e estilo.

2. Primeira fonte teórica do conceito de interaçãoem consonância com estilo e gênero

Em Discurso na arte e discurso na vida, texto que tem por objeti-vo “tentar alcançar um entendimento do enunciado poético, como umaforma desta comunicação estética especial, verbalmente implementada”,há dois aspectos que chamam a atenção de imediato: o primeiro é a afir-mação de que “para fazer isso [estudar o enunciado poético] nós precisa-mos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados verbaisfora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidia-nas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades daforma artística”. Isso significa, já em 1926, a presença de uma caracterís-tica que acompanhará toda a obra de Bakhtin e seu círculo que é a de,tendo como motivação o discurso literário, o discurso poético, procedera observações do discurso não artístico, cotidiano, para, em seguida, vol-tar às especificidades do discurso literário e/ou poético. Esse procedi-mento peculiar, que enfoca a linguagem como um todo e, por isso, passapelo estudo de processos gerais para em seguida situá-los no discursoliterário, beneficia tantos os estudos lingüísticos, no sentido discursivo e

Page 128: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

128

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

enunciativo praticados hoje, quanto os estudos literários. Se isso vai ficarclaro nas duas grandes obras assinadas Bakhtin, que são Problemas dapoética de Dostoiévski (primeira edição de 1929 e a segunda em 1963) eA cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto deFrançois Rabelais (1965), na verdade essa postura começa a ganhar cor-po nesse texto da segunda metade da década de 20 do século passado.

O segundo aspecto diz respeito à maneira como o conceito deinteração, considerado enquanto processo verbal e processo social, co-meça a ganhar um lugar muito especial na reflexão bakhtiniana, o quemais tarde também estará refletido no conjunto dos trabalhos do círculo,assinalando um conceito tão importante na concepção de linguagem eseu tratamento quanto os de dialogismo e polifonia.

Assim, a primeira vez que o termo interação aparece no texto de1926, ele se insere num contexto de discussão que diz respeito à formacomo o método sociológico, um dos objetos privilegiados pelo texto,pode estudar a “interação causal entre a literatura e seu meio social extraartístico circundante”, apontando para o fato de que “uma obra de arte,vista do lado de fora desta comunicação [da base comum a ela e a outrasformas sociais,] e independentemente dela, é simplesmente um artefatofísico ou um exercício lingüístico. Ela se torna arte apenas no processode interação entre criador e contemplador, como o fator essencial nessainteração”. O que se observa, de imediato, é que mesmo sendo a literatu-ra e a valorização do método sociológico os objetos centrais de estudo, otexto se encaminha para uma visão mais ampla em que a comunicaçãoliterária é vista no conjunto das demais formas de comunicação caracte-rísticas de uma sociedade: “esta forma única de comunicação não existeisoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete abase econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com ou-tras formas de comunicação”, como afirma o autor.

Essas afirmações estão diretamente ligadas ao confronto que otexto vai estabelecendo com o “método formal”, entendido como umapostura teórica que se preocupa com a arte pela arte”, com se “o criadorda obra e seus contempladores permanecessem fora do campo de in-vestigação” e que, por restringir-se à forma, não dá conta do discurso

Page 129: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

129

Interação na fala e na escrita.

verbal como um fenômeno de comunicação cultural que só pode sercompreendido na situação social que o engendra. Para discutir esses as-pectos, o autor vai apoiar-se no discurso verbal não literário, afirmandoque “na vida, o discurso verbal é claramente não autosuficiente. Ele nas-ce de uma situação pragmática extraverbal e mantém a conexão maispróxima possível com a situação” (p. 4)

Nesse sentido, há dois outros conceitos difíceis de serem apreen-didos em sua especificidade, mas que são fundamentais para essa pers-pectiva interacional, diferente de outras que virão mais tarde:2 situaçãoextraverbal ou contexto extraverbal e entonação.

O primeiro, situação extraverbal ou contexto extraverbal vai serdefinido a partir de três fatores que envolvem o enunciado, ou seja, “ohorizonte comum dos interlocutores”, “o conhecimento e a compreen-são comum da situação por parte dos interlocutores” e a “avaliação co-mum dessa situação”. A aceitação desses três fatores como constitutivosda interação implica, necessariamente, o que está “presumido” num dis-curso, num enunciado concreto, aquilo que não está necessariamente ex-plícito, e que se pode confirmar a partir da compreensão de que “o dis-curso analisa a situação, produzindo uma conclusão avaliativa”. Dessaforma, o conceito de entonação, avaliação, julgamento, aparece comorelação constitutiva entre o dito do enunciado concreto e o não dito do“horizonte extraverbal”, definindo os interlocutores (seja qual for a natu-reza do enunciado) como co-participantes e a situação extraverbal comointegrada ao enunciado e, portanto, parte essencial da estrutura de signi-ficação desse enunciado. Nas análises efetuadas em trabalhos anterioressobre a interação (Brait, 1997, 1998, 1999) foram justamente esses osaspectos analisados em seus detalhes, especialmente no que diz respeitoaos interlocutores pertencerem ou não à mesma classe ou grupo social,terem ou não idade aproximada, constituírem a situação, nela interferin-do ativamente, e, o que é fundamental, pelas formas lingüísticas, enun-ciativas e discursivas mobilizadas nos textos em questão, deixar transpa-

2 Refiro-me aqui, por exemplo, aos trabalhos de Goffman, Gumperz e à Análise Conversa-cional em seus primórdios.

Page 130: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

130

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

recer os julgamentos de valor, de forma explícita ou não, permitindo aoanalista recuperar índices de um contexto mais amplo, do imaginário edas memórias discursivas postas em movimento.

Voltando ao texto de 26, a partir de afirmações iniciais referentesà literatura e à maneira como o método sociológico poderá tratar adequa-damente da interação entre “texto e contexto”, para utilizar uma fórmulacorrente ainda que frágil, o que se estabelece é que a idéia de interaçãopode ser um pouco mais particularizada, pode estar situada num lugarainda mais condizente com a natureza de um texto, de um discurso, queé o das relações necessárias existentes entre criador e contemplador.Esses dois aspectos – “interação texto/contexto” e “interação criador/contemplador” é que vão ganhar corpo, refinar-se ao longo desse texto e,mais tarde, no conjunto dos trabalhos bakhtinianos, para construir umconceito de interação que, de forma coerente, respalda conceito de dialo-gismo, instalando-se de maneira definitiva e necessária na discussão arespeito das formas de conceber, enfrentar e trabalhar a materialidade dalinguagem enquanto fenômeno histórico-social.

Em função dessa postura que apresenta a possibilidade de focali-zar a questão da interação em outras formas de comunicação que não aliterária, a afirmação de que “qualquer locução realmente dita em vozalta ou escrita para uma comunicação inteligível (isto é, qualquer umaexceto palavras depositadas num dicionário) é a expressão e produto dainteração social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor(leitor) e o tópico (o que ou o quem) da fala (o herói)” [destaques emitálico no texto], explicita ainda mais não apenas os componentes bási-cos do processo interacional com também a sua natureza escrita e falada,literária e não literária, articuladas na fórmula – falante, interlocutor,tópico –, constituída a partir da linguagem falada, e mais uma espécie desinônimos entre parênteses, constituídos de termos da escrita literária –autor, o que ou quem, tópico. A formulação prioriza a linguagem comoum todo e coloca a escrita e o discurso literário como nela inseridos.

E é nesse caminho que o discurso verbal passa a ser definido como“um evento social: ele não está autoencerrado no sentido de alguma quanti-dade lingüística abstrata, nem pode ser derivado psicologicamente da

Page 131: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

131

Interação na fala e na escrita.

consciência subjetiva do falante tomada em isolamento”, afirmação quese apóia necessariamente em uma concepção interacional da linguagem,antecipando o conceito de alteridade, de “outro”, constitutivamente pre-sente no discurso e suporte da teoria bakhtiniana.

Na seqüência do texto, há formulações que expressam a perspec-tiva enunciativo-discursiva em que a concepção de interação se insere eque apontam para os aspectos que interligam particularidades de umaenunciação concreta, quer literária ou não, enquanto forma e produçãode sentidos, situação específica, contexto mais amplo, especificidadesdos participantes, etc., como é o caso das transcritas a seguir e que, hoje,são moedas correntes quando se fala de interação:

O enunciado concreto (e não a abstração lingüística) nasce, vive e mor-re no processo da interação social entre os participantes da enunciação.Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma ecaráter desta interação. Quando cortamos o enunciado do solo real queo nutre, perdemos a chave tanto de sua forma quanto de seu conteúdo –tudo que nos resta é uma casca lingüística abstrata ou um esquemasemântico igualmente abstrato (a banal “idéia da obra”, com a quallidaram os primeiros teóricos e historiadores da literatura) – duas abs-trações que não são passíveis de união mútua porque não há chão con-creto para sua síntese orgânica.

(...) O significado e a importância de um enunciado na vida (seja qualfor a espécie particular deste enunciado) não coincide com a composi-ção puramente verbal do enunciado. Palavras articuladas estão impreg-nadas de qualidades presumidas e não enunciadas. O que se chama de“compreensão” e “avaliação” de um enunciado (concordância oudiscordância) sempre engloba a situação pragmática extraverbal junta-mente com o próprio discurso verbal. A vida, portanto, não afeta umenunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado dedentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda osfalantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmentesociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligívelé possível. A enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto ver-

Page 132: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

132

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

bal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma situa-ção da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisalingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráterúnico. Finalmente, o enunciado reflete a interação social do falante, doouvinte e do herói como o produto e a fixação, no material verbal, deum ato de comunicação viva entre eles. (p. 9).

Nessas afirmações, é necessário observar um aspecto fundamen-tal para a discussão empreendida neste trabalho. Aí se inaugura, a partirda instauração da análise da interação como fator fundamental para osestudos da linguagem, um duplo diálogo com duas grandes vertentesteóricas: por um lado o método formal, que pode ser identificado tantocom o formalismo literário quanto com a lingüística formal, para nãodizer estruturalista; por outro, e paralelamente, com a Estilística. Essafrutífera discussão, que vai se desenvolver de maneira organizada e siste-mática na obra Marxismo e filosofia da linguagem, já está instalada aí,acompanhando todo o pensamento bakhtiniano e possibilitando a articu-lação das noções de interação, gênero e estilo, como se verá ao longodeste trabalho.

Ainda no mesmo texto, depois de tratar de maneira detalhada da“forma em relação com seu conteúdo”, considerando-a como a “avalia-ção social corporificada de um conteúdo preciso”, produto de uma inte-ração social, Bakhtin/Voloshinov vai assinalar que essa mesma formapode ser compreendida por um outro ângulo, isto é, “como forma reali-zada a partir de um material específico”. Nessa direção, vai apresentaruma série de questões relacionadas com o que denomina aspecto técnicoda forma e que, apesar de serem exemplificadas unicamente com a lite-ratura, servem de ponto de partida para a articulação entre interação eestilo enquanto elementos específicos das particularidades das enuncia-ções, dos enunciados concretos, do conjunto de enunciados que consti-tuem uma obra ou um discurso, do conjunto das obras de um autor, oumesmo de um conjunto de textos produzidos dentro de uma atividadeespecífica, como poderia ser o caso dos diferentes gêneros que com-põem o Projeto NURC-SP – elocuções formais, diálogos, entrevistas –,

Page 133: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

133

Interação na fala e na escrita.

ou das transações de serviço3 ou, ainda, das enunciações caracterizadascomo dedicatórias, ou seja, homenagem que um autor faz a alguém pormeio de uma inscrição impressa em sua obra. Enfim, qualquer tipo deenunciado, aqui tomado ainda como sinônimo de texto e de discurso.Nesse sentido, os seguintes trechos são exemplares:

O autor, herói e ouvinte de que estamos falando todo esse tempo de-vem ser compreendidos não como entidades fora da própria percepçãode uma obra artística, entidades que são fatores constitutivos essenciaisda obra. Eles são a força viva que determina a forma e o estilo e sãodistintamente detectáveis por qualquer contemplador competente. Istosignifica que todas aquelas definições que um historiador da literaturae da sociedade poderia aplicar ao autor e seus heróis – a biografia doautor, as qualificações precisas dos heróis em termos cronológicos esociológicos, etc. – estão excluídas aqui: elas não entram diretamentena estrutura da obra, mas permanecem do lado de fora. O ouvinte, tam-bém, é entendido aqui como o ouvinte que o próprio autor leva emconta, aquele a quem a obra é orientada e que, por conseqüência, intrin-secamente determina a estrutura da obra. Portanto, de modo algum nósnos referimos às pessoas reais que de fato formam o público leitor doautor em questão (p. 11).

(...)

todos os elementos do estilo de uma obra poética estão também im-pregnados da atitude avaliativa do autor com relação ao conteúdo eexpressam sua posição social básica. Frisemos uma vez mais que aquinão nos referimos àquelas avaliações ideológicas que estão incorpora-das no conteúdo de uma obra na forma de julgamentos ou conclusões,mas àquela espécie mais entranhada, mais profunda de avaliação viaforma que encontra expressão na própria maneira pela qual o materialartístico é visto e disposto. (p. 11-2).

3 Refiro-me aqui, por exemplo, ao trabalho de Florence Casolari, intitulado “Stratégieslangagière pour requête illégitimes dans les transactions de services” (Vion, 1998).

Page 134: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

134

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

Nas páginas finais do texto, a articulação entre interação e estilovai estar diretamente associada à “esfera de atividade”, aspecto que con-solida a reflexão sobre os gêneros, sobre as diferentes formas discursivasmais ou menos estáveis, que estão associadas às diferentes e variadasatividades humanas. Nesse sentido, como o mote é a atividade literária,os exemplos são extraídos daí, mas de forma a encaminhar a possibilida-de de extensão para outras atividades, desde que retomemos a fórmulaestabelecida para a interação, transcrita no início deste trabalho – intera-ção social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor)e o tópico (o que ou o quem) da fala (o herói).

O estilo do poeta é engendrado do estilo de sua fala interior, o qual nãose submete a controle, e sua fala interior é ela mesma o produto de suavida social inteira, “O estilo é o homem”, dizem; mas poderíamos di-zer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, umapessoa mais seu grupo social na forma do seu representante autorizado,o ouvinte – o participante constante na fala interior e exterior de umapessoa. p. 13)

(...)

O segundo fator determinante do estilo na inter-relação entre herói ecriador é o grau de sua proximidade recíproca. Todas as línguas possu-em meios gramaticais diretos de expressão deste aspecto: primeira, se-gunda e terceira pessoas e estrutura de sentença variável de acordo coma pessoa do sujeito (“eu” ou “você” ou “ele”). A forma de uma propo-sição sobre uma terceira pessoa, a forma de um tratamento de umasegunda pessoa, a forma de um enunciado sobre si próprio (e suas mo-dificações) já são diferentes em termos de gramática. Assim, aqui aprópria estrutura da língua reflete o evento da inte-relação entre os fa-lantes. (p. 16)

Assim, nesse primeiro texto, o conceito de interação não apenasse instala de maneira definitiva na concepção de linguagem que vai ori-entar o que estamos denominando análise dialógica do discurso, mas vai

Page 135: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

135

Interação na fala e na escrita.

anunciar também a possibilidade e mesmo a necessidade de se pensarformas discursivas e estilo a partir desse componente fundamental dalinguagem. Esse caminho, que implica olhar para a materialidade verbale extraverbal constitutivas de uma enunciação, de um enunciado concre-to, reinstauram a discussão a respeito da estilística e da gramática/lin-güística, assim como de suas fluidas fronteiras.

3. Segunda fonte teórica do conceito de interaçãoem consonância com estilo e gênero

En sentido estricto, toda la teoría de El marxismo y la filosofía dellenguaje se centra en la noción básica que toda interacción verbal odiálogo (en el sentido más amplio) es la realidad básica del lenguaje, yel enunciado la unidad básica de análisis. Bajtin/Voloshinov desarrollauna teoría semiótica social más que a sociologia, que enfatiza el procesomás que el sistema, y la función más que la esencia. De ahí la polémicacom Vossler y Croce por “expresionistas” y con Saussure por “objetivistaabstracto” (Zavala, 1992: 14-5)

Essa afirmação de Iris Zavala, que aparece na edição espanhola deMarxismo e filosofia da linguagem, reforça a idéia de que a interação é,de fato, o caminho essencial que impulsiona as reflexões apresentadaspela obra e que, enquanto dimensão linguageira, articula-se constitutiva-mente ao conceito de dialogismo. Além disso, também fica patente ofato de que a polêmica com as duas grandes vertentes dos estudos dalinguagem acontece em função dessa concepção interacional da lingua-gem, que vem sendo anunciada desde o texto de 1926 e que aqui vaiassumir suas reais proporções.

Por outro lado, e para dar continuidade às relações que vão seestabelecendo entre interação e estilo, em Marxismo e filosofia da lin-guagem, tanto na edição francesa quanto na brasileira, há um prefácio deMarina Yaguello e nele a lingüista afirma que na terceira parte do livro,momento em que o autor trata das formas de transmissão do discurso de

Page 136: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

136

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

outrem, ele “busca demonstrar a natureza social e não individual dasvariações estilísticas”, na medida em que “a maneira de integrar ‘o dis-curso de outrem’ no contexto narrativo reflete as tendências sociais dainteração verbal numa época e num grupo social dado”, não havendo,portanto, fronteira clara entre gramática e estilística: “a análise estilística,parte integrante da lingüística, aparece como a preocupação essencial deBakhtin”.

Por mais que seja curioso atribuir a Bakhtin um peso significativopara uma certa estilística que emana de sua obra, justamente por seustrabalhos estarem inseridos numa perspectiva histórico-social, voltadamuito mais para a alteridade e para o dialogismo como característicasconstitutivas da linguagem, e muito menos para a questão da subjetivida-de, das idiossincrasias de um escritor, a afirmação de Yaguello se confir-ma, não apenas no conjunto dos trabalhos de Bakhtin, mas no parágrafofinal do prólogo e, também, no penúltimo capítulo de Marxismo e filoso-fia da linguagem, transcritos a seguir:

Portanto, a orientação de nosso trabalho vai do geral ao particular, doabstrato ao concreto: das questões de filosofia geral às questões de lin-güística geral; a partir disso, abordamos, finalmente, uma questão es-pecífica que diz respeito tanto à gramática (sintaxe) quanto à estilística.(p. 28).

(...)

É nas variantes que se acumulam as mudanças, no curso dos séculos edos decênios, e que se estabilizam os novos hábitos da orientação ativaem relação ao discurso de outrem, os quais se fixam em seguida sob aforma de representações lingüísticas duráveis nos esquemas sintáticos.As variantes se encontram na fronteira da gramática e da estilística.Algumas vezes, pode haver controvérsia quanto a saber se uma formade transmissão do discurso de outrem constitui um esquema de base ouuma variante, se se trata de uma questão de gramática ou de estilística.Houve, por exemplo, uma controvérsia dessa ordem a respeito do dis-curso indireto livre em francês e em alemão entre Bally, por um lado, e

Page 137: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

137

Interação na fala e na escrita.

Kalepky e Lorck, por outro. Bally recusava-se a reconhecer no discur-so indireto livre um legítimo esquema sintático e via-o como uma sim-ples variante estilística. Do nosso ponto de vista, é impossível estabele-cer uma fronteira estrita entre a gramática e a estilística, entre o esquemagramatical e sua variante estilística. Essa fronteira é instável na própriavida da língua, onde algumas formas se encontram num processo degramaticalização, enquanto outras estão em vias de desgramaticalização,e essas formas ambíguas, esses casos limítrofes, é que apresentam mai-or interesse para o lingüista; é justamente neles que se podem captar astendências da evolução da língua. (p. 156).

O que deve ser destacado, e que aqui nos interessa de fato, é queseu conceito de estilo, as propostas do autor para o estudo da dimensãoestilística, nada tem a ver, por um lado, com desvio, ou unicamente comas especificidades da obra literária, na medida em que estilo é pensadoem toda e qualquer forma de comunicação, como se verá, explicitamen-te, no texto sobre os gêneros discursivos. Por outro, nada tem a ver comautor biográfico, com aspectos psicológicos ou psicologizantes, mas comum enfoque específico sobre o discurso, os textos, as formas lingüísticas,enunciativas, discursivas que, reiteradas, modificadas, retomadas, apon-tam para o estilo genérico (aspectos que podem caracterizar um determi-nado conjunto de textos que formam um gênero), ou estilo de época, ou,ainda, para o enunciador, “efeito desse conjunto”, o que se chamaria emsemiótica greimasiana de “ator da enunciação”, “efeito de sujeito”,4 eque Foucault denomina “função autor”.5

A transcrição de uma nota de rodapé existente no final da últimacitação feita acima, na medida em que traduz o ponto de vista bakhtinianosobre as relações existentes entre os estudos lingüísticos/gramaticais/estilísticos, ajuda a perceber a maneira como as questões das relaçõesexistentes entre interação, estilo e gênero vão sendo construídas e comouma certa condução da análise pode levar a especificidades lingüísticas,

4 Para conferir esses conceitos, consultar a tese de doutorado Estilo e Semiótica, de NormaDiscini de Campos. (DL/FFLCH/USP).

5 “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcio-namento de alguns discursos no interior de uma sociedade” (Foucault, 1992: 46).

Page 138: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

138

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

enunciativas e discursivas de um determinado corpus, o que implica umaverdadeira interação entre diferentes níveis de descrição e interpretação.Nesse caso específico, ele vai se apoiar na tradição dos estudos estilísticos,numa de suas vertentes mais prestigiadas e discutidas, apontando, comosempre, para o que há de inaugural e próximo de suas teorias, e em que asposições se distanciam:

Ouve-se freqüentemente criticar Vossler e os vosslerianos porque elesse ocupam mais de estilística do que de lingüística propriamente dita.Na realidade, a escola de Vossler se interessa por problemas que estãonos limites das duas disciplinas, porque compreendeu a sua importân-cia metodológica e heurística, e nós vemos nisso razão para admirá-la.Infelizmente, os vosslerianos, como sabemos, colocam em primeiroplano os fatores subjetivos psicológicos e os dados estilísticos indivi-duais quando tentam explicar esses fenômenos (p. 156).

Portanto, não se pode imaginar que essa recuperação da estilísticaseja unicamente uma forma de oposição. Na verdade, a análise dialógicado discurso, que está sendo construída paulatinamente, é bem mais queuma versão de um método sociológico de análise literária: considerado oconceito de interação, tal qual anunciado até aqui, e que terá importantesdesdobramentos ao longo do conjunto da obra, a questão do estilo vai-secolocar como elemento fundamental, distanciando-se de uma perspecti-va psicológica e autoral, contribuindo para a explicitação e fundamenta-ção da perspectiva interacional e dela alimentando-se para definir suanatureza. O estilo tanto aparecerá como “estilo de produção literária oucientífica”, quanto conjuntos de aspectos que caracterizam um gênerodiscursivo ou, ainda, como traços particulares, reincidentes, que, numdeterminado momento, desestabilizam ou mobilizam determinado gê-nero, caso que será exemplificado largamente com o romance polifônico.

Assim sendo, além do sexto capítulo de Marxismo e filosofia dalinguagem, que é dedicado especificamente à interação verbal, sua defi-nição, suas características e sua importância para os estudos da lingua-gem, a expressão “interação verbal” aparece já no segundo capítulo que,

Page 139: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

139

Interação na fala e na escrita.

apesar do título marcado pela ortodoxia marxista “Relação entre a infra-estrutura e as superestruturas”, é um excelente momento de introduçãode aspectos específicos da relação interação/gênero/estilo. Ao referir-seà psicologia do corpo social, segundo a perspectiva marxista, o autorexplica em que sentido entende esse conceito:

O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui, segun-do a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas, uma espécie deelo de ligação entre a estrutura sócio-política e a ideologia no sentidoestrito do termo (ciência, arte, etc.), realiza-se, materializa-se, sob aforma de interação verbal. Se considerada fora deste processo real decomunicação e de interação verbal (ou, mais genericamente, semióti-ca), a psicologia do corpo social se transforma num conceito metafísicoou mítico (a “alma coletiva”, “o inconsciente coletivo”, “o espírito dopovo”, etc.).

A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dosatos de fala de toda espécie, e é neste elemento que se acham submersastodas as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta: as con-versas de corredor, as trocas de opinião no teatro e, no concerto, nasdiferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo dereação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulamenta-ção social, etc. A psicologia do corpo social se manifesta essencial-mente nos mais diversos aspectos da “enunciação” sob a forma dediferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores. Estecampo não foi objeto de nenhum estudo até hoje. Todas estas manifes-tações verbais estão, por certo, ligadas aos demais tipos de manifesta-ção e de interação de natureza semiótica, à mímica, à linguagem gestual,aos gestos condicionados, etc. (p. 41-2).

É também nesse capítulo que o autor faz referência às formas deinteração verbal, não apenas vinculando-as às condições de uma situa-ção social dada, mas também anunciando que, em outro momento trataráda questão dos gêneros lingüísticos, em conexão com o problema daenunciação e do diálogo:

Page 140: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

140

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

A este respeito faremos simplesmente a seguinte observação: cada épocae cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comu-

nicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes aomesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde umgrupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo, rela-ções entre colaboradores num contexto puramente técnico), a forma deenunciação (“respostas curtas” na “linguagem de negócios”) e enfim otema, existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir. Eis por-

que a classificação das formas de enunciação deve apoiar-se sobre

uma classificação das formas da comunicação verbal (...) Uma análiseais minuciosa revelaria a importância incomensurável do componentehierárquico no processo de interação verbal, a influência poderosa queexerce a organização hierarquizada das relações sociais sobre as for-mas de enunciação. O respeito às regras da “etiqueta”, do “bem-falar” e

as demais formas de adaptação da enunciação à organização hierarquizadada sociedade têm uma importância imensa no processo de explicitaçãodos principais modos de comportamento. (p. 43)

Na busca de uma maior explicitação do processo interacional, oautor vai articulá-lo, ao longo de toda a obra, com alguns outros concei-tos fundamentais para a análise dialógica do discurso, como é o caso de“enunciação”, “outro”, “dialogismo”, dialogando diretamente com asvertentes mencionadas – método formal em suas várias versões eestilística- , na medida em que ambas, segundo o autor, desconsideram ainteração para efeito de análise literária e lingüística.

No caso da enunciação, se até esse momento da reflexão bakhti-niana a expressão “enunciado concreto” dava conta, ao mesmo tempo,do processo de produção do enunciado e dele enquanto produto, aqui otermo enunciação surge para situar melhor a perspectiva interacionaldelineada. Assim, a enunciação vai ser definida como um produto dainteração social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situaçãoimediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das con-dições de vida de uma determinada comunidade lingüística. Essa distin-ção é muito importante, na medida em que o conceito de interação/enun-ciação bakhtiniano não coincide necessariamente com outras concepções

Page 141: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

141

Interação na fala e na escrita.

interacionistas que circunscrevem a situação como a instância centralpara a produção e compreensão de sentidos. Ao apontar para “um con-texto mais amplo”, Bakhtin já acena com a participação do interdiscurso,ou seja, da história e da memória, nem sempre explícitas na situação,mas sem dúvida participantes ativas da produção de sentidos. É possívelobservar essa explicitação na seguinte passagem:

Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduossocialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real,este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social aoqual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela éfunção da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoado mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hie-rarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais oumenos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutorabstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem nosentido próprio nem no figurado (p. 112).

Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma impor-tância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces.Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelofato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produtoda interação do locutor e do ouvinte. (p. 113).

A discussão em torno do conceito de outro enquanto interlocutoré feita levando em conta a maneira como o “subjetivismo individualis-ta”, isto é, a tradição estilística evocada no texto, e o “objetivismo abstra-to” tratam desse aspecto, salvaguardando, de certa maneira, algumasposições, especialmente dos vosslerianos, que iniciaram uma aborda-gem do diálogo, mas que, ao fim e ao cabo, realizaram descrições psico-lógico-descritivas, insistinto, segundo o autor, na realidade monológicada linguagem. O que deve ser considerado, neste ponto da discussão, éque a crítica recai no fato de que a reflexão promovida por essa estilísticapermanece na dimensão monológica, centrada nas descrições psicológi-cas e no “expressionismo”:

Page 142: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

142

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

O subjetivismo individualista está errado em tomar, da mesma maneiraque o objetivismo abstrato, a enunciação monológica como seu pontode partida básico. É verdade que alguns vosslerianos começaram a abor-dar o problema do diálogo, o que os leva a uma compreensão maisjusta da interação verbal. Citaremos por exemplo o livro de Leo Spitzer,Italienische Umgangsprache, onde se encontra uma tentativa de análi-se das formas de italiano utilizado na conversação, em estreita ligaçãocom as condições de utilização e sobretudo com a situação social dointerlocutor. O método de Leo Spitzer, contudo, é psicológico-descriti-vo. Ele não tira de sua análise nenhuma conclusão sociológica coeren-te. A enunciação monológica permanece a base da realidade lingüísti-ca para os vosslerianos. (122)

Otto Dietrich colocou com grande clareza o problema da interação ver-bal. Toma como ponto de partida a crítica da teoria de enunciação comomeio de expressão. Para ele, a função central da linguagem não é aexpressão, mas a comunicação. Isso o leva a considerar o papel doouvinte. O par locutor-ouvinte constitui, para Dietrich, a condição ne-cessária da linguagem. Contudo, ele partilha essencialmente as premis-sas psicológicas do subjetivismo individualista. Além disso, as pesqui-sas de Dietrich são desprovidas de qualquer base sociológica bemdefinida. (p. 122-3)

E é descartando a possibilidade de uma enunciação monológica ecentrando a verdadeira substância da língua no fenômeno social da inte-ração verbal, realizada por meio de enunciações, que o autor chega aoconceito de dialogismo, de diálogo não apenas como uma das formas daenunciação, enquanto estrutura de texto, mas como condição de lingua-gem:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senãouma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação ver-bal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido am-plo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoascolocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipoque seja. (123)

Page 143: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

143

Interação na fala e na escrita.

A questão da interação na escrita (qualquer texto impresso), e dainsistência num conceito que também sustentará a questão dos gênerosque é “esfera de atividade”, aparece aqui de maneira bastante clara, maspoucas vezes recuperada. Para o autor, “o ato impresso” é um elementoda comunicação verbal e, neste sentido, configura-se, enquanto existên-cia, como objeto de discussões ativas. Ele depende, como qualquer outrainteração verbal, da recepção ativa e da esfera em que se dá sua produ-ção, circulação e recepção. Isso significa considerar essa interação nãoapenas no momento em que um texto é institucionalmente estudado oudivulgado, no sentido acadêmico e jornalístico, digamos assim, mas tam-bém a interação enquanto diálogo que esse texto estabelece com o leitorcomum, que não necessariamente terá de se expressar sobre ele. Aqui aoexplicitar que a interação não diz respeito unicamente ao discurso oral, oque é um grande avanço e que levou tempo para ser assimilado, o autorinclui aspectos referentes às diferentes possibilidades de interação pro-movidas por um mesmo ato impresso, dependo da esfera de atividade.

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemen-to da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a for-ma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneiraativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro dodiscurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas,que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críti-cas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores,etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientadoem função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade,tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre portan-to da situação particular de um problema científico ou de um estilo deprodução literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parteintegrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele respondea alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções po-tenciais, procura apoio, etc. (p. 123)

Além disso, é também nesse momento que aparece a perspectivado outro enquanto discurso e interdiscurso, enquanto constitutivo da

Page 144: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

144

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

linguagem, na medida em que o autor situa o texto impresso, ou suasdiferentes formas de produção, circulação e recepção em diferentes esfe-ras, como resposta a outras interações da mesma natureza e, ao mesmotempo, como decorrente de um estilo ou de um confronto de estilos ouproblemas científicos, por exemplo. Essa característica dialógica da lin-guagem será, evidentemente, estendida para qualquer enunciação, paratodas as formas de interação verbal, reforçando a idéia de que há neces-sidade de diferenciar, e ao mesmo tempo de integrar sem identificar, asituação específica em que se dá a interação, e que é necessariamenteintegrante dessa interação e não simplesmente sua causa, de um contextohistórico, cultural e social mais amplo:

Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, cons-

titui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal inin-terrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, àpolítica, etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui, porsua vez, apenas um momento na evolução contínua, em todas as dire-ções, de um grupo social determinado. Um importante problema de-corre daí: o estudo das relações entre a interação concreta e a situação

extralingüística – não só a situação imediata, mas também, através dela,o contexto social mais amplo. Essas relações tomam formas diversas, eos diversos elementos da situação recebem, em ligação com uma ououtra forma, uma significação diferente (assim, os elos que se estabele-cem com os diferentes elementos de uma situação de comunicação ar-tística diferem dos de uma comunicação científica). A comunicaçãoverbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vín-culo com a situação concreta. A comunicação verbal entrelaça-seinextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com elessobre o terreno comum da situação de produção. Não se pode, eviden-temente, isolar a comunicação verbal dessa comunicação global emperpétua evolução. Graças a esse vínculo concreto com a situação, acomunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráternão verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimôni-as, etc.), dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento, desempe-nhando um papel meramente auxiliar. (124)

Page 145: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

145

Interação na fala e na escrita.

E para consolidar suas reflexões, ou seja, o estudo da língua apartir de uma concepção de linguagem que se defina pela interação, pelodialogismo, o autor propõe uma “ordem metodológica para o estudo dalíngua”, que deve obedecer a seguinte ordem:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condi-ções concretas em que se realizam.

2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, emligação estreita com a interação de que constituem os elementos,isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológicaque se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lin-güística habitual.

É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua:as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depoisa comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das rela-ções sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüênciada interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, namudança das formas da língua. (124).

A partir daí o autor passa a apresentar um estudo enunciativo dequestões sintáticas referentes às formas de discurso no discurso, discu-tindo as maneiras de analisar a interação entre diferentes discursos, justi-ficando sua atitude pelo fato de considerar “estáticos” os estudos clássi-cos consignados a essa dimensão da linguagem. Para ele o objeto dessesestudos deve levar em conta:

a interação dinâmica dessas duas dimensões, o discurso a transmitir eaquele que serve para transmiti-lo. Na verdade, eles só têm uma exis-tência real, só se formam e vivem através dessa inter-relação, e não demaneira isolada. O discurso citado e o contexto de transmissão sãosomente os termos de uma inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, porsua vez, reflete a dinâmica da inter-relação social dos indivíduos na

Page 146: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

146

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

comunicação ideológica verbal. (Trata-se, naturalmente, de tendênciasessenciais e constantes dessa comunicação.) (p. 148)

É evidente que a partir daí o termo interação, que ao longo da obrapassou a constituir o conceito de linguagem como um todo, aparecendocom um status tão forte quanto o de dialogismo, ganha uma dimensãometodológica, tematizando o discurso citado, os esquemas lingüísticosconhecidos como discurso direto, discurso indireto, discurso indireto li-vre, considerando as modificações desses esquemas e as variantes dessasmodificações encontradas na língua. A interação de duas enunciações,aqui, vai ser vista por uma nova perspectiva, considerando o conceito deinteração no sentido de “articulador” de formas de discurso”:

O estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma investigaçãomais profunda das formas usadas na citação do discurso, uma vez queessas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ati-va do discurso de outrem, e é essa recepção, afinal, que é fundamentaltambém para o diálogo. (p. 146)

Embora não se pretenda apresentar aqui os detalhes do estudo dasdiferentes formas de presença do discurso no discurso, na medida que ointeresse recaiu unicamente na originalidade desse estudo, centrado nadimensão interativa da linguagem, com importantes conseqüências parao estudo das vozes, do dialogismo e até mesmo da polifonia, é por essecaminho que autor interliga gramática e estilística, como sugerimos noinício deste trabalho.

4. O conceito de gênero discursivo em consonân-cia com os conceitos de interação e estilo

Como foi possível observar até aqui, o conceito de gênero discur-sivo já está esboçado, prometido, antecipado na obra na obra Marxismo

Page 147: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

147

Interação na fala e na escrita.

e filosofia da linguagem, momento em que Bakhtin/Voloshinov, depoisde ter definido o signo como um material semiótico-ideológico, passa afalar dos temas que povoam as comunidades humanas e como esses te-mas aparecem a partir de determinadas formas de composição e de deter-minados estilos. Nessa hora, como em vários outros momentos, a litera-tura, a produção estética, é seu exemplo. Embora esteja falando dosdiscursos em geral, assinalando que os mais diversos aspectos da enun-ciação aparecem sob diferentes modos de discurso e prometendo que“mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e do diálogo”abordaria os gêneros, ou seja, o repertório das formas de discurso nacomunicação sócio-ideológica, o autor cita sempre as formas literáriascomo exemplo. Isso porque considera, e com razão, a literatura uma for-ma privilegiada de linguagem e de representação das demais linguagensque envolvem o homem e seu cotidiano.

Na obra Marxismo e filosofia a linguagem, há uma série de ele-mentos que contribuem para a concepção de gênero discursivo, como é ocaso do capítulo “Tema e significação na língua” (Bakhtin/Volochinov,1929/1997: 128-36), onde aparece a indicação de que existem formaslingüísticas que entram numa composição e que são articuladas a ele-mentos não verbais da situação, constituindo o atributo da enunciaçãocompleta. Já nessa obra também está presente o problema da compreen-são ativa, da entoação expressiva, tratados em profundidade na obra de26, tanto do ponto de vista da oralidade quanto da escrita, que associadaà idéia de constitutividade de elementos não verbais amplia o conceito detexto, de situação e de contexto.

Assim sendo, a idéia de que qualquer enunciado fatalmente fazparte de um gênero está aí contida, com a observação de que essa partici-pação não se dá de uma forma pura e simplesmente determinista. E é sóa partir desses antecedentes que podemos tentar compreender gênerosdiscursivos, seu papel na relação atividades humanas/atividades de lin-guagem. Não podemos falar de gêneros sem pensar na esfera de ativida-des específicas em que eles se constituem e atuam, aí implicadas as con-dições de produção, de circulação e de recepção. Caso se deixe de ladoesses ingredientes ou mesmo um deles, poderemos cair numa idéia

Page 148: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

148

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

mecanicista de gênero discursivo, escamoteando um fato fundamentalda teoria bakhtiniana que é, precisamente, a atenção dada as especifici-dades das atividades humanas e as especificidades dos gêneros discursi-vos que as constituem e que com elas entretêm uma relação dialética,profundamente viva.

Poderíamos, para continuar a perseguir esse conceito fundante degênero, antes de entrar diretamente no texto “O problema dos gênerosdiscursivos”, descrever o livro Problemas da poética de Dostoiévski(Bakhtin, 1929/1997), momento em que o autor trabalha um gênero es-pecífico que é o gênero “romance polifônico”, com todo um detalha-mento lingüístico-discursivo sobre as formas de presença do outro nodiscurso, juntando por assim dizer, o que foi detalhado do ponto de vistateórico em Marxismo e filosofia da linguagem com as ocorrências noconjunto das obras de Dostoiévski. Essas formas vão sendo assinaladasenquanto citações de diferentes naturezas e, o que parece fundamentalpara um acompanhamento do pensamento bakhtiniano, por meio da de-finição de “outro”, exemplar e metonimicamente trabalhada no conto “Osósia”, uma das peças do conjunto da obra de Dostoiévski analisadaspelo teórico russo. Essa obra de Bakhtin é de fato um excelente exemplode como a caracterização de gênero discursivo e gênero de atividade,dissociáveis unicamente por uma questão metodológica, vai sendo mi-nuciosamente construída a partir da obra de Dostoiévski. A atividadeestético-literária e seu gênero correspondente, no caso o romance polifô-nico, articulam-se de forma a ressaltar não apenas o brilhante estilodostoievskiano, mas também a situação em que ele se dá e o contexto (oucontextos) que coloca em circulação. Ou seja, um momento de práticaque conduz a teoria para a relação constitutiva existente entre interação,gênero e estilo.

Entretanto, se é verdade que lendo Problemas da poética deDostoiévski descobrimos, enquanto lingüistas, que a teoria dos gênerosestá aí esmiuçada e sugerida como possibilidade para observação de ou-tros gêneros em outras atividades humanas, a leitura de Marxismo e filo-sofia da linguagem já apontou um outro aspecto de interesse para estetrabalho. Trata-se da relação, mais geral e abrangente, que existe entre a

Page 149: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

149

Interação na fala e na escrita.

concepção de gênero e estilo e as considerações sobre a lingüística dosistema (objetivismo abstrato) e os estudos estilísticos (subjetivismo in-dividualista), que estão explicitadas nessa famosa obra de 1929, mas quenão podem deixar de merecer a atenção no conjunto da obra, uma vezque funcionam como uma espécie de sustentáculo polêmico para a con-cepção de linguagem que caracteriza o conjunto do pensamentobakhtiniano e para a relação interação, gênero e estilo.

Quando nos defrontamos com a discussão que Bakhtin/Volochinovtrava com o método formal, com o estruturalismo e, nesse momento,mais especificamente com Saussure, o que se depreende é que, além dereconhecer a utilidade do trabalho saussureano, de não destratá-lo ou denão destruí-lo, o autor russo retoma, reconhece e reitera “as coerções dosistema a que o falante está sujeito”. Esse importante fato pode ser percebi-do no desenvolvimento do texto quando o autor vai distinguir “tema” de“significação” na produção dos sentidos, considerando o nível do reiterávele o nível do não reiterável, ou seja, o constitutivo confronto entre as estabi-lidades e as instabilidades presentes em cada enunciado enquanto eventoúnico e, portanto, em todas as enunciações, em todas as interações.

Mesmo tendo uma outra concepção de língua, profundamente di-ferente da de Saussure, se fosse a mesma a discussão não existiria, oautor vai ressalvar a idéia de coerção do sistema, não como entidadeabstrata, mas enquanto componente vivo das atividades de linguagem.Também ao discutir as posições da estilística, sem desmontar essa longatradição dos estudos da linguagem, ele não ignora ou descarta a questãodo estilo, e mesmo do individual, mas vai, como no caso do sistema,afirmar que a apreensão dessa dimensão estilística não pode constituir-secomo objeto suficiente para o estudo da linguagem em uso. Essa formade abordagem das duas tendências sinaliza para a preservação tanto daidéia de coerção quanto de estilo como constitutivos da linguagem, o quesignifica que os dois aspectos serão retomados e reconsiderados na pers-pectiva interacional da linguagem, associando-se diretamente ao concei-to de discurso e especialmente de gênero discursivo.

Nessa direção, o que pode ser percebido no conjunto do pensa-mento bakhtiniano, sem forçar a coerência desse pensamento, é que so-

Page 150: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

150

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

mente a partir do final do século XX foi possível observar que ao ofere-cer a noção de gêneros discursivos, o pensamento bakhtiniano vai redi-mensionar aspectos que já estavam nas duas tendências por ele discuti-das. O gênero discursivo diz respeito às coerções estabelecidas entre asdiferentes atividades humanas e os usos da língua nessas atividades, ouseja, as práticas discursivas implicam necessariamente coerções. O quese lê logo no início do ensaio “O problema dos gêneros discursivos” é:

As diversas esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam,estão todas relacionadas com o uso da língua. Por esta razão fica claroque o caráter e as formas de seu uso são tão multiformes quanto asesferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional deuma língua. O uso da língua efetua-se em forma de enunciados (orais eescritos), concretos e únicos que emanam dos integrantes duma ou doutraesfera da atividade humana (Bajtín, 1982: 248).

Essa definição de gêneros discursivos, estritamente ligados à es-pecificidade de uma esfera de comunicação, poderia dar a idéia de deter-minismo, ou seja, os falantes estariam impossibilitado de criar, modifi-car, alterar um gênero, na medida em que o tema, a estrutura composicionale o estilo seriam características de um gênero a que e o falante se sujeita-ria. Aí entra a questão do estilo que desde Discurso na arte e discurso navida e Marxismo e filosofia da linguagem interessa a Bakhtin e que Da-niel Faïta sintetiza da seguinte maneira:

[o enunciado] Na sua realização, ele materializa um tipo existente emabstrato, autorizando de fato o relacionamento dos traços característi-cos que ele apresenta como os de outros enunciados formulados ante-riormente ou paralelamente numa mesma esfera de uso da linguagem.O enunciador (ou produtor) acrescenta, no entanto, (pode acrescentar)a isso um nível suplementar de estratificação estilística, representandosua própria relação com a língua (Faïta, 1997: 164-65).6

6 Em curso oferecido no LAEL/PUC-SP (março, 2000), Daniel Faïta, utilizando-se do tra-balho de um membro de sua equipe, mostra como numa situação de sala de aula, mais

Page 151: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

151

Interação na fala e na escrita.

É importante dizer que Bakhtin diferencia o estudo dos gênerosdiscursivos por ele proposto dos trabalhos que estabeleceram as tipologiasdos gêneros literários, dos gêneros retóricos e dos gêneros do cotidiano,na medida em que os primeiros “foram estudados pelo ângulo históricoliterário de sua especificidade (...) e não como tipos particulares de enun-ciados que se diferenciam de outros tipos, com os quais contudo têm emcomum a natureza verbal (lingüística)”, os segundos encobriam “a natu-reza lingüística do enunciado” e os terceiros, constituídos a partir doponto de vista do estruturalismo, do behaviorismo americano, dos discí-pulos de Vossler, também não conduziram a uma definição da naturezado enunciado, limitando-se a evidenciar especificidades do enunciadocotidiano “operando no mais das vezes com enunciados deliberadamenteprimitivos”, caso dos behavioristas americanos.

É justamente esse aspecto que interessa surpreender no textobakhtiniano em questão, mais que a forma composicional e o tema. Épossível, a partir da leitura desse texto distinguir níveis de estilo, ou seja,nuances entre estilo genérico e estilo individual Ou ainda, em que medi-da a idéia de esfera de atividade interfere nessa questão.

Já no primeiro parágrafo do texto, encontramos a uma afirmaçãoque menciona o estilo verbal do enunciado:

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cadaumas dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu esti-

lo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recur-sos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo,por sua construção composicional (p. 248).

precisamente uma aula de aquisição de leitura por crianças de seis anos, na França, umaprofessora obedece ao “gênero institucional”, a que está submetida para dar conta dessaatividade específica, assume as pequenas alterações desse gênero por meio do “gêneroprofissional”, que diz respeito à forma como a equipe a que pertence define as especifici-dades dessa atividades e, finalmente, revela um “gênero pessoal”, caracterizado peloselementos que ela acrescenta, por meio de um estilo pedagógico próprio, aos demaisgêneros envolvidos.

Page 152: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

152

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

Depois de diferenciar os gêneros primários dos secundários, o queaqui não tem grandes implicações para a reflexão em curso, o autor vaiiniciar a discussão de uma perspectiva estilística, considerando que é danatureza do enunciado, de qualquer enunciado, refletir um estilo indivi-dual e, mais que isso, o enunciado possui um estilo individual. Entretan-to, ressalta que isso é mais perceptível em alguns gêneros, como é o casodo literário, e menos em outros, como é o caso dos documentos oficiais,das notas de serviço etc., que requerem formas padronizadas:

O estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e as formas típicasde enunciados, isto é, gêneros do discursivos. Todo enunciado oral ouescrito, primário ou secundário, em qualquer esfera da comunicaçãodiscursiva, é individual e por isso pode refletir a individualidade dequem fala (ou escreve). Em outras palavras, possui um estilo indivi-dual. (...) A definição de um estilo em geral e de um estilo em particularrequer um estudo aprofundado da natureza do enunciado e da diversi-dade dos gêneros discursivos (p. 251-52).

A discussão a respeito do vínculo orgânico e indissolúvel existen-te entre e o gênero e o estilo vai aparecer com mais clareza no que eledenomina “estilo lingüístico ou funcional” e que se define como estilo deum gênero que, por sua vez, é peculiar de uma dada esfera da atividade eda comunicação humana. É interessante observar que, nesse sentido, aquestão da dimensão interacional da linguagem já está inteiramente in-corporada, indissociável de gênero e estilo, de tal forma que ele vai criti-car os estudos estilísticos, ou de classificação de estilos, justamente pornão levarem em conta as especificidades formas de interação, os gênerosdiscursivos e as esferas de atividade em que aparecem e se desenvolvem:

O estilo está indissociavelmente vinculado a determinadas unidadestemáticas e, o que é mais importante, a determinadas unidadescomposicionais: tipos de estruturação e conclusão de um todo, tipo derelação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal(relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com odiscurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento na unidade de

Page 153: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

153

Interação na fala e na escrita.

gênero de um enunciado (...) os estilos da língua pertencem por nature-za ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em suadiversidade. (...) As classificações [de estilo] são surpreendentementepobres e não apresentam o menor critério diferencial. A Gramática daAcademia recém-publicada enumera as seguintes vairedades estilísticas:linguagem livresca, popular, científico-abstrata, científico-oficial, fala-da, familiar, vulgar, etc. Ao lado dessa nomenclatura dos estiloslingüísticos, como variantes estilísticas, encontram-se palavras diale-tais, palavras antiquadas, locuções profissionais. Tal classificação dosestilos é totalmente fortuita e fundamenta-se em princípios (ou bases)díspares no inventário dos estilos (sem contar que é uma classificaçãopobre e não diferencial) (p. 252-53)

A insistência na idéia de que há uma relação estreita entre estilo egênero é fundamental para que a concepção de estilo se estabeleça comocaracterística de qualquer enunciado, de qualquer texto e não apenas dedeterminados tipos, o que retoma, também, a relação intrínseca entre gra-mática e estilística, num sentido diferente, como o autor esclarece mais deuma vez, dos princípios defendidos pela escola de Vossler que coloca aestilística antes a gramática. Há no texto toda uma longa argumentaçãoassociando as mudanças de estilos da língua às mudanças que se efetuamnos gêneros de discurso, considerando que dessa mudança participam nãosomente os gêneros secundários, como é o caso do literário, do científico,do jornalístico, do publicitário, mas também os gêneros primários, casodos diferentes tipos diálogo da linguagem oral, cotidiana. A maior ou me-nor reestruturação e renovação dos gêneros discursivos está diretamenteligada ao fato de que a língua escrita incorpora diversas camadas da línguapopular e, conseqüentemente, acarreta novos procedimentos na organiza-ção do todo verbal e do lugar reservado aos interlocutores. No caso daliteratura, e também da linguagem da imprensa, da publicidade, da televi-são, há momentos em que há necessidade de recorrer à dinâmica da lingua-gem falada, a gêneros discursivos que a expressam, ou seja, ao que sepoderia denominar gênero falado-dialogado. Essa recorrência a novos gê-neros e a novos estilos interfere nessas linguagens, provocando mudançasque atuam na sensibilidade do interlocutor, nas formas de recepção ativa.

Page 154: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

154

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discur-so, são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à

história da língua. Nenhum fenômeno novo(fonético, lexical, gramati-cal) pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente testadopelo acabamento do estilo-gênero (...) Quando passamos o estilo de umgênero para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância desteestilo graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruí-mos e renovamos o próprio gênero (p. 254)

A partir dessas reflexões em que a concepção e articulação degênero discursivo e de estilo não estão separadas de questões gramati-cais, e para finalizar a primeira parte do texto denominada “Problemáticae definição”, o autor retoma e insiste no tipo de relação existente entreléxico e gramática, de um lado, e léxico e estilística, de outro, demons-trando que, apesar da propalada oposição entre gramática e estilística,toda gramática normativa inclui um espaço para a estilística e, além dis-so, a separação revela uma diferença de perspectiva que merece ser re-considerada e articulada:

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e se bifurcamem qualquer fato lingüístico concreto: encarado unicamente do pontode vista do sistema da língua, é um fato gramatical, encarado do pontode vista da totalidade do enunciado concreto, é um fato estilístico. Mes-mo a seleção que o locutor efetua de uma forma gramatical já é um fato

estilístico. Esses dois pontos de vista sobre um único e mesmo fenôme-no concreto da língua não devem porém excluir-se mutuamente, subs-tituir-se mecanicamente um ao outro, devem combinar-se organica-mente (com a manutenção metodológica de sua diferença) sobre a baseda unidade real do fato lingüístico (p. 255)

Na seqüência desse estudo, o autor discute a forma como a lin-güística tem tratado das funções da linguagem, destacando a necessidadede se encarar a função comunicativa no que ela tem de interativo, discu-tindo o papel de seus componentes, especialmente no diz respeito àsformas de participação dos interlocutores na comunicação verbal, inclu-

Page 155: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

155

Interação na fala e na escrita.

indo aí a questão dos gêneros discursivos orais e escritos e a metodologiaque poderá, de fato, definir o sentido de “discurso”. A partir daconceituação longa e detalhada do que vem a ser o enunciado concreto,em oposição ao modelo que é a frase, entra nas especificidades dos gêne-ros discursivos e no fato fundamental de que “falamos em vários gênerossem suspeitar de sua existência”. Esses aspectos, que retomam o proble-ma da significação, da construção do sentido, da entonação valorativa,das formas de incorporação da palavra do outro e da atuação do outro nopróprio enunciado, da palavra em uso e não em estado de dicionário, dascoerções discursivas, apontando para o interdiscurso em vários momen-tos e especialmente quando se refere à escolha que o enunciador faz deuma palavra:

Quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração deum enunciado, nem sempre a tiramos, pelo contrário, do sistema dalíngua , da neutralidade lexicográfica. Costumamos tirá-la de outrosenunciados, e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados aonosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamosas palavras segundo as especificidades de um gênero (p. 277).

E é na cerrada discussão sobre as relações existentes entre os in-terlocutores, sobre a influência do destinatário no enunciado, que elevolta à questão do estilo, sempre interligado com gêneros discursivo ecom formas de interação. Depois de um estudo a respeito de determina-dos gêneros, confirmando suas postulações, o autor conclui que a falhada estilística tradicional está em “tentar compreender e definir o estilobaseando-se unicamente no conteúdo do discurso (no nível do objeto dosentido) e na relação expressiva do locutor com esse conteúdo” sem le-var em conta a relação do locutor com o outro e com os discursos desseoutro, explicitados ou presumidos.

Page 156: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

156

BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo

5. Considerações finais

Caberia, neste momento, iniciar uma análise de corpus para de-monstrar, a importância, a pertinência e funcionalidade da articulaçãointeração/gênero discursivo/estilo, tanto para o reconhecimento práticodessa postura teórico-metodológica da análise dialógica do discurso,quanto para a leitura, por exemplo, de um material tão propício a essaverificação quanto é o do Projeto NURC-SP, isto é, com os diferentes“gêneros” e “estilos” aí implicados e transcritos em A linguagem cultana cidade de São Paulo, volumes I, II e III. Por sua condição de conjuntode textos orais transcritos, ele possibilita, de imediato, a reflexão sobre asproximidades e os distanciamentos entre o oral e o escrito, como já sevem fazendo em vários trabalhos. A esse aspecto poderia ser associado,da perspectiva aqui exposta, o fato de que esse corpus foi realizado apartir da determinação prévia de formas composicionais, do estabeleci-mento determinados “gêneros discursivos”, que são as elocuções for-mais, os diálogos entre dois informantes assistidos por uma documenta-dora e as entrevistas, o que, naturalmente, confrontado com a interaçãoconcreta, com os textos que compõem cada conjunto, com as marcas dasituação extraverbal e do contexto mais amplo, daria uma medida dosgêneros aí implicados, de suas variações e do que poderia ser entendidocomo estilo genérico em cada um deles.

Entretanto, por uma questão de coerência, no sentido de que oobjetivo primeiro deste estudo era mapear a forma como a questão dainteração assumiu um papel central na concepção de linguagem e noconjunto do pensamento bakhtiniano, desde a segunda metade da décadade 20 do século passado, permanecendo produtiva e até mesmo poucoexplorada até hoje, este trabalho pára por aqui.

Referências bibliográficas

BAJTÍN, Mikhail M. (1979/1982) El problema de los gêneros discursivos. In: Estéticade la creación verbal. Trad. Tatiana Bubnova. Mexico: Siglo Veintiuno Editores.

Page 157: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

157

Interação na fala e na escrita.

BAKHTIN/VOLOSHINOV (1927) Discurso na vida e discurso na arte (sobre apoética sociológica). Trad. Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, para finsdidáticos, a partir da tradução inglesa de I.R. Titunik: VOLOSHINOV (1976),“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”. In:Freudism, New York: Academic Press.

BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). (1979) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad.M. Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC.

BRAIT, Beth. (1997) O processo interacional. In: PRETI, Dino (org.) Análise detextos orais. 3 ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP. Cap. 9. p. 189-214

_____. (1998) – Elocução formal: o dinamismo da oralidade e a formalidade daescrita. In: PRETI, Dino (org.) Estudos de língua falada. São Paulo: Humanitas.p. 87-108.

_____. (1999) Imagens da norma culta, interação e constituição do texto oral. In:PRETI, Dino (org.) O discurso oral culto. 2 ed. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, 173p. p. 45-62.

CASTILHO, Ataliba T. & PRETI, Dino (org.) (1986) A linguagem falada culta nacidade de São Paulo. São Paulo: T.A. Queiroz/FAPESP. Vol. 1

_____. (org.) (1987) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo:T.A. Queiroz/FAPESP. Vol. 2

FAÏTA, Daniel (1997) “A noção de gênero discursivo em Bakhtin: uma mudança deparadigmas”. In: BRAIT, Beth (org.) Bakhtin, dialogismo e construção do senti-do. Campinas: Editora da Unicamp. p. 159-77.

FOUCAULT, Michel (1969/1997) O que é um autor? Trad. Bragança de Miranda eAntónio Fernando Cascais. 3 ed. Lisboa: Passagens.

PRETI, Dino & URBANO, Hudinilson (org.) (1988) A linguagem falada culta nacidade de São Paulo. São Paulo: T.A.Queiroz/FAPESP. Vol. 3

VION, Robert (org.) (1998) Les sujets et leurs discours: énonciation et interaction.Aix-en-Provence, Université de Provence.

ZAVALA, Iris M. (1992) Prólogo. VOLOSHINOV, Valentin N. El marxismo y lafilosofía del lenguaje. Madrid: Alianza Editorial. p. 11-20.

Page 158: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

A DINÂMICA DAS INTERAÇÕES VERBAIS:O TRÍLOGO

Leonor Lopes Fáveroe

Zilda Gaspar O. Aquino

Considerações iniciais

Os estudos sobre a interação elaborados no quadro da Análise daConversação têm priorizado as trocas diádicas efetuadas no esquemaproposto por Sacks, Schegloff e Jefferson (1974) – ababab –, porém,quanto mais o número de participantes aumenta, mais o processo descri-tivo se complica, como têm mostrado, ultimamente, alguns pesquisado-res.

Kerbrat-Orecchioni (1995) concebe o trílogo como uma troca co-municativa que se desenvolve no seio de uma tríade, isto é, de um con-junto de três locutores. Embora seja ela bastante comum e da maior im-portância, é, ainda, “o parente pobre da Análise da Conversação”.

Este trabalho discute o trílogo com a finalidade de evidenciar comoos mecanismos envolvidos nesse tipo de troca se traduzem nas interaçõese como o quadro participativo evolui no decorrer das mesmas. Será ob-servado especialmente o debate televisivo em que há um duplo esquematriangular: o que se desenrola no estúdio entre debatedores e animador eo que põe em cena dois debatedores diante de um público (telespectador).

Page 159: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

160

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

O corpus é constituído de conversações espontâneas e de debatetelevisivo do qual participam políticos às vésperas de eleições munici-pais na cidade de São Paulo. O material analisado foi selecionado a partirde gravações transcritas de acordo com as normas do Projeto NURC/SP.

O debate, realizado no dia 27 de novembro de 2000, foi transmiti-do pela TV Globo de São Paulo, tendo como mediador Carlos Nasci-mento e como debatedores Paulo Salim Maluf e Marta Suplicy, candida-tos à prefeitura de São Paulo.

1. A conversação triádica

A conversação triádica é essencialmente diferente da diádica e,segundo André- Larochebouvy (1984), as conversações com quatro oumais participantes nada mais são do que estruturas diádicas e triádicas.

Se no dílogo1 o locutor L2 só pode intervir após o locutor L1,sendo a interrupção com sobreposição a única “fantasia” possível, notrílogo, a fórmula ababab de Sacks, Schegloff e Jefferson (op.cit.) não seaplica; nele não há regras fixas, nem seleção prévia do sucessor e o locu-tor L3 pode tomar a palavra sem que esta lhe seja dirigida. No exemplo aseguir, L3 retardou a resposta de L2, observando-se uma formulação quefunciona como um “coro” a L1:

L1 a L3 que tal irmos assistir a Les misérables?

L2 isso mesmo... va::mos?

Nos casos de coro, podemos ter:

– consonância total com simultaneidade ou um locutor falandologo após o outro:

1 Concordando com Kerbrat-Orecchioni (1995: 24), utilizamos o termo dílogo (troca diá-dica), reservando a diálogo seu sentido etimológico: dia = prefixo grego que significaatravés de, como em diacronia, diáfano, diagonal.

Page 160: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

161

Interação na fala e na escrita

L1 bom dia... espero que tenham feito uma boa prova hoje cedo...

L2 e L3 muito boa

Casos como esse não são freqüentes: o mais comum é termos:

L1 bom dia...espero que tenham feito uma boa prova hoje cedo...

L2 muito boa

L3 eu também fui muito bem

– complementação – um dos locutores (L3) concorda, mas, emsua fala, complementa ou os dois enunciados (de L1 e de L2)ou um deles:

L1 como foi a eleição do representante?

L2 muito simples... todos puderam se expressar:: e acabou logo

L3 eu concordo mas acrescentaria um pequeno deTAlhe... o climaera pesa::do

Aqui podemos dizer, como Kerbrat-Orecchioni (op. cit.: 25), quehá um único turno com duas contribuições.

O trílogo é potencialmente mais conflitual e menos constrangedorpara os participantes do que o dílogo, pois um deles pode, provisoria-mente, pôr-se de lado sem que isso ameace seriamente o desenrolar daconversa. Assim, há momentos em que o silêncio de um dos participan-tes se prolonga, cabendo aos outros o desenvolvimento da conversação,quer dizer, a obrigação de cooperar fica diluída no grupo:

Le nombre a precisément pour effect de réduire les obligations de chacundes destinataires. (Goffman, 1991: 132)

Page 161: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

162

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

1.1 Papéis do ouvinte

Se no dílogo referimo-nos a falante e ouvinte (Goffman, 1981) ese o ouvinte corresponde ao alocutário, no trílogo as coisas se compli-cam, pois o não-locutor pode ser:

a) o destinatário direto ou alocutário

b) o destinatário indireto2

havendo, então, a possibilidade de ocorrerem três tipos de esquemas:

c) L1 → L2 (L3: destinatário indireto)

d) L1 → L3 (L2: destinatário indireto)

e) L1 → L2 + L3 (destinatário coletivo, direto ou indireto)

Mas como bem nota Kerbrat-Orecchioni, a determinação dessesesquemas suscita algumas indagações:

– nem sempre é clara a identificação do destinatário direto; índi-ces como, por exemplo, o pronome “você” acompanhado donome marcam claramente que um deles está excluído. É o quea autora denomina “tróisième personne d’ impolitesse”.

– outros índices, como o tópico desenvolvido, o olhar e a direçãodo corpo, também são muito utilizados e identificam o ouvinte;têm, porém, o inconveniente de serem menos discretos e maisdifíceis de interpretar.

Se o critério da direção do olhar é fundamental para Goffman(id.), conceituando ele o destinatário como “celui vers qui le locuteurdirige son attention visuelle”, para Kerbrat-Orecchioni trata-se de um

2 Essa terminologia corresponde a ouvinte ratificado e não-ratificado de Goffman, (1981:76).

Page 162: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

163

Interação na fala e na escrita

elemento bastante flexível porque, no decorrer de um único enunciado,pode passar, “escorregar” de um locutor para o outro; além do mais, nãose pode considerar que a cada variação do olhar corresponda a troca doalocutário, pois o falante pode, dirigindo-se a um, lançar um olhar furtivoao outro, para certificar-se de sua participação ou para tomá-lo comotestemunha.

Dessa forma, o analista dispõe de um conjunto de índices que lhepermite verificar qual (is) é (são) o(s) alocutário(s). O grande problemaque se lhe apresenta ocorre no momento em que esses índices não sãoclaros ou não convergem, isto é, quando há um conflito entre marcadoresverbais e não-verbais.

Nos debates, muitas vezes, esses índices não se apresentam comclareza, para o telespectador e para o analista, pois quase sempre a câmerafocaliza apenas quem está com o turno. Nesse caso, ainda que os elemen-tos lingüísticos sejam indicativos de que o destinatário direto é o adver-sário político, este o é só aparentemente, pois, na realidade, o verdadeirodestinatário é o público. Assim, todos os destinatários têm papel impor-tante na interação, não se podendo negligenciar nenhum deles, mesmoos indiretos.

Qualquer que seja o estatuto dos ouvintes, dificilmente eles man-têm com o locutor o mesmo tipo de relação, visto que os conhecimentosde mundo não serão sempre os mesmos, quer dizer, eles geralmente nãodividem a mesma “história conversacional” (Kerbrat-Orecchioni). Amáxima da quantidade não se aplica da mesma maneira a todos os inter-locutores (Grice, 1975).

L1 como foi a viagem? conte alguma COIsa... cara...

L2 foi muito leGAL... durante um safári o leão correu em direção aojeep em que estávamos e::... imaGIne ca::ra emparelhou bem domeu lado...eu morri de medo

L1 não acredito...

L2 é verdade JUro ((olha para L3)) você já deve estar cheia dessahistória de tanto que eu conto...né? ((dirigindo-se a L1))

quando ele chegou bem perto o ranger gritou Ô::::: ((olha para L3

Page 163: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

164

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

como que pedindo confirmação)) e ele parou... era MAcho se nãoADEUS eu não estava aqui

L1 NÃO... NÃO...

L2 olha ela fazendo que sim com a cabeça é verdade cara...

L1 relata a L2 um fato ocorrido com ele quando estiveram na Áfricado Sul; L1 se desculpa com L1 e toma-a como testemunha – uma forma deintegrá-la à narrativa; L3, por sua vez, procura emitir alguns sinaisreveladores de seu interesse em contribuir na construção do discurso.

Como se pode ver, a forma de recepção é:

a) não-marcada – os limites entre os diferentes tipos de ouvintenão são nítidos, o que leva Kerbrat-Orecchioni a denominá-los destinatário privilegiado (ou dominante) e secundário, emvez de direto e indireto;

b) flutuante – o papel dos interlocutores pode-se modificar nodecorrer da conversação: um destinatário secundário pode-setransformar em principal e vice-versa.

2. As relações interpessoais

O texto conversacional é criação coletiva, produz-se não sóinteracionalmente, mas também de forma organizada e é o lugar em queos interactantes constituem relações especiais de dominância ou igualda-de, convivência ou conflito, familiaridade ou distância; essas relaçõesaparecem tanto no dílogo, quanto no trílogo, mas, embora a interaçãosocial seja essencialmente triangular, uma de suas características é a pos-sibilidade de cindir-se em dois mais um: A+B, A+C, B+C, ocasionandoa formação de duos (Caplow, 1984: 15).

Page 164: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

165

Interação na fala e na escrita

Segundo ele, o duo pode ser:

– consensual: o terceiro pode ser excluído ou permanecer de forapor vontade própria, podendo, ainda, ficar como vítima ou“bode expiatório”;

– conflitual: o terceiro fica sem atividade, ou se institui comoárbitro ou tira proveito da situação; pode ainda formar aliançacom um dos beligerantes, pois os interactantes dispõem sem-pre da possibilidade de formar coalisões e de alterar as rela-ções de dominância: “une coalition de deux éléments contre letroisième peut transformer la force en faiblesse et la faiblesseen force” (id: 15);

– instável: as coalisões devem ser negociadas entre as partes.

Caplow estudou particularmente a formação da coalisão, definidacomo “a união de dois ou mais atores que adotam uma estratégia comumpara fazer frente a outros atores no mesmo sistema”, e o papel do terceirodiante de um duo conflitual. (id.: 75)

Numa interação desse tipo, os adversários podem não ser os mes-mos do começo ao fim. Dependendo de uma série de elementos comotópico, grau de familiaridade, profissão, interesses de um modo geral, épossível que se altere a coalisão e que o adversário não seja o mesmodurante toda a conversação; quer dizer, as coalisões não são estáveis, ospapéis podem alterar-se e, segundo Zamouri (1995: 55), quanto maislonga a conversação, especialmente se for uma discussão, maior a possi-bilidade de um desacordo e, se dois dos participantes têm o mesmo pontode vista oposto ao do terceiro, a possibilidade de os dois formarem umacoalisão contra esse terceiro (ainda que momentânea) será grande. Comose vê, para esses autores a coalisão nasce de um conflito e o terceiropode-se manter neutro, recusando-se a dele participar.

Caplow atribui três papéis ao terceiro:

a) mediador – situa-se entre os antagonistas e os impede de se en-volverem em conflito aberto (exemplo: debate político na TV);

Page 165: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

166

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

b) aproveitador – tira proveito da dissensão entre os dois outros esacrifica os interesses do grupo em benefício próprio;

c) provocador – provoca o conflito entre os dois outros para ser-vir a seus desejos.

Nos debates com a participação de políticos candidatos à eleiçãoe, portanto, adversários, é de se prever que o mediador fique como parti-cipante menos ativo, com turnos previstos de acordo com o tempo deter-minado previamente pela produção da emissora. Não se trata, assim, deos adversários quererem excluí-lo especialmente naquele debate, nem setrata, também, de querer o mediador ficar de fora; esta é, simplesmente,a regra do jogo em programas cujo contexto seja o que se apresenta. Nodebate analisado, não se registrou a ocorrência do duo consensual, emrazão de ser o mediador excluído, não por vontade própria, antes porregra da emissora.

Não se pode dizer que o mediador fique sem atividade, como seindica no duo conflitual; ele tem a incumbência de administrar o tempo,conceder ou tirar a palavra, lançar o tópico, sendo, pois, o árbitro doembate. Não se envolve, além do que lhe é determinado, não demonstrapreferência, não forma aliança. Trata-se, nesse caso, de um duo conflitualespecífico.

Já Zamouri (op. cit.) afirma que a coalisão nasce sempre de umconflito e que, diante do desacordo que ocorre entre dois interlocutores,o terceiro pode ou se manter “neutro”, recusando-se a tomar partido, ouunir-se a um dos parceiros, união esta que pode ir de uma simples apro-vação a uma verdadeira coalisão.

3. O debate televisivo trilogal

Em razão de ser transmitido ao vivo, o debate sob análise dá aotelespectador a idéia de que tudo pode acontecer e mantém entre os

Page 166: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

167

Interação na fala e na escrita

debatedores o medo do irreparável, o que afetará sua face positiva, po-dendo ocasionar um mau desempenho no resultado das urnas.

Há um equilíbrio de participação que é garantido pelo próprioesquema da programação. No momento em que o tempo destinado àsrespostas de cada um se esgota, o mediador entra em ação e interrompe oturno, sobrepondo-se; ocorre, normalmente, a repreensão por parte domediador:

L2 administração regional não vai ser mais ANtro vai ser um lu-gar ( )

[

L1 tempo encerrado candidata Marta Suplicy...

O mediador sobrepõe sua fala à da candidata com o aviso “tempoencerrado” e passa a indicar as regras de participação. Isto vale para in-formar os candidatos e também os telespectadores.

.......................................................................................................................................

L1 nós vamos iniciar agora as perguntas previstas de candidato paracandidato e quem faz a primeira pergunta com tema livre é justa-mente a candidata Marta Suplicy... a senhora tem trinta segundospara formular a pergunta... o candidato Paulo Maluf... aqui a mi-nha direita... tem um minuto e meio para a sua resposta... emseguida a candidata tem trinta segundos para a réplica... o candi-dato Paulo Maluf terá trinta segundos para a tréplica ...

Embora não haja uma avaliação de performance de cada um, de-signando vencedor e vencido, o índice de audiência costuma ser elevado,fato que justifica a preocupação dos candidatos quanto ao seu bom de-sempenho.

Os debatedores podem-se dirigir ao mediador que é supostamenteneutro e privado de participação, mas sobretudo se dirigem direta ouindiretamente ao público telespectador, verdadeiros destinatários, os úni-cos autorizados, ou mesmo propostos a mudar de opinião.

Page 167: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

168

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

Observemos o segmento em que L2, ao ser solicitada a discorrer arespeito de seu plano para combater a corrupção, ignora os participantespresentes e dirige-se diretamente ao público; abre-se o debate com a apre-sentação dos candidatos e uma pergunta, elaborada pelo mediador edirigida a Marta :

L1 como a senhora pretende agir em relação a isso se vencer a elei-ção?

L2 boa noite São Paulo... no primeiro turno... você eleitor... eleito-ra... tomou uma decisão histórica para a nossa cidade: com o seuvoto...você va::RREU... renovando a Câmara Municipal... e ti-rando os vereaDOres comprometidos com a corrupção.. agora...nós vamos para o segundo turno... você me colocou lá... já comuma AMpla maioria na Câmara de vereadores honestos... demo-cratas e eu vim aqui neste debate hoje... para aprofundar minhaspropostas e... reiterar meu compromisso... contra a corrupção...

O mediador (L1) dirige-se à candidata, de modo direto, por meiode pergunta que inclui o pronome de tratamento “senhora”. Em lugar deresponder a L1, L2 deixa-o como destinatário indireto e dirige-se aostelespectadores (você eleitor/ seu voto/ você me colocou lá), que passama destinatários diretos. A indicação de “eleitor...eleitora”, num turno tãomarcado por “você”, não deixa dúvida quanto ao referente.

L3 (Paulo Maluf) também busca o eleitor como aliado direto, aoformular seu enunciado dirigindo-se ao público telespectador e tratandoL2 como destinatário indireto (Dona Marta/ ela):

L3 quando dona Marta fala dos últimos oito anos eu gostaria que elafalasse dos últimos doze anos porque nos últimos doze anos deadministração nós tivemos quatro anos de administração do PTadministração do PT que ela nunca cita... quando ela quer umaadministração do PT ela vai pra Santo André pra Mauá vai praPorto Alegre... as administrações de São Paulo ela nunca cita (...)

A continuidade desse turno remete o telespectador para a mudan-ça de interlocutor, já que Paulo Maluf elabora uma série de perguntas em

Page 168: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

169

Interação na fala e na escrita

que explicita, por meio do pronome de tratamento “senhora”, que o des-tinatário é sua adversária política :

L3 (...) e eu quero dizer pra dona Marta do PT onde é que a senhoraestava quando por exemplo nomeou quarenta mil funcionáriossem concurso... foram nomeados onze mil fantasmas na CMTCquebraram a CMTC onde é que a senhora estava quando nas re-gionais os vereadores nomeavam parentes e as regionais eramloteadas... onde é que a senhora estava no escândalo de Interlagos...onde é que a senhora estava no escândalo Lubeca... onde é que asenhora estava quando as contas do PT foram rejeitadas por trêsanos... onde é que a senhora estava exatamente que nós não vi-mos nem um tipo de queixa sua... quero dizer para a senhora oseguinte a administração do PT em São Paulo envergonha SãoPaulo envergonhou tanto é que o PT perdeu a eleição em 92 per-deu em 94 perdeu em 96 e em 98 a senhora teve três milhões devotos a menos ...quero dizer pra senhora que a administração doPT envergonha São Paulo... refira-se à administração ruinosa doPT em São Paulo

Em casos como esse, há marcas de uma interlocução direta com ooutro debatedor, mas este não é na realidade o destinatário, já que o ver-dadeiro destinatário é indireto – os telespectadores. (Kerbrat-Orecchioni,1990).

Destacam-se, no segmento último indicado, pronomes de trata-mento “dona” e “senhora”, o primeiro deles, dado o contexto, pode-seconsiderar depreciativo da imagem da candidata à prefeitura, por se cons-tituir uma forma de tratamento direcionado a pessoas simples do povo.

De fato, é para o público que o debate é elaborado; ele condicionasua existência; é por ele que os debatedores aceitam o convite e é a exis-tência desse público e a imagem que os debatedores fazem dele que vaiinfluenciar fortemente a forma como o discurso é elaborado (Doury, 1995:227). Contudo, esse verdadeiro destinatário fica excluído, muitas vezes,do cenário onde o debate se realiza, parecendo, por essa razão, um desti-natário indireto.

Assim, pode-se dizer que esse público é indireto aparentemente;na realidade, ele é o principal – é a razão da existência do debate. Tanto

Page 169: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

170

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

que um debate do qual participassem os mesmos candidatos, sem o pú-blico, provavelmente, não teria chance de se realizar, pois os convidadosnão veriam possibilidades de fazê-lo progredir, não estariam convenci-dos dos limites de um encontro dessa natureza, dada a dificuldade/im-possibilidade de convencer o outro.

A esse respeito, Vion (1992: 138-39) assim se expressa:

“L’une des caractéristiques du débat concerne l’existence d’un public.C’est ce dernier qui constitue le véritable enjeu, c’est lui qu’il fautconvaincre car il paraît peu probable de pouvoir convaincre sonadversaire (...) la infinité d’une telle interaction est donc‘externe’puisqu’elle est l’objet d’enjeux. Le débat est donc une interationqui se donne en spectacle et dans laquelle il faut s’efforcer d’être lemeilleur.”

Ainda segundo esse estudioso, no debate, as marcas de coopera-ção se anulam pela competitividade entre os debatedores, já que o obje-tivo da interação é, antes de tudo, a expressão da divergência e é estecaráter que faz com que seja privilegiada a relação triangular:

Público

Debatedor 1 Debatedor 2

O desenrolar de um debate permite inscrevê-lo, ao mesmo tempo,como discussão (por seu caráter argumentativo) e entrevista (por seucaráter mediático).

Page 170: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

171

Interação na fala e na escrita

Pode haver controle do tópico pelos próprios debatedores, entre-tanto, pode ocorrer por conta do mediador tal procedimento. Aliás, afuga ao tópico inscreve-se como um forte aliado às críticas que umdebatedor faz ou precisa fazer ao adversário, como se observa a seguir.

L3 eu lhe perguntei... quantos empregos geROU... esse seu progra-ma da BMF... e a senhora NÃo respondeu... este programa geroumil empregos... em quatro anos duzentos e cinqüenta empregospor ano... ou seja... vinte empregos por mês... dona Marta... SãoPaulo é muito grande pra fazer um projeto de geração de empre-gos tão pequenininho... temos um milhão de desempregados e asenhora quer resolver isso gerando duzentos e cinqüenta empre-gos por mês?

Ainda que a análise dos elementos lingüísticos e paralingüísticoscircunscritos ao tópico seja indicativa de não polidez, as atividades deli-neiam um quadro de cooperação. Caso contrário, teríamos o caos e istopoderia ferir os resultados almejados pelo debate.

Observa-se, também, o seguinte: se numa conversação casual astrocas conduzem a uma coordenação harmoniosa de ações, no debateelas se coordenam para atingirem o oposto. Não poderá ocorrer concor-dância quanto à posição apresentada por um debatedor; a discordância éa garantia da conquista do eleitorado, cujo número precisa ter-se amplia-do quando do encerramento do debate.

A análise do contexto permite que se detectem as estratégias utili-zadas e todas convergem para a consecução dos propósitos de cada par-ticipante. Além de tudo, o contexto é o campo das relações de poder(Lindstrom, 1992). Há um grande jogo para vencer o debate: valoriza-seo que se diz e desvaloriza-se a fala do oponente, levantando-se o quepode ser falso ou contraditório. E isso pode ocorrer explicitamente, utili-zando-se estratégias metadiscursivas, como se pode verificar por meiode vários segmentos.

No primeiro deles, Marta Suplicy tece observações acerca da fugade Paulo Maluf à questão por ela formulada:

Page 171: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

172

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

L2 como sempre ele não respondeu ele saiu pelo lado pela lateralfazendo acusações...

Em seguida, é Paulo Maluf quem assim procede:

L3 eu lhe perguntei e a senhora não respondeu...

O início de uma troca durante debates, como os aqui examinados,será sempre um risco – já esperado – pois a outra parte não deseja que seestabeleça a reciprocidade; o princípio pode ser sempre o da oposição,do ataque, da discordância. Não se observa reconhecimento de valor dodiscurso do outro, não se destaca seriedade no que o outro participante/opositor formula.

Nos debates, os participantes trabalham para construir junto aotelespectador um conhecimento comum, um consenso, o que é possívelcom a utilização de estratégias específicas para criar-se um novo contex-to ou transformar-se o já existente.

Há uma grande preocupação por parte dos candidatos antes de odebate ser levado ao ar; por isso, é usual eles se prepararem para a parti-cipação, ainda que isso lhes custe a diminuição do ritmo da campanha.Assim é que simulam o debate, selecionam estratégias, discutem com aassessoria do partido maneiras de se comportar durante a apresentação.

Pode ocorrer que o próprio candidato revele algo a esse respeitodurante a apresentação, como o fez Paulo Maluf, utilizando-se de umaestratégia metadiscursiva:

L3 (...) a senhora veio tão despreparada para o debate que a senhoraprecisa ler sua pergunta

4. O quadro argumentativo

O debate televisivo apresenta não só um quadro interacional espe-cífico, como também um tipo de argumentação especial. A argumenta-

Page 172: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

173

Interação na fala e na escrita

ção, definida como meio de persuadir o interlocutor (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1983), desenvolve-se não para convencer o outro debatedor, nemo mediador, mas o público ouvinte, telespectador que, por sua vez, tam-bém apresenta especificidades: não se trata de um público especial, deuma só classe social, de um só gênero, pois são eleitores o jovem ou oidoso, o assalariado ou o empresário, todo o público, enfim, precisa seralvo da persuasão. Conforme já se indicou neste trabalho, é para os elei-tores, em geral, que o debate se desenvolve.

As estratégias argumentativas são, então, criadas com duplodirecionamento:

– provocar o adversário, fazendo com que exponha sua face pu-blicamente;

– persuadir o telespectador a aceitar o candidato que está com apalavra (nesse procedimento, é automática a rejeição do ad-versário).

Algumas das estratégias adotadas conduzem à montagem do qua-dro participativo em que maior ou menor grau de agressividade pode-seregistrar. As acusações, que um e outro candidato utilizam como estraté-gia, acabam por revelar um tratamento mais agressivo, o que poder re-percutir negativamente junto ao telespectador mais avisado.

Veja-se o segmento que remete ao aqui exposto:

L3 (...) eu quero dizer pra dona Marta do PT onde é que a senhoraestava quando por exemplo nomeou quarenta mil funcionáriossem concurso..foram nomeados onze mil fantasmas na CMTCquebraram a CMTC onde é que a senhora estava quando nas re-gionais os vereadores nomeavam parentes e as regionais eramloteadas... onde é que a senhora estava no escândalo de Interlagos...onde é que a senhora estava no escândalo Lubeca... onde é que asenhora estava quando as contas do PT foram rejeitadas por trêsanos... onde é que a senhora estava exatamente que nós não vi-mos nem um tipo de queixa sua... quero dizer para a senhora oseguinte a administração do PT em São Paulo envergonha São

Page 173: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

174

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

Paulo envergonhou tanto e que o PT perdeu a eleição em 92 per-deu em 94 perdeu em 96 e em 98 a senhora teve três milhões devotos a menos ...quero dizer pra senhora que a administração doPT envergonha São Paulo... refira-se à administração ruinosa doPT em São Paulo

Observe-se a repetição na estrutura da pergunta “onde é que asenhora estava” que ocorre por seis vezes. Trata-se de perguntas retóri-cas, pois o candidato sabe que sua adversária não estava presente emcada situação apontada. Acusa-a, implicitamente, de ausência nos mo-mentos cruciais de tomada de decisão: ela não estava presente quandoocorreram inúmeros escândalos.

Em seguida, o candidato (L3) acusa explicitamente a administra-ção do partido opositor :

L3 (... ) a administração do PT envergonha São Paulo

As estratégias utilizadas nesse quadro participativo, somadas, tra-balham na direção de conseguir a adesão do telespectador. A imagemque se constitui é a de uma mulher pública ausente.

Outras ocorrências com a presença de acusações são registradastambém por parte de L2:

L2 (...) mais uma vez o senhor falta com a verdade

Assim, coordenam-se ações e estratégias num duo conflitualtelevisionado.

Considerações finais

O trabalho examinou o trílogo em conversações espontâneas e emdebate político televisivo. Procurou-se mostrar, sobretudo a partir da aná-

Page 174: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

175

Interação na fala e na escrita

lise do corpus, como se constituem os trílogos, como os participantesinteragem e como o quadro participativo pode evoluir. Os resultadospermitem dizer que uma conversação triádica tende a apresentar as for-mações seguintes:

– no debate selecionado, há uma formação triádica quando setoma para análise o conjunto de elementos sob o prisma dojogo de interesses: o mediador (que representa a emissora, in-teressado na audiência e no esclarecimento do público); ospolíticos (que precisam garantir o eleitorado para conseguirema vitória nas urnas); o público (telespectador que precisa deci-dir/confirmar em quem votar);

– esse conjunto evolui para um duplo esquema triangular: o quese desenrola num estúdio entre debatedores e mediador e oque põe em cena dois debatedores diante de um público(telespectador);

– há formações triádicas regulares, assim por nós denominadasem razão de se repetirem durante o desenvolvimento do deba-te; político 1 + público vs adversário, político 2 + público vsadversário, observando-se a fórmula “dois contra um”. Os pa-péis não oscilam, ainda que uma parte do público , no início dodebate, estivesse apoiando um político e se transferisse paraapoiar o outro no final do mesmo debate;

– o público, ainda que não esteja presente no contexto situacio-nal e seja tomado como destinatário indireto, é, na verdade,um destinatário direto, por ser a própria razão da ocorrência dodebate;

– há um duo conflitual, constituído pelos políticos adversários;

– há a tentativa de formação de duo consensual, a cada turno deum dos políticos que quer convencer o eleitor e a ele se aliarcontra o adversário;

– nas conversações espontâneas, podem-se alterar os papéis, asrelações entre os participantes podem variar, de modo que se

Page 175: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

176

FÁVERO, Leonor Lopes e AQUINO, Zilda Gaspar O. A dinâmica das interações...

observe duo consensual com os mesmos participantes de umduo conflitual. Tudo dependerá do tópico, da interação, enfim,da evolução do quadro participativo.

Restam ainda muitas questões a serem resolvidas, já que o tema épolêmico, pois uma das características do triângulo participativo é a possi-bilidade de desfazer-se ou pela eliminação de um terceiro, ou pela fusão dedois participantes em um só papel discursivo, localizando-se verdadeirosduos. Essa questão e outras necessitam de estudos complementares quetranscendem os limites deste artigo.

Referências bibliográficas

ANDRE-LAROCHEBOUVY, Daniel. (1984). La conversation cotidienne. Paris:Didier-Credif.

CAPLOW, Théodore. (1984). Deux contre un. Les coalisions dans les triades. Paris:ESF.

DOURY, Marianne. (1995). Duel sur la cinq: dilogue or trilogue? In: CatherineKERBRAT-ORECCHIONI & Christian. PLANTIN (org.) Le trilogue. Lyon: Uni-versidade de Lyon 2. p. 224-49.

GOFFMAN, Erving. (1981.) Forms of talk. Oxford: Basil Blackwell.GRICE, H. Paul. (1975). Logic and Conversation. In: P. COLE & J. MORGAN, J.

Sintax and Semantics. New York: Academic Press, v. 3. Speech acts._______. (1991). Les cadres de l’expérience. Paris: Minuit.KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. (1990). Les interations verbales. Paris:

Armand Collin. t. 1._______. (1995). Le trilogue. Introdução. Lyon: Universidade de Lyon 2: 1-28._______. & PLANTIN, Christian. (orgs.) (1995). Le trilogue. Lyon: Universidade

de Lyon 2.LINDSTROM, Lamont. (1992). Context contests: debatable truth statements o Tanna

(Vanuatu). In: Alessandro DURANTI & Charles GOODWIN (eds.) Rethinkingcontext. Language as an interactive phenomenon. Cambridge: CambridgeUniversity Press. p. 101-24.

PERELMAN, Chaim. & OLBRECHTS-TYTECA, L. (1983). Traité de l’argumentation.La nouvelle rethorique.4.ed. Bruxelles: Éditions de L’Université de Bruxelles,(1958).

Page 176: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

177

Interação na fala e na escrita

SACKS, Harvey, SCHEGLOFF, Emanuel A. & JEFFERSON, Gail. (1974). A simplestsystematics for the organization of turn-taking for conversation. Language, 50.p. 696-735.

VION, Robert.(1992). Le communication verbale. Paris: Hachette.ZAMOURI, Salwa. (1995). La formation des coalitions dans les conversations

triadiques. In: Catherine KERBRAT-ORECCHIONI. Le trilogue. Introdução.Lyon, Universidade de Lyon 2: 1-28.

Page 177: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

ESTRUTURAS DE PARTICIPAÇÃO EINTERAÇÃO NA SALA DE AULA

Luiz Antônio da Silva

Considerações iniciais

Ao estudar a linguagem da sala de aula, Stubbs (1987) deixa claroque a aula é um ambiente lingüístico muito influente, por isso o ensino épraticamente inconcebível sem a linguagem. A sala de aula é um localonde professores e alunos, mediados pela linguagem, constroem ativa-mente o sentido do mundo. Nela, o individual e o social estão em contí-nua articulação, e os sujeitos, em constante processo de negociação.

O discurso de sala de aula – a produção lingüística que se realizana instituição escola, envolvendo o processo ensino/aprendizagem – éuma das mais importantes manifestações lingüísticas do discurso produ-zido na escola. Diferindo de outros discursos realizados na escola, porexemplo a conversa entre alunos nos intervalos ou entre professores nasala de professores, a importância do discurso de sala de aula se deve aofato de que, por meio dele, realiza-se um dos objetivos precípuos dainstituição escola: o processo ensino/ aprendizagem.

Ehlich (1986: 149) reconhece o processo ensino/aprendizagem naescola tradicional, contudo diferencia o discurso de sala de aula do quechama discurso ensino/aprendizagem. Para explicar sua posição, expli-cita algumas características básicas desse tipo de discurso:

Page 178: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

180

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

a. voluntariedade;

b. reconhecimento entre as partes;

c. envolvimento no discurso.

O discurso ensino/aprendizagem pressupõe a existência de doisgrupos diferentes: aqueles que possuem conhecimento e aqueles que nãopossuem, mas têm o desejo de possuí-lo. Fica evidente, portanto, umacaracterística fundamental: a voluntariedade e, conseqüentemente, o as-pecto lúdico do aprender. A fim de que os objetivos desse discurso sejamrealizados, é necessário que haja o reconhecimento recíproco, isto é, aaceitação de ambos como tais: quem ensina e quem aprende. O aprendiz,ao admitir sua falta de conhecimento, sanciona de forma positiva a ima-gem de quem ensina; vê naquele que ensina alguém que possui o conhe-cimento de que necessita; pretende superar a diferença de conhecimentopor meio do envolvimento completo no processo ensino/ aprendizagem.

Em contrapartida, o discurso de sala de aula apresenta caracterís-ticas opostas:

a. fim da voluntariedade;

b. perda do reconhecimento;

c. flutuação entre presença e ausência no discurso.

No geral, quando se trata de situação de sala de aula, avoluntariedade se perde, pois o desejo de os aprendizes superarem o deficitde conhecimento não está mais, necessariamente, presente. É muito co-mum que os aprendizes, individualmente, percebam, apenas de modoparcial, o deficit do conhecimento que vale a pena compensar, comoafirma Ehlich (1986: 151-152):

Assim, a aquisição de conhecimento muda de algo que é divertido,porque satisfaz uma necessidade, para algo que requer algum esforçodos aprendizes. Os alunos não mais querem aprender, são forçados aaprender.

Page 179: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

181

Interação na fala e na escrita

Outro aspecto problemático no discurso de sala de aula é o reco-nhecimento recíproco entre as partes. Nem sempre há o reconhecimentodo aluno em relação ao professor e vice-versa. Enquanto no discursoensino/aprendizagem os participantes encontram seu reconhecimento umpor meio do outro, no discurso de sala de aula, freqüentemente, há san-ção negativa de um para com o outro.

Ehlich (1986: 152) ressalta que, freqüentemente, o aluno não re-conhece o discurso de sala de aula como algo que diz respeito a ele:

Com isso, entretanto, perde-se o pré-requisito para este discurso serconduzido como um reconhecimento mútuo das partes envolvidas. Odiscurso não é mais uma expressão do reconhecimento daquele queensina pelo aprendiz e do aprendiz por aquele que ensina. O aprendizindividual está apenas parcialmente “presente” no discurso de sala deaula, só às vezes tomando parte ativamente.

Dessa forma, não há um envolvimento total do aluno no processo,isto é, há uma flutuação entre presença e ausência dos envolvidos. Osrelacionamentos podem ser marcados, de um lado, por momentos derealizações, satisfação pessoal, e, de outro, por oposições, conflitos e malentendidos.

Com efeito, não há dúvida de que existe a necessidade de pesqui-sas que focalizem a dinâmica da sala de aula. O objetivo deste trabalho,portanto, é fazer uma abordagem interacional do discurso de sala de aula,estudando as relações entre professor e aluno(s) e os diferentes tipos departicipação dos interactantes da sala de aula. Dessa forma, procurare-mos focalizar não apenas aquilo que está dito mas também as formasdessa maneira de dizer entre professor e aluno na sala de aula.

Para o desenvolvimento deste estudo, foram utilizados três inqué-ritos do Projeto NURC/RJ – 364, 379 e 382 –, constantes em Callou(1991) e um do NURC/SP – 124 –, constante em Castilho & Preti (1986).O corpus está constituído por aulas gravadas em áudio, com o conheci-mento de professores e de alunos, envolvendo ensino médio e universi-tário.

Page 180: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

182

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

Interação e Sala de Aula

Concebemos interação como Geraldi (1990: 36) e como Milanez(1987: 244). Para o primeiro, “toda interação é uma relação entre um eue um tu, relação intersubjetiva em que se tematizam representações dasrealidades factuais ou não”. Para a segunda, interação é um “processo deinterdependência dos comportamentos lingüísticos dos interlocutores empresença, e o resultado da influência exercida pelo quadro da comunica-ção sobre seus enunciados”. Em síntese, quando se utiliza a língua parase comunicar, há uma ação de um para com o outro, uma ação entreaquele que produz e aquele que recebe e vice-versa.

Necessariamente, a interação ocorre entre, pelo menos, doisinteractantes que estejam dispostos a esse evento. Esses interactantesrevezam-se na condição de falante e ouvinte, constituindo a interaçãouma “atividade cooperativa”, como lembra Brait (1993: 206):

Esses interlocutores revezam-se na condição de falante e ouvinte, ouseja, de sujeito comunicante e sujeito interpretante. A primeira conse-qüência a ser tirada dessa constante diz respeito à mecânica dainterlocução: o sujeito interpretante não reconstrói pura e simplesmen-te as significações produzidas pelo sujeito comunicante. Sendo ainterlocução aberta (há o revezamento de posições), cada um dos parti-cipantes interage parcialmente no projeto de construção de sentido dooutro. Isso significa dimensionar a interação verbal como uma ativida-de cooperativa, que implica um conjunto de movimentos coordenadosda parte dos participantes.

A linguagem é uma forma de ação que coloca em jogo diversasmaneiras de compreensão que precisam ser negociadas. Kerbrat-Orec-chioni (1990: 17) destaca que os interactantes da conversação exercemuns sobre os outros influências múltiplas, por isso todo processo comu-nicativo implica uma determinação recíproca e contínua de comporta-mentos das partes envolvidas. Professor e aluno, os dois agentes do dis-curso de sala de aula, desempenham papéis sociais bem específicos.

Page 181: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

183

Interação na fala e na escrita

Professor e aluno não ocupam o mesmo espaço na simbólica social doensino em meio escolar. Assim, seguindo Brait (1993: 195), conscienteou inconsciente, há algumas preocupações básicas atribuídas a ambos:

• Quem é o outro a que o projeto de fala se dirige?

• Quais são as intenções do falante com a sua fala, com a manei-ra de organizar as seqüências dessa fala?

• Que estratégias utilizar para se fazer compreender, compreen-der o outro e encaminhar a conversa de forma mais adequada?

• Como levar o outro a cooperar no processo?

Ao participarem das interações verbais, os interactantes põem emuso, mesmo que intuitivamente, as chamadas regras interacionais, que sebaseiam em seus conhecimentos práticos sobre a configuração de umdado evento e sobre como agir em eventos de interação de uma mesmanatureza. Nesse sentido, Matencio (2001: 78) assevera “que uma intera-ção verbal é, ao mesmo tempo, um evento de comunicação – de constru-ção de sentidos – e de construção de relações sociais, o que explica porque um evento de interação é o ponto de articulação entre o sujeito e osocial, em outras palavras, o lugar de (re) construção da realidade subje-tiva e social”. Goffman (1974: 32) deixa claro que, em qualquer socieda-de, cada vez que surgir a possibilidade de uma interação verbal, entra emjogo um sistema de práticas, de convenções e de regras de procedimentoque orientam e organizam o fluxo das mensagens emitidas.

Com isso, nas interações, os interactantes consideram o status – oseu próprio e o dos demais – suas respectivas identidades estão ligadas àsimagens construídas ao longo da interação como em função da institui-ção na qual ocorre o evento. Ainda de acordo com Matencio (2001: 78),é possível “pressupor que a posição hierárquica e as funções dos diferen-tes interlocutores no evento de interação são determinadas tanto para apercepção que estes têm de suas relações interpessoais como para amaterialização lingüística dessa percepção”. Sem dúvida, também exer-cem influência no evento de interação o número de participantes envol-

Page 182: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

184

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

vidos e o grau de conhecimento partilhado. A instância institucional in-tervém não apenas quanto à duração da aula e número de participantes,como também no que se refere à determinação dos objetivos educacio-nais, seleção e divisão do programa anual e o tipo de avaliação (do pro-fessor e do aluno), o que não garante, entretanto, a compreensão homo-gênea dessas determinações pelos diferentes participantes.

Um dos princípios básicos das várias correntes que estudam ainteração é o de que não se pode separar o verbal e o social (Goffman,1974), pois os eventos de interação representam o lugar onde são cons-truídas a identidade do sujeito e a ordem social. Dessa forma, o textointeracional é co-construído pelos sujeitos, pois há um falante que agesobre outro(s). Quem são, portanto, os interactantes da sala de aula?

Professor é aquele que tem o saber e está na escola para transmiti-lo. Conforme Charaudeau (1984: 118), a própria instituição – a escola –“dota-o de um duplo poder: poder relativo a seu suposto estatuto de saber(ou de saber-fazer), ao qual não pode renunciar mesmo que procure negá-lo; poder – em nome desse mesmo saber – relativo a seu papel de avali-ador que pode ir da sanção absoluta – se o sistema institucional o permi-tir – ao simples olhar do avaliador – por exemplo, em situação deauto-aprendizagem”. Por outro lado, o professor é visto pela sociedadena sua missão de formador e, por conseguinte, há uma possível missão,menos confortável para o professor, pois não é observado, analisado ecobrado por uma sala com um número determinado de alunos, mas pelaprópria sociedade.

Aluno é aquele que não tem o saber e está na escola para adquiri-lo. Percebe-se que o saber, aqui entendido como transmissão de conheci-mento e aprendizagem, não somente está no foco da relação professor/aluno, mas acaba sendo uma imposição da escola como instituição.

A motivação e a finalidade dos interactantes são variáveis queinterferem na interação. Dadas as funções institucionais e a posição hie-rárquica dos participantes, o professor tem o objetivo de ensinar e o alu-no, de aprender. É evidente que as intenções não são as mesmas, masnem por isso se pode dizer que a interação não se realiza, pois interação

Page 183: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

185

Interação na fala e na escrita

não significa concordância ou assentimento. Há um processo de ajusteentre intenção individual, coletiva e institucional, entre intenções par-ciais, finais dos participantes da interação, ajuste que caracteriza qual-quer evento de interação.

Professor e alunos, além de possuírem intenções complementa-res, possuem igualmente relações de lugares e papéis complementares.As intervenções dos alunos visam a informar ao professor o que sabem,dar continuidade à interação e manifestar-se quanto ao que é dito peloprofessor. A interação em sala de aula engloba ações do professor, rea-ções dos alunos a essas ações, reações do professor às ações dos alunos ereações dos alunos entre si. Esse é o universo psicossocial da sala deaula.

Na escola, o quadro da interação é definido pela situação de ensi-no que envolve professor e alunos em uma relação essencialmente assi-métrica, especializada, orientada para uma finalidade preestabelecida.Como aponta Vion (1992), a interação que se estabelece entre professore alunos tem um caráter complementar: o professor ocupa a posição su-perior e o aluno a posição inferior correlativa. Essas resultam da relaçãosaber-não saber e poder-não poder. A posição superior confere ao pro-fessor a responsabilidade de iniciar as diferentes etapas da aula, receberseus alunos, determinar o que será feito, solicitar, perguntar, avaliar, re-preender.

Na concepção que nos dá Bourdieu (1983 e 1987), o direito àpalavra e a legitimidade do discurso são regidos pela sociedade por meiode suas instituições, dentre elas, a escola. Assim, é mais competentelingüisticamente quem tem o direito à palavra. Na sala de aula, como oprofessor comanda e o aluno executa, como o professor detém o saber eo aluno recebe o saber, o discurso do professor é mais legítimo, confor-me atesta Bourdieu (1983: 160-161):

A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo deconhecimento, mas um instrumento de poder. Não procuramos somen-te ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeita-dos, reconhecidos. Daí a definição completa da competência como di-

Page 184: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

186

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

reito à palavra, isto é, à linguagem legítima como linguagem autoriza-da, como linguagem de autoridade.

Grigoletto (1995: 107), apoiada em Bourdieu, comenta as ima-gens da figura do aluno e do professor e deixa claro que o “indivíduoaprende, na escola, dentre outras instituições, as normas que regem odiscurso em sociedade, que regem o direito à palavra, os sentidos consi-derados legítimos pela sociedade, a estreita ligação existente entre auto-ridade e legitimidade”. Comenta, ainda, que os alunos da pesquisa reali-zada por ela, ao final do ensino fundamental ou no início do ensino médio,reproduzem as relações desiguais entre professores e alunos na situaçãoenunciativa da sala de aula. Assim, de acordo com as observações deBourdieu, a competência lingüística do professor é maior que a do alunoe ambos reiteram essa situação na sala de aula.

Ao abordar as interações no meio escolar, Kerbrat-Orecchioni(1992) reconhece que o professor ocupa uma posição privilegiada nessarelação, exercendo certo domínio sobre os alunos. Relaciona as marcasdesse domínio: quantidade de fala; atos de linguagem efetuados; iniciati-va e a estrutura das trocas conversacionais. A autora classifica as trocascomo do tipo “sandwich” (Kerbrat-Orecchioni, 1992: 114), isto é, a inte-ração entre professor e aluno se dá por meio do seguinte esquema:

• Pergunta do professor;• Resposta do aluno;• Avaliação do professor.

Com efeito, para que haja a consecução dos objetivos, é necessá-rio que o professor viabilize condições de interação, utilizando algumasestratégias. Barros (1986: 24-5) cita algumas dessas estratégias utiliza-das pelo professor:

a. relevância do tópico desenvolvido;

b. utilização de olhares expressivos;

Page 185: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

187

Interação na fala e na escrita

c. dirigir-se, diretamente, aos alunos engajados em atividadesconcorrentes e dispersas;

d. utilização de recursos não-verbais: aproximar-se, tocar, estalaros dedos, fazer gestos;

e. ameaças, veladas ou não.

Charaudeau (1984: 117) afirma que professor e aluno apresentamdiferenças marcantes; a relação aluno/aluno é simétrica, enquanto a rela-ção professor/alunos é assimétrica, pois:

a. não é uma relação entre iguais;b. há uma grande diferença de idade;c. há uma grande diferença de experiência;

d. há profunda diferença de nível de instrução e de conhecimen-to.

Em sua pesquisa, Pedro (1992: 77-9) também deixa claro que oprofessor tem o completo domínio da palavra em sala de aula, indepen-dente do meio social (favorecido ou não) e do nível de instrução (primá-rio ou secundário). O professor fala mais do que todo o grupo. Além disso,os enunciados dos professores são mais longos do que o dos alunos.

As diferenças que detectámos no número médio de palavras por enun-ciado, quando comparamos os enunciados do professor e dos alunos,são muito grandes: ao todo, para um número médio de 21,3 palavraspor enunciado no discurso do professor em Português, temos um nú-mero médio de 5,4 palavras por enunciado no discurso do aluno. EmMatemática, um número médio de 20,8 palavras por enunciado para oprofessor e de 4,2 palavras para os alunos.

Kerbrat-Orecchioni (1992: 114-5), quando faz observações sobrea interação no meio escolar, comenta as constatações da pesquisadoraAgnes Florin:

Page 186: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

188

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

a. na maioria das vezes, é o professor quem tem a iniciativa deiniciar e fechar a conversação;

b. ele impõe o tópico e, normalmente, não admite mudanças detópico que não tenham sido estabelecidas por ele;

c. ele monopoliza a palavra e pouco incentiva interferências dosalunos;

d. ele regula o sistema de comunicação, no qual conserva semprea posição central, controlando a conversação;

e. é o professor quem dá início à conversação (80% dos casos);

f. é o professor quem procede ao fechamento (70% dos casos);

g. essa “ditadura” da palavra pode ser quebrada pelo assalto aoturno do professor.

Sem dúvida, a assimetria, que marca as relações entre professor ealunos, é uma variável significativa ao se estudar o processo de interaçãona sala de aula.

Estrutura de Participação

A expressão estrutura de participação origina-se com Philips(1972) para definir os arranjos estruturais da conversa. Goffman (1981)também emprega a mesma expressão, ao analisar aspectos estruturais dainteração face a face relacionados com a mudança de footing e sua rela-ção com as noções de falante e ouvinte. Segundo o autor, a vida socialpode ter dois tipos de compreensão: uma literal, que é a instância do “oque está acontecendo aqui?” e uma metafórica, que é a instância do “qualo significado do que está acontecendo aqui?”. Footing ou alinhamentorefere-se à questão situacional presente na interação e designa a sinaliza-ção das mudanças na projeção de identidade ou na orientação dos parti-cipantes em relação uns aos outros e em relação ao processo interacional.Para ilustrar, cita um episódio envolvendo o então presidente Richard

Page 187: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

189

Interação na fala e na escrita

Nixon e uma jornalista. Num primeiro momento, os dois indivíduos es-tão desempenhando suas funções, com as restrições que essas funçõesimpõem. Nixon, na presença de jornalistas credenciados, assina um do-cumento oficial em uma cerimônia formal. Terminada a cerimônia, opresidente sinaliza uma clara mudança de footing, pois despe sua identi-dade pública e dirige um galanteio a uma das jornalistas que cobria oevento. Nesse ponto, ambos assumem as identidades de homem galan-teador e mulher galanteada, isto é, embora os indivíduos sejam os mes-mos, a identidade que desempenham é bastante diferente, o que caracte-riza uma mudança de footing.

No referido estudo, Goffman (1981: 76) defende a necessidade dese reanalisar os conceitos originais do modelo diádico falante/ouvinte,uma vez que esses conceitos encobrem uma série de aspectos da identi-dade social, relevantes para a análise da interação face a face. Os interac-tantes de um evento interacional desempenham papéis comunicativos ede identidade, de forma que falante e ouvinte assumem papéis diversosdurante a interação:

Por exemplo, os termos falante e ouvinte implicam que somente o queestá em questão é o som, quando, na verdade, a visão é organizacional-mente muito significativa também, às vezes até o tato. Na administra-ção da tomada de turno, na avaliação da recepção através das pistasvisuais dadas pelo ouvinte, na função paralingüística da gesticulação,na sincronia da mudança de olhar, na provisão da evidência de atenção(como na olhada à meia distância), na avaliação de absorção através daevidência de envolvimentos colaterais e expressões faciais, – em todasestas instâncias é evidente que a visão é fundamental, tanto para o fa-lante quanto para o ouvinte. Para a efetiva condução da conversa, émelhor que falante e ouvinte estejam em posição tal que possam obser-var-se mutuamente.

As questões referentes ao ouvinte abrangem a estrutura de parti-cipação e as referentes ao falante, formatos de produção.

No plano do ouvinte, identificam-se diversas maneiras de ouvir eenvolvem dois tipos de participação: ouvintes ratificados e ouvintes não

Page 188: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

190

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

ratificados. Os primeiros são reconhecidos como indivíduos que fazemparte da interação em curso; os segundos são reconhecidos como indiví-duos que não participam diretamente da interação.

O primeiro tipo – participantes ratificados – abrange três statusde participação: ouvinte endereçado, ouvinte não endereçado e platéia.O ouvinte endereçado refere-se a alguém a quem o falante dirige suaatenção visual, isto é, o ouvinte a quem a fala é dirigida especificamente.O ouvinte não endereçado remete àqueles a quem a fala não é dirigidaespecificamente, mas tem status participativo. A platéia ou audiênciaremete-nos a um conjunto de ouvintes ratificados na interação que ocor-re em contextos institucionais, isto é, há um falante que se dirige a váriosouvintes e a função deles é apreciar as observações feitas e não responderde forma direta, ainda que possam fazê-lo. É o caso de situações de salade aula.

O segundo tipo – participantes não ratificados – remete-nos àque-les ouvintes que não são reconhecidos como participantes diretos da in-teração. Podemos falar num ouvinte inadvertente, isto é, aquele que par-ticipa ocasionalmente da conversação e um ouvinte subreptício, aqueleque participa sem que o falante saiba, como por exemplo nas escutastelefônicas.

No plano do falante – formatos de produção – Goffman distingueos seguintes papéis comunicativos: animador, autor e principal. O pri-meiro refere-se ao falante enquanto responsável pela atividade física,acústica da fala, uma espécie de “máquina de falar”. O segundo é o falan-te visto como agente, o “dono do script”, responsável pelo conteúdo eimplicações da fala. O terceiro – principal – representa o falante vistocomo indivíduo revestido de uma posição estabelecida pela fala que pro-duz; o falante representa um indivíduo com identidade social particular,com capacidade específica enquanto membro representante de um gru-po; alguém que está comprometido com o que as palavras expressam.

Quando se trata de sala de aula, ainda que professor e alunoestejam no foco desse tipo de discurso, pode haver participantes oca-sionais:

Page 189: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

191

Interação na fala e na escrita

Exemplo 1Prof.: absolutista... isso vocês vejam o imPACto que isso causou naEuropa... um soberano tendo o seu poder limitado... a Europa toda seliga... contra a França... a Rainha... Maria Antonieta... era austríaca...nós vemos que...

Loc. Acidental: Roberta...

Prof.: pois não... o quê? Roberto?

Loc. Acidental: ROBERTA...

Prof.: Roberta... é aqui da sala? o colega está perguntando...

Loc. Acidental: obrigado...

Prof.: nós vemos... então o seguinte...

(Inq. 382, NURC/RJ, p. 108)1

Esse locutor acidental costuma quebrar a seqüência do professore, não raro, coloca em risco a face deste. No exemplo referido, o profes-sor desenvolvia seu tópico quando foi interrompido por um locutor aci-dental, que procura alguém cujo nome é Roberta que nem sequer perten-cia àquela classe. Embora não tenha comprometido, ele atrapalha ainteração professor/aluno, pois os alunos deixam de exercer a função deaudiência para representarem um participante não ratificado e um ouvin-te inadvertente.

Exemplo 2Prof.: (...) o povo japonês... a população do Japão... extremamenteGRANde pra sua área e extremamente laboriosa no sentido de que...SABIA que pra conseguir sobreviver... tá?...PREcisava AMPLIAR asua área de atuação... tá claro isso? a aula é gravada mas as perguntaspodem ser feitas e devem...senão fica parecendo monólogo nenhumadúvida então? quer dizer... situando... o Japão... que a gente conhece eouve falar de unidade japonesa que é o do pós guerra...

(Inq. 379, NURC/RJ, p. 77)

1 A indicação dos exemplos será feita da seguinte forma: número do inquérito, cidade epágina da fonte consultada. Símbolos usados na transcrição: ( ) incompreensão; /truncamento; ... qualquer pausa; :: alongamento; maiúsculas: entonação enfática; (( ))comentários descritivos do transcritor.

Page 190: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

192

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

No fragmento em questão, o professor deixa evidente que consi-dera importante a interação professor/ aluno. Podemos até dizer que éum exemplo de metalinguagem do discurso de sala de aula. Caso nãohaja interação, o discurso do professor ficará parecido com um monólo-go; daí ser importante a participação do aluno. Não satisfeito com a reco-mendação feita, novamente, o professor pergunta se não há nenhumadúvida. Como os alunos não perguntaram nada, ele entende que não houvenecessidade e acaba por desenvolver o turno, pois já abriu espaço para aparticipação. Dessa forma, o professor demonstra que está disposto ainteragir com seus alunos; caso não haja essa interação, ele estará isentode qualquer culpa. É importante salientar que, nas aulas expositivas, osalunos representam a audiência, cujo papel é ouvir e apreciar as conside-rações do falante. A audiência ratifica socialmente a natureza do eventode fala institucional, como é o caso da sala de aula. Na presença de umaaudiência não colaborativa, pode haver interferências negativas no de-sempenho do expositor. Por isso mesmo o exemplo atesta que o profes-sor deseja democratizar sua função de falante principal.

Exemplo 3Prof.: (...) quer dizer... não existe mais a Colônia nem a Metrópole...ele queria fazer uma coisa só...

Aluno 1: Sílvia... e os russos... que que tem a ver?

Prof.: ah... os russos... teria a ver? eu disse aqui... que dois países...

Aluno 1: é...

Prof.: (...) furaram a política protecionista de Napoleão... não aceita-ram o Bloqueio Continental...

Aluno 1: qual é o segundo?

Prof.: um... desses países...

Aluno 2: por favor... podia repetir o Bloqueio Continental?

Prof.: Bloqueio Continental? Napoleão... tomando aqueles países daEuropa Central... sucessivamente todos eles...

(Inq. 382, NURC/RJ, p. 118)

É importante salientar que o par pergunta/resposta representa umadinâmica fundamental sobre a qual está alicerçada a interação entre pro-

Page 191: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

193

Interação na fala e na escrita

fessor e aluno. No exemplo 3, o professor desenvolve o tópico e faz umapausa depois de entonação descendente. O aluno 1 faz parte da audiên-cia, mas, por um momento, deixa de lado seu papel de audiência e passaa representar o ouvinte ratificado ao formular uma pergunta a respeito deum assunto que não foi desenvolvido. Imediatamente, um tanto embara-çado e hesitante, o professor procura responder por meio de uma pergun-ta para, em seguida, começar a explicar. Após a pausa do professor, oaluno, demonstrando atenção e que estava pronto para ouvir, monitora oprofessor por meio de declaração back-channel (“é”). O professor conti-nua desenvolvendo o turno e, após nova pausa, o aluno 1 volta a monitorá-lo por meio de nova pergunta (“qual o segundo?”). Parece que o aluno jásabe que a sua pergunta – “qual o segundo?” – responderá à primeirapergunta: “e os russos... que que tem a ver?”. Quando o professor come-ça a responder, depois de outra pausa, o aluno 2, também desejando dei-xar de lado sua posição de audiência, assalta o turno do professor, inter-rompendo a explanação da resposta ao aluno 1, para formular umapergunta: “por favor... poderia repetir o Bloqueio Continental?”. Em vezde pedir que o aluno 2 aguarde a vez, o professor interrompe a resposta àpergunta do aluno 1 para responder ao aluno 2. Nesse momento, o pro-fessor deixa ao aluno 1 a condição de audiência e sanciona ao aluno 2 acondição de ouvinte endereçado. Mais tarde, sem se referir diretamenteao aluno 1, como ouvinte endereçado, é dada a resposta à pergunta inicialsobre os russos.

Exemplo 4Prof.: (...) mas vocês não viram então um texto que eu analisei... deBenjamin Whorf sobre os hopi – – quem estava aqui? ((vozes)) entãoquem me diz alguma coisa vamos ajudar os colegas — ... qual é adiferença entre a forma de pensar dos hopi e a forma de pensar dosindivíduos que pertencem... a grupos integrados na tradição cultural doocidente?... ((vozes)) ham?... ((vozes))

Aluno 1: éh... éh que os... parece que os hopi... eles aceitam as... regrassociais... como se fosse coisas deles... e no ocidente a gente meditamais como uma coisa que... que tem histórico...

Prof.: você já está saltando sobre o aspecto lingüístico para chegar nasconseqüências não é?... mas...

Page 192: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

194

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

Aluno 2: eles não têm passado nem futuro... ((vozes))

Prof.: certo... não existe passado presente e futuro... agora me diga umacoisa... eles não têm idéia então ninguém se casa por exemplo marca adata do casamento e não se casa porque não tem idéia do futuro?...((vozes)) como é a his/... como é a história?...

Aluno 2: a forma de expressão deles... é pelo presente... se por exemplouma... uma planta está:: verde... isso tem relação assim está se referin-do ao passado as planta está verde... ou ela vai ( ) amadurecer

Prof.: certo

Aluno 3: mas tem uma denominação especial para aqueles casos... nonaquele momento... e não um estado referindo ( ) passado

Prof.: exato... a o hopi diz... não há idéia então... de um CONTINUUM...

(Inq. 124, NURC/SP, p. 58-9)

A pergunta inicial está no final da primeira intervenção do profes-sor. Ela surge como uma estratégia para se colocar em prática o processoensino/aprendizado. O professor poderia ter desenvolvido o tópico semnada perguntar aos alunos, ratificando dessa maneira a condição de au-diência. Ele, contudo, afirma que o assunto não é estranho aos alunos,pois já foi discutido em outra aula. Em vez de desenvolver o tópico deforma expositiva, leva seus alunos a participar e os inclui como agentesdo discurso: “então quem me diz alguma coisa vamos ajudar os cole-gas”. Isso quer dizer que o professor institui seus alunos não como au-diência, mas como ouvintes endereçados. Em seguida, para que os alu-nos possam participar, ele lança a primeira pergunta: “qual é a diferençaentre a forma de pensar dos hopi e a forma de pensar dos indivíduos quepertencem... a grupos integrados na tradição cultural do ocidente?”. De-pois de alguma confusão de vozes, um determinado aluno (Aluno 1)assume o turno para responder. Em seguida, o professor avalia o que foidito pelo aluno, lembrando que não está errado o que foi dito, mas nãoresponde à questão proposta. Repare-se que o professor dirige-se direta-mente ao aluno 1 (“você já está saltando...”), contudo a intenção é que aconversa seja estendida à audiência. Outro aluno (Aluno 2) toma o turnodo professor e completa a resposta do colega. Na intervenção seguinte, oprofessor avalia positivamente a resposta, por meio do marcador “certo”

Page 193: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

195

Interação na fala e na escrita

e da repetição do segmento do aluno, ligeiramente modificado. Comoquer desenvolver o tópico, a partir da resposta dada pelo aluno, faz novapergunta, endereçada ao aluno 2: “como é a his/... como é a história?”. Oaluno responde e, mais uma vez, o professor avalia positivamente pormeio do marcador “certo”. É interessante notar que, em seguida, umoutro aluno (aluno 3) complementa o que foi dito pelo aluno 2. O profes-sor também leva em consideração e aprova o que foi colocado (“exato”),embora não tenha empregado nenhum termo de endereçamento específi-co para referir-se a ele. Isso nos leva a crer que o professor deixa de ladoa função de audiência e chama seus alunos a participarem, instituindo-lhes a função de ouvintes endereçados.

Exemplo 5Aluno: (...) mesmo com os maiores recursos que ele tem e a tecnologiae tudo... essa pequena empresa de pequeno porte...

Prof.: psiu meninas...

Aluno: se ela... se ela aceitar a briga... entendeu... e pegar recurso etudo... ela vai tá na frente e... ao passo que essa que vai começando...entende... vai... fica na posição provocativa e não tá por cima... por-que...

Prof.: mas... aí... você tá... você...

Aluno: ( ) sugeriram isso pra ela porque realmente ela tava num...

Prof.: mas... Fred... você...

Aluno: é uma opção muito pessoal... é uma opção muito pessoal...

Prof.: Fred... você há de convir... que... hã... esse crescimento... quevocê está imaginando... tá muito rápido...

Aluno: é...

Prof.: a multinacional abrir cinqüenta lojas...

Aluno: é... um absurdo...

(Inq. 364, NURC/RJ, p. 66-7)

No fragmento acima, tanto professor como aluno assaltam o turnoem três momentos. Na primeira interferência do professor, este intervémnão com o intuito de tomar o turno, mas para colocar ordem na classe, a

Page 194: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

196

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

fim de garantir ao aluno a vez de falar (“psiu meninas..”.). Isso deixaclaro que há alunos que, por um motivo qualquer, despem-se do papel deaudiência e colocam-se na função de ouvintes não endereçados. Nessemomento, o professor interrompe o evento de comunicação com os alu-nos que estão na função de ouvintes endereçados e dirige-se aos ouvintesnão ratificados, a fim de que possa ser efetivada a comunicação corrente.Em seguida, há uma disputa pelo turno, pois o aluno insiste em terminarsua argumentação, enquanto o professor deseja alertar o aluno de que seuraciocínio está errado. Finalmente, o aluno entende que sua posição nãoestá correta. É interessante observar que as duas últimas intervenções doaluno, embora representem assalto, pois interrompem a fala do profes-sor, não sinalizam que o aluno deseje tomar o turno, pelo contrário, ma-nifesta desejo de monitorar a fala do professor, demonstrando concor-dância. A penúltima intervenção do aluno (“é...”) já representaconcordância com a posição do professor. A última interferência do alu-no completa a fala do professor. Repare-se que, se juntarmos os doisturnos, é possível formar uma única oração: “a multinacional abrir cin-qüenta lojas... é... um absurdo”

Exemplo 6Prof.: ... mas você não pode... separar... essa causa política... das causassociais e das causas econômicas... nós vimos que tudo isso se entrela-ça... nós vamos ver hoje... aqui... quem já falou... já viu alguma coisasobre o Sobul... nós vamos ver... o que a Revolução Francesa... o que acaracteriza... FALA GILDA... que que você... que que caracteriza aRevolução? nós falávamos na outra aula sobre isso... Gilda... então...aí... vamos lá...

Aluno 1 (Gilda): não estava na outra aula...

Prof.: não estava? ( ) mas você já viu alguma coisa e pode dizer o queque caracteriza a Revolução Francesa?... ((vozes)) quem substitui?Grasiela... também faltou à outra aula... quem disse... aqui? Gelson...que que caracteriza a Revolução Francesa?

Aluno 2 (Gélson): eles fizeram a Assembléia Nacional...

Prof.: eles fizeram a Assembléia Nacional... mas isso não é a caracte-rística... uma revolução... que é uma revolução?

Aluno 3 (Michel): ( )

Page 195: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

197

Interação na fala e na escrita

Prof.: ah... muito bem...

Aluno 3 (Michel): ( )

Prof.: muito bem...

Aluno 3 (Michel): ( )

Prof.: muito bem... olha o Michel tá ficando... tá ficando um “expert”em História... começou... no princípio foi ótimo... não ter ido muitobem na primeira prova... não foi? foi ótimo porque ele se interessou detal maneira... que agora dá aula...

(Inq. 382, NURC/RJ, p. 103-4)

O início da intervenção do professor é a apresentação de um novosubtópico, a caracterização da Revolução Francesa. Como o professornão deseja impor, isto é, tem a intenção de camuflar o fato de que ele sabee os alunos devem aprender, faz que seus alunos participem. Com isso,tem a intenção de que seus alunos não sejam apenas audiência, mas ou-vintes endereçados. Essa estratégia empregada pelo professor pode acar-retar a ameaça das faces, aqui entendida no sentido que atribuído porGoffman (1970), como a expressão social do indivíduo ou a imagempública. Ao se dirigir diretamente a uma determinada aluna (Gilda), oprofessor ameaça a face negativa dessa aluna (“Gilda... então... aí... va-mos lá...”). Para amenizar, emprega uma estratégia de polidez positiva:2

o “nós” participativo, englobando a aluna no âmbito do saber (“nós falá-vamos na outra aula sobre isso..”.). Ao mesmo tempo, esse enunciadorepresenta uma implicatura, que sinaliza: Você ouviu falar sobre isso,logo deve saber. Repare-se que a intervenção da aluna Gilda é uma res-posta a essa implicatura com outra implicatura: – “não estava estava naoutra aula..” –, que sinaliza ao professor: Eu não estava na outra aula,portanto não tenho obrigação de saber. A aluna Gilda, por não saberresponder à questão proposta pelo professor, utiliza uma estratégia depolidez negativa, pois a intervenção da aluna é uma forma atenuada dedizer que não sabe a resposta. A resposta da aluna ameaça ainda mais aface negativa dela mesma, pois, além de não saber responder (função dequem está aprendendo), não estava, como era de esperar, inteirada do

2 Sobre a questão referente às faces (negativa e positiva) e à polidez, consultar Silva (1998).

Page 196: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

198

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

assunto. Por isso mesmo o professor não aceita a desculpa da aluna eameaça a face positiva, pois sem atenuação deixa evidente que, mesmonão estando presente na outra aula, ela deveria saber alguma coisa sobreo assunto.

Percebe-se que o professor não desiste de interagir com a classe einsiste que seus alunos participem, instituindo-lhes a função de ouvintesendereçados e não como audiência. Como tal, devem responder à ques-tão inicial. Em seguida, o aluno Gélson afirma que estava presente naoutra aula e tenta responder (“eles fizeram a Assembléia Nacional..”.).Sua resposta, no entanto, não satisfaz a expectativa do professor. Numprimeiro momento, há polidez positiva quando o professor repete o enun-ciado do aluno. O que foi dito pelo aluno não está errado, contudo nãoresponde à questão proposta. A face do aluno também foi ameaçada, pormeio do enunciado do professor (“mas isso não é a característica..”.).Além de não saber a resposta, não conhece o termo conceitual. O que elerespondeu não é uma característica, trata-se de um fato. A interação pro-fessor/ aluno(s) na sala de aula constitui um jogo de ameaça e preserva-ção de faces. A situação criada pelo professor, ao fazer a pergunta, colocaem risco não só a face dos alunos que deixaram de responder, mas ame-aça a face da classe como um todo e, por conseguinte, a face do próprioprofessor: caso seus alunos não saibam responder, o objetivo das aulasnão foi alcançado.

Finalmente, para salvar a imagem da classe e do professor, há umaluno que responde à pergunta formulada. Ainda que não saibamos oque tenha respondido (sua fala fica inaudível), Michel corresponde àsexpectativas. O professor faz questão de sancionar a face positiva doaluno, mostrando o progresso que teve; de uma situação ruim – “não terido muito bem na primeira prova”– para uma situação abonadora: res-ponder a uma questão que ninguém da classe foi capaz de responder. Oprofessor sanciona a face positiva de Michel por meio da polidez positi-va, representada pela expressão “muito bem”, enunciada três vezes. Éinteressante notar que, enquanto o aluno responde, o professor o monitorae incentiva; em seguida, lembra a situação desagradável, para, em segui-da, ser testemunha do percurso de sucesso: foi mal na prova (e não desis-

Page 197: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

199

Interação na fala e na escrita

te como tantos outros), interessou-se e superou a situação ruim, tornando-se um “expert”, que está acima do nível de aluno, pois “agora dá aula”.Com efeito, a situação serve para reiterar a face positiva do professor. Naprimeira situação, quando o aluno foi mal na prova, pode ter ficado a im-pressão de que a culpa era do professor, contudo o sucesso do aluno é aprova do sucesso do professor. Ele tem parte no progresso do aluno.

Exemplo 7Prof.: só com uma estratégia... pela quebra de... hã... de uma outra em-presa... é feito uma corrida de Fórmula Um... hã... dois carros disputamo primeiro lugar... aquele que sair em primeiro... na Pole Position le-vou vantagem... esse aqui saiu... por hipótese... quatro segundos de-pois... o carro B... quantas voltas eu vou precisar pra poder tirar essadiferença de quatro segundos... se o carro número um continuar tendoum bom desempenho? ele passa... assim na hora? quantas voltas eleleva pra poder atingir?

Aluno 1: depende do piloto...

Prof.: depende do piloto... depende de quem está administrando.. masdepende do carro também...

Aluno 1: é claro...

Prof.: ninguém discute que o Fittipaldi é um excelente piloto... todoscontinuam... hã... acreditando tecnicamente no Fittipaldi... mas o carronão ajuda né? o carro não passa ninguém... passa quando os outrosquebram...

Aluno 1: o carro é bom...

Prof.: o carro é bom?

Aluno 1: é lógico...

Prof.: é bom?

Aluno 1: o problema... o problema é o motor...

Aluno 2: quando está correndo várias corridas...

Prof.: então o carro não é bom... pô...

Aluno 1: o carro é bom...

Prof.: se (você) tá dizendo que o carro é bom... o problema é o motor...o carro não é bom...

Aluno 1: é que tem desnível no motor...((risos)) não... porque todo car-ro de For/ de Fórmula Um

Page 198: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

200

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

Prof.: hum? só que o dele ele não conseguiu ajustar?

Aluno 1: é... por causa do...

Prof.: enfim...

Aluno 1: é... não interessa...

Prof.: existe alguma coisa que ele não consegue disputar nada... ago-ra... os dois carros estão correndo... e você observa isso numa... numacorrida de Fórmula Um...

( Inq. 364, NURC/RJ, p. 72-3)

No exemplo em questão, o professor desenvolve o tópico sobre odesempenho de empresas e, para exemplificar, compara com uma corri-da de Fórmula Um. No entanto, há uma digressão acarretada por umcomentário que o professor faz a respeito do carro dirigido pelo ÉmersonFittipaldi. Nesse momento, há uma disputa entre professor e aluno 1. Naépoca, Émerson Fittipaldi era um piloto consagrado que resolveu guiarum Fórmula Um brasileiro. O piloto era bom, mas o carro não correspondiaao condutor. O professor defende essa idéia, mas o aluno afirma que ocarro era bom, porém o motor era ruim. A interferência do aluno provocauma mudança de footing, à medida que o professor e aluno assumem opapel de torcedores de um determinado tipo de esporte. Nesse aspecto, oprofessor chega a ameaçar a face negativa do aluno várias vezes, pormeio de sintagmas interrogativos que colocam em dúvida a afirmação doaluno: “o carro é bom?” e “é bom?”. Esses sintagmas interrogativos re-presentam formas de polidez negativa, à medida que o professor, em vezde ser direto e afirmar que o carro não era bom, recorre a formas indire-tas, a fim de atenuar a ameaça à face do aluno. Este também ameaça aface negativa do professor, insistindo na idéia de que o carro era bom: “ocarro é bom..”.; “é lógico”; “o carro é bom”. Como o professor está con-victo do que está dizendo, ainda mais que era opinião corrente na época,chega até a alterar a voz e abandona o tom de cortesia. O enunciado“então o carro não é bom... pô..”., é produzido de forma conclusiva edireta. Quando o aluno procura explicar seu argumento, chega a provo-car risos nos colegas, ameaçando a própria face (“é que tem desnível nomotor... (risos)”). Na intervenção seguinte, o professor reage de forma

Page 199: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

201

Interação na fala e na escrita

irônica ao argumento apresentado pelo aluno. No turno seguinte, dianteda reação irônica do professor, o aluno procura explicar sua posição e,talvez, pela situação delicada em que se encontra, não consegue comple-tar o enunciado. O professor intervém e, mais uma vez, ameaça a face doaluno, enunciando “enfim”, que deixa claro que é para o interlocutordizer qual era a referida causa. Finalmente, o aluno reconhece que nãovale a pena insistir na discussão – “é... não interessa..”. –, preservando aface positiva do professor. Podemos, inclusive, supor que essa expressãodo aluno (“é... não interessa...”) traz também certo aspecto agressivo oude desprezo. Talvez haja a intenção de indicar que, como o professor é avoz de comando na sala de aula, não adianta ficar insistindo na posiçãoassumida, pois o professor não se dobrará diante dos argumentos de umsimples aluno.

O fragmento deixa evidente um determinado momento em que ainteração professor/ alunos assume uma característica própria: professore aluno 1 representam os ouvintes endereçados e os demais, a audiência.Há, ainda, a tentativa de participação do aluno 2, que intervém ocasional-mente. Encerrado o momento em que se discute o desempenho do carrode Émerson Fittipaldi, o professor volta ao tópico interrompido e conti-nua desenvolvendo sua analogia com a Fórmula Um, como se nada ti-vesse acontecido.

Considerações finais

O tema deste trabalho – interação entre professor e aluno(s) nasala de aula – constitui um núcleo de grande interesse para a pesquisasobre o ensino, especialmente no que se refere ao desempenho do pro-fessor, pois é fundamental para a compreensão de fatores que condicionamo fracasso ou o sucesso escolar, pois há que se conhecerem as dinâmicasinternas da escola, mais particularmente as da sala de aula. Embora a salade aula não seja o único lugar para se aprender, é aí que reside o foco doprocesso ensino/aprendizagem, ainda mais em se tratando da realidade

Page 200: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

202

SILVA, Luiz Antônio da. Estruturas de participação e interação na sala de aula

brasileira, cujo ensino, de maneira geral, tem-se restringido às quatroparedes de uma sala de aula e ao suporte da lousa, giz, apagador, livrodidático, apostilas.

Na sala de aula, professor e alunos se encontram com a obrigaçãoinstitucional de interagirem. A habilidade do professor em dirigir o dis-curso determina a conversação na sala de aula, tendo grande influênciano processo de aprendizagem. A interação é o ponto central desse pro-cesso. Com efeito, de acordo com as intenções e habilidades do profes-sor para promover interação, o aluno pode ou não ser engajado no pro-cesso. Para alcançar esse objetivo, o professor emprega uma série demecanismos para verificar o canal de entendimento ou para quebrar amonotonia, facilitando e motivando a participação do aluno. Dessa for-ma, ainda que esteja sob a tutela do professor, o discurso de sala de aulanão é unilateral. Ele é construído em conjunto com os alunos e a partici-pação deles é de tal modo importante, que pode ditar mudanças bruscasno ritmo desse discurso. As ações do professor são tão cruciais para orumo do discurso de sala de aula, que o aluno pode transformar-se emouvinte passivo, alheio ao que acontece na aula ou num participante ati-vo, tornando-se co-autor do discurso de sala de aula.

A interação em sala de aula é uma atividade complexa, com mui-tas variáveis. Daí a premência de pesquisas sobre as diversas formas deos alunos participarem desse evento que se realiza nas quatro paredes deuma sala de aula.

Referências bibliográficas

BARROS, Kazuê S. M. de (1986). Aspectos da organização conversacional entreprofessor e aluno em sala de aula. Dissertação de Mestrado. Recife: UFPe.

BORDIEU, Pierre (1983). Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero._______. (1987). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.BRAIT, Beth (1993). O processo interacional. In: PRETI, Dino (Org.). Análise de

textos orais. São Paulo: Humanitas.

Page 201: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

203

Interação na fala e na escrita

CALLOU, Dinah (1991) (org.). A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janei-ro. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras.

CASTILHO, Ataliba T. de & PRETI, Dino (1986) (orgs.). A linguagem culta nacidade de São Paulo. São Paulo: T.A. Queirós/Fapesp. Vol. I – Elocuções For-mais.

CHARAUDEAU, Patrick (1984). Linguagem, cultura e formação. In: Trabalhos emLingüística Aplicada, 3: 111-9.

EHKICH, Konrad (1986). Discurso escolar: diálogo? In: Caderno de estudos lin-güísticos, 11: 145-72.

GERALDI, João W. (1990). Linguagem e interação. Tese de doutorado. Campinas:IEL/Unicamp.

GOFFMAN, Erving (1970). Ritual de la interacción. Buenos Aires: TiempoContemporáneo.

_______. (1974). Frame analysis. New York: Harper & Row._______. (1981). Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.GRIGOLETTO, Marisa (1995). A concepção de texto e de leitura do aluno de 1º e 2º

graus e o desenvolvimento da consciência crítica. In: CORACINI, Maria JoséR.F. (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua es-trangeira. Campinas: Pontes.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine (1990). Les interactions verbales. Paris:Armand Colin. Vol. 1.

_______. (1992). Les interactions verbales. Paris: Armand Colin. Vol. 2.MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (2001). Estudo da língua falada e aula de

língua materna. Campinas: Mercado de Letras.MILANEZ, Wânia (1982). Recursos de indeterminação do sujeito. Dissertação de

Mestrado. Campinas: IEL/Unicamp.PEDRO, Emília R. (1992). O discurso na aula: uma análise sociolingüística da prá-

tica escolar. 2 ed., Lisboa: Caminho.PHILIPS, Susan U. (1972). Participant structures and communicative competence.

In: CAZDEN, C.; JOHN, V.; HYMES, D. (Orgs.). Functions of language in theclassroom. New York: Academic.

SILVA, Luiz Antônio (1998). Polidez na interação professor/aluno. In: PRETI, Dino(Org.). Estudos de língua falada: variações e confrontos. São Paulo: Humanitas.

STUBBS, Michael (1987). Análisis Del discurso. Madrid: Alianza Editorial.VION, Robert (1992). La communication verbale: analyse des interactions. Paris:

Hachette.

Page 202: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

A REVISTA VEJA: INTERAÇÃO E ENSAIO

Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade

“(...) ao leitor, mesmo o de jornal, não cabe alternativa a não ser assu-mir a condição de o outro a quem estratégias e movimentos textuaisvisam e, assumindo essa condição, reconhecer, tanto quanto possívelque para haver significação há necessariamente construção, o que im-plica mostrar determinadas coisas e esconder outras”.

Beth Brait 1

Considerações iniciais

O objetivo deste artigo é focalizar a questão da interação social namídia impressa, por meio da análise de textos publicados na Revista Veja,como: “Ensaio”, de Roberto Pompeu de Toledo. A partir desse autor,estaremos cotejando como a revista é lida e recebida pelo leitor que,efetivamente, publica sua opinião na seção “Cartas”. Para podermos re-fletir de modo mais completo sobre o trabalho do referido jornalista –publicado semanalmente na última página da revista – estaremos, namedida do possível, fazendo um contraponto com outros textos do autor,publicados na mesma seção ou com outros trabalhos apresentados maisesporadicamente como resenhas ou artigos de fundo.

1 Brait, 1991: 90.

Page 203: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

206

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

1.Texto e interação social

O termo texto pode ser definido “como atividade lingüística deinteração social, visto que se constrói a partir de uma progressão contí-nua de significados que se combinam tanto simultaneamente como emsucessão” (Andrade, 2001: 125). Esse significado decorre de uma sele-ção feita pelo enunciador entre as várias opções que constituem o potencialde significado. O texto é, portanto, a realização efetiva desse potencial designificado, é o resultado de um processo de escolha semântica.

Em outras palavras, o texto é uma unidade semântica que possuiuma estrutura genérica, apresenta coesão/coerência e constitui o seu pró-prio entorno (contexto de situação, tipo de contexto social ou tipo desituação). Entretanto, há uma indeterminação básica no conceito de tex-to. Na interação social, o texto não é algo que tenha um princípio e umfim, o intercâmbio de significados é um processo contínuo e implícitoem toda a atividade comunicativa. Por texto, então, entende-se um pro-cesso contínuo de escolha semântica que resulta num produto de seuentorno e que nele encontra seu funcionamento.

Para Halliday (1978), o contexto de situação inclui o contextosemântico e essa é a razão pela qual o autor o considera uma construçãosemiótica. De modo geral, esse contexto é constante para o texto, mas –efetivamente – está em incessante mudança e cada parte serve comoentorno para a parte seguinte. Por isso, o traço essencial do texto é ainteração: intercâmbio de significados.

Neste momento podemos indagar: Como se chega da situação aotexto? Que características do entorno permitem as opções feitas pelo enun-ciador? Para que possamos encontrar uma resposta adequada, devemosobservar o modo como o texto está vinculado à situação. Para isso, éconveniente especificar que aspectos do contexto de situação orientamcada uma das escolhas semânticas feitas pelos participantes da atividadetextual. Dito de outra maneira: quais são os fatores situacionais para cadaum dos componentes do significado, mediante os quais esse significadoé ativado?

Page 204: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

207

Interação na fala e na escrita

A resposta está na caracterização oportuna do contexto de situação,caracterização essa que pode revelar a relação sistemática entre a lingua-gem e o entorno. Isso implica uma construção teórica que vincule, simulta-neamente, a situação ao texto, ao sistema lingüístico e ao sistema social.Nessa perspectiva, Halliday (1978 e 1989) interpreta a situação como umaestrutura semiótica, ou seja, uma determinada situação é observada comoum tipo de situação social e não como uma situação particular única.

Para esse estudioso, a situação consiste em ação social, estruturade papéis e organização simbólica. É uma ação social, na medida em quehá uma atividade em andamento, cuja interação entre os participantes é atotalidade dessa ação social. Apresenta um significado reconhecível nosistema social, e em tais ações o texto desempenha um papel determina-do, incluindo o “assunto”, isto é, o tópico discursivo como um aspectoespecial. Expõe uma estrutura de papéis que diz respeito à relaçãoestabelecida entre os participantes da atividade, relação essa que podeapresentar atributos permanentes dos participantes ou vinculação de pa-péis específicos para a situação, inclusive os papéis verbais, aqueles queemergem mediante o intercâmbio de significados verbais. É uma organi-zação simbólica porque o texto adquire uma posição particular dentro dasituação: desempenha uma função dentro da ação social e a estrutura depapéis, incluindo o canal ou meio e o modo retórico.

Na verdade, essa explicação que Halliday apresenta para a situa-ção complementa-se com três categorias designadas por ele de campo(atividade interacional/social em curso), teor (relações de papéis sociaisdesempenhados pelos participantes da atividade) e modo (papel da línguana atividade e o canal). Assim, o entorno ou contexto social da lingua-gem estrutura-se como um campo de ação social significativa, um teorde relação de papéis e um modo de organização simbólica. Se considera-das conjuntamente, essas categorias constituem a situação ou contextode situação de um texto.

Imaginemos três contextos de situação específicos: um em queum grupo de rapazes está jogando futebol, outro no qual um jornalistaentrevista um comentarista esportivo a respeito das últimas atuações daseleção brasileira de futebol, e um terceiro em que um cronista escreve

Page 205: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

208

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

sobre futebol para uma revista de esportes. A diferença no uso da lingua-gem nos três casos se faz evidente. No primeiro, ela funciona como partedo jogo, está subordinada a ele como expressão pragmática que reflete ocomportamento dos participantes durante o jogo. Já nos dois últimoscasos, a linguagem faz parte de uma atividade bastante distinta, podetornar-se informativa, didática, argumentativa ou refletir qualquer umdos modos retóricos do discurso, pois a ação social passa a ser de nature-za simbólica (verbal) e a interação define-se quase exclusivamente emtermos lingüísticos, já que a ação social passa a ser o próprio discurso (aentrevista, no segundo caso; e a crônica, no terceiro).

Por tudo isso as categorias de campo, teor e modo são, na perspec-tiva de Halliday, o pano de fundo do contexto de situação, caracterizam-no e determinam o tipo de linguagem empregada, funcionando comoconstituintes do texto. O contexto de situação é o entorno imediato noqual o texto realmente funciona. A partir desse elo estreito entre texto econtexto, o usuário da língua (enunciador – escritor – produtor – locutor-falante / enunciatário – leitor- receptor- alocutário – ouvinte) constróiseu texto, faz predições, lê ou ouve com expectativas do que virá emseguida. O texto é, portanto, um evento interativo, uma troca social designificados e tal troca se torna evidente nos textos orais (conversaçõesespontâneas, entrevistas de rádio, entrevistas de televisão, debates, nosmateriais do Projeto NURC/SP etc.), embora ela também esteja presentenos textos escritos (bilhetes, cartas pessoais, notícias de jornal, editoriais,documentos oficiais, artigos científicos, entre outros).

Entretanto, neste artigo, referimo-nos apenas aos textos publica-dos na mídia impressa e, de modo particular, àqueles em que há umretorno efetivo do leitor, evidenciado na seção “Cartas”, como ocorre narevista Veja. Assim, o contexto de situação em que o texto (ensaio) seefetiva está revelado no próprio ensaio e em algumas “Cartas”, eventual-mente selecionadas pelo editor da revista. Tal revelação não se dá de umaforma mecânica, mas por meio de um relacionamento sistemático entreo meio social, de um lado e a organização funcional da língua, de outro.

Na visão de Maingueneau (2001: 54), a interação – denomina-da por ele de interatividade – é elemento fundamental do discurso/

Page 206: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

209

Interação na fala e na escrita

texto,2 ou seja, é constitutiva, “é uma troca, explícita ou implícita, comoutros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de umaoutra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relaçãoà qual constrói seu discurso”.

Uma análise textual deve, portanto, levar em conta os traços lin-güísticos que permitem reconhecer a intencionalidade do enunciador, osefeitos de sentidos construídos por esse enunciador ou pelo locutor porele instaurado/instituído, e a persuasão ou manipulação que o enunciadorbusca exercer sobre o enunciatário (leitor).

Ao estudar o discurso fotográfico-persuasivo de um jornal de gran-de circulação no país, Brait (1994/1995: 26) afirma:

A delimitação dos processos de persuasão implicam a exploração dojogo de imagens que o enunciador constrói de si mesmo, no caso ainstituição jornalística empenhada em revelar os fatos, do enunciatário,no caso o leitor que deve receber a informação, formar sua opinião emudar suas atitudes, e, ainda, do tipo de fazer a que o enunciatário estásendo induzido.

Se atentarmos para esse comentário, podemos perceber que tam-bém é válido para a relação estabelecida entre os participantes do proces-so enunciativo do ensaio sob análise: enunciador (autor: jornalista RobertoPompeu de Toledo) e enunciatário (leitores de modo geral e, especifica-mente, aquele que na semana seguinte envia uma carta para a revista).

2. Configuração contextual do ensaio

No meio acadêmico, o ensaio é definido por Salvador (1971)3

“como um estudo bem desenvolvido, formal, discursivo e concludente”.

2 Neste artigo, os termos texto e discurso estão sendo tratados como sinônimos; emprega-mos, pois, indistintamente, um e outro.

3 Salvador, Angelo D. Metodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. Porto Alegre: Sulina,1971, p. 163, apud Severino (1986).

Page 207: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

210

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

Deve apresentar exposição lógica, reflexão, argumentação rigorosa comalto nível de interpretação e julgamento pessoal. Segundo Severino (2000:153), “no ensaio há maior liberdade por parte do autor, no sentido dedefender determinada posição sem que tenha de se apoiar no rigoroso eobjetivo aparato de documentação empírica e bibliográfica”, como acon-tece nos artigos científicos, nas dissertações e teses. Ainda segundo oautor, os grandes pensadores preferem essa forma de trabalho para apre-sentar suas idéias científicas ou filosóficas.

De fato, o ensaio – ainda que publicado em revistas de grandecirculação nacional que objetivam informação, divulgação e entreteni-mento – continua revelando rigor lógico e coerência de argumentação e,por isso mesmo, exige grande conhecimento cultural e certa maturidadeintelectual não só por parte de seu enunciador (produtor), mas tambémdo co-enunciador4 (leitor).

Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), o clássico autor deEnsaios, trata em sua obra de assuntos diversos: amizade, virtude, socie-dade. Seus textos são autênticos documentos da civilização ocidental,revelando a importância de o ser humano encontrar o caminho da verda-de, da justiça, sem esquecer a relatividade das coisas humanas.

Na visão de Huisman (2000: 179), a obra do pensador francês é“ondulante e diversa”. Constitui-se de reflexões e comentários sobre osvários fatos da história passada e presente. Acima de tudo, o assunto deEnsaios é a insatisfação do enunciador com o seu tempo, bem como umareflexão sobre a morte; entretanto, camuflada a todas essas questões, oautor descreve a si mesmo: “O que descrevo sou eu mesmo. Eu sou amatéria de meu livro” .

Vejamos mais de perto as palavras de Huisman sobre o ensaísta:

4 Adotamos a terminologia empregada por Maingueneau (2001: 54) e proposta anterior-mente por Antoine Culioli: enunciador (parceiro 1)/co-enunciador (parceiro 2) ecoenunciadores (sem hífen) para designar os dois parceiros do discurso, dado que a enun-ciação não caminha em mão única, ela não é exclusivamente a expressão de um locutorque se dirige a um alocutário passivo, mas é uma atividade interacional, dialógica.

Page 208: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

211

Interação na fala e na escrita

Montaigne é um ser móvel como a sua obra; dá-se à digressão, utiliza ametáfora, passeia o pensamento através dos meandros das frases. Noentanto, essa liberdade não deixa de dissimular um rigor e uma arti-culação premeditada. Fiel à filosofia antiga de Sêneca e de Plotino,Montaigne representa o pensamento de seu século. Moderado, partidá-rio do meio-termo, ele é um diletante refinado e mundano. Adepto dafelicidade terrestre, simboliza o honnête homme por excelência (p. 180).

Em relação aos ensaios publicados na Veja, verificamos que elesestão fielmente sempre na última página da revista e que seu autor, ojornalista Roberto Pompeu de Toledo, além de manter essa coluna sema-nal, também faz parte do grupo de editores especiais. Eventualmente,realiza alguma reportagem ou resenha um livro. Dentre as mais recentesresenhas, destaca-se “O santo de Assis”5 sobre a obra do historiadorfrancês Jacques Le Goff que, nas palavras do jornalista, “revisita a vida,o tempo e as circunstâncias do Poverello” (p. 160).

Em dezembro último, Veja publicou uma edição especial em quebuscou fazer uma retrospectiva dos “100 fatos que marcaram o ano 2000”,complementados por dezesseis artigos de fundo com reflexões sobremomentos históricos importantes e/ou transformadores para a “marcha”da humanidade. Dentre tais artigos produzidos por pessoas de renomeinternacional, o primeiro é de Roberto Pompeu de Toledo: “O exemplodos bons selvagens” que surge, no espaço da revista, logo após umarápida análise dos fatos de “O ano em que o Brasil deu bom exemplo”.Nas palavras do próprio editor dessa edição especial, o nosso referidojornalista:

transforma a reedição de um livro clássico de Afonso Arinos numaviagem pelos meandros da criação da alma brasileira. O relato da vidados índios tupinambás e, muito provavelmente, a presença deles emcarne e osso na Europa do século XVI ajudaram a criar o mito do “bomselvagem”, que tanta influência exerceu sobre a política e a cultura doOcidente” (p. 67).

5 Resenha publicada em 23 de maio de 2001, p. 160-1.

Page 209: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

212

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

Por meio da enunciação constituída nos trabalhos de RobertoPompeu de Toledo, percebemos que, tanto na resenha, quanto no artigo,mencionados acima, e no ensaio sob análise as estratégias de construçãodo discurso (perguntas retóricas, digressões, inserções, citações, alusões,marcadores argumentativos, entre outras) visam a estabelecer uma apro-ximação mais efetiva com o leitor, buscando envolvê-lo e criando maiorcumplicidade para que ele também seja seu co-enunciador. Na verdade,o texto revela e desvela um enunciador que, talvez na trilha de Montaigne,sinta-se insatisfeito com o seu tempo, com a sociedade em que vive ebusque por meio da reflexão dividir com seu leitor suas dúvidas, anseiose preocupações.

Vejamos, a título de exemplificação e contraponto, uma passagemda resenha e outra do artigo:

(1) E se Jesus voltasse? Dostoievski imaginou a cena, no famoso episó-dio de Os Irmãos Karamazov intitulado “O Grande Inquisidor”. Umdia Jesus aparece em Sevilha, no tempo da Inquisição. Ainda na véspe-ra, 200 hereges haviam sido queimados. A multidão logo reconhece orecém-chegado. Vão lhe abrindo caminho e se ajoelhando. Um cegogrita que o cure – e nesse exato momento a luz penetra-lhe nas pálpe-bras. Uma família que vinha enterrar a filha pede-lhe que a ressuscite –e ele o faz. A agitação chama a atenção do cardeal, que sai à rua. Eletambém reconhece Jesus de imediato – e o que faz? Manda prendê-lo.Trancafiam-no numa cela. Mais tarde o cardeal vai visitá-lo. Está irri-tado. Com que propósito, com que direito, essa súbita aparição? “Nãotens o direito de acrescentar nada ao que disseste”, diz, desfiando oargumento que é o ponto alto da história. “Por que nos vieste pertur-bar?” E promete que, no dia seguinte mesmo, haverá de levar o intrusoà pior das fogueiras. Ele não tinha o direito de acrescentar fosse o quefosse ao que já dissera. E a administração do que dissera não lhe cabiamais.

Dostoievski é ficção. No mundo real, algo próximo da reencarnação deJesus ocorreu quando,em 1181 ou 1182, na cidade italiana de Assis,veio à luz um certo Francisco Bernardone. Ele não nasceu pobre, comoJesus – era filho de rico comerciante de tecidos. Mas se fez pobre porescolha, e inaugurou a nova vida numa cena teatral em que, tendo deum lado o bispo da cidade e, do outro, seu indignado pai, se despiu atéficar todo nu – “nu como Cristo”, disse. (...) Foi tão bem sucedido na

Page 210: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

213

Interação na fala e na escrita

empreitada da imitação de Cristo, que consta ter sido premiado, ao fimda vida, com os estigmas – as mesmas marcas que Jesus recebeu nacruz.

São Francisco de Assis, de Jacques Le Goff (...), é um livro para quemquer se aprofundar no conhecimento do personagem-título e da socie-dade de seu tempo – sua economia, suas classes sociais e estruturasmentais (...) (p. 160)

(2) (...) Perdoe o leitor que, linhas acima, se tenha dito que ao terminareste artigo, ou bem se regozijaria, ao identificar a presença da pátria emcruciais eventos europeus, ou desanimaria, ao concluir que as liçõesque deixamos lá esquecemos aqui. Trata-se de uma falácia. Os índiosnão se confundem com o Brasil. (...) tênue e confusa é a linha quesepara a realidade da ficção. E que, para construir as boas doutrinas edefender as boas causas, se a elas não se ajusta a crua realidade... ora,fique a realidade em sua crueza, monótona, pálida e sensaborona comoé a vida quando não se acrescentam a ela as pitadas necessárias dafantasia (p. 69).

Após a leitura desses dois trechos, podemos dizer que o enuncia-dor abre a resenha (segmento 1) com uma pergunta retórica a seu leitor(“E se Jesus voltasse?”). Essa pergunta é apenas uma estratégia para queele, o enunciador, responda (“Dostoiesvski imaginou a cena...”) e possa,de forma brilhante, resgatar para o leitor que não se lembre, ou mesmoque desconheça, qual o enredo da obra Os Irmãos Karamazov. Comefeito, o enunciador selecionou um episódio – criado pelo grande autorrusso (“Dostoiesvski é ficção.”), no qual narra a respeito do dia em queCristo aparecera em Sevilha – para estabelecer um paralelo entre a vidado santo e a de Jesus.

Essa estratégia pode, inicialmente, causar um certo estranhamento,porque o tópico discursivo da resenha é “a publicação da obra sobre avida de São Francisco de Assis”. Entretanto, o enunciador, apenas mudao elemento focal do campo de relevância: sai do ponto central (a vida dosanto) e vai para outro que está na margem (a vida de Cristo). Podemosdizer que essa digressão é bastante significativa, pois ao introduzi-la,logo após o “enunciado síntese”, que está abaixo do título da resenha, ojornalista cria uma expectativa em seu co-enunciador, pois este talvez sequestione: Qual a relação que o enunciador pretende fazer? Aonde pre-

Page 211: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

214

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

tende chegar? A resposta a estas supostas questões surge em seguida: oenunciador sintetiza o projeto de vida de São Francisco. Leiamos as pa-lavras do jornalista:

(...) mais de um milênio depois, retomar o Evangelho em sua literalidade.Foi tão bem-sucedido na empreitada da imitação de Cristo, que constater sido premiado, ao fim da vida, com os estigmas – as mesmas mar-cas que Jesus recebeu na cruz (p. 160).

Durante todo o texto, o enunciador deixa bem claro para o leitorqual o teor (o papel de cada um na enunciação) e o modo do discurso(além de elaborar uma crítica muito bem estruturada sobre a obra dohistoriador francês Jacques Le Goff, orienta o leitor sobre o que vai en-contrar em cada um dos capítulos: “Advirta-se que não se trata de leiturafácil”). Seu estilo é bem definido, preciso e claro, mas sem deixar de serirônico em alguns momentos, principalmente naqueles em que permite aentrada sutil de marcas da oralidade,6 criando um envolvimento maiorcom seu co-enunciador, como ocorre no último parágrafo, em que voltaa mencionar o episódio com o qual introduziu a resenha, estabelecendoum elo perfeito entre a introdução e a conclusão:

Fica-se indeciso entre o que mais admirar. Se a empreitada de São Fran-cisco ou a habilidade com que ela foi absorvida e retrabalhada. Se odesafio do santo ou a facilidade com que tal desafio foi desarticulado.O que nos traz de volta ao Grande Inquisidor, que não é citado no livrode Le Goff, nem tem nada a ver com ele, mas que nos serve para for-mular uma conclusão. Que fogueira, que nada. O poder e a ordemestabelecida têm modos muito mais sutis e eficazes de lidar com o quelhes soa inconveniente (p. 161).

Passemos aos comentários sobre o segmento (2). Como já foi dito,este texto é denominado artigo de fundo e trata especificamente da reedi-ção, em 2000, do livro O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, de

6 O trecho, em que há marcas de oralidade, foi destacado em itálico.

Page 212: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

215

Interação na fala e na escrita

Afonso Arinos de Melo Franco. Segundo informações do próprio jorna-lista, em nota de rodapé, esta é a terceira edição do livro. A primeira é de1937 e a segunda, de 1976. No trecho citado, verificamos que o enuncia-dor envolve diretamente o seu co-enunciador, pedindo perdão por aquiloque prometera em linhas anteriores.

Durante várias passagens, o jornalista tem uma preocupação in-tensa em aproximar-se de seu leitor, envolvendo-o com os fios tecidospela trama de uma linguagem precisa, culta e direta. Entretanto, em al-guns momentos, para quebrar essa formalidade, introduz um fio de outracor (marcas de oralidade, perguntas retóricas), aparentemente destoante,mas que traz vivacidade ao texto e convida o leitor a chegar um poucomais perto. Então, aproximemo-nos para ler mais um pequeno trechorepresentativo do que acabamos de apontar:

Raro era o navio que, aportando por estas bandas, não levasse na via-gem de volta um ou mais exemplares. Alguns eram para servir de es-cravo. Outros, ou melhor, outras, para atender à lascívia de senhoresque viam nelas amantes tão práticas e cômodas quanto pode ser umbrinquedo descartável. (p. 65-6)

(...) Cadê o Brasil, em Rosseau? Quem quiser encontrar terá trabalhopela frente (p. 69)

3. Organização interacional e tópico discursivo

Na revista em foco, há uma seção denominada “Cartas” para aqual o leitor pode dirigir-se através de várias formas de correspondência:por correio tradicional, via fax, ou correio eletrônico. Na coluna “Veja àssuas ordens”, o leitor encontra uma série de informações sobre a revistae instruções de como deve proceder para se corresponder com a redaçãoda Veja: “as cartas devem trazer a assinatura e o endereço, o número dacédula de identidade e o telefone do autor”. A direção da revista informa,ainda, ao usuário que as cartas enviadas poderão ser publicadas de modo

Page 213: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

216

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

resumido “por motivos de espaço ou de clareza” e que só poderão serpublicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem àredação no prazo devido: “até a quarta-feira de cada semana”.

Como já tivemos a oportunidade de observar quando dos comen-tários relativos à resenha e ao artigo de fundo, o jornalista Roberto Pom-peu de Toledo revela grandes conhecimentos filosóficos, históricos e li-terários em suas reflexões, deixando entrever uma certa veia irônica, bemao estilo de ensaístas como Montaigne ou de nosso escritor Machado deAssis, principalmente nos trechos em que se aproxima do leitor, ou nosmomentos em que faz usos de digressões, estrategicamente lecionadas.

Agora, passemos a olhar mais de perto o ensaio intitulado “Doapagão ao fashion”.7 Introduzindo o texto, o enunciador parece fazersurgir a explicação ou resposta plausível para aqueles que têm acompa-nhado tantas discussões entre deputados e estudiosos a respeito dos es-trangeirismos em nossa Língua Portuguesa e que estariam questionandoo que isso tem a ver com o título do ensaio. Por meio do enunciado queintroduz o texto:

Eureca! Eis por que algumas palavras do inglês vencem, enquanto ou-tras saem derrotadas.

o enunciador prende a atenção e convida seu co-enunciador a participarda reflexão, que provavelmente conterá uma resposta plausível e compa-tível com um título, aparentemente, tão estranho mas tão próximo denosso contexto de situação (a crise energética que o país atravessa)

Nessa perspectiva, atentemos para o comentário que faz Main-gueneau (2001: 98):

Com efeito, o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tomque dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construiruma representação do corpo do enunciado (e não, evidentemente, do

7 O texto foi transcrito integralmente ao final deste artigo.

Page 214: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

217

Interação na fala e na escrita

corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instânciasubjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito.

Assim, o co-enunciador torna-se de fato um fiador – “aquele quefia, confia, acredita ou abona”,8 tornando-se cúmplice de seu enunciadore partilhando o dito, tanto no que se refere ao tópico discursivo (o que édito, o assunto, a substância) quanto ao modo retórico (o como é dito, ouso que o enunciador faz da linguagem, as marcas lingüísticas, o estilo, aforma).

Essa participação efetiva do leitor, evidencia-se concretamente nascartas enviadas à redação da revista Veja e que são selecionadas peloeditor. Observemos algumas:

Brilhante e corajoso o Ensaio “O Senado de 1860 e o de 2001”, deRoberto Pompeu de Toledo. Se todos os políticos tivessem acesso aesse artigo e, além de ler, meditassem sobre o assunto, quem sabe ha-veria mais esperança no futuro deste imenso país. Realmente hoje oBrasil não está preparado para abolir a corrupção, porque grassam osJader Barbalho e os ACM pelo Brasil afora. (Ensaio, 28 de fevereiro)JR .9

(Cartas, 7 de março, 2001, p. 29)

Há anos adquiri o hábito de ler a revista VEJA de trás para a frente.Motivo: os impagáveis ensaios de Roberto Pompeu de Toledo. Comoresistir à fluidez das idéias, à erudição sempre presente, à classe de suascolocações? Elogio à inteligência do leitor, presenteando-nos com au-las de cidadania, língua portuguesa, literatura e inúmeras facetas deuma inteligência ímpar, num país de muitos homens sem cultura e depouquíssimos com cultura e sensibilidade. Roberto, tens uma legião defãs. Obrigado por nos fazer ter fé ainda neste país. Ensaio, 28 de feve-reiro) FMA.

(Cartas, 7 de março, 2001, p. 29)

8 Cf. Ferreira, Aurélio Buarque de (1999) Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da línguaportuguesa. 3. ed. totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 897.

9 Nas cartas, optamos por apenas colocar as inicias dos nomes de cada leitor.

Page 215: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

218

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

Achei muito interessante o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo sobrea eterna histeria do PT, que pode certamente voltar-se contra os pró-prios protagonistas, caso conquistem o poder (Ensaio, 4 de abril) PS

(Cartas, 11 de abril, 2001, p. 25)

O PT apenas ratifica que, apesar de três derrotas consecutivas em elei-ções presidenciais, ainda não aprendeu a lição. Parabéns ao jornalistaRoberto Pompeu de Toledo pela inteligente interpretação da CPI dacorrupção. (Ensaio, 4 de abril) MAP.

(Cartas, 11 de abril, 2001, p. 25)

Concordo com Roberto Pompeu de Toledo. Pobreza não é sinal defalta de educação (Ensaio, 30 de maio) MFS.

(Cartas, 13 de junho, 2001, p. 24)

Impossível ler o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo sem que imediata-mente se procure um interlocutor com quem comentá-lo. É incrívelcomo ele consegue expressar com tanta lucidez e clareza o que pensa-mos e não sabemos transmitir. De qualquer sorte, os ensaios de RobertoPompeu de Toledo nunca ficam no simplismo de seguir as correntescircunstanciais, Aliás, a morte dos assassino de Oklahoma privou atodos de saber mais sobre os motivos que o levaram a cometer o atocriminoso (Ensaio, 20 de junho) LLUP

(Cartas, 27 de junho, 2001, p. 29)

Roberto Pompeu de Toledo mais uma vez esteve perfeito em seu en-saio. Lúcido e criterioso, foi direto ao ponto, em sua crítica à importân-cia cinematográfica que foi dada à execução de McVeigh. É realmentedifícil eleger o que foi mais bárbaro, se o crime cometido por McVeighou a “justiça”, que, além de matar, transformou um assassino frio, ob-sessivo e fanático em uma personalidade internacional. (Ensaio, 20 dejunho) SCO.

(Cartas, 27 de junho, 2001, p. 29)

Nessas cartas selecionadas, verificamos que os leitores se limitam– de maneira geral – a comentar o tópico discursivo desenvolvido pelo

Page 216: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

219

Interação na fala e na escrita

jornalista, revelando a concordância com as idéias desenvolvidas, a clarezae a maneira “lúcida” com que abordou o tema. Entretanto, em algumaspodemos verificar uma relação talvez especial entre co-enunciador eenunciador: além de elogiar o trabalho escrito – “brilhante e corajoso”–, oleitor demonstra sua ligação mais estreita com os textos de RobertoPompeu de Toledo, reconhece “a fluidez das idéias, a erudição”, do enun-ciador; o fato de ser “lúcido, criterioso”, e diz sentir-se “presenteado comaulas de cidadania, língua portuguesa, literatura e inúmeras facetas deuma inteligência ímpar”.

É uma dessas aulas de língua portuguesa associada a uma certadose de ironia e crítica social que desejamos comentar, tendo como focoo ensaio selecionado sob análise. Embora em relação a esse ensaio nãotenhamos nenhum comentário publicado, nas semanas seguintes, pode-mos evidenciar marcas lingüísticas que envolvem enunciador e co-enunciador e criam um efeito de sentido de espontaneidade, de uma trocade idéias entre amigos. Em outras palavras, o enunciador introduz seuensaio contando um episódio imaginário da vida de um menino (FernandoHenrique Cardoso) em Copacabana para, estrategicamente, refletir so-bre os problemas vividos por todos nós brasileiros no contexto atual. Fazuma digressão (entre as linhas 24 e 34) para entrelaçar um comentáriosobre o uso de termos estrangeiros, outro tema também presente em nos-so cotidiano, e poder voltar a sua narrativa cuja personagem é o meninoe evidenciar sua reflexão sobre o nosso tempo: crise energética e hábitoslingüísticos (tópico discursivo).

Podemos dizer que o jornalista elabora “passo a passo” (ou “on-line” para sermos claros e usarmos uma expressão bastante conhecidados estudiosos de Análise da Conversação), e com grande habilidade,suas escolhas lingüísticas visando a interagir de modo mais eficaz comseu leitor. Dentre essas escolhas, destacam-se:

a – uso de perguntas retóricas: “Afinal, os alemães não tinham atacadonossos navios?” (linhas 5-6); “Legítimo e bom português? (linha27); “Pois o leitor acha que Gisele Bündchen participaria de uma

Page 217: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

220

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

Semana da Moda de São Paulo?” (linhas 44-45); “Como entendermovimentos opostos como esses, se tudo que é inglês (...) avançasempre? (linhas 51-52);

b – expressões coloquiais e/ou gírias: “curtir a escuridão” (linhas 7-8);“pode sugerir aos espíritos de porco” (linha 17); “desde cedo, ele jáera chegado a um apagão” (linhas 17-18); “expressão com gosto echeiro legítimo de bom português” (linhas 25-26); “os simplões dossubúrbios e os capiaus dos cafundós interioranos”(linhas 40-41);“os que estão por dentro”(linha 41);

c – inserções contendo comentários metadiscursivos: “Mas não é issoque se quer registar aqui” (linhas 18-19); “seria assim mesmo que oevento seria chamado”(linha 38);

d – inserções contendo advertências ao leitor: “Sim, Fernando HenriqueCardoso”(linha 15); “Ora, tenha-se a santa paciência” (linhas 45-46);

e – marcas do processo de formulação/reformulação textual: “Ou, pen-sando bem... Pensando bem, não contraria” (linha 54);

f – o próprio uso dos termos estrangeiros: “o inglês tão (para ser claro)‘up-to-date’ e tão ‘cool’, tende a vencer sempre” (linhas 57-58);

g – operadores argumentativos: “Até Gisele Bündchen participou” (li-nha 44); “As ruins ficam com o português mesmo, ainda que adap-tado do espanhol” (linhas 73-74)

h – termos ou expressões formais: “deleite das noites da praia” (linhas36-37); “o nome mágico e inebriante” (linha 63);

i – sintaxe própria da linguagem culta e escrita: “Chegou à língua mui-to recentemente” (linha 28)

Neste ensaio, como em todos os que escreve semanalmente, ojornalista Roberto Pompeu de Toledo trata de assuntos do nosso cotidia-no, da vida do brasileiro ou mesmo de notícias que nos tocam de algumamaneira. Em “Do apagão ao fashion”, o desfile de modas realizado nacidade de São Paulo, na semana anterior à publicação do ensaio pareceter sido o elemento desencadeador do processo de criação do escritor, namedida em que o problema do racionamento de energia já fazia parte de

Page 218: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

221

Interação na fala e na escrita

mais um dos problemas do povo brasileiro. O que se pode constatar, pormeio deste breve levantamento das escolhas feitas pelo enunciador, éque em seus textos sempre busca tratar de temas que envolvam o leitor eque – mesmo sendo aparentemente banais, irônicos, trágicos ou, às ve-zes, muito específicos – refletem o pensamento de um enunciador que,em certa medida, vai de encontro àquilo que seu co-enunciador gostariade dizer, de expor ao mundo.

A título de exemplificação, vejamos alguns dos temas abordadosem seus ensaios:

“O senado de 1860 e o de 2001”. Se naquele tempo o país não estavapreparado para abolir a escravidão, hoje não está pra abolir a corrup-ção. (28 de fevereiro, 2001, p. 110)

“A política da histeria e seus perigos”. Se é fácil criar um clima de fimde mundo contra o atual governo que dizer de um futuro governo doPT? (4 de abril, 2001, p. 140)

“Mais uma vez o mundo se curva...” Uma pesquisa sobre ajuda aopróximo em diferentes cidades do mundo dá o título de campeão aoRio de Janeiro. (30 de maio, 2001, p. 150)

“Morte com platéia, TV e telão” O tanto de show que envolve as exe-cuções nos EUA acaba por satisfazer o jogo do adversário (20 de ju-nho, 2001, p. 153)

“As aventuras de São Tomé no Brasil”. Ler Sérgio Buarque é se dar aoprazer enquanto se tomam lições – de história, inteligência e estilo. (18de julho, 2001, p. 130)

“A eutanásia em discussão” Na Europa, claro. Pois, no Brasil, a con-clusão melancólica é que o tema não deve sequer ser suscitado. (1º

agosto, 2001, p. 146)

Considerações finais

Após as análises apresentadas, acreditamos que os textos de auto-ria do jornalista Roberto Pompeu de Toledo criam, por meio das estraté-gias apontadas, um efeito de sentido de encantamento tal que o leitor

Page 219: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

222

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

consegue chegar ao sublime, enxergar o belo mesmo naqueles ensaioscujo tema beira o trágico, o terrível. É o produto de uma interação socialque reflete não só o pensamento de uma comunidade, seu contexto só-cio-histórico-ideológico, mas acima de tudo deixa transparecer de modoelegante e particular o seu processo de produção. Assim, podemos nosvaler das palavras de Brait (1993: 200), para quem a interação funda-se“no olhar avaliativo” daqueles que participam dessa atividade; no que serefere à escrita, o enunciador precisa ser hábil para poder atingir seuenunciatário, já que este desempenha um papel social e discursivo bas-tante significativo (Kerbrat-Orecchoni, 1990: 89) na construção textual.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. (2001) Relevância e contexto: o uso dedigressões na língua falada. São Paulo: Humanitas/FAPESP.

BRAIT, Beth (1991) Texto jornalístico: modos de leitura. Estudos Lingüísticos XXXIX– Anais de Seminários do GEL. Franca: UNIFRAN, p. 85-92.

_____. (1993) O processo interacional. In: Dino Preti (org.) Análise de textos orais.São Paulo: Humanistas, FFLCH/USP, Projetos Paralelos, vol. 1, p. 189-213.

_____. (1994/1995) A construção do sentido: um exemplo fotográfico persuasivo.Língua e Literatura. São Paulo: Humanistas, nº 21, p. 19-27.

HALLIDAY, Michael A K. (1978) Language as social semiotic. The socialinterpretation of language and meaning. LondonL Edward Arnold.

_______. (1989) Parte A- In: Halliday, Michael A K. and Hasan, Ruqaia. Language,context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective., Oxford:Oxford University Press, Series Editor: Frances Christie.

HUISMAN, Denis (2000) Dicionário de obras filosóficas. Trad. Ivone CastilhoBenedetti. São Paulo: Martins Fontes.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine (1990) Les interactions verbales. Paris:Armand Colin. vol. 1.

MAINGUENEAU, Dominique (2001) Análise de textos de comunicação. Trad. deM. Cecília P. de Souza e Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez.

MONTAIGNE, Michel de (1580, 1588) Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. SãoPaulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1972.

SEVERINO, Antônio Joaquim (2000). Metodologia do trabalho científico. 21. ed.rev. E ampl. São Paulo: Cortez.

Page 220: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

223

Interação na fala e na escrita

Fontes

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição especial: 100 fatos que marcaram oano 2000. Edição 1681, ano 33 – nº 52, 27 de dezembro de 2000.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1689, ano 34, nº 18, 28 de fevereirode 2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1694, ano 34, nº 13, 4 de abril de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1695, ano 34, nº 14, 11 de abril de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1701, ano 34, nº 20, 23 de maio de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1702, ano 34, nº 21, 30 de maio de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1704, ano 34, nº 23, 13 de junho de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1705, ano 34, nº 24, 20 de junho de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1706, ano 34, nº 25, 27 de junho de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1708, ano 34, nº 27, 11 de julho de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1709, ano 34, nº 28, 18 de julho de2001.

Revista Veja. São Paulo: Editora Abril. Edição 1711, ano 34, nº 30 1º de agosto de2001.

Page 221: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

224

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

Anexo

Do apagão ao fashion

Roberto Pompeu de Toledo – Ensaio

Eureca ! Eis por que algumas palavras do inglês vencem, enquantooutras saem derrotadas.

A guerra não era só uma coisa terrível. Também podia ser umadiversão. À noite, ficava-se às escuras. Afinal, os alemães não tinhamatacado nossos navios? Fazia parte da estratégia defensiva brasileiraapagar as luzes, para confundir o inimigo. Entre os meninos deCopacabana surgiu então o programa de ir à praia, à noite, curtir aescuridão. Um deles, o que aqui nos interessa, morava perto do Cortedo Cantagalo. Vez por outra vinha a conversa de que os submarinosalemães podiam atacar, e isso dava um frio na barriga. Mas, ao mesmotempo, era uma delícia cruzar a Avenida Atlântica, então tão estreita etranqüila, e ir brincar na praia em trevas. O medo era compensado pelaexcitação da aventura.

O menino em questão, chamava-se Fernando Henrique, filho dooficial do Exército Leônidas Cardoso. Sim, Fernando Henrique Cardo-so. A lembrança do tempo em que, menino, gostava de brincar na praiaàs escuras pode sugerir aos espíritos de porco a conclusão de que, desdecedo, ele já era chegado a um apagão. Mas não é isso que se quer regis-trar aqui. Pelo menos, que fique registrado só de passagem. Nosso pontoé que apagão nesse tempo, e não só nesse tempo, mas até bem recente-mente, não se chamava apagão. Chamava-se, como aliás notou Ivan Lessanuma entrevista recente, “black-out”. O próprio Fernando Henrique, aocontar as suas aventuras de infância, diz que vigorava o “black-out”.Hoje, ao referir-se às desventuras de seu governo, fala em “apagão”. Eisum caso raro em que o inglês foi superado por uma expressão com gostoe cheiro de legítimo e bom português.

Page 222: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

225

Interação na fala e na escrita

Legítimo e bom português? Na verdade, apagão não está nos dici-onários. Chegou à língua muito recentemente por contágio do “apagón”espanhol. É caso parecido com o de “taxista”. Num tempo em que, noBrasil, se dizia “chauffeur de táxi”, soava engraçado aos ouvidos brasi-leiros o “taxista” dos países de língua espanhola. Soava até meio ridícu-lo, e o mesmo acontecia com “apagón”. Aos poucos, a sabedoria doespanhol impôs-se, e eis-nos achando muito natural chamar o profissio-nal do táxi de “taxista” e o corte de energia de “apagón” .

Voltando ao menino Fernando Henrique, e supondo que a mãe olevasse, mesmo que contrariado, mesmo que sem um pingo de deleitedas noites na praia, ao Copacabana Palace, ali perto, para assistir a umdesfile de modas, seria assim mesmo que o evento seria chamado – des-file de modas. Hoje não. Ou melhor, desfile de modas continua existin-do, mas os pobres e desinformados, os simplões dos subúrbios e os capiausdos cafundós interioranos. Para os bons, os que estão por dentro, “moda”já faz algum tempo que não é “moda”. É “fashion”. Um evento que serealizou na semana passada em São Paulo chamou-se “São Paulo FashionWeek”. Até Gisele Bündchen participou. Pois o leitor acha que GiseleBündchen participaria de uma “Semana da Moda de São Paulo”?. Ora,tenha-se a santa paciência.

Conclusão: enquanto um vai, outro vem. Enquanto se vai o inglês“black-out”, derrotado pelo “apagão” de origem espanhola, mas moldadoà sonoridade da língua portuguesa, vem outro inglês, “fashion”, expulsaressa “moda” que, embora de origem francesa, se encontrava secularmenteaculturada ao português. Como entender movimentos opostos como esses,se tudo que é inglês, segundo se pode constatar a olho nu, avança sempre?Como explicar que, num tempo em que o velho e bom “pra viagem” virou“delivery”, “liquidação” virou “sale”, e “20% de desconto” virou “20%off”, uma expressão inglesa, como “black-out”, seja posta em desuso? Éuma aberração. Contraria a regra de que o inglês, tão caro aos olhos eouvidos dos brasileiros, sinônimo de coisa rica e superior, o inglês tão(para ser claro) “up-to-date” e tão “cool”, tende a vencer sempre.

Ou, pensando bem... Pensando bem, não contraria – o que faz éaperfeiçoar a regra. Se não vejamos. O mundo da moda é um mundo de

Page 223: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

226

ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. A Revista Veja: interação e ensaio

encanto e fantasia. É rico e superior. Logo, não merece ser designado pormera língua portuguesa. Merece a promoção à língua inglesa. Não lhecabe outro senão o nome mágico e inebriante de “fashion”. Já o mundodo “black-out”, que é? Tristeza e penúria. O mundo da imprevidência dogoverno e do sacrifício das pessoas. Da privação, do retrocesso e da feiú-ra. Como designá-lo então com palavra inglesa? Não, chamá-lo de “bla-ck-out” era um erro. O fenômeno é indigno do prestígio do inglês. Temde ser apagão mesmo, palavra mais apropriada para representar a carên-cia grosseira, selvagem e terceiro-mundista que designa.

Com o que se chega ao aperfeiçoamento da regra enunciada aci-ma. Não é que o inglês vença sempre. Vence quando é para designarcoisas boas – as coisas do “glamour” (claro: palavra inglesa), da graça(“grace”, para ficar mais claro) e do sonho “dream”. As ruins ficam como português mesmo, ainda que adaptado do espanhol e tanto mais se apalavra for como apagão – terminada com esse “ão” tão característico dalíngua e tão pouco sutil, nosso cru e brutal “ão”.

Page 224: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

O ESPAÇO DA INTERAÇÃO AUTOR/LEITORNA GRAMÁTICA TRADICIONAL: UM

ESTUDO DE CASO

Marli Quadros Leite

Considerações iniciais

O ponto de partida para a análise do processo interacional no con-texto da gramática tradicional tem como apoio a conhecida afirmação deBakthin (1988) “a interação verbal é a realidade fundamental da lingua-gem”, ampliada pela teoria da enunciação, tanto pela via direta do textofundador de Benveniste (1970) quanto pelas leituras e extensões quedele fizeram Authiez-Revuz (1984 e 1995), Fiorin (1996) e Kerbrat-Orec-chioni (1999). Esses últimos três autores oferecem a pista metodológicado trabalho: análise do enunciado, centrada em dados lingüísticos querevelam o status do sujeito, ou, em outros termos, a subjetividade de umautor que visa a alcançar seu público e com ele interagir, atuando, decerta forma, sobre seu comportamento, de acordo com o esquema dedeterminação mútua que regula o processo interacional.

Dentro desse quadro, e com objetivo de investigar de que modo ogramático interage com seu público leitor, verificarei uma das gramáti-cas escritas e publicadas no Brasil no século XIX, por um autor brasilei-ro, trata-se da Grammatica Portuguesa, de Julio Ribeiro, cuja primeiraedição é de1881.*

* Este texto é resultado dos estudos de pós-doutorado, realizados na França, sob os auspíciosda CAPES e da USP.

Page 225: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

228

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

1. O gramático por si mesmo: auto-representaçãointerativa

Como explica Kebrat-Orecchioni (1999: 34), numa acepção lar-ga, a lingüística da enunciação tem por objetivo descrever as relaçõesque se tecem entre o enunciado e os diferentes elementos constitutivosdo quadro enunciativo, ou seja, visa a analisar a situação dos sujeitosenvolvidos no discurso, e suas circunstâncias de espaço e tempo, assimcomo as condições sócio-históricas da produção do discurso. Além dis-so, compete também a esse campo de estudo descrever e estruturar oconjunto de fatos enunciativos,1 inventariar seus suportes significantes eseus significados e elaborar uma tabela para classificá-los, segundo osseguintes princípios:

1) enunciado relacionado ao locutor;

2) enunciado relacionado ao alocutário;

3) enunciado relacionado à situação comunicativa.

Já numa acepção estrita, a que a autora adota na obra citada, alingüística da enunciação está voltada para o locutor-escritor e para todosos fatos enunciativos com ele envolvidos. Nesse contexto, o sentido daexpressão fatos enunciativos muda e passa a ser a presença do locutor noseio de seu enunciado, os lugares em que se inscreve e as modalidadesde existência do que, de acordo com Benveniste, denomina-se subjetivi-dade na linguagem (op. cit., p. 36).

Antes de passar à análise dos dados da gramática selecionada, éimportante verificar como o autor se posiciona diante de seu públicoleitor e, também, do contexto dos estudos lingüísticos de sua época. Paraisso, analisarei aspectos da composição total do trabalho, como os conti-

1 A autora denomina ‘fatos enunciativos’ as unidades lingüísticas, de qualquer natureza,ordem e dimensão, que funcionam como índices da inscrição dos fatores da enunciação eque são, a esse título, portadores de um arqui-traço semântico especifico, chamado‘enunciativo’ (op. cit. p. 35) .

Page 226: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

229

Interação na fala e na escrita

dos nas dedicatórias, no prefácio e no próprio texto da obra, a fim detentar delinear a imagem que o autor faz tanto de si mesmo quanto dooutro, o leitor. Essa pesquisa será realizada por meio do estudo de ex-pressões, de elementos lingüísticos e da escolha da estratégia discursivaadotada na gramática.

Antes de tudo, tentarei situar enunciativamente Julio Ribeiro, afim de mostrar como ele se manifesta em seu espaço/tempo e se mostracapaz de interagir com o seu leitor potencial. Pelo perfil da gramática,observa-se que seu leitor potencial deve ser um iniciado em estudos dalinguagem, o que pode ser afirmado a partir da observação dos seguintesaspectos: a quantidade considerável de citações de teoria, de autores es-trangeiros, inclusive algumas não traduzidas, e a ausência de referênciasao ensino. A gramática não é pedagógica.

A gramática de Júlio Ribeiro é uma das primeiras a inaugurar oprocesso de gramatização da língua portuguesa no Brasil. Sua primeiraedição aparece em 1881, após a edição, em 1879, da GrammaticaHistorica da Lingua Portuguesa, de Pacheco Silva, e de dois dicioná-rios, um, o primeiro dicionário monolíngüe da língua portuguesa, o Dici-onário da Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes Silva, em 1879, eoutro, o Vocabulário Brasileiro para servir de complemento aos dicio-nários da Língua Portuguesa, de Costa Rubim (Orlandi et Guimarães,1998, p. 22-27). O pioneirismo, no entanto, não é a única causa da im-portância dessa gramática, como se verá a seguir.

2. As epígrafes

Fiorin (1996: 99-100), ao discutir a oposição dos efeitos de senti-do de aproximação x distanciamento, e conseqüentemente os chamadosníveis de objetividade x subjetividade da linguagem, diz:

Objetividade é uma palavra polissêmica, pode significar tanto neutra-lidade quanto justeza, isto é adequação a um referente. Na linguagem,

Page 227: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

230

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

na verdade, não há nem uma nem outra [nem subjetividade nem objeti-vidade]. O que há são efeitos de sentidos produzidos, no primeiro casopor um apagamento das marcas de enunciação no enunciado e, no se-gundo, por um controle dos termos mais nitidamente avaliativos. Obje-tividade lingüística não existe, mas, por meio de certos procedimentos,chega-se ao efeito de sentido de objetividade.

O discurso da gramática, portanto, é, como todos os outros, cheiode subjetividade, marcado pela ideologia do autor, quer no que diz res-peito às escolhas teóricas, quer no que diz respeito à escolha de exem-plos, fatos e dados da língua objeto desse tipo de descrição. Quanto aodiscurso de Ribeiro, então, cumpre levantar os dados da enunciação parase compreender bem o discurso enunciado em sua gramática.2

Como já sugerido acima, a enunciação compreende obrigatoria-mente três categorias: o sujeito, o espaço e o tempo que se fazem repre-sentar, mais ou menos marcadamente, no enunciado. Logo, o gramático,sujeito da enunciação, que vive em certo tempo e espaço, deixa transpa-recer em seu enunciado, mais ou menos intensamente, marcas desse es-paço/tempo que, afinal, integram o seu eu, o sujeito do discurso. Para ocaso que interessa no momento, é preciso levantar algumas marcas doenunciado a fim de, por meio deles, conhecer a enunciação e o discursodo autor, Julio Ribeiro, e, assim, compreender esse texto do último quar-to do século XIX.

Do ponto de vista da interação autor/leitor, é possível fazerem-sealgumas inferências a partir da análise das preferências do autor, de suasrelações com idéias e teorias, desde o que está enunciado nas epígrafes.Julio Ribeiro apôs três epígrafes, todas expostas e comentadas a seguir.

A primeira é de Duarte Nunes do Leão, primeiro ortografista dalíngua portuguesa:

‘Tentei ensinar aos meus naturaes o que eu de outrem não pude apren-der’.

2 Cf. Fiorin (1996) para maiores esclarecimentos sobre o problema da enunciação e de suasastúcias...

Page 228: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

231

Interação na fala e na escrita

Embora a gramática não seja pedagógica, o autor acredita, e deixaisso claro na introdução, que o estudo formal e consciente da gramáticafaz parte da aprendizagem da língua e que pode permitir melhor intera-ção entre as pessoas.

A segunda citação, em francês, é de Littré e indica uma das op-ções teóricas do autor, o comparativismo:

‘Pour les langues, la méthode essentielle est dans la comparaison et lafiliation. – Rien n’est explicable dans notre grammaire moderne, si nousne connaissons notre grammaire ancienne’.3

A terceira, também em francês, deixa entrever a possibilidade deque um trabalho, aparentemente completo, terminado, permaneça inaca-bado, ou precise de reformas. Mesmo assim é louvável o ato de tê-lofeito; essa, assim, é uma alusão ao trabalho do gramático que pode estarimperfeito ou inacabado, dado, talvez, à mutabilidade e movimento doobjeto da descrição, ou mesmo às mudanças de teorias que visam a explicá-lo:

‘En aucune chose, peut-être, il n’est donné à l’homme d’arriver au but:sa gloire est d’y avoir marché’.4

Esses três pequenos textos são significativos, do ponto de vista daenunciação e da interação autor/leitor, em relação ao objetivo do autor eda obra; se o leitor procurar lê-los e refletir sobre cada um, poderá tornar-se mais bem preparado para entender a obra como um todo. Portanto, épossível reconhecer aí dois aspectos: primeiro, um índice do envolvi-mento do autor com seu tempo, pela referência à teoria em voga no sécu-

3 ‘Para as línguas, o método essencial é a comparação e a filiação. – Nada é explicável emnossa gramática moderna se não conhecermos a gramática antiga.’

4 ‘Em nenhum domínio, talvez, é dado ao homem chegar ao fim: sua glória é de ter cami-nhado em sua direção.’

Page 229: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

232

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

lo, o comparativismo5 e, também, pela escolha das transcrições em fran-cês, a língua estrangeira de prestígio científico da época; segundo, umíndice da preocupação do autor com o leitor, o que está claro na primeiracitação, e também subentendido nas outras – a segunda que visa a jápreparar o leitor para enfrentar o texto, e a terceira que é uma justificativapara falhas que porventura existam. Esse conjunto não pode ser entendi-do senão como uma marca de interação.

3. As dedicatórias

A “presença estrangeira” na gramática portuguesa de Julio Ribei-ro aparece desde o espaço das dedicatórias, o que é inferido, seja pelapercepção do contato do autor com idéias vindas de fora, com teoriasestrangeiras, seja por suas relações com personagens da época. Entrebrasileiros, portugueses, franceses e um alemão, há, em primeiro lugar,uma dedicatória in memoriam a três personagens, Luiz de Camões,Friedrich Diez e Emile Littré; depois, uma dedicatória a quem ele deno-mina mestres, André Lefèvre, Michel Bréal, Adolpho Coelho, TheophiloBraga, Camilo Castello Branco e Capistrano de Abreu; finalmente, àquelesa quem chama professores, Vieira de Almeida, Thomaz Galhardo eSeraphim de Mello.

Do ponto de vista interacional esses dados são importantes por-que permitem ao leitor criar uma “expectativa de leitura”, ou seja, aju-dam o leitor a enfrentar o texto.

4. O prefácio

A estratégia discursiva escolhida pelo autor é a de, primeiro, mar-car explicitamente a oposição de sua obra com outras anteriores, em que

5 Como se verá adiante, o historicismo também está presente no texto de Ribeiro, nasinúmeras referências a usos antigos do Português.

Page 230: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

233

Interação na fala e na escrita

não se verificava a preocupação dos autores com a descrição de usos dalíngua; isso pode ser observado, de saída, no prefácio. Depois, deixarclaro que sua gramática é voltada para a descrição do vernáculo. Seuenvolvimento com o texto e o assunto é evidenciado desde a primeiralinha. Em outras palavras, pode-se dizer que existe razoável grau de sub-jetividade do autor tanto em relação à obra em si quanto ao leitor poten-cial, pois, na abertura da gramática, declara, em primeira pessoa:

Para afastar-me da trilha batida, para expôr com clareza as leisdeduzidas dos fatos e do fallar vernaculo, não me poupei a trabalhos.(Grifei)

Em termos de interação que se pode dizer sobre isso? Que o em-prego do adjetivo avaliativo batida é uma pista para o leitor, que podeesperar algo diferente e, talvez, melhor que o habitual; isso é o que oautor induz o leitor a assimilar. Além disso, o autor vai conduzindo oleitor para receber bem seu texto, quando afirma que os fatos são comclareza expostos. Os adjetivos são, sem dúvida, a marca do envolvimen-to autor/texto/leitor. Toda essa onda de auto-avaliação é, contudo, freadapelo modalizador, creio da frase seguinte, que constitui, sozinha, um pa-rágrafo. Talvez se possa dizer que essa posição de destaque da frase aju-de a transparecer para o leitor certa modéstia, a fim de atenuar a vaidadedas afirmações anteriores, como se pode observar abaixo:

Creio ter ferido o meu alvo. (Grifei)

Alguns outros índices da preocupação do autor com o leitor quepodem ser levantados são os seguintes:

a. referência direta ao público, em primeira pessoa do singular,o que cria um efeito de sentido de proximidade autor/leitor:“Apresento ao publico esta segunda edição de meu livro (...)”.

b. pergunta retórica que cria a ilusão da presença do interlocu-tor, ou que deixa explícita a sua presença: “quem podera es-

Page 231: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

234

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

crever hoje sobre philologia portuguesa sem tomal-o [AdolphoCoelho] por guia, sem se ver forçado a copial-o a cada pas-so?”.

c. referência indireta ao público alvo da gramática, aludido comoos habituados em estudar o português, o que mostra um crité-rio de seleção do público alvo para a obra: “Quem for versadoem estudos de língua vernacula, facilmente vera o quanto mevaleram esses [Adolpho Coelho e Paulino Souza] mestres”.

Os comentários do prefácio6 “contam’’ a história da primeira edi-ção da gramática, publicada em 1881. Houve tanto elogios quanto co-mentários, uns considerados positivos, outros, negativos, no julgamentodo próprio autor. Assim, observa-se um escalonamento dessas críticas,resumidas a seguir:

a) crítica “honesta e ilustrada” – comentários recebidos sobre er-ros de etimologia e de distribuição da matéria, por parte deestrangeiros. Desde a referência a tal tipo de crítica, o autormostra-se receptivo, pelos termos de avaliação – honesta e ilus-trada – escolhidos para denunciá-la; além disso, Ribeiro decli-na os nomes dos autores das críticas, qualificando-os, em notade rodapé, já que são estrangeiros: Karl von Reinhard, profes-sor da Politécnica de Munique e Alexandre Hummel, distintoprofessor dinamarquês, residente em Tietê. Como se vê, am-bos têm o status de estrangeiro, uma marca extremamente va-lorizada pelo autor, visto a quantidade de citações a estrangei-ros, alemães, franceses e americanos, no todo da obra.

b) elogios da imprensa brasileira – referência a nomes como RuyBarbosa, Theophilo Braga e Conselheiro Viale, mas não hásinal de impugnação de brasileiros ao texto.

6 Lembro que trato dos comentários da segunda edição, repetidos na sétima, ora sub exa-mine.

Page 232: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

235

Interação na fala e na escrita

c) críticas injustas e virulentas – referência a comentários negati-vos, por meio de adjetivos fortemente marcados de subjetivi-dade, mais uma vez avaliação não axiológica, sem apresenta-ção de pormenores, .

Em resumo, percebe-se que desde a apresentação do texto o autordeixa pistas de sua preocupação com o leitor. Ainda outros dados, comose verá a seguir, comprovam esse fato.

5. O texto

Como esclarecem Orlandi e Guimarães (op. cit.), o nome Gram-matica Portuguesa, escolhido pelo autor, indica seu atrelamento à Portu-gal (o espaço geográfico), quando ainda a palavra língua não aparece nostítulos.7 E nisso o autor mostra-se condizente com a tradição. Na minhaopinião, essa é uma obra importante no contexto da história dagramatização do português porque, embora ainda muito ligada a Portu-gal, representa uma ruptura com uma tradição gramatical portuguesa,pois, como o próprio autor declara no prefácio, introduz, de certo modo emuito comedidamente, a preocupação com a língua empírica.8 São pala-vras do autor:

As antigas grammaticas portuguezas eram mais dissertações demetaphysica do que exposições dos usos da lingua.

Para afastar-me da trilha batida, para expôr com clareza as leisdeduzidas dos factos e do fallar vernaculo, não me poupei a traba-lhos. Ribeiro, p. 1.

7 Quando os autores brasileiros começam a se preocupar com o problema da denominaçãoda língua portuguesa realizada no Brasil, surgem varias opções para o título, a saber:Gramática da Língua Portuguesa, Idioma Nacional, etc. Para maiores esclarecimentos,consultar Pinto, E. P. (1978) e Orlandi e Guimarães (1998).

8 Cf. Auroux, 1998, que diz que a língua empírica é o conjunto indefinido de emissões lingüís-ticas de grupos de sujeitos que se comunicam e se entendem por meio de uma dada língua.

Page 233: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

236

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

Realmente, existem espalhados pela obra muitos comentários so-bre a realização da língua, no que se refere a usos antigos e, também,atuais à época, de Portugal e do Brasil, como mostrarei adiante. O fatomais notável, no entanto, é o estágio de transição em que se encontravamos estudos lingüísticos no Brasil, o que é aparente no discurso teórico dogramático: de um lado, a teoria filosófica e, de outro, o comparativismo,com citação explícita sobre a teoria determinista. Esse fato serve paramostrar Ribeiro como um sujeito atualizado em relação ao desenvolvi-mento da teoria lingüística que se produzia fora do Brasil, o que ele mes-mo fez questão de tornar explícito no prefácio e que está implícito notexto, nas diversas citações de autores estrangeiros – alemães,9 ingleses,americanos, franceses, portugueses – e, também, de alguns brasileiros.

Logo no prefácio, o autor declara sua afiliação ao comparativis-mo, ao dizer que se amolda às definições de Whitney e que segue “assumidades da grammaticografia saxonia”. Além disso, há dezenas decitações de F. Diez, Grammaire des Langues Romanes, algumas de MaxMüller, Nouvelles Leçons sur la Science du Langage, e uma de F. Boas.Não há, contudo, uma tomada de posição firme em relação ao compara-tismo.

Em verdade, diversas passagens revelam, também, o atrelamentodo autor à gramática filosófica de Jerônimo Soares Barbosa. Vejamos,por exemplo:

3.– Linguagem é a expressão do pensamento por meio de sons articula-dos. Ribeiro, p. 2

Observações nº 3). Sobre tal assunto [irregularidade verbal] diz serena-mente Soares Barbosa:

Nunca se devem confundir as consonancias com as consoantes, isto é,os sons elementares das consoantes, com as lettras consoantes que anossa orthografia usual empregou para exprimir na escriptura. Ribeiro,p. 144 (Grifei)

9 Sempre por traduções francesas.

Page 234: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

237

Interação na fala e na escrita

O comparatismo aparece também na gramática de Julio Ribeironeste trecho em que cita Max Müller:

(...) Os grammaticos da India conheceram e discriminaram bem estesfactos: ás vozes chamaram elles svara (sons), ao passo que ás pretendi-das consonancias deram o nome de vyanjana (o que torna distincto, oque se manifesta). Ribeiro, p. 6

As vozes, estudadas á luz de uma analyse severa apresentam gradaçõesem numero infinito(1): todavia, para as necessidades da pratica, bas-tam algumas principaes de entre ellas, as quaes possam servir a todas.Ribeiro, 10

F. Diez é o mais referido, e a primeira das citações desse autorrefere-se ao seguinte:

(...) F. Diez pensa que dje, tche são as formas primitivas do je e che, etudo leva a crer que realmente o são. Ribeiro, p. 11

O determinismo, a teoria da evolução das línguas, aparece numacitação de Émile Ferrière, Le Darwinisme, a partir da qual Ribeiro fazuma adaptação da teoria biológica ao campo da linguagem, como se vêem:

Bem como as especies organicas que povôam o mundo, as linguas,verdadeiros organismos sociologicos, estão sujeitas á grande lei da lutapela existência, á lei da seleção. E é para notar-se que a evolução

linguistica se effectua muito mais promptamente do que a evolução dasespecies: nenhuma lingua parece ter vivido por mais de mil annos, aopasso que muitas especies parece terem-se perpetuado por milhares deseculos. Ribeiro, p. 153

Para reforçar seu atrelamento teórico-metodológico aos estran-geiros, o autor declara a coincidência havida entre a sua obra e a do“eminente lógico inglez Bain”:

Page 235: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

238

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

Folgo de que, sem previo accôrdo, eu tenha no campo do pensamentocaminhado a par de espirito tao elevado. Que se concluirá ter a minhaobscuridade achado sem guia o mesmo caminho seguido pelo eminen-te logico inglez?

Como se verifica, a referência aos estrangeiros é sempre marcadapor termos de avaliação positiva. Para afastar, provavelmente, qualquerdenúncia de plágio, diante da coincidência declarada, Ribeiro comenta,brevemente, um fato parecido que ocorreu entre Bally e Chasson, relata-do por M. Bréal. Dentro desse clima de “autoridade estrangeira” o fatofica já explicado, justificado. Esse, então, é um argumento de autoridadeque o autor endereça a um leitor mais ilustrado nas ciências da lingua-gem.

A preocupação de Ribeiro com seu leitor é flagrante no que dizrespeito ao formato do texto. Mesmo sendo seu leitor potencial um sujei-to versado em estudos da linguagem, ele pretende dizer algo que sejacompreendido, assim, desde a Introdução, suas afirmações são explicadas.Para isso, o texto adquire forma peculiar: a exposição teórica aparece emparágrafos, numerados e escritos em letra tamanho 12; a explicação dateoria, aposição de alguma informação ou comentário aparecem em tre-chos imediatamente seguidos ao da teoria, em letra de tamanho menor,10 ou 9, como apresentado abaixo:

a. explicação de um ponto teórico:

1. – Grammatica é a exposição methodica dos factos da lingua-gem (1).

A grammatica não faz leis e regras para a linguagem; expõe os factosdella, ordenados de modo que possam ser aprendidos com facilidade.(...) Ribeiro, p. 2

b. aposição de uma informação:

29. – A combinação de duas vozes livres distinctas em uma sósyllaba, de modo que se ouçam as duas vozes elementares,chama-se diphtongo.

Page 236: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

239

Interação na fala e na escrita

F. Diez (3), seguindo a opinião de Constancio (4) e de outrosgrammaticos, entende que existe em Portuguez verdadeiros triphtongos,e cita para exemplos: eguaes, averiguais, averigueis. Ribeiro, p, 12

c. aposição de um comentário:

409. – Concorrendo dous ou mais substantivos do singular, degenero differente e de significação similhante, o adjetivo con-corda com o ultimo, ex.: O amor e a amizade verdadeira – ou– A amizade e o amor verdadeiros.

É vicioso empregar um substantivo no plural e fazer concordar comelle adjectivos no singular; estas e outras frases, por exemplo, são in-corretas: O primeiro e segundo juizes de paz – As grammaticas francezae portugueza. Deve-se dizer: O primeiro juiz de paz e o segundo – Agrammatica franceza e a portugueza.

Cumpre, todavia, notar que muitos grammaticos não são desta opinião:Diez (1), por exemplo, auctoriza esta concordancia de adjectivos nosingular com um substantivo no plural, que até se dá em latim. Camõesescreveu: O quarto e o quinto Affonsos (2). Ribeiro, 243

6. A enunciação do exemplo: o lugar da interação

Como afirma Chevalier (s.d.) um importante componente da gra-mática, o exemplo, é pouco conhecido, pouco estudado. No âmbito destetrabalho, o exemplo é explorado tanto como um índice de interação au-tor/leitor quanto como um espaço onde o autor revela a sua enunciação.No primeiro caso, porque as afirmações feitas têm de ser comprovadaspelo exemplo; no segundo, porque, pelo exemplo, vê-se que o autor tra-balha indistintamente com princípios da língüística histórica, da compa-rativa, da sociolingüística, tudo dentro do espaço do manual de gramáti-ca tradicional, prescritiva. Essas, em última instância, podem serentendidas como marcas de seu tempo/espaço, que transparecem em seudiscurso.

Page 237: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

240

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

As primeiras palavras do autor são contra as antigas gramáticas,filosóficas, que, em suas palavras “eram mais tratados de mettaphysicaque exposições dos usos da língua”. É verdade que a obra não é umtratado de metafísica, contudo, não nega todos os princípios da gramáti-ca filosófica, ao contrário, aproveita alguns.

É verdade também que, desde a Introdução, Ribeiro enunciou quetrataria das “formas várias por que passou a nossa lingua”, não só parausá-la com consciência, e de modo adequado e correto, mas tambémpara compreender a natureza e a história do homem. Assim, é possíveldizer que sua obra situa-se numa encruzilhada de cinco tendências: afilosófica, perceptível por meio de algumas afirmações e posições, a his-toricista, perceptível por meio de inúmeros comentários e exemplos doportuguês antigo e clássico em relação ao moderno, a sociolingüística,perceptível por meio de comentários e exemplos sobre as variações dedialetos e registros do português, a comparatista, perceptível nas váriascomparações feitas entre o português e outras línguas, notadamente olatim e o francês, e a prescritivista, observável em toda a descrição, comvistas a mostrar o “melhor” uso da língua portuguesa.

Para ilustrar, transcrevo trechos que deixam ver cada uma das ten-dências:

a. tendência filosófica

A linguagem, interprete da intelligencia, é um instrumento de analyse:com efeito, as palavras servem para distinguir os seres, os objetos, asqualidades, as substancias (...). Ribeiro, 57 (Grifei)

Nesse trecho, é evidente o princípio maior da gramática filosófi-ca, a relação linguagem/pensamento. Em outros trechos da gramática,Julio Ribeiro faz referência direta a Jeronimo Soares Barbosa, o símboloda gramática filosófica portuguesa, em alguns, todavia, critica-o,10 noque diz respeito à aspectos de fonética e fonologia.

10 Cf. p. 5 e 14.

Page 238: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

241

Interação na fala e na escrita

b. tendência historicista

“Cometa, estrategema, planeta e alguns outros foram outróra femini-nos em Portuguez: explica-se assim a destemperada syllepse de generoque os grammaticos querem à fina força metter na conta a Camões:

“Mas já a planeta, que no céo primeiro

Habita, cinco vezes apressada,

Agora meio rosto, agora inteiro

Mostrára, emquanto o mar cortava a armada.”

A famigerada figura teve de certo origem em um erro typografico daedição princeps dos Lusiadas, reproduzido nas edições subsequentes.Ribeiro, s.d., p. 86.

Esse exemplo deixa entrever, pela escolha dos adjetivos que oautor fez para comentá-lo – tanto em “a destemperada syllepse” quantoem “A famigerada figura” – o desacordo de vozes sobre sua interpreta-ção. Em gramáticas anteriores,11 procurou-se dar uma explicação para oemprego da concordância “a planeta... apressada” desses versos. Uns, detendência analítica, procuravam uma silepse de gênero com o substanti-vo elíptico lua, então, o verso seria “Mas já a [lua] planeta, que (...)apressada”, outros, de tendência historicista explicavam o antigo gêne-ro, feminino, do substantivo planeta, o que desmonta o torneio da silepse.O fato serve para mostrar como o simples emprego de uma palavra mos-tra a enunciação do sujeito. Ribeiro comunica ao leitor a sua disconcor-dância com a discussão que girou em torno do problema pela escolha doadjetivo não axiológico.

11 Cf., por exemplo, Maximino Maciel (1887) Grammatica analytica; João Ribeiro (1887)Grammatica portugueza – curso superior; Maximino Maciel (1894) Grammaticadescriptiva.

Page 239: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

242

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

c. tendência sociolingüística

3) por e, na terminação de todos os vocabulos barytonos e na conjuncçãoe, ex.: cidadi – mosarabi –montis i vallis.

A maioria dos Brazileiros assim pronuncía: em Portugal diz-se cidadê– mosárabê – montês ê vallês, dando à voz terminal um som abafado,muito distincto de i. Ribeiro, s.d., p. 31

Ha ainda uma interjeição de duvida muito usada em Portugal e quasidesconhecida no Brazil; é ágora. Diz-se, por exemplo: Pedro está rico.Responde o interlocutor para mostrar a duvida no mais alto ponto:Ágora está! O tem em que se pronuncia esta interjeição é especialissimo.Ribeiro, s.d., p. 75

Muitos substantivos empregam-se mais geralmente no plural; são:

1) (...)

2) os nomes de cousas pares, ex.: bofes, bragas, calças, ceroulas, tesou-ras, ventas, etc.

Todavia diz-se grelha, treva, refem, calça, ceroula, tesoura, etc. e atécom alguns, como calça, ceroula, tesoura, vai prevalecendo o uso dosingular. Ribeiro, s.d., p. 93

Não são habitualmente usados no plural:

(...)

5) os nomes de produtos animais ou vegetais, ex.: leite – mel – cera –canella – seda, etc.

Todavia, diz-se andar a leites; os méis do Brazil, as sedas de Lyão,etc”. Ribeiro, s.d., p. 94

“Ha mais dous sons distinctos, banidos hoje do uso da gente culta: dje,tche.

Os caipiras de S. Paulo pronunciam djente, djogo. Os mesmos e tam-bém os Minhotos e Trasmontanos dizem tchapeo, tchave. Ribeiro, s.d.,p. 11 (Sublinhei)

Page 240: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

243

Interação na fala e na escrita

Essas passagens tanto comprovam o objetivo do autor de descre-ver a língua empírica12 brasileira quanto revelam a sua abertura a respei-to de certos fatos de mudança lingüística. Outros trechos, porém, carac-terizam a obra como realmente uma gramática tradicional, como se veráadiante.

d. tendência comparatista

F. Diez pensa que dje, tche são as formas primitivas do je e che(Grammaire des langues romanes. Trad. d’Auguste Brachet et GastonParis, 1874, vol. I, pag. 358-60) e tudo leva a crer que realmente o são.

Dje é som romanico genuino: existe em Provençal, em Italiano, e noseculo XII existia no Francez, que o substituiu ao Inglez, onde até ago-ra se acha, ex.: “jelousy”. Em escriptos latinos do seculo IX, encon-tram-se as fórmas pegiorentur, pediorentur, por pejorentur.

Tche é também som romanico castiço: existe em Provençal, em Italia-no, em Hespanhol, e existiu no Francez, donde passou para o Inglez,que ainda hoje o conserva, ‘chamber.’

A existência de ambas estas formas no fallar do interior do Brazil pro-va que estavam ellas em uso entre os colonos portuguezes do seculoXVI. A antiguidade e a vernaculidade de tche attestam-se pela sua per-manência na linguagem do Minho e dos Tras-os-Montes: como é sabi-do, o povo rude é conservador tenaz dos elementos archaicos daslinguas”. Ribeiro, s.d., p. 11

271.– O estudo comparativo das linguas romanicas leva-nos ao co-nhecimento das leis glloticas que presidiram á evolução do Latim. Noestado actual da sciencia physiologica, é impossível assignalar todasas causas que produziram tais leis. O que não sofre duvida é quanto

12 Conforme Auroux (1998: 103-04), a língua empírica é o conjunto indefinido de emissõeslingüísticas de grupos de sujeitos que se comunicam e se entendem por meio de uma dadalíngua; o conjunto indefinido de emissões lingüísticas de grupos de sujeitos que já vive-ram e utilizaram uma dada língua; o conjunto de emissões lingüísticas de grupos de sujei-tos que serão capazes de compreender traços das emissões lingüísticas de grupos de su-jeitos que viveram antes e utilizaram uma dada língua.

Page 241: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

244

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

contribuiu para ellas a influencia do meio, alliada ao pendor que tem ohomem, assim como todo animal, para empregar o minimo esforçopossivel na realização de actos physiologicos(1). É por causa destatendencia, pronunciadissima nos climas enervadores dos paizesintertropicaes, que as linguas européas tanto se tem adoçado e corrom-pido em certas partes da America”. Ribeiro, p. 156

272. – Na passagem do Latim para Portuguez, nota-se:

1) a persistencia do acento tonico: fémea de fémina, hómem dehómine(2).

É esta a grande lei da evolução glotica que deu o dominio romanico:pela persistencia do accento perpetuou-se o Latim nas suas sete filhas.(...). Ribeiro, p. 156-7

Nesses trechos, Julio Ribeiro confessa sua relação com o compa-rativismo, com a filosofia determinista que vigorava em sua época. Issonão poderia ser diferente, já que o discurso do homem é uma continuida-de, o que implica, portanto, que, embora esse amplie e crie idéias novas,parte sempre do que já se falou, leu e ouviu o que fica transparente no fiodo discurso, no enunciado. Nesse sentido se pode falar da heterogeneida-de do discurso, da presença dos “já ditos” no discurso de cada um. Esseé um movimento natural do discurso, incontrolável ao sujeito enuncia-dor. É sempre o processo de a enunciação mostrar-se pelo enunciado, ou,como diz Fiorin (1998), é o modo de a enunciação ser enunciada pormeio de astúcias percebidas pelo leitor (ou ouvinte) competente.13

e. tendência prescritivista

409. – (...)

É vicioso empregar um substantivo no plural e fazer concordar comelle adjectivos no singular; estas e outras phrases, por exemplo, sãoincorrectas: O primeiro e segundo juizes de paz – As grammaticasfranceza e portugueza. Deve-se dizer: O primeiro juiz de paz e o segun-do – A grammatica franceza e a portugueza. (Sublinhei)

13 Sobre o conceito de competência discursiva, consultar Fiorin, op. cit.

Page 242: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

245

Interação na fala e na escrita

Cumpre, todavia, notar que muitos grammaticos não são desta opinião:Diez, por exemplo, auctoriza esta concordancia de adjectivos no singu-lar com um substantivo no plural, que até se dá em latim. Camões es-creveu: O quarto e o quinto Affonsos (Lusiadas, Cant. I, Est. XIII)”.Ribeiro, s.d., p. 243

5) O pronome objecto, o pronome em relação objectiva adverbial e aparticula apassivadora se nunca devem começar a sentença: Seriaincorrecto dizer Me querem lá – Te vejo sempre – Nos parece – Vosoffereço – Lhe digo – Lhes peço – Se contam cousas feias – Se diz queelle vai, etc. Deve-se dizer Querem-me lá – Vejo-te sempre, etc. Ribei-ro, s.d., p. 255 (Sublinhei)

Apesar de o autor querer inovar, tratar da língua empírica e fazercomparação entre diferentes línguas, o espaço em que ele se situa é o dagramática tradicional, isto é, um espaço criado para comunicar ao leitor“como se usa corretamente uma determinada língua” e, portanto, os co-mentários sobre “o bom uso” não podem faltar. Importa saber quais sãoas fontes de observação de tal uso.

O “modelo de falante”, ou a autoridade lingüística fonte dos exem-plos, além de ser o próprio autor, pode ser também outras pessoas, sem-pre consideradas eruditas, doutas, que o gramático observou e de quemcolheu usos.14 Lê-se o seguinte sobre esse assunto, quando Ribeiro, noparágrafo 42, apresenta uma lista15 de palavras que devem ser pronunci-adas com [o], na penúltima sílaba:

Nem todos os mestres da lingua se acham de accordo sobre o som do ono plural destes nomes: a presente lista é em parte extrahida de obrasque tratam do assumpto, e em parte organizada segundo o parecer depessôas doutas consultadas pelo auctor. (Grifei)

14 O exemplo pode ser literário, e para esse há citação, de autoria e fonte.15 Nesses casos, as gramáticas trazem, em geral, dois tipos de listas de exemplos: as listas

fechadas, que esgotam uma série de termos, ou listas abertas que apresentam uma sérieinacabada de palavras de determinado assunto.

Page 243: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

246

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

Ainda, ao falar de verbos defectivos, e ao dizer que o verbo coloriré dos defectivos “que não se empregam nas fórmas em que ao thema sedeveria seguir a, e, o”, tem-se mais uma comprovação de que o autorcolhia usos de certos locutores que podiam ser tomados como modelosde falante. Diz ele:

O correctissimo escriptor, sr. Ramalho Ortigão, usou da fórma coloremdo verbo colorir. Ribeiro, s.d., p. 145

Uma fonte de exemplos, então, vem da língua falada de pessoasde prestígio. E outra, da língua escrita, literária, como se verá a seguir.

550. – Nem por vezes tem sentido affirmativo, equivalendo e, ex.: Porventura a necessidade será lá tamanha, NEM a esmola tão bem empre-gada? Phrases ha em que nem equivale a nem mesmo, ex.: O pão nemde graça me serve.

(...)

Nem emprega-se

(...)

5) reforçada por sem, ex.:

‘E vão a seu prazer fazer aguada,

Sem achar resistencia, nem defesa.’ CAMÕESRibeiro, p. 301

A proporção havida, nessa gramática, entre os exemplos literáriose os criados pelo autor é, mais ou menos, a que aparece no exemplocitado acima, que não está todo transcrito: para cada dez exemplos nãoliterários, um literário.16

16 Vale explicar que entre os exemplos não literários incluem-se provérbios “Falar é prata –calar é ouro” (p. 60), frases feitas, como “Poder e não querer é preferível a querer e nãopoder” (p. 298), palavras isoladas ou que integram listas fechadas ou abertas.

Page 244: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

247

Interação na fala e na escrita

Portanto, os exemplos de Julio Ribeiro são de duas espécies prin-cipais: os não referenciados, que, em geral, parecem ser do própriogramático, e os referenciados, retirados de textos literários ou de outraorigem.

Os exemplos não referenciados são os mais utilizados no conjun-to da obra, de modo quase exclusivo, para ilustrar a teoria exposta naparte primeira, em que o autor trata, no livro primeiro, de fonética,prosódia e ortografia; no livro segundo, em que trata, na primeira seção,de morfologia, classificação de palavras, na segunda, da flexão de no-mes, verbos e, também, dos advérbios, no que diz respeito ao “grau decomparação”; e na terceira seção em que trata de etimologia.

Na parte segunda, no primeiro livro, em que o assunto passa a sersintaxe, há maior quantidade de exemplos literários, embora não sejaesse um uso nem sistemático nem predominante.

Os exemplos não referenciados compõem listas, fechadas ou aber-tas. As listas abertas são, evidentemente, as que predominam no manualde gramática, que é apenas uma apresentação ou descrição de fatos dalíngua17 e não a própria língua. O exemplo mesmo, como esclarece Auroux(1998), é apenas uma abstração sui referencial de um uso, um modelo, enão o próprio uso, é, portanto, uma abstração que serve para corroboraruma regra ou uma categoria. Dentro dessa classificação, observamos al-guns exemplos como:

212. – São masculinos em virtude da significação do thema

1) os substantivos que significam macho, quer sejam appellativos, quersejam proprios, ex.: Homem – cavallo – Caligula – Incitatus. (Grifei)

Em termos da interação autor/leitor, a abreviação do termo exem-plo (ex.) tem o papel de informar que ali há apenas uma amostra doexposto como regra. Em geral, o gramático deixa pistas da lista aberta,seja por meio do emprego do termo exemplo, como acabei de mostrar,

17 Cf. Auroux, 1998, especialmente no que diz respeito à hipótese dos instrumentos lingüís-ticos (outils linguistiques).

Page 245: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

248

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

seja por meio de outras pistas, combinadas ou não, como etc., vários,outros numerosos e outros. Veja-se:

216. – São masculinos em virtude da desinencia, os substantivos termi-nados

(...)

4) por al, el, il, ol, ul, ex.: Pinhal – marnel – barril – lençol, paul.

Exceptuam-se dos acabados em al – cal, e varios adjectivossubstantivados, ex.: Capital – moral.

Às vezes, o gramático é tentado a fazer listas fechadas no que dizrespeito às exceções a uma regra. Em relação à regra do parágrafo 216,citado, por exemplo, vê-se:

(...)

7) por ar, er, ir, or, ur, ex.: Altar – talher – nadir – valor, catur.

Exceptuam-se dos acabados em al – cal, e varios adjectivossubstantivados, ex.: Capital – moral

Exceptuam-se dos acabados

a)em er – Colher;

b)em or – Côr, dôr, flôr.

Ribeiro usa o expediente do comentário ao texto principal, tam-bém, no que diz respeito às exceções. Ainda dentro do parágrafo 216,observa-se:

(...)

10) por ão, ex.: Coração.

E comenta:

“As excepções a esta regra são muito numerosas: em geral póde-se

Page 246: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

249

Interação na fala e na escrita

dizer que são femininos os substantivos derivados de adjetivos e deverbos, ex.: Aptidão – multidão – transformação – variação. Todos osaugmentativos em ão são masculinos.

As listas fechadas aparecem muitas vezes na citação de irregulari-dades, quando, por exemplo, é possível verificar casos como os seguin-tes dos parágrafos 220 e 238:

219. – Os adjetivos substantivados que terminam em a e e não mudam,ex.: Persa, Arabe.

220. – São irregulares:

Abbade feminino de abbadessa frei feminino de soror

(...) * a lista traz no total 73 nomes

Do mesmo modo:

238. – São diminutivos irregulares:

de aguia aguilucho de monte montezinho

ave avezinha mulher mulherzinha

(...) * a lista traz no total 20 nomes

Nesses dois casos, não há nenhuma pista sobre a possibilidade deexistirem outras exceções, a não ser as citadas. A lista se pretende exaustiva.

O conteúdo e a forma dos exemplos é outro ponto importante noque diz respeito à interação. Em primeiro lugar porque, se o exemplo éuma abstração que serve para comprovar a regra, ele deve ser o maissimples possível para ser compreensível e permitir a assimilação do queestá em questão. Sabe-se que esse não é um procedimento seguido emmuitas gramáticas, e nesse contexto Ribeiro é exceção. Seus exemploscumprem eficaz e claramente o papel de demonstrar a regra.

Quanto à forma, ou são listas de palavras que demonstram classese categorias, ou são frases, nominais, ou verbais, simples e claras. Até noquesito subordinação não se encontram exemplos exóticos, na ordeminversa e em que se combinam inúmeras subordinadas. Para mostrar essa

Page 247: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

250

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

situação, transcrevo alguns exemplos de sintaxe em que se poderia espe-rar “maior complicação”:

402. – Quando a um substantivo de um genero se refere outro generodiverso e modificado por um adjetivo, este adjetivo concorda com osegundo substantivo, ex.: Cicero, AQUELLA fonte de eloquencia –Catilina, AQUELLA peste da republica.

Os escritores antigos e o povo ainda fazem a concordancia com o pri-meiro, ex.: Cicero, AQUELLE fonte de eloquencia – Catilina,AQUELLE peste da republica – Manuel, tu és UM borra – Julio, tuserás UM mamã.

Vê-se nesse exemplo que, embora o autor utilize o conteúdo daliteratura do latim clássico, os exemplos são simples. No trecho de co-mentário, para facilitar ainda mais, vêm exemplos de temas da vida fa-miliar.

Os exemplos literários surgem no meio dos outros e dão, ao ladodas citações sobre os estudos da linguagem, o toque de erudição à gramá-tica. Entre os autores citados estão: Camões, em primeiro lugar, depois,Alexandre Herculano, A. F. Castilho, D. Diniz, Vieira, Gil Vicente, João deBarros, Fernão Lopes, Cícero (trad. de Borges de Figueiredo), Bocage,dentre outros, inclusive os Cancioneiros da Ajuda e da Vaticana. As refe-rências literárias são, já para a época de Ribeiro, bem antigas, e muitas sãousadas mesmo para apresentar torneios arcaicos, ou para mostrar a evolu-ção de certas formas. Por exemplo, veja-se a explicação dada para formasou, 1ª pessoa do singular do presente do indicativo, depois de apresentar,para comparar, a conjugação latina e a portuguesa:

Singular, 1ª Pessôa. – Encontram-se nos Livros de Linhagens, natraducção da História Geral de Hespanha e na Chronica de Guiné asfórmas ‘som’ e ‘san’; no Cancioneiro da Ajuda acha-se ‘soou’ no Can-cioneiro da Vaticana, ‘soò’; no Cancioneiro de Resende, ‘sam’; em GilVicente (2) ‘Tres annos ha que sam seu’. Ribeiro, p. 195

Page 248: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

251

Interação na fala e na escrita

Citação de fonte, só para Gil Vicente: (2) Obras de Gil Vicente,Hamburgo, 1834, vol. III, p. 6.

Há, entretanto, citações de trechos literários, em verso e em prosa,para comprovar uma regra, como:

4) que os adjetivos de propriedades materiaes, como côr, fórma, gôsto,etc., se pospõem geralmente, ex.: Uma gravata vermelha – Uma mesaredonda – Um vinho doce.

Bocage escreveu:

‘Contam que certa raposa,

Andando muito esfaimada,

Viu roxos, maduros cachos

Pendentes de alta latada’. Ribeiro, p. 246

Considerações finais

O tratamento da interação fora do contexto da língua falada, masdentro do contexto da gramática, pode a princípio parecer estranho, em-bora seja possível, como tentei mostrar ao longo deste trabalho.

Os dados colecionados e analisados mostram que a gramática tra-dicional é um texto composto a partir da consideração do perfil de umleitor potencial que se impõe ao autor, o qual se vê, quase, obrigado areferências e explicações para satisfazê-lo. Por isso mesmo, é possívellevantar dados comprobatórios da presença desse leitor no texto.

Uma análise comparativa de gramáticas, principalmente de gra-máticas de épocas diferentes, de séculos diferentes, deixaria entrever di-ferentes tipos de autor/leitor e, certamente, revelaria com maior nitideznuances do processo interacional que podem ter ficado ainda obscuras.Como este trabalho é parte de uma pesquisa maior, de análise de gramá-ticas da língua portuguesa, espero em outra ocasião poder acrescentaralguns dados e informações sobre esse assunto.

Page 249: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

252

LEITE, Marli Quadros. O espaço da interação autor/leitor na gramática...

Referências bibliográficas

AUROUX, Sylvair. (1998). La raison, le langage et les normes. Paris: PUF.AUTHIER, Jacqueline. (1978). Les formes du discours rapporté – remarques syntaxiques

et sémantiques à partir des traitements proposés. D. R.L.A.V., Denoël: Paris, 1-78.AUTHIER-REVUZ, Jean-Claude. (1984). Hétérogénéité(s) énonciative(s). Langages,

Larousse, Paris, n. 73, mars, 98-111._______. Ces mots qui ne vont pas de soi – boucles réflexives et non-coïncidences du

dire. Paris: Larousse, 1995, 2 vol.BAKTHIN, Mikhail. (1988). Marxismo e filosofia da linguagem. 4 ed.São Paulo:

Hucitec, [1ed. 1929].CHEVALIER, J-C. Le problème des données dans les deux grammaires anglaises du

français: Lesclarcissement de John Palsgrave (1530) et The French Schoolmasterde Cl. Sainliens dit Holyband (1609), p. 65-75.

_______. Le discours grammatical: statut des exemples. Grammaire Transformatio-nnelle: syntaxe et lexique.Université de Lille III, p. 235-63.

FIORIN, José Luiz. (1989). Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto/EDUSP,

_______. (1996). As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática.FOURNIER, Jean Maire. (2000). L’exemple ans le discours des grammaires –

quelques pistes. Groupe de travail sur l’Exemple, Paris VII (inédite)KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. (1999). L’énonciation – de la subjectivité dans

la langage. 4ed. Paris: Armand Colins.ORLANDI, Eni P. e GUIMARÃES, Eduardo. (1998). La formation d’un espace de

production linguistique. La grammaire du Brésil. Langages – L’hyperlanguebrésilienne. Par Sylvain Auroux, Eni Orlandi, Francine Mazière. Paris: Larousse,juin, n. 120.

REY, Alain. (1995). Du discours au discours par l’usage: pour une problématique del’exemple. Langue Française, 106, 95-123.

Page 250: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

USO E ABUSO DE PROVÉRBIOS

Hudinilson Urbano

Considerações iniciais

A observação de uso de provérbios leva-nos a pensar em comofunciona o provérbio em interações verbais (que, por natureza, são sem-pre específicas), ou seja, em discurso, uma vez que ele, o provérbio, é,também por natureza, genérico e sem referências determinadas, fruto deenunciações anteriores indeterminadas. Em outros termos, como se ex-plica o uso de uma fórmula (passada) já feita num uso particular presen-te, ou, como é, ou deve ser verbalizado, ou comportar-se um provérbio –que é uma estrutura fixa – dentro de uma interação – que é uma instânciasempre variável, com componentes lingüísticos e extralingüísticos pornatureza variáveis? Como fica a criatividade sintático-semântica?

Como se observa, estamos interessados no uso de provérbios, re-passando o emprego oral/escrito, literário/não literário. É a observaçãodo provérbio como enunciado inter-intra discurso dentro de interações.Não estamos preocupados com o provérbio em si, sua interpretação se-mântica, com o levantamento e arrolamento exaustivo de provérbios,sua dicionarização, suas propriedades formais, a não ser com o necessá-rio para a nossa perspectiva, superficialmente.

Um postulado inicial é que todo discurso é uma realizaçãointerativa, isto é, fruto ou produto de uma atividade verbal, direta ouindiretamente, entre dois ou mais indivíduos, que reciprocamente se in-fluenciam.

Page 251: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

254

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Mas relacionam-se com esse postulado outros que motivam eembasam a hipótese de nossas reflexões, além da interatividade semprepresente nos textos. Assim, um dos postulados básicos é o dadialogicidade/polifonia do discurso. Entretanto, também é necessário terem conta sua argumentatividade, expressividade, e, sobretudo, seu con-texto de enunciação.

O desenvolvimento do ensaio prevê um suporte teórico geral, umsuporte teórico específico sobre provérbios, um levantamento de ocor-rências, uma análise de casos dentro de uma classificação de gêneros euma relação de provérbios analisados ou referidos, com a respectiva pes-quisa bibliográfica documental e remissão aos casos comentados.

Polifonia / dialogicidade / intertextualidade

O discurso é sempre heterogêneo no sentido de que acolhe, alémdo locutor, o interlocutor e o Outro (= outro discurso e seu locutor /enunciador, ou seja, muitas vozes no seu interior) Esse fenômeno costu-ma ser estudado sob as noções de polifonia (Ducrot), heterogeneidadediscursiva (Authier-Revuz), intertextualidade (Barthes, cf. Koch) etc. Porora, já podemos transcrever Koch (1987: 142):

A noção de polifonia (...) pode ser definida como a incorporação queo locutor faz ao seu discurso de asserções atribuídas a outrosenunciadores ou personagens discursivos – ao(s) interlocutores, a ter-ceiros ou à opinião pública em geral.

E acrescentamos: e até a si mesmo em outros momentos que nãoo presente.

Quando a perspectiva é a do texto como produto coletivo do locu-tor e seu interlocutor (como sujeitos do discurso), estamos na sua dimen-são interacional, enfoque orientador deste ensaio. Quando a perspectivaé a da incorporação do Outro no discurso em andamento, estamos falan-

Page 252: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

255

Interação na fala e na escrita

do, de um modo geral, do discurso polifônico, mas numa visão maisrestrita. Entendemos que aqui há também um tipo de interação: interaçãode discursos, onde os “interactantes” são os próprios discursos: tanto odiscurso em andamento integra e interage com outros, quanto ointerdiscurso contribui e influencia. Maingueneau (1993: 120) fala in-clusive em “ interação entre dois discursos em posição de delimitaçãorecíproca”.

Nesta perspectiva, não estão em jogo essas noções ou proprieda-des enquanto condições de existência do próprio discurso, mas sim tiposparticulares do fenômeno que, de maneira mais ou menos explicita, es-tão presentes em determinados discursos.

Assim, a intertextualidade em sentido restrito (Koch, 1987: 48)pode ser entendida como a “relação de um texto com outros previamenteexistentes, isto é, efetivamente produzidos”. Há uma relação do interiordo discurso com o seu exterior, nem sempre havendo um limite rigorosoou claramente perceptível de fronteiras.

Dentro dessa noção (e suas parossinônimas), pode-se dizer que aintertextualidade pode ser explícita (com citação da fonte) ou implícita(com fonte recuperável pela memória discursiva.1). A identificação dointratexto se faz graças ao apoio da memória (textual, discursiva, lexical)e das propriedades lingüísticas desse enunciado intratexto. (Maingue-neau, 2001: 170)

Um texto pode incorporar, do discurso alheio, apenas conteúdoou forma e conteúdo, de maneira integral ou com alterações, a títuloirônico ou não, adaptando-se às configurações discursivas do momento.Há quem considere que a relação entre discurso e interdiscurso podelevar a distinguir uma intertextualidade interna, quando o discurso einterdiscurso estão no mesmo campo discursivo, e uma intertextualidadeexterna, quando estão em campos discursivos diferentes. Em termos de

1 Quanto à questão da memória, louvamo-nos em Brandão (1997: 77): “... a toda formaçãodiscursiva se vê associar uma memória discursiva “. Não se trata (...) de uma memóriapsicológica, mas de uma memória que supõe o enunciado inscrito na história”. (Ver maisMaingueneau, 1998: 96: memória externa/interna)

Page 253: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

256

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

orientação argumentativa, pode incorporar um interdiscurso, aderindoou opondo-se à sua orientação.

Interação e enunciação

Todo enunciado é resultado de uma enunciação. Fiorin (1996: 30)diz mesmo: “Considerado como totalidade, o discurso é constituído pelaenunciação”, que, como tal, é, nas palavras de Bakhtin (1979: 109), “umpuro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determi-nado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui oconjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lin-güística”. E mais adiante: “a interação verbal constitui assim a realidadefundamental da língua”. Para chegar a essa asserção absoluta, Bakhtinargumenta:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistemaabstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isola-da, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômenosocial da interação verbal, realizada através da enunciação ou dasenunciações.

Como se sabe, a enunciação – que gera o enunciado – gera-se, porsua vez, entre outros fatores, graças às condições concretas da situaçãode comunicação, dentro da qual se destaca em particular a figura doenunciador. No dizer de Ducrot e Todorov (1973: 379), a enunciação é“um ato no decurso do qual as frases do enunciado se atualizam, assumi-das por um emissor particular, em circunstâncias especiais e temporaisprecisas”.

Considerada como instância lingüística (mas não uma estruturalingüística), logicamente pressuposta pelo próprio enunciado, ela “apa-rece como a instância de mediação, que assegura a colocação dasvirtualidades da língua em enunciado-discurso”. (Greimas e Courtés, s/d: 95). Nessa mesma direção, Benveniste (1976: 86) diz que “a enuncia-

Page 254: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

257

Interação na fala e na escrita

ção é a colocação da língua (saussuriana) em discurso por um ato indivi-dual de utilização”.

Socorrendo-nos da “Lingüística da enunciação”, que procura des-crever as relações que se tecem entre o enunciado e os diferentes elemen-tos constitutivos da estrutura enunciativa, isto é, seu contexto, recupera-mos aqui os referidos elementos:

• os protagonistas do discurso (enunciador / enunciatário)

• a situação de comunicação, que compreende, grosso modo, a) ascircunstâncias espaço-temporais e b) as condições gerais da produção /recepção da mensagem: natureza do canal, contexto sócio-histórico, tema,condições do universo do discurso etc.

Com relação aos protagonistas, salienta-se que a enunciação é umaatividade lingüística exercida por aquele que fala no momento e espaçoem que fala, mas também por aquele que escuta no momento e lugar emque escuta (Urbano, 2000: 21). Passamos, pois, da idéia da linguagemcomo “ação” para a linguagem como “interação”.

A “situação do discurso” é interpretada por Ducrot e Todorov (op.cit., p. 391) da seguinte forma:

o conjunto das circunstâncias no meio das quais se desenrola um atode comunicação (oral ou escrito). Deve-se entender por isto, ao mesmotempo, o ambiente físico e social em que se realiza o ato, a imagem quedele têm os interlocutores, a identidade destes, a idéia que cada um temdo outro (incluindo a representação que cada um tem do que o outropensa dele), os acontecimentos que precederam o ato de enunciação(sobretudo as relações que antes tiveram os interlocutores) e, sobretu-do, as trocas de palavras em que se insere a enunciação em questão.

Como se vê, é amplo o leque de elementos constitutivos da estru-tura da enunciação, mas cabe frisar que ela “enquanto mecanismo demediação entre a língua e o discurso, explora sobretudo as categoriasparadigmáticas da pessoa, do espaço e do tempo, com vista à constitui-ção do discurso explícito” (Greimas e Courtés, op. cit., p. 95). Nessesentido, a enunciação é a instância da instauração do sujeito (enuncia-

Page 255: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

258

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

dor), do espaço e tempo (da enunciação). Se, como dissemos, a enuncia-ção está logicamente pressuposta pelo enunciado, pessoa, espaço e tem-po (para ficar apenas nesses elementos) estão logicamente nele pressu-postos e, explícita ou implicitamente, marcados.

A interação não só é o ambiente físico e mental da enunciação,como também é realizada por operações que constituem o lugar de umainteração incessante entre locutor e alocutário (Cervoni, 1989: 10).

Interação e discurso

Sabemos que a língua se realiza e se concretiza pelo e no discursoque dela se serve, criativa (com as restrições apontadas adiante) e seleti-vamente, naquilo que se refere ao estoque lingüístico fixo, consideradocomo “sistema de signos e regras, tesouro coletivo depositado em cadacérebro, conjunto de convenções próprias de todos os locutores de ummesmo idioma, código único e homogêneo que lhes permite comunica-rem-se”. (Idem, ibid.)

Mas é na situação de discurso que a língua vive, dentro de umainteração, abstrata na escrita, concreta na conversação face a face,contabilizada pelos referidos elementos constitutivos da enunciação, vistosatrás.

No capítulo 4, “Discurso, enunciado, texto”, Maingueneau (2001:51-7) dedica três parágrafos à discussão da interatividade do discurso,afirmando: “O discurso é interativo”. No parágrafo central, ele faz umalerta: “Parece-nos, no entanto, preferível não confundir ‘interatividade’fundamental do discurso com a interação oral”. E prossegue, na pers-pectiva que mais nos interessa:

Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatá-rio, é de fato, marcada por uma interatividade constitutiva (fala-se tam-bém em dialogismo), é uma troca, explícita ou implícita, com outros

Page 256: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

259

Interação na fala e na escrita

enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de uma ou-tra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relaçãoà qual constrói seu próprio discurso.

Interação e envolvimento

É da natureza da interação, seja no texto escrito seja no falado, oenvolvimento do enunciador com o enunciatário. Tal envolvimento ocorreem variados graus: intensamente no texto falado, parcamente no textoescrito, podendo-se falar, neste caso, em “distanciamento”.

Fica entendido que o envolvimento com o enunciatário é na reali-dade, um envolvimento de duas mãos, embora de intensidades diferen-tes: do enunciador com o enunciatário e deste com aquele.

Por outro lado, é consensual que o enunciador está sujeito a maisdois tipos de envolvimento: o envolvimento consigo mesmo (no caso demonólogo, sobretudo lírico) e o envolvimento com o tema textual.

O que determina os vários tipos e níveis de envolvimento são ascircunstâncias todas da interação, nelas compreendidos inclusive os atri-butos dos interactantes. De qualquer forma, salientamos que cada intera-ção tem suas próprias características, daí resultando discursos e textos,filiados e circunscritos às regras da língua, mas sempre diferentes dela,desde que pragmaticamente construídos e constituídos de forma diferen-te a cada interação.

Interação e planejamento

O discurso como língua em ação, em atividade, pressupõe umplanejamento menos ou mais profundo, canalizando um variado conjun-to de elementos para a obtenção do propósito definido.

Conforme se trate de um texto falado ou escrito, devemos consi-derar diversos níveis e condições de planejamento, presos aos diversostipos de texto.

Page 257: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

260

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

No texto escrito o enunciador verbaliza seu enunciado com con-dições favoráveis de elaboração, na medida em que desfruta de tempo,possibilidade de consultas e reflexões solitárias. Pode em conseqüên-cia planejar previamente (e replanejar) a tematização e verbalização dotexto.

No texto falado face a face, carece-se de condições, tendo que seadministrar passo a passo o planejamento do texto, sobretudo verbal.

Interação e verbalização (reflexo de fatores enunciativose interacionais)

Vimos que a enunciação, realizada na interação, constitui-se deelementos subjetivos (enunciador/enunciatário) e de elementos circuns-tanciais, sobretudo de espaço e tempo. Mas muitos outros fatores interfe-rem de modo convergente na verbalização textual, a qual será, pois, re-sultante e reflexo de todos esses fatores e seus desmembramentos.

Assim é fundamental ter-se em conta permanentemente em cadainteração aqueles fatores e suas variantes para compreendermos e expli-carmos à sua luz o comportamento verbal.

Repisamos, pois, que a linguagem naquilo que ultrapassa os limi-tes da língua, realiza-se de forma diferente, o que acontece na frase, con-siderada sempre como uma construção nova, unidade que é do discurso,embora conformada aos signos, estrutura e regras da língua.

Por outro lado, é bom ter em mente:

Se a frase é uma unidade sintático-semântica, o discurso constituiuma unidade pragmática, atividade capaz de produzir efeitos, reações,ou, como diz Benveniste (1974) ‘a língua assumida como exercíciopelo indivíduo.’ Ao produzir um discurso, o homem se apropria dalíngua não só com o fim de veicular mensagens, mas principalmente,com o objetivo de interagir socialmente, incluindo-se como EU e cons-tituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que é por sua

Page 258: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

261

Interação na fala e na escrita

vez constitutivo do próprio EU, por meio do jogo de representações eimagens recíprocas que entre eles se estabelecem. (Koch, op.cit. p. 21)

Uma outra consideração que queremos consignar, ainda com Koch(op. cit., p. 123) é que “torna-se impossível estudar tais enunciados, sobum ângulo estritamente lógico, como se tem feito freqüentemente emLingüística e em Filosofia da Linguagem, já que existem na língua rela-ções que, muitas vezes, aparentemente nada têm de lógico, as quais sepode chamar de paralógicas, pragmáticas, discursivas, argumentativasou sociológicas”. Em outras palavras: a língua tem sua lógica própria.Diríamos mais, lembrando Ducrot, que seria impossível compreenderprofundamente e eficazmente enunciados à revelia de certos implícitos.

Interação e criatividade x expressividade

Para a realização da frase é preciso não só que se selecionem e secombinem, segundo as regras da sintaxe da língua, palavras (lexias) quepertençam a ela, mas também que, além disso, essas palavras apresentementre si certa afinidade semântica.

Com efeito, na sintaxe, quem fala ou escreve escolhe lexias e pa-drões sintáticos entre os tipos de frase, obedecendo a um número mais oumenos restrito de regras rígidas: “À dupla escolha do padrão sintático e doléxico corresponde a criatividade da frase, tendo o falante a possibilidadede produzir em número infinito frases novas e compreensíveis”. (Martins,1989: 129) A criatividade é uma característica essencial da língua,conceituando-se como o fato de que, com um número finito de categoriase de regras que constituem a sua competência, o locutor, de um lado, possaproduzir e o ouvinte, do outrto, possa interpretar, todas as frases dessalíngua, cujo número é infinito. (Cervoni, 1989: 11) Na língua como umtodo há uma parte cristalizada no sistema e há uma língua que se elabora,uma língua que lança mão de recursos expressivos da linguagem para criarnovas aplicações. Então há sempre possibilidade de se transcender o es-quema lingüístico, caindo naquilo que se chama criatividade humana.

Page 259: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

262

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

A questão da “criatividade” (referida atrás em “interação e discur-so”) do discurso vs estoque lingüístico “fixo” da língua merece aqui areflexão que Tannen (1985) fez, ao tratar das fórmulas lingüísticas e darepetição. Com efeito ela diz que “de certo modo (...) todo significado nalíngua deriva, pelo menos parcialmente, de convenção; assim, a lingua-gem no discurso (...) é mais ou menos formulaica”, deixando, porém,claro, na conclusão do seu trabalho: “A observação e avaliação do papelda formulaicidade no discurso não invalidam, e nem mesmo negam, acapacidade gerativa da linguagem; pelo contrário, tornam-se necessáriaspara colocá-la em perspectiva”.

É preciso, porém, ter em conta que essa infinidade de construçõesestá sujeita à aceitabilidade dos usuários, decorrente de vários fatores,como uso, cultura e convenções sociais.

Por outro lado, “a linguagem real é a) um fenômeno unido à pes-soa por inteiro e ao momento exterior que a determina; b) (...); c) é,sobretudo, um fenômeno ligado à realidade, à vida, à sociedade, e, porisso um fenômeno dinâmico”, diz Slama-Cazacu (1970: 315), acrescen-tando linhas depois: “Não temos nos esforçado, pois, por encarar a lin-guagem em relação com um indivíduo abstrato, teórico, mas com a pes-soa concreta, como membro de uma determinada sociedade”. (id., p.316). E aí poderíamos e deveríamos considerar esse indivíduo como umsujeito histórico, no sentido de portador de sua própria história extramomento da enunciação. Nesse sentido, parece-nos propícia a seguintereflexão de Souza (1989: 68):

É a partir de uma concepção sociológica do enunciado concreto, comoa realidade material da linguagem, ou seja, com um ato que se constituiorganicamente de uma parte verbal – a língua – e uma parte extraverbal– a situação – que Bakhtin / Volochinov / Medevedev podem (...) con-ceber a criatividade lingüística não como um ato puramente individual,mas como uma criatividade sociológia e dialógica, realizada na intera-ção verbal, ou seja, na dimensão do diálogo entre falantes de uma de-terminada comunidade lingüística

Page 260: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

263

Interação na fala e na escrita

Na realidade, entre outros fatores, uma frase, como diz Cervoni(op. cit. p. 17), “comporta, em seu componente enunciativo, uma ‘moda-lidade’ que constitui uma previsão do tipo de ato que ela tem a vocaçãode realizar. É preciso acrescentar que esta vocação é genérica e pode serfacilmente desviada. Assim, quando se torna enunciado, isto é, quando érealmente atualizada numa interação, dentro e não fora de contexto (si-tuacional e/ou lingüístico) “uma frase declarativa”, do tipo O gato deminha tia está sobre o tapete, idealizada por um gramático para ilustrarum dos possíveis padrões sintáticos e possíveis construções do verboestar, “pode muito bem ser, em contexto, outra coisa além de uma sim-ples declaração: pode ser um queixa, uma censura, uma ameaça, umaadvertência”. Para Bakhtin, na interpretação do citado Souza (p. 61),nesse sentido o enunciado não é neutro; é visto e compreensível. Este éum enunciado concreto. No dizer de Brait (1992:29), enunciado concre-to é aquele que “nasce, vive e morre no processo da interação social entreparticipantes do evento conversacional”.

Do que se expôs se conclui que não só tem o falante a possibilida-de de produzir um número infinito de frases novas, como também umafrase já anteriormente formalizada tem inúmeros modos de ser interpre-tada, segundo diferentes contextos, isto é, segundo diferentes eventosinteracionais. Ou, na esteira de Chun (2000:4), embora numa perspecti-va paralela, isto é, na perspectiva da voz: “Cada produção vocal é únicae singular, mas nunca é exatamente a mesma, ainda que se possa reco-nhecer as características inerentes de quem a produziu”. Cremos quemesmo uma determinada palavra, repetida por uma mesma pessoa, emmomentos diferentes (obviamente também em espaços diversos) nuncaserá produzida (e significará) de forma idêntica.

Há componentes individuais e sociais que são influenciados pelacultura e pela sociedade em que o sujeito está inserido, bem como pelascondições de produção vocal, ou seja, pelo contexto do momento (a si-tuação, os interlocutores, o estado de humor do falante, o assunto, a dire-ção argumentativa entre outros. Nesse sentido, fazemos ainda algumasreflexões, à luz das ovbservações de Marinho (2000:33): – o discursotraz a incerteza e a imprevisibilidade de um acontecimento; – o discurso

Page 261: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

264

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

acontece num dado contexto histórico-social, ligando-se à memória e àsredes de discursos nele existentes; – o fato de que as circunstâncias quepossibilitaram a realização do discurso não se repetirão é que fazem dele,de sua verbalização e de cada interação um acontecimento único eirrepetível.

E aí estaremos na trilha de Guillaume, (apud e interpretado porCervoni, op. cit., p. 56), quando diz que “todo ato de expressão visa a“afetar o alocutário” e, para tanto, o locutor dispõe de “mil maneiras dedizer”. O conjunto dessas maneiras de dizer constitui a expressividade.Não se pode conceber um ato de linguagem onde a expressividade esta-ria totalmente ausente; é o que significa a sua fórmula:

expressão + expressividade = 1

na qual 1 representa um ato de linguagem integral, e, na avaliação deJoly e Roulland (apud Cervoni), ato cujos “dois componentes são váriaveisque podem ir de um mínimo a um máximo”.

Parafraseando pensamento de Joly e Roulland, no mínimo deexpressividade (mínimo, mas nunca zero) estamos colados na expres-são, isto é, no instituído; no extremo oposto, estamos colados no máximode expressividade, isto é, colados no improvisado.

Interação e argumentatividade

Todo discurso, como uso da linguagem, é argumentativo, o queleva a considerar que em cada interação, por força de sua situação, cadadiscurso tem uma orientação argumentativa própria. No caso da integração/ incorporação do discurso alheio, porém, pode ter influência da orienta-ção argumentativa deste.

Argumentação aqui, alinhada ao sentido usado por Koch (1987),não está inscrita no contexto lógico-formal com o valor de prova, mas no

Page 262: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

265

Interação na fala e na escrita

âmbito da Retórica. O ato de argumentar é visto como o ato de persuadir,envolvendo a subjetividade, os sentimentos, buscando a adesão e nãocriando certezas (Marcuschi, na “Apresentação”, p. 12), embora as insi-nuando.

A interação verbal caracteriza-se, fundamentalmente, pela argu-mentatividade:

Partindo do postulado de que a argumentatividade está inscrita no usoda linguagem, adota-se a posição de que a argumentação constitui ativi-dade estruturante de todo e qualquer discurso, já que a progressão destese dá, justamente, por meio das articulações argumentativas dos enunci-ados que compõesm um texto como fator básico não só de coesão masprincipalmente de coerência textual. (Koch, op. cit. p. 23)

O provérbio em si

Nenhum autor consegue distinguir satisfatoriamente o provérbiode seus parassinônimos (aforismos, adágios, ditados...) e não é nossopropósito e interesse essa preocupação. Também ficam apenas na super-fície questões sobre a freqüência do uso, origem, interpretação de senti-do, ideologia subjacente, variantes e variações, nível lingüístico; enfimnão se trata de um ensaio de caráter paremiológico ou paremiográfico.

Consta em Buosi (1997:21) a seguinte observação taxativa:

Os provérbios propriamente ditos (se é que sabemos o que venham aser “provérbios propriamente ditos”) ligam-se a diferentes formas deexpressão tradicional, e é impossível traçar linhas divisórias exatas en-tre uns e outros. Considere-se qualquer das definições existentes: sãotodas meramente aproximativas. A substância fluida escapa por entreas frinhas das frases que a pretendem conter.

Page 263: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

266

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Apenas procuraremos apontar algumas questões e propriedadesnessa linha de reflexão. Para essas questões, utilizamos principalmenteexemplos extraídos de um levantamento mais ou menos aleatório de uso,que fizemos, direta ou indiretamente, e que servirá também, poramostragem, para a análise de casos.

Comecemos lembrando, com Serra e Gurgel (1998:42), que “oprovérbio tem o seu uso consagrado e perfeitamente integrado aos costu-mes e hábitos de indivíduos e grupos sociais (...) sua tradição ultrapassaa fronteira da língua nacional. Acompanha-o uma herança de outras lín-guas, culturas e civilizações”. 2 A pesquisa feita revela que mais de 30%têm correspondentes em 2, 3, 4 ou até 5 outras línguas). Sua tradiçãoultrapassa ainda as fronteiras temporais, chegando à Antigüidade: “Olivro dos Provérbios de Salomão, um dos livros do Antigo Testamento, éum conjunto de sentenças morais que podem servir para norma da vida”.(Diccionario de aforismos ... 1967:6)

Como formas fixas ou frases formulaicas, clichês, os provérbios,segundo observação de Tannen (1985), são vistos com desprezo pelosamericanos, enquanto “gregos, turcos, árabes e muitos africanos sentemque usar o provérbio ou expressão fixa apropriada é prova de um senti-mento sincero e oportuno”.

Já observamos no item “discurso” que a língua é um sistema designos e regras, um estoque lingüístico fixo depositado em cada cérebro,um código único e homogêneo que permite a comunicação humana. Masvimos que ela vive e se concretiza pelo e no discurso, através da apropri-ação e atualização (criativa e seletiva) do estoque lingüístico fixo e dasregras, e isso é feito na interação e enunciação, por meio de enunciadosconcretos, de que os provérbios são exemplos, ainda que sem muito con-senso.

2 – a) Ver Dissertação de Buosi (1997), que estudou sete provérbios plurinacionais; b) atítulo de ilustração transcrevemos o verbete “O hábito não faz o monge”: Habitus nonfacit monaclum; El habito no hace el monje; L’habit ne fait pas le moine; L’abito non fail monaco; It is not the cowl that makes the friar. (LM, 171). N.B. As abreviaturas comoLM (Leonardo Mota) codificam os autores dos dicionários específicos consultados, as-sim relacionados, em ordem alfabética, após as Referências bibliográficas.

Page 264: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

267

Interação na fala e na escrita

Embora não se trate aqui propriamente de um estudo sobre pro-vérbios, mas sim sobre o uso interacional deles, teceremos na seqüênciaalgumas rápidas considerações sobre seu conceito, suas característicasgerais, formais e semânticas.

Conceito de provérbio

Ferreira conceitua-o como “máxima ou sentença de caráter práti-co e popular, comum a todo grupo social, expressa em forma sucinta egeralmente rica em imagens” , exemplificando com Casa de ferreiro,espeto de pau. (Ver variante na análise do caso 16 – Lilian Blanc)

Segundo Rocha (1985:11-14), “deve encerrar uma mensagemadmoestadora ou conselho”, remetendo a verdades gerais, atemporais,dentro de enunciados genéricos. Com outras palavras, diz Maingueneau(2001:171) que é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coi-sas, sobre como funciona o mundo. Na verdade, trata-se normalmente deuma sentença moral e não necessariamente comum apenas a um gruposocial, como sugere Ferreira: sói ser comum a toda uma comunidadelingüística, quando não, sua tradição pode ultrapassar a fronteira da lín-gua nacional.

Sua difusão é tradicionalmente oral, isto é, ele é difundido peloequipamento lingüístico falado, apresentando grande freqüência de usoe um ciclo de longa duração, tornando-se na maioria das vezes perma-nente. (Serra e Gurgel, 1998:42) Geralmente é produzido em nível colo-quial: sua linguagem, com freqüência, é informal, encontrando-se, po-rém, provérbios em linguagem culta, como: Dize-me com quem andas,dir-te-ei quem és; Quem cabras não tem e cabritos vende, de algumlugar lhe vem. O registro coloquial, contudo, permite certa intimidadeentre os interlocutores, em situação de uso.

Maingueneau (2001:169) diz que “a enunciação proverbial é fun-damentalmente polifônica; o enunciador apresenta sua enunciação comouma retomada de inúmeras enunciações anteriores, as de todos os locu-

Page 265: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

268

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

tores que já proferiram aquele provérbio (...)” ou, ainda o mesmo autor(1993:101), de maneira mais completa, explica que “ [o último indivíduoque o profere] toma sua asserção como o eco, a retomada de um númeroilimitado de enumerações anteriores do mesmo provérbio. Unidadesimemoráveis por definição, os provérbios, com muita justiça, fazem par-te do dicionário da língua”. (colchetes nossos). Trata-se, parafraseandoRocha (1995:30), de um dizer que tem sua origem fora do sujeito, apesarde se realizar através dele (...)”. E caracteriza o caso de uma intertextua-lidade indefinida.

É uma espécie de citação. Na realidade, pode ser considerado comouma espécie de discurso reportado, isto é, uma citação pelo falante dodiscurso de outrem. Fiorin (1996:72), porém, adverte que discurso re-portado é na verdade citação de discurso “e não apenas de palavras ousintagmas”. Parece querer deixar claro que não é só um enunciado queestá em jogo, mas um enunciado enquanto discurso, isto é, o própriodiscurso. E conclui: “É a inclusão de uma enunciação em outra”. Fica,pois, mais uma reflexão a ser feita: no caso dos provérbios, ocorre acitação apenas de palavras e sintagmas (mais precisamente frases), ou setrata de retomada de discurso, isto é, palavras mais interação ou palavrasem interação?

Rocha (op. cit.:15) entende que provérbios não são enunciadosno sentido estrito do termo, uma vez que 1) não são produzidos no atode enunciação (são, na realidade, reenunciados, ou citados), 2) não sereferem aos seres presentes no universo da enunciação ou o fazem in-diretamente, de maneira ambígua e proveitosa para as intenções dolocutor.

Um dos aspectos lembrados no uso dos provérbios é seu valor deautoridade. Koch (1987: 157) diz que “o recurso a provérbios, máxi-mas, ditos populares, expressões consagradas pelo uso pode ser con-siderado um exemplo de argumentação por autoridade”. Essa qualidadedos provérbios os recomenda, para o aproveitamento, por meio de recri-ação, de slogans publicitários.3 “Dado esse privilégio de que goza o pro-

3 Sobre a diferença entre provérbios e slogans, v. Maingueneau(2001: 171 ss)

Page 266: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

269

Interação na fala e na escrita

vérbio em matéria de autoridade (...) ele constitui um modelo do maisalto interesse para aqueles que buscam a autoridade de seus enunciados”.(Maingueneau e Grésillon, apud Rocha, op. cit., p.166) Ainda nessamesma linha, Maingueneau (1993: 101) diz que, considerado sob o ân-gulo da citação de autoridade, “o provérbio representa um enunciadolimite: o “locutor” autorizado que o valida, em lugar de ser conhecidoapenas por uma determinada coletividade, tende a coincidir com o con-junto”. Corolariamente, quando de seu interesse, o locutor ou reenunciador,exime-se da responsabilidade pelo valor do dito, atribuindo-a a ou divi-dindo-a com o seu interlocutor. Nesse sentido, “sua cristalização nãosignifica que os sujeitos desapareçam na generalização de suas formas”(Patrick Dohlet, na “Apresentação” de Rocha, 1995:9)

Características formais

Recordemos inicialmente que o provérbio é normalmente vazadoem linguagem coloquial.

Rocha (op. cit.:71 ss) procura fazer uma descrição enunciativados provérbios, lembrando que há 1) provérbios sem marcas pessoais, 2)provérbios com marcas pessoais indefinidas e mesmo 3) com marcaspessoais de 1a. e 2a. pessoas. No nosso levantamento, exemplificam ocaso (1) A preguiça é a chave da pobreza, o (2) Quem ama o feio, bonitolhe parece, e o (3) Dize-me com quem andas, dir-te-ei quem és. Nesseúltimo caso, é evidente a existência de uma marca “eu” que não coincidecom o reenunciador “eu” que cita o provérbio em seu proveito em deter-minada situação, e uma marca “tu”, que, porém, não coincide com ointerlocutor.

Maingueneau, na mesma direção, diz que o provérbio, do pontode vista da embreagem enunciativa, é necessariamente não embreado,isto é, desprovidos de (embreantes) “unidades lingüísticas, cujo valorreferencial depende do ambiente espaço-temporal de sua ocorrência”(Maingueneau, 1998:49-50); trata-se de generalizações que não se an-

Page 267: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

270

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

coram numa situação de enunciação particular (Maingueneau,2001:170). Não contém, pois, nomes próprios, ao menos definidos eatualizados. Num provérbio como Até aí morreu Neves, Neves nãopossui referencial determinado, sendo usado apenas simbolicamente.Talvez lembrança de algum fato real de algum Neves verdadeiro.4 Por-tanto, o provérbio, enquanto tal, não pode se referir a indivíduos oueventos únicos. (Maingueneau, 2001:170) Nesse sentido, trata-se deuma formulação genérica, no sentido de referencialmente impessoal,embora formalmente possa conter marcas pessoais, e atemporal (nor-malmente verbalizada pelo presente), embora formalmente possa con-ter marcas temporais, mas referenciação temporal indefinida. É o casodo citado Até aí morreu Neves.

Amaral (apud Buosi, 1997:21) distingue o provérbio propria-mente dito das locuções proverbiais pelo ser caráter de frase completae geral, próximo ao verso ou mesmo um verso puro devido aos efeitosrítmicos e da rima.5 Ao fazer essa distinção, explica que “Levar gatopor lebre” é apenas locução proverbial, ao passo que a estrutura defrase completa “Não leves gato por lebre” é provérbio. Trata-se de fra-se completa; mas a marca pessoal é, na realidade, indefinida. Questio-na-se se, em situação de uso e referindo-se a segunda pessoa verbal,por exemplo, ao meu real interlocutor, se trataria de um provérbio mes-mo ou apenas de um enunciado proverbial. Duas observações perspi-cazes colhemos em Rocha (op. cit., p.12 ss), quando trata das formasdo imperativo nos provérbios. A primeira é a constatação (no francês,

4 a) RMJ, 35, explica, quanto a esse ditado: “Locução popular, com que se atalham longasnarrativas de coisas sabidas. É o mesmo que dizer: Até aí eu sei. João Ribeiro diz que“pode ser que tenha origem em algum entremez, vodevil ou comédia”; b) Talvez seja umcaso semelhante ao do “Padre Inácio” no ditado “Tempo do Padre Inácio”, segundo ver-bete de CC, do qual extraímos o trecho inicial: “Mentalidade, critério, opiniões, hábitosobsoletos, cediços, antiquados. “No tempo do Padre Inácio... pela cartilha do Padre Inácio”,citavam, habitualmente, o Dr. Gervásio Fioravanti, meu professor de Direito Penal naFaculdade de Recife, e o Des. Luís Tavares de Lira, em Natal, ambos ignorando quemtivesse sido o personagem evocado”.– grifo nosso)

5 Observe-se a variante ampliada em versos do provérbio “Quem não tem cão caça comgato”: “Quem não tem cachorro, / Caça com gato; Quem não tem penico, / Caga no mato.

Page 268: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

271

Interação na fala e na escrita

mas parece-nos válida também para o português) da “pequena tendên-cia dos provérbios à injunção direta, isto é, ao embate direto com oreceptor, a segunda pessoa do discurso”. A segunda, que nos parecemais importante, contém-se nos parágrafos abaixo:

Embora o provérbio seja deôntico por natureza, ele o é prefe-rencialmente de maneira velada; procura ocultar a injunção sobo disfarce dos pronomes indefinidos (“on”, quem, aquele que,cada um, ninguém etc., que designam a terceira pessoa mas mui-tas vezes na verdade se referem indiretamente à segunda pes-soa), ou sob o véu das frases metafóricas, em que bichos, porexemplo, nada mais fazem do que representar também a segun-da pessoa. Esta compreende a mensagem capciosa, mas não sesente diretamente implicada e pode fazer como se o provérbionão lhe dissesse respeito.

(...)

Ora, dissemos que todos os provérbios podem se reduzir a umainjunção, a uma interpretação imperativa, o que faz então ressal-tar seu aspecto paradoxal e ambíguo: o modo verbal natural dosprovérbios seria o imperativo, já que eles encerram sempre umaadvertência ou conselho; porém, do ponto de vista formal, a pre-ferência é pelo indicativo presente precedido de um SN na ter-ceira pessoa, que lhes confere a suavidade necessária a quemdeseja falar sem dizer.

No nosso levantamento registram-se 14 ocorrências do tipo Quemama o feio, bonito lhe parece e cerca de outro tanto com animais, comoCada macaco no seu galho.

Ao levarmos em conta que os provérbios constituem por naturezafrases fixas que pertencem ao estoque de reservas da língua, entende-mos, com Pottier, que eles são lexias textuais. Com efeito, o estoquecoletivo e fixo atribuído à língua compreende, entre outros elementos, aslexias. É de Pottier a terminologia “lexia”, considerada “uma unidade

Page 269: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

272

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

lexical da língua que se opõe àquela que ele chama uma reunião fortuítade discurso; por exemplo, cavalo, cavalo-vapor, cavalo marinho, cavalode frisa são unidades dadas na língua e não têm de ser criadas pelo locu-tor no momento da elaboração do seu discurso”. (Pottier, 1973:251)

Na Gramática del español ( 1970: 26), Pottier distinguiu

• lexia simples: árvore

• lexia composta: maremoto

• lexia complexa estável: ponte movediça

variável: recém casado/nascido

• lexia textual: “quem muito pega, pouco segura”; em português:quem muito quer, pouco tem; ou quem tudo quer, tudo perde, ou, ainda,quem tudo quer nada tem.

Na verdade, Xatara (1998:149), preocupada com as expressõesidiomáticas e apoiada em Pottier, lembra que as expressões idiomáticassão lexias complexas que, como tais, apresentam uma gradação que vaida locução ao provérbio

Lexia é, ainda, “uma unidade lexical memorizada”, que Pottier(op. cit. p. 25) explica, acrescentando que “o locutor, quando diz... AveMaria Puríssima!... não constrói esta combinação no momento em quefala, mas toma o conjunto de sua “memória lexical”.

Entendemos que a memória lexical, de que se fala no parágrafoanterior, constitui um espaço da língua, da mesma forma como as lexias,de qualquer nível (simples a textual), constituem signos dessa mesmalíngua, e as combinações dessas lexias criam unidades no momento emque se fala e se elabora o discurso no espaço e instância da interação. (V.também p. 255, nota 1). Essas unidades/combinações são enunciadosconcretos, isto é, realmente produzidos em interação.

Como se observa, Pottier exemplifica a lexia textual com o pro-vérbio. E, ao comentar a combinação Ave Maria Puríssima!, confirmaque o locutor não constrói essa exclamação no momento da fala, mas arecupera de sua memória lexical. Na verdade, o provérbio pertence a umestoque de enunciados assim conhecidos pelo conjunto dos falantes deuma língua: supõe-se que eles o conheçam da mesma forma que conhe-

Page 270: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

273

Interação na fala e na escrita

cem o léxico da língua”. Ou ainda, “a lexia é uma unidade lexical dalíngua que se opõe ao que é chamado uma reunião fortuita de discurso”(Pottier,1973)

Em conseqüência, qual é realmente o status de um provérbio?Lingüístico ou discursivo? Trata-se de uma construção ou fórmula fixa?

Parece-nos que na medida em que se trata de uma forma fixa, nãocriada ad hoc e no momento do discurso em curso, é uma unidade lexicalpertencente à língua. Maingueneau mais de uma vez lembra que os pro-vérbios fazem parte do dicionário da língua. (2001:170; 1993:101) Inte-grando a linguagem usual, permanecem como um estoque de reservas,para que possam ser utilizados de acordo com o módulo de situação.(Serra e Gurgel, op. cit.:48). Mas o provérbio não deixa de ter sido na suaorigem um produto de discurso, que na sua análise de uso valeria recupe-rar às vezes para melhor explicar e entender o emprego. Patrick Dahlet(Rocha, op. cit.:8, “Apresentação”) diz textualmente que o provérbio étambém discurso e um discurso sui generis, já que obriga seu usuário anão alterá-lo. Esse caráter híbrido (discurso ou língua) deve ser conside-rado no seu uso, assim como a questão de sua natural inalterabilidade.Entendemos que o provérbio é um discurso sui generis, não só, em prin-cípio, pela sua intalterabilidade quanto à forma, incluindo aí a ordem,mas porque ele mesmo abre a possibilidade de sua adequação à situação,inclusive alterado, se necessário. Entra em questão tratar-se ou não deuma frase autônoma, que, criada num discurso, automatiza-se e fica in-dependente para novos usos. Parece que seria autônoma em termos deconstrução, mas não em termos de uso, adaptando-se a cada situação, sebem que dentro de certo paradigma. Naturalmente fica a questão teóricase saímos do provérbio para o enunciado proverbial; se saímos da línguapara o discurso; questão que apenas afloramos, mas não tentaremos re-solver, pela dificuldade natural de solução e por fugir aos limites e pro-pósitos do presente trabalho.

Nessa linha, lembramos com Alves (1991), que “uma formaçãosintagmática está se lexicalizando, ou seja, perdendo suas característicasde mero segmento frasal, se não puder aceitar a inserção de um outroelemento, pois tal inserção provocaria a alteração semântica do conjun-

Page 271: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

274

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

to...”. Parece que o mesmo acontece com o proverbio, como ainda, cre-mos que, em princípio, devem ser insubstituíveis seus elementos e imu-tável sua ordem. Possuem, portanto, estrutura fechada. (Xatara, id. p.152), ao mesmo tempo que estrutura de frase completa.

Maingueneau (2001:170), ao justificar o peso da memória no usodos provérbios, relaciona algumas de suas propriedades lingüísticas que,combinadas com características formais lembradas por outros estudio-sos, podemos ressaltar: o provérbio é curto e geralmente estruturado comelementos elípticos, forma binária e paralelística (Casa de ferreiro / es-peto de pau); recorre freqüentemente a rimas (De pequenino torce-se opepino) ou correlaciona partes com igual ou aproximado número de síla-bas e ritmo. Parece-nos sintomático nesse sentido o emprego mais usuale atual de Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza (comdois segmentos de 7 sílabas e finais paroxítonos) em lugar de Quemnunca comeu mel, quando come se lambuza, mais documentado nos di-cionários, porém, assimetricamente com 6 e 7 sílabas e finais oxítono eparoxítono, respectivamente. Mas haveria muitas outras propriedades ereflexões a fazer nessa linha, se essa linha estivesse em nossas preocupa-ções.

Uma observação ainda parece-nos oportuna, porque acaba se re-lacionando com o uso de provérbios em interações específicas. Referimo-nos a sua estrutura sintático-melódica, para o que transcrevemos Martins(op. cit., p. 175-6):

A frase declarativa termina sempre por um tom mais grave,caracterizando-se por esse abaixamento de voz. Muitas frases sedividem em duas partes; a primeira, que termina pelo tom maisalto, recebe o nome de prótase e a segunda, marcada pelo tomdescendente, o de apódose. A prótase é a parte que cria a expec-tativa, a curiosidade, a tensão; na apódose se desfaz essa tensão.Estra estrutura é o fator de expressividade e pode ser bem obser-vada nos provérbios e frases dirremáticas, como Mais vale quemDeus ajuda // do que quem cedo madruga.

Page 272: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

275

Interação na fala e na escrita

Características semânticas

Os provérbios são reconhecidamente construções simples, dire-tas, objetivas (embora normalmente metafóricas), com estrutura de sig-nificados bastante acentuada e forte. (Serra e Gurgel, op. cit.:48) Empre-gam-se conceitos breves, valendo por verdades universais e eternas, outidas como tais, traduzidas em mensagens admoestadoras ou de conse-lho: As aparências enganam; Cada macaco no seu galho; De pequeninotorce-se o pepino”.

É de ressaltar sua conotação normalmente metafórica. Xatara (op.cit., p. 151) lembra que se trata de combinatórias de sentido não denotativo,diferentemente de alguns outros tipos de frases feitas e expressões populares.Exemplos: Cão que ladra não morde; Deus escreve certo por linhas tortas.

A construção paralelística dos provérbios estabelece um processode correlação entre as partes que os compõem, de forma que os preceitossugeridos pelos provérbios, do ponto de vista cognitivo, só são compre-endidos em blocos, pois os significados das partes, dentro da intençãosentenciosa do provérbio, não são compreensíveis isoladamente. No pro-cesso de correlação que freqüentemente ocorre nas construções paralelasdos provérbios, a produção da primeira oração ou segmento (prótase)cria no leitor ou ouvinte a expectativa para o fechamento do sentido, ouseja, prepara a locução do segmento seguinte (apódose) e para a comple-mentação do pensamento. É desse processo de suspense, inclusive emrelação ao ápice entonacional, que resulta a eficácia da maioria dos pro-vérbios e com freqüência a possibilidade de usos criativos, como vere-mos. Exemplos: Em terra de cegos ̂ , quem tem um olho é rei; Enquantohouver vida ^, há esperança.6

6 Utilizamos o sinal ( ̂ ) para indicar o ápice entonacional que ocorre no final das prótases.

Page 273: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

276

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Características semântico-formais

O enunciado proverbial estabelece geralmente semetrias sintáti-cas e semânticas entre uma parte e outra, quando não, realizando umaestrutura quiasmática: Brigam as comadres e aparecem as verdades;Juntado com boa fé, casado é; Quem ama o feio, bonito lhe parece.

É consenso que uma característica dos provérbios é permanece-rem estáveis, formal e semanticamente, através dos tempos. (Maingue-neau., 2001:171,172) É importante ressaltar que a condição de frase fei-ta, ou seja, de forma fixa, impede, em princípio, sua reenunciação deforma arbitrária e com modificações, pois essas alterações descaracterizamo provérbio original, posto que perderia sua identidade e seu estatuto decitação. No entanto, esse fato não impede que muitos provérbios sejamusados em trocadilhos humorísticos e irônicos, como Quem espera, de-sespera; (tentando-se eliminar sua conotação metafórica); ou sejam re-criados antonimicamente, como Quem espera, nunca alcança; Madru-ga e verás, trabalha e terás (em oposição a Deus ajuda quem cedomadruga, ou mesmo para simples adaptação à situação concreta de uso,que demonstram o conhecimento e a capacidade de reinvenção da lin-guagem que ocorre no âmbito popular. Recriado, possivelmente numasituação concreta, o novo enunciado pode adquirir um status definitivode provérbio. Nesse sentido, atente-se para parte do comentário que fazCC, 92, sobre o provérbio Descobriu o mel-de-pau:

Beaurepaire-Rohan (Dic. de vocábulos brasileiros, Rio de Ja-neiro, 1889) registrou: “Mel de pau; nome vulgar do mel de abe-lhas, por isso que a generalidade das abelhas do Brasil faz seuscortiços nas cavidades de árvores. Descobridor de mel de paudiz-se do indivíduo que depara facilmente com aquilo que dese-ja: (...) O Tempo evidenciou que deparar os favos talqualmenteas abelhas fizeram não constituiria motivo de excepcional lou-vor. Veio a idéia de alguém descobrir o mel de pau já engarrafa-do, pronto para o transporte e venda imediata. Produto colhido eaproveitado sem esforço, sem gastos, sem aparelhagem de apre-

Page 274: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

277

Interação na fala e na escrita

sentação. Positivamente feliz é quem encontra mel de pau en-garrafado. (itálico nosso)

Com efeito, muitas vezes citam-se provérbios com algum desviode forma e/ou conteúdo, matéria que é comentada, entre outros, por Koch.(1998:54). É interessante observar que alguns provérbios já apresentamvariantes (simples ou mais complexas, até culturais) nos próprios regis-tros dos verbetes dos dicionários a tal ponto que é impossível saber qualdelas seria provérbio propriamente dito, se é que existe alguma formacom autoridade de provérbio: Casa de ferreiro, espeto de pau (JP, RMJ)x Em casa de ferreiro, espeto de pau (LM); Comer e coçar é só começarx Comer e coçar, vai de começar (RMJ) x Comer e coçar, tudo está emcomeçar (LM), entre outros.

Na verdade, não é fácil definir muitas vezes qual variante semân-tico-formal é a primeira ou a definitiva. Com efeito, diz LM, 423, no seu“estudinho” (conforme o autor) sobre Paremiologia:

Proponho-me aqui a um estudinho que ainda não vi tentado por ne-nhum folclorista nosso: – mostrar que as expressões coletivas e prover-biais evoluem, isto é, que a sua forma definitiva custa a se fixar, dificul-tando assim que os paramiólogos a indigitem incontraversamente. (a)Mutilações que restringem a conceituação, ou (b) acréscimos que aampliam, (c) utilização de sinônimos, (d) inversões fraseológicas, cons-tituem as maiores ou menores alterações com que, sem uniformidadeintegral, se registram os dizeres da sabedoria popular. (inserção de le-tras nossa)

Poderíamos acrescentar ainda: substituições lexicais (nãosinonímicas) que mantêm o motivo, o espírito ou a filosofia do provér-bio: a raposa muda de pelo, mas não de costumes / a raposa muda decabelo, mas não deixa de comer galinhas. (CC, 22)

Servem de exemplos: para (a) (b): De pensar morreu um burro /De pensar morreu um burro com freteiro, cangalha e tudo (mutilação ou

Page 275: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

278

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

acréscimo?); para (b): Descobrir mel de pau engarrafado; para (c): Comquantos paus se faz uma canoa / de quantos paus se faz uma jangada;para (d): Quem cabras não tem e cabritos vende, de algum lugar lhe vem/ Quem cabritos vende e cabras não tem, de algures lhe vem.

Na realidade, discute-se se, ao citar um provérbio, o falante estáou não aderindo ao seu conteúdo e forma. E se, ao alterá-lo, está ou nãoadequando-o a sua situação de citação, e, ainda, se se está deixando deempregar um provérbio propriamente dito, aproveitando-se apenas daaparência formal, do espírito conceitual e da responsabilidade coletivasuperlativa que lhe é atribuída. Isto e outros aspectos paralelos levam-nos à reflexão de mais algumas questões do uso dos provérbios.

Propriedades discursivas

Começamos este tópico, transcrevendo trechos de Tannen (op.cit.), que julgamos favorecer o encaminhamento das reflexões dentro donosso enfoque:

De certo modo (...) todo significado na linguagem deriva, pelomenos parcialmente, de convenção; assim, a linguagem no dis-curso não é apenas formulaica ou nova, mas sim, mais ou menosformulaica. Formulaicos ao máximo são os exemplos que Zimmer(1953) chama de fórmulas situacionais: expressões de formasfixas que são sempre proferidas em determinadas situações, sen-do sua omissão percebida como uma violação do comportamen-to apropriado.

Altamente fixos na forma, porém menos na associação comcontextos específicos, temos provérbios e ditados como “O rotofalando do esfarrapado”, que todos os falantes nativos poderiamreconhecer e, se fosse o caso, proferir nesta forma, embora suaocorrência não pudesse ser prevista, tão pouco sua omissão no-tada. (itálico nosso)

Page 276: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

279

Interação na fala e na escrita

Hernani Donato começa a Introdução que faz do Diocionário deProvérbios, Locuções e ditos curiosos, de R. Magalhães Junior (p.6),dizendo que “citar provérbio é proclamar vivência. Requer idade, ponde-ração, experiência”. E situação apropriada, acrescentamos nós. Esta pers-pectiva é a que mais nos motiva no momento. Trata-se da situação que oprovoca, o propicia e o explica, embora não o exija.

Para citar provérbio, basta haver motivações. E as há muito varia-das e freqüentes. Situações e sentimentos de admiração, adulação, ale-gria, ambição, amor, dificuldade, dinheiro, imprudência, injustiça, ira,mulher, paciência, preguiça, resignação, valia e muitos outros consti-tuem constantes motivações para seu uso. Há provérbios filosóficos, di-dáticos, edificantes etc. Basta manusear um dicionário de provérbios (verBibliog.) para conhecer quantas são as possíveis situações e motivaçõesde uso. Podemos mesmo dizer, para o provérbio, com Hernani Donato(RMJ, 7): “Seja qual for a divisão, é certo que o ditado reflete situações eanseios universais e eternos”.

Como forma estereotipada – ou mais ou menos como tal – aceita-mos de Bakhtin (op. cit. p. 111-2) a observação no que se refere à adap-tação de provérbios à situação:

Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui umauditório organizado de uma certa maneira e por conseqüênciaum certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A fórmulaestereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canal de intera-ção social que lhe é reservado, refletindo ideologicamente o tipo,a estrutura, os objetivos e a composição social do grupo.

Recordemos, ainda, com Maingueneau (2001:169), que

proferir um provérbio (...) significa fazer com que seja ouvida,por intermédio de sua própria voz, uma outra voz, a da “sabedo-ria popular”, à qual se atribui a responsabilidade do pensamento.

(...)

Page 277: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

280

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

O enunciador não explicita a fonte desse enunciado: cabe ao co-enunciador identificar o provérbio como tal, apoiando-se nas pro-priedades lingüísticas do enunciado e em sua própria memória.

(...)

O enunciador apóia-se nele para introduzir uma situação parti-cular em um quadro geral preestabelecido, delegando ao co-enunciador a tarefa de determinar a relação existente entre osdois. Assim o provérbio “Desgraça, quando vem, vem de mon-tão” é convencionalmente associado sobretudo a situações nasquais um acontecimento se repete. (p. 169 e 171)

Em certo sentido, o enunciador do provérbio é co-responsável pelaassertiva: na medida em que a “sabedoria popular” é, na realidade, aprópria comunidade dos locutores de uma língua, cada locutor sendoindiretamente um dos membros dessa instância. Entendido o provérbiocomo a reutilização de enunciados que traduzem e propagam a “sabedo-ria popular”, discordamos de Tannen (op. cit.), quando ela o entende,naturalmente numa perspectiva de não produção do conhecimento, como“sepulcro da sabedoria”.

Essa filiação, contudo, só pode ser indireta, pois a sabedoria po-pular transcende os locutores reais, provindo dos mais remotos tipos e deuma experiência imemorial. Maingueneau (op. cit., p. 170) diz mesmoque não tem sentido perguntar-se quem pode ter inventado tal provérbioe em que circunstâncias. Em obra anterior (1993:102), o autor preferiausar o termo “referir” e não “citar”. Aqui não teremos esse rigorterminológico.

Como expressão atemporal, é possivel a reenunciação do provér-bio em qualquer tempo e lugar, mesmo quando contenha marcas pesso-ais, temporais e espaciais, pois são referências dêiticas vazias que não seligam às pessoas, ao momento e ao lugar da enunciação; são generaliza-ções; não remetem a casos especiais, fato que permite inserir o provérbioem diversas situações, como veremos.

Page 278: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

281

Interação na fala e na escrita

Análise de casos

Pelas pesquisas bibliográficas e reflexões feitas, parece-nos evi-dente que:

1) é difícil distinguir os provérbios dos seus parassinônimos;

2) sempre se pode dizer que uma frase reconhecida como pro-vérbio continue a sê-lo, quando em uso dentro da mesma es-trutura fechada e completa;

3) o provérbio é uma frase fixa, mas, mesmo como provérbio,comporta variantes que os próprios dicionários, adagiários eoutros compêndios da mesma natureza já registram;

4) os provérbios são estereótipos que possuem características epropriedades mais ou menos fechadas.

5) em interação concreta é muito freqüente o uso de locuções eexpressões proverbiais em vez de provérbios propriamenteditos.

Isto posto, sugerimos as seguintes distinções:

a) frase x frase proverbial (ou provérbio propriamente dito), ca-racterizando-se esta pela maior quantidade de propriedades fe-chadas, atribuídas aos provérbios propriamente ditos, abaixoenumeradas:

1) citação (mesmo) de frases assertivas ou injuntivas, encerrandoverdades e conceitos morais, gerais e eternos. Por natureza, osprovérbios são injuntivos, uma vez que são frasesadmoestadoras, de conselho, de advertância. (Rocha, op. cit.,p. 122, 125. Mesmo uma asserção como “as aparências enga-nam”, com verbo num presente genérico, embute, enquantoadvertência, uma injunção, equivalendo a “Cuidado, as apa-rências enganam”),

Page 279: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

282

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

2) frases normalmente metafóricas, sem que isto, porém, seja umacondição sine qua non (Rocha, 139);

3) formas fixas, inalteráveis, genéricas em termos de pessoa, tem-po e lugar; atemporais. (Nosso levantamento constatou 66 ocor-rências com verbo no presente genérico = 70%, e 5 com verboelíptico = 5%; se bem que esse presente não seja a única formarepresentativa da atemporalidade, que é condição sine qua nonpara a existência de um provérbio propriamente dito);

4) Construções breves, objetivas, paralelísticas, com simetria deforma e conteúdo, normalmente com prótase e apódose;

5) enunciados sui generis généricos, não embreados;

6) enunciados compostos de partes freqüentemente rimadas eritmadas;

b) locução x locução proverbial, caracterizando-se esta por seruma locução (não frase) vinculada a uma frase proverbial: “Des-cobrir o mel-de-pau”. Podem-se incluir aqui frases e expres-sões com resquício semântico proverbial;

c) enunciado x enunciado proverbial, representando este um ter-mo mais geral e caracterizando-se aquele como uma frase pro-verbial (provérbio propriamente dito) ou frase de origem pro-verbial (isto é, frase proverbial adaptada), em uso, à qual faltamalgumas propriedades dos provérbios propriamente ditos. Tra-ta-se de “enunciado concreto, vivo”.

Nas análises que faremos, tomaremos locuções, frases e enunci-ados proverbiais, com o intuito de observar seu real aproveitamento emusos concretos.

Observaremos, por amostragem, quão rico e criativo é seu apro-veitamento. Assim locuções, frases e enunciados proverbiais são usadosem conversas induzidas (como as do Projeto NURC), conversas do dia-a-dia, no jornalismo, na literatura (fábulas de Monteiro Lobato, texto deAluísio de Azevedo, João Antônio, Manuel Antônio de Almeida,Graciliano Ramos; em novelas; letras de música etc.), em programas de

Page 280: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

283

Interação na fala e na escrita

auditório de TV etc. Em termos de tipo de interação, há interação face aface real e casual, real e induzida, ficcional, interação difusa à distância,de feição monológica, literária ou não; há, portanto, textos falados e es-critos de vários gêneros. Não é possível – nem necessáro – expor aquiconceitos e critérios profundos sobre o roteiro classificatório das análi-ses. Haverá, porém, abundantes análises de conversação real ou fabricada;de textos literários (narrativa, teatro, telenovela, crônica); de textos nãoliterários (de jornal, revista) etc. Elaboramos um anexo complementardas análises, em ordem alfabética dos enunciados proverbiais, com indi-cação dos eventos e pesquisa bibliográfica específica, conformecodificação dos dicionários.

Foi feito um levantamento, direta ou indiretamente7, de mais de120 ocorrências de locuções, frases e enunciados proverbiais em uso,dos quais selecionamos apenas algumas ocorrências, na impossibilidadede analisá-las todas. Das 121 ocorrências selecionadas, quase 20% fo-ram “flagradas”em uso duas ou três vezes. Há também em anexo umarelação de provérbios.

A – INTERAÇÃO FACE A FACE

I – Real

a) casual

Caso 1 – Conversa entre colegas de projeto de estudo

Na sala do Projeto NURC, em São Paulo, ao final de uma seçãode estudos, um colega (A), tendo em vista um cronograma de atividadesproposto, informa aos demais:

7 Servimo-nos com freqüência de pesquisa de outros estudiosos, que, com objetivos dife-rentes, enriqueceram a lista de provérbios e que merecem ser consultados

Page 281: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

284

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

A – Acho que em setembro vou viajar pra fora

B – Você que tem sorte de viajar

A – Você chora de barriga cheia

Caso 2 – Conversa entre repórter e entrevistado; programa deauditório de TV, “Domingo Legal”, SBT, 1.7.01; 2 ocorrências.

Durante o programa, passa-se um video tape em que aconteceuma entrevista de uma repórter com o cantor Leonardo, na Bahia.

E – Quantas vezes você foi casado?

L – Nenhuma

E – E a Poliana?

L – Não sou casado

E – Não tem papel passado?

L – Juntado. Juntado com boa fé, casado é

(momentos depois)

E – Você já tá deixando seu lado sertanejo?

L – Qual nada. Eu sou caipira. O dinheiro tira o homem da misé-ria, mas não tira a miséria do homem.

Nestes dois casos travam-se diálogos muito espontâneos, em tomfamiliar, tematizando-se a vida pessoal franca dos envolvidos. Há umaconversa solta e descontraída.

No caso 1, A incorpora formalmente a locução proverbial chorarde barriga cheia, embreando-a com a referência direta ao seu interlocutor(você), como uma defesa à simulada inveja do colega B. Trata-se de ditadobem informal, pouco registrado nos manuais especializados. MJ, sem men-cionar expressamente “chorar de barriga cheia”, consigna a locução “cho-rar pitangas” com dois sentidos, um dos quais é lastimar-se com ou semrazão, equivalente ao do ditado em questão. Com o mesmo sentido ANregistra “Queixar-se de barriga cheia”. Evidentemente no contexto infor-

Page 282: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

285

Interação na fala e na escrita

mal e moderno da ocorrência sob análise, o enunciado proverbial “chorarde barriga cheia” adapta-se melhor do que “chorar pitangas”.

No caso 2, trata-se igualmente de um evento real, com falantetambém informal e numa situação bem descontraída. Aqui, porém, háreferência a provérbios verdadeiros, não direta e formalmente embreados,produzindo os efeitos que tais enunciados proverbiais regularmente pro-duzem: há certo distanciamento do locutor em relação ao seu texto pro-verbial e à responsabilidade pelo dito. Por outro lado, ressalta a forçaargumentativa das citações da autoridade coletiva da sabedoria popular.

Sobretudo o segundo (o dinheiro tira o homem da miséria, masnão tira a miséria do homem) tem em si um fundo filosófico, propício àargumentação do falante, (o cantor Leonardo) que procura justificar suapermanência na situação de caipira, apesar das suas novas condiçõesfinanceiras. Há aí uma metáfora complexa, na medida em que “miséria”ora equivale concretamente à falta de dinheiro, ora metaforicamente àmesquinhez ou avareza. O falante talvez não possa contar com o conhe-cimento compartilhado da sua interlocutora, pois se trata de provérbionão generalizadamente conhecido, mas o nível cultural desta e o da au-diência telespectadora são suficientes para uma recepção e aplicação efi-cazes do provérbio à situação em foco.

Os dois provérbios não estão documentados em dicionários, maspossuem todas as características e propriedades dos provérbios propria-mente ditos.

Caso 3 – Programa com auditório “Superpop” (TV 9 – REDETV76.01).

O repórter Saulo Gomes relata a eventual apropriação indevidade dinheiro do médium Chico Xavier, que teria feito seu filho adotivo, odentista Dr. Eurípides. Perguntado como tomou conhecimento do fato,Saulo começou proferindo o provérbio abaixo, numa alusão à briga doDr. Eurípides com sua mulher ou amante Cristina, a qual acabou “dandocom a língua nos dentes”:

Page 283: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

286

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

SG – Brigam as comadres, descobrem-se as verdades

Aqui também se trata de um diálogo espontâneo, porém numasituação um pouco diferente, uma vez que o evento conversacional trans-corre ao vivo durante o programa e frente ao auditório, com uma temáticamais tensa: falava-se do conhecido e estimado médium Chico Xavier eeventuais parentes mal intencionados. A formalidade proverbial, trazidaà tona por um profissional culto e retórico, produz efeitos de tensão eargumentação, além de ser um adequado texto introdutório do relato doentrevero em questão.

b) não casual (induzida)8

Caso 4 – Inquérito 360 do Projeto NURC/SP, p. 137. linhas 52-62

52 L1 (...) nós mantemos assim um diálogo bem

aberto sabe?

L2 uhn uhn

55 L1 com as crianças... então... esperamos que não:: haja

maiores problemas

L2 ahn ahn

L1 com o avançar dos anos... enfim... o futuro

[ ( )

60 L1 pertence...

L2 ah

L1 a Deus e não ... a nós

Embora se trate de uma conversa não eventual (dentro do esque-ma metodológico do Projeto NURC), o texto possui praticamente todas

8 Chamamos induzida a fala mais ou menos dirigida pelo Documentador do Projeto NURC,que procura cumprir uma pauta temática previamente definida.

Page 284: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

287

Interação na fala e na escrita

as características de uma interação informal face a face eventual: turnoscurtos, marcadores conversacionais em abundância (sabe?, uhn uhn, ahnahn, ah), pausas, alongamentos silábicos, sobreposição de voz, suspen-são de fala. Estes últimos fenômenos atingem justamente a verbalizaçãodo provérbio: sobreposição a futuro (linha 59) e micro pausa suspensiva(linha 60) com uma rápida intervenção de L2 (ah; linha 61) que assimfaz esse aceno verbal de compreensão, acompanhamento e partipipação.Trata-se de provérbio ou dito popular muito comum ao povo católicobrasileiro como a outros latinos. Observem-se “El futuro es de Dios” e“L’avernire è nelle mani de Dio”, documentados em LM.

O dito proverbial é registrado em LM na ordem indireta: “O futu-ro a Deus pertence” (redondilha maior e mais ritmada) que nos pareceser a ordem usual. Na interação sob análise, com grande envolvimento einteração intensa dos parceiros, parece-nos que a produção do ditadopopular ocorreu adaptada ao dinamismo interacional, desmontando-se aordem e a fluência canônicas do provérbio, inclusive a intencionalidadede citação ou referência, própria da referência a provérbios, a tal pontoque parece obscurecer a sensação de que se trata realmente de um pro-vérbio.

Num texto escrito, elaborado, José Roberto Torero (“Sísifo e o Pal-meiras”; FSP, 25/7/2000, cf. pesquisa e análise de Salomão, 2001:107/8)captou o provérbio em discussão, transmutando-o para o fecho de suacrônica, com uma pequena alteração fônica, mas grande mudança lexical,necessária ao seu contexto cognitivo e argumentativo: O futuro a Zeuspertence, onde se mantém, contudo, a ordem original.

Na pesquisa por nós feita, verificamos ainda muitas ocorrênciasno Projeto NURC/SP, não propriamente de enunciados proverbiais, masde recuperação, em tom proverbial, de frases bíblicas, de versos de poe-tas, artistas etc., que passaram ao uso comum e que tem, no seu uso,muita semelhança com o uso de enunciados proverbiais. Aqui apenasfazemos referência, por exemplo, a No princípio era o verbo, como argu-mento no enunciado No princípio era o verbo agora é a imagem; e cons-titui uma pedra no caminho ou ainda “Bethowen dizia: se eu pudessefazer com palavras não faria com música”, perfeitamente integrados ao

Page 285: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

288

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

texto da falante jornalista Helena Silveira (Inq. 333, p. 235, linha 67; p.257, linha 960)

Caso 5 – Programa de auditório de TV – Programa “É show” (TV7 – RECORD, 13/7/01).

A apresentadora Adriane Galisteu abriu seu programa, pergun-tando (naturalmente dentro do esquema da produção) ao auditório: Vocêsacham que as aparências enganam? e anuncia que vai abordar esse tema,apresentando três ou quatro mulheres vestidas e maquiadas, a fim de quetrês homens, sob a percepção do visual delas, opinassem sobre elas: aidade, a profissão, o salário, a quantidade de parceiros sexuais, o tipo defilmes e presentes preferidos, cotejando depois as respostas das mulhe-res sob avaliação com as dos opinadores.

Como se percebe, trata-se de um aproveitamento inusitado e criati-vo da fórmula proverbial, por meio de um questionamento feito ao auditó-rio, obviamente por proposta temática da direção do programa, dentro doespírito “é show”. Como tal, não seria, pois, um provérbio, uma vez quenão tem uma feição assertiva ou injuntiva, entre outras. (cf. caso 8)

Caso semelhante, mas sem caracterizar propriamente uma intera-ção face a face real, foi o uso do provérbio Escreveu não leu ... o paucomeu, secundado de um subtítulo “Superpositivo discute a imprensa”,em que o programa do Canal 13 – TV Bandeirantes propôs à discussãofofocas, boatos e certas notícias da imprensa sobre a vida particular deartistas. Acerca do mesmo tema, Adriane Galisteu, no seu “É show” de2.8.01, se manifestou em conversa franca:

“Não tem jeito. Quem está na chuva é pra se molhar”

com troca do verbo “sair” (Quem sai na chuva é pra se molhar) por“estar”, mais adequado à situação dos artistas entrevistados.

II -Ficcional

a) diálogo literário

Page 286: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

289

Interação na fala e na escrita

Caso 6 – Conto de João Antônio (JA), Malagueta, Perus eBacanaço. (2 ocorrências)

“Bacanaço andava agora com uma mina nova, vinte anos. (...) Fa-zia a vida num puteiro da Rua das Palmeiras, tinha seu nome de guerra– Marli. (...)

Quando lhe trazia menos dinheiro, Bacanaço a surrava, naturalmen-te, como fazem os rufiões.

(...)

Obrigação sua era ganhar – para não acostumá-la mal, Bacanaçobatia-lhe. Nas surras habituais, o porteiro da pensão da Lapa surgia, as-sustado. Bacanaço o encarava.

– Olhe, camarada: entre marido e mulher ninguém bote a colher.

(p. 61, linhas 11-31

O provérbio é documentado com as seguintes variantes: Em brigade marido e mulher ninguém deve meter a colher (JP) ou Quando bri-gam marido e mulher, nunca metas a colher (RMJ), ou ainda Entre ma-rido e mulher não metas a colher (LM). A variante mais adequada àsituação da narrativa com efeito seria a última, sem o item lexical “bri-ga”, uma vez que não se tratava realmente de “briga” entre Bacanaço esua mina, mas sim de “surras habituais” daquele nela. João Antônio co-locou na boca de Bacanaço essa variante, porém com sujeito indefinido egeneralizado (ninguém em lugar de tu), que faz a advertência, pelo dis-tanciamento do ninguém em relação ao tu, ganhar mais autoridade.

Além disso, o provérbio aplicado à situação de diálogo possuiseus referenciais humanos perfeitamente identificáveis, embora com al-guma forçada aplicação semíca (Bacanaço = marido; Marli = mulher), oque descaracteriza um pouco a sua natureza proverbial.

Na mesma obra de João Antônio encontra-se ainda Papagaio comemilho, periquito leva a fama, em discurso interior, que merecerá comen-tários oportunos nos casos 12, 24

Page 287: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

290

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Caso 7 – Manuel Antônio de Almeida (MAA), Memórias de umsargento de milícias

Carvalho (1999, p. 173-4) observou na obra de Manuel Antôniode Almeida a incorporação de vários provérbios no discurso do narradore na fala dos personagens, por influência dos fatores situacionais. Entreeles: quem foi rei sempre tem majestade na fala de Maria-Regalada, emconversa com outra Maria, referindo-se, por formalização indireta, aoMajor, o qual, retruca com simulada modéstia:

– Então, Dona Maria? Quem foi rei sempre tem majestade...

– Qual ! Isso já não é para mim...

É de se notar a suspensão das falas, a representar a busca de envol-vimento dos interlocutores.

Em outro contexto, inserindo comentário avaliativo, fala uma co-madre:

– Está bem; o passado já lá vai; Deus é assim, escreve direito porlinhas tortas.

Caso 8 – Fábula de Monteiro Lobato, O ratinho, o gato e galo.

Lobato cria uma fábula em que um ratinho narra a sua mãe omedo que sentiu de um galo, com bico pontudo e crista vermelha, e, comum comportamento ameaçador, batendo as asas e soltando um co-co-ri-có barulhento. Por outro lado, ficara seduzido pelo pêlo macio e pelo arbondoso de um gato, que dormia ao lado do galo:

A mamãe-rata assustou-se e disse:

– Como te enganas, meu filho ! O bicho de pêlo macio e arbondoso é que é o terrível gato. O outro, barulhento e espantado,

Page 288: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

291

Interação na fala e na escrita

de olhar feroz e crista rubra, o outro, filhinho, é o galo, uma aveque nunca nos fez mal nenhum.

As aparências enganam. Aproveita, pois, a lição e fica sabendoque – Quem vê cara não vê coração.

Observamos mais um emprego literário, agora do provérbio Asaparências enganam, reforçado por outro de feição sinonímica Quem vêcara não vê coração. Semelhantemente ao texto de Arthur de Azevedo(analisado na seqüência), Monteiro Lobato também cria uma situação(uma fábula) para aplicação de provérbios, numa interação face a facefabricada, não em caráter lúdico, como Arthur de Azevedo, mas didáti-co, realmente injuntivo, tanto que, logo em seguida, aconselha “Apro-veita, pois, a lição..”. Por outro lado, a inclusão dos dois provérbios nãoé tão artificiosa como em Arthur de Azevedo.

Ademais, em se tratando de leitor infanto juvenil, o nível lingüís-tico dos provérbios, também sob o aspecto da audiência, fica perfeita-mente adequado.

b) teatro

Caso 9 – Arthur de Azevedo, Amor por Anexins, (15 ocorrências)

Arthur de Azevedo engendra um script de teatro, cuja dramatizaçãofoi por nós gravada e transcrita, compondo-se quase totalmente de pro-vérbios. A cena desenrola-se entre o pretendente Isaias (Is) e a reticentepretendida Inês (In). Desenvolve-se um longo diálogo, com 33 turnosmais ou menos disciplinadamente alternados. Dos 16 turnos de Isaias, l5são formados por provérbios, sendo 12 por um turno, dois por 2 e um portrês, ou seja, 19 provérbios, o que leva, como se verá, Inês a comentar,ainda no meio da conversa: Esse senhor tem na cabeça um moinho deadágios... basta ! (linha 5)

Page 289: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

292

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Transcrevemos para análise as dezesseis linhas finais do texto:

1 – In – é:: / ... segredo

2 – Is – Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz de /

3 – In – oh!

4 – Is – de homem... Mas faz bem ... O segredo é a alma donegócio

5 – In – Esse senhor tem na cabeça um moinho de adágios ...basta !

6 – Is – O que abunda não prejudica

7 – In – Bem... bem. Para maçadas basta. (mude-se?)

8 – Is – Os incomodados é que se mudam

9 – In – Mas eu estou em minha casa, senhor

10 – Is – Descobriu o mel de pau?

11 – In – Irra! Se o meu noivo viesse aqui... ele que jurou darcabo do primeiro rival que/

12 – Is – Cão que ladra não morde ... e eu sou homem, tenhoforça e contra força não há resistência

13 – In – Olhe que ele é valente

14 – Is – hum ...e também eu sou...Duro com duro não faz bommuro e dois bicudos não se beijam

15 – In – Ponha-se ao fresco! Eu:: preciso sair, eu tenho o quefazer lá fora

16 – Is – e eu tenho o que fazer cá dentro. Olhe, senhora. Olhebem pra mim. Acha-me feio, não acha?

17 – In – Ai ai ai ai ai ai::

18 – Is – Eu também acho e feliz é o doente que se conhece. Masmuitas vezes as aparências enganam e o hábito não faz o mon-ge. (ajoelha-se) Case-se comigo.

19 – In – Gentes!

Page 290: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

293

Interação na fala e na escrita

Na parte inicial já haviam sido proferidos sete provérbios, o pri-meiro dos quais interrompido por Inês: Quem cabra não tem e cabritos;Cão danado todos a ele; Em boca fechada não entram mosquitos *;Quem avisa amigo é *; Águas passadas não movem moinho *; O tempoque vai não volta; O prometido é devido. A alguns deles (indicados com*), também empregados em outros textos e situações, faremos referênciaoportunamente.

Como observamos, trata-se de um texto literário, escrito para oteatro, portanto todo dramatizado, simulando estilisticamente, mais queo anterior de João Antônio, uma conversação natural e dinâmica. Apesarda alternância mais ou menos disciplinada dos turnos, nota-se logo noinício, como dissemos, interrupção do provérbio Quem cabra não tem ecabritos... (cujo teor integral é “Quem cabra não tem e cabritos vende, dealgum lugar vem” ou “Quem cabra não tem e cabritos vende, donde lhevem, não se entende”. Na parte transcrita, linhas 2-4, a fala proverbial ésuspensa no meio do último sintagma, por causa da intervençãoexclamativa de surpresa de Inês: ah ! Na linha 11, o turno de Inês éinterrompido por Isaias, proferindo o provérbio Cão que ladra não mor-de. (cf. no caso 24 – músicas, novo emprego). Este turno completa-secom uma demonstração verbal de valentia (e eu sou homem), fundamen-tada com a argumentação proverbial e contra força não há resistência.

Por outro lado, a dramatrização provoca seqüências com muitaspausas, exclamações (ah, oh!, bem...bem, Irra!, hum..., Ai, ai, ai, ai::)

Chamamos a atenção para a seqüência de provérbios que Isaiasprofere na linha 14, combinando os dois primeiros com conteúdos seme-lhantes e mesma orientação argumentativa, e nas linhas 18-19, encade-ando três, o primeiro para justificar seu atributo negativo “feio” (feliz é odoente que se conhece) e os dois últimos, combinados, contraargumen-tando a impressão causada: as aparências enganam e o hábito não faz omonge. (Ver mais casos: 5, 8, 9)

O texto, conquanto artisticamente elaborado, ficou muito artifici-al e forçado, pela profusão, às vezes desnecessária, de provérbios, mas,por isso mesmo e pela feição arcaica, tem sabor satírico, que, nesse sen-tido, é valorizado pelo emprego dos provérbios e pela própria dramatizaçãoenfática deles.

Page 291: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

294

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Ressaltamos a observação feita no caso 8, isto é: na conversaçãoreal, há uma situação na qual, de maneira mais ou menos natural, o falan-te introduz adequadamente um provérbio ou uma fala proverbial, quasecomo se seus fossem. Em “O ratinho, o gato e o galo”, de MonteiroLobato, e aqui, os autores constroem artificialmente, a título de criaçãoartística, situações e personagens, para que provérbios em profusão ounão sejam introduzidos à força.

Desde já alertamos que temos consciência de que em todos oscasos de uso ficcional e/ou escrito se trata de empregos artificiais. Adiferença está no grau do aproveitamento que ocorre, por exemplo noAmor por Anexins e em narrativas literárias e telenovelas. E uso produzoutros interessantes efeitos de sentido.

Em termos de uso e adaptação de provérbios em teatro, podemoslembrar ainda o título de uma peça contemporânea: Trair e coçar é sócomeçar, inspirado em Comer e coçar é só começar

.

c) telenovela

Caso 10 – ocorrência “a” – Telenovela “Estrela Guia” (TV Glo-bo, 9.6.01)

Carlota, ao saber que Cristal (amada de seu filho Toni) estava nacidade e poderia se encontrar com ele, resolvendo uma situaçãoconflituosa, diz, em conversa com outra personagem:

– Enquanto houver vida, há esperança. Quem não arrisca não petisca.

A fala da personagem é constituída por inteiro de dois provérbiosverdadeiros, em seqüência e concatenados, equivalendo, pois, totalmen-te ao seu turno. Embora se trate de enunciados citados, originalmenteproduzidos com certeza em duas situações diferentes entre si e diferentesda situação sob enfoque, esta os comporta e eles a satisfazem plenamen-

Page 292: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

295

Interação na fala e na escrita

te, demonstrando o novelista ser um falante (e artista) sensível de nossalíngua e cultura.

Esta novela empregou ainda vários outros provérbios em várias eadequadas situações, a saber: Passarinho que come pedra, sabe o fiofóque tem, Estar num mato sem cachorro e Matar dois coelhos de uma sóvez, embreados os dois últimos com as pessoas (eu) das personagensfalantes como eu me meti num mato sem cachorro e posso matar doiscoelhos com uma cajadada só.

– ocorrência “b” – Telenovela “Um anjo caiu do céu” (TV Globo,junho e julho de 2001)

Em cena, Poleti e o mordomo Gildo discutem sobre os atos crimi-nosos de Poleti e a tentativa de vingança de Gildo contra o primeiro, nomomento em que este devolvia, de maneira agressiva, um dinheiro querecebera como empréstimo. Poleti insistia que o mordomo não deveriater criado problemas, recebendo como réplica a seguinte argumentação,vazada em provérbios:

Quem sai na chuva se molha... Quem brinca com fogo se queima.

As adaptações captam os provérbios Quem sai na chuva é pra semolhar e Quem brinca com fogo vai se queimar.

O comentário feito quanto ao evento “a” acima cabe também aqui,com exceção ao tipo de embreagem em relação à situação ficcional danovela, que aqui é o tempo verbal presente da enunciação. Naturalmenteo genérico “quem” refere-se à figura do interlocutor Poleti.

Em 25.7.01, Dona Laurinda contesta os argumentos de Maurício,retrucando:

Águas passadas não movem moinho.

Page 293: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

296

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

B – INTERAÇÃO NÃO FACE A FACE

a) telejornal

Caso 11 – SPTV – “Esportes” (TV – Globo, 11/6/01)

O apresentador do jornal falado sobre Esportes abre o bloco noti-cioso com o ditado Deus ajuda quem cedo madruga, prosseguindo: “OPalmeiras convocou seus jogadores para um treino cedo (...)”

O provérbio serve de título-tema para a notícia em questão e cons-titui uma manchete falada e chamariz, perfeitamente adequado ao iníciodo noticiário. Trata-se, pois, de um uso que, integrando as característicasde texto planejado sem intercâmbio, representado pelo script, seexterioriza, entretanto, graças ao material prosódico (com a voz, entonação,inflexões, pausas etc.) da produção oral do apresentador.

O provérbio usado é dos mais populares e encontra cabal compre-ensão e receptividade dos telespectadores de esporte, além de possuirdiversas variantes paralelamente formais e semânticas. A variante maispróxima contém uma comparação (Mais vale quem Deus ajuda do quequem cedo madruga), atendendo certa índole da língua falada popular,que privilegia comparações e ênfases, além de constituir uma frase comprótase e apódose mais simétricas.

b) narrativa literária / discurso interior de personagem

Caso 12 – Guimarães Rosa, Vidas Secas, p. 73

“Homem bom, Seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cadaqual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto”.

No caso, trata-se de um discurso interior de Fabiano. Tomamos aliberdade de transcrever a seguir boa parte do comentário que sobre o

Page 294: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

297

Interação na fala e na escrita

uso dessa frase proverbial faz Marinho (2000:94-95) e que, por vir aoencontro do nosso propósito, endossamos plenamente:

Usando expressões e frases cristalizadas no uso social, como“cada qual como Deus o fez”, Fabiano não estaria apenas ten-tando driblar a dificuldade que tem de se exppressar, usando es-truturas pré-construídas, mas principalmente recorrendo à auto-ridade de palavras ditas por um Outro para poder dar validade àssuas palavras. Outro que, tendo suas palavras aceitas por toda acomunidade, se transforma num amplo Nós, no qual o enuncia-dor se inclui.

Fabiano recorre a essa fala alheia que é, ao mesmo tempo,consensualmente assumida como verdadeira por uma coletivi-dade, para poder assumir idéias sobre as quais tem dúvida. Fra-ses como (...) “cada qual como Deus o fez” encerram uma idéiade conformismo, comprovando a Fabiano que a situaçãosubumana na qual vive não pode ser transformada por nenhumaação, pois derivaria diretamente de sua condição – o que é justi-ficado, nessas frases, por duas formas: uma (...); outra baseadano determinismo divino, ou seja, não seria possível ocorrer umaação transformadora porque a miséria e a dominação fariam par-te da sina dos sertanejos como um desígnio de Deus.

Apenas, de nosso, acrescentamos que, mesmo num discurso nãoexteriorizado, chama a atenção o nível culto da formulação do provérbio,o que ressalta, pela comentada “dificuldade que tem de se expressar”, ouso de estrutura pré e hétero fabricada, trazida à tona graças à memóriado personagem.

Um caso semelhante (discurso interior), mas não culto, com oprovérbio Papagaio come milho, periquito leva a fama, encontra-se emJoão Antônio, que apenas transcrevemos:

Assim sempre, pensando Perus, trabalhando para os outros, cur-tindo as atrapalhadas dos outros. Papagaio como milho, periqui-

Page 295: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

298

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

to leva a fama. Como um pé-de-chinelo, como um dois-de-paus.Para que esperar um dia de maré de sorte?

c) voz narrativa

Caso 13 – Henrique Felix, Em cima do ringue

Para compreensão e interpretação do contexto e uso da frase pro-verbial pelo narrador, trascrevemos alguns pequenos trechos da cena,relatada em duas páginas (pp. 7 e 8), destacando a descrição demoníacaou animalesca de Malvadeza e seu correlato comportamento ante duasatitudes subseqüentes de imprudência de pessoas da platéia:

(...) porque vem aí (...) o último dos carrascos, a encarnaçãoterrena do demônio, o único e insuperável Maaaalvadeza !!! (...)

Com seu macacão vermelho-hemorragia, ele veio vindo, veiovindo, a carranca esgazeada, a bocarra espumante de ódio, blas-femando contra Deus e o mundo. (...)

Debruçado sobre a grade, um garoto cometeu a imprudênciade desferir um peteleco na orelha do bandido. (...)

Malvadeza, então, não deixou por menos. Como se estivesserodando uma manivela, girou o garoto no ar cinco vezes e odespachou, por via aérea, de volta ao aconchego da massa. (...)

Como uma fera cutucada com vara curta, o Malvadeza seguiuem direção à arena. No momento de subir no ringue, uma velhi-nha desgarrada da platéia interpôs-se ao seu caminho, brandindoum guarda-chuva xadrez.

Aí o vilão não quis nem saber. Num rompante de raiva, arran-cou o guarda-chuva da mão da anciã e, antes que ela o agredisse,passou-lhe uma rasteira que a deixou estateladinha no chão. Emseguida, para total espanto dos torcedores, começou a mastigaro guarda-chuva com vareta e tudo, em dentadas monstruosas.

No final, com a boca toda lambuzada, soltou um longo arroto,

Page 296: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

299

Interação na fala e na escrita

atirando a carcaça do guarda-chuva por cima dos ombros, feitoum esqueleto de peixe.

O provérbio ou enunciado proverbial documentado é cutucar umafera, ou onça, ou o diabo com vara curta, variantes perfeitamente com-patíveis com a descrição de fera ou demônio de Malvadeza; com a situa-ção de “fera” ou “demônio” cutucado e com a respectiva reação,consensualmente prevista dentro da referida frase. Com efeito, RMJ re-gistra Cutucar o diabo com vara curta e Cutucar onça com vara curta,significando “Expor-se a revides ou represálias, às quais é difícil resistir.Agir com imprudência ou temeridade”.

Cabem ainda duas observações sobre o uso do enunciado. A pri-meira é que ele se intercala entre os dois fatos, igualmente justificadoresdo seu uso, podendo ligar-se ao fato anterior ou posterior ou aos dois,pois ambos o justificam, individualmente ou em conjunto. A segunda éque a estrutura comparativa revela uma captação judiciosa do ditado,sem metaforizá-lo.

Cabe registrar finalmente que Em cima do ringue capta e adapta,em tom exclamativo, outro dito proverbial, tirar o pai da forca, no dis-curso direto de Dona Dirce, mãe de Toninho: – Credo, menino ! Pareceque vai tirar o avô da forca !

Outra ocorrência semelhante acontece no comentário avaliativonarrativo, com feição proverbial, em Memórias de um sargento de milí-cias:

há uma cousa ainda peior do que um inimigo, e é um mau amigo

d) crônicas

Reproduzimos inicialmente de nosso artigo “A linguagem faladae escrita de Helena Silveira” algumas observações sobre o gênero, quefizemos para embasar a análise de crônicas daquela jornalista e que seaplicam, no particular, para o presente estudo:

Page 297: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

300

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Expõe juízos originais sobre fatos que tenham impressionadoa imaginação ou sensibilidade do autor ou acerca de experiên-cias pessoais. Fala de coisas miúdas do dia-a-dia em curso eprovoca reflexão oportuna ou fixa algum aspecto escapado àobservação superficial. (...)

A crônica aponta o ridículo, desperta o sorriso, proporcionaum fugaz momento de distração em meio ao ramerrão cotidiano.Nesse sentido, ela impõe ao cronista a capacidade de seduzir edivertir, emocionar, propalar malícia e indignação. Repontamnela amiúde notas discretas de humor e sentimentalismo.

(...)

Quanto à linguagem, que deve coadunar-se à própria nature-za, concepção e temática da crônica, revela simplicidade e clare-za. Supõe leitura fácil, estilo coloquial, leve e correntio. É o oralno escrito, o diálogo no monólogo. (p. 170)

Caso 14 – Helena Silveira, crônicas na Folha de S. Paulo em1975/76.

Rastreando algumas crônicas da jornalista (normalmente sobreTV e especialmente telenovelas), observamos várias ocorrências quepodem ser classificadas como, ou recuperação de, frases feitas ou ex-pressões fixas, incluindo algumas de tom proverbial: gatos escaldadosque têm medo da água fria (8.1.75); Estava eu posta em sosse-go...(14.1.75); Os bons é que pagam o pato... (9.3.76); como manda ofigurino, sempre realizei no arroz com feijão cotidiano (3.4.76); umaandorinha só não faz verão (20.4.76); depois de longo e tenebroso inver-no (27.4.76); vida se já não lhe vai longe também não lhe vai curta(27.4.76); o inferno cheio de boas intenções (28.4.76).

Especificamente proverbiais são: gatos escaldados têm medo deágua fria e uma andorinha não faz verão, podendo-se incluir a locuçãoproverbial paga o pato, que implica sempre o pagamento indevido,denotativa ou conotativamente falando. (RMJ e AN)

Page 298: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

301

Interação na fala e na escrita

Os outros dois, devidamente documentados (RMJ, LM, TC), en-contram-se nos seguintes contextos:

...os produtores não precisarão mais temer a inteligência comogatos escaldados que têm medo da água fria.;

Mas a maior parte dos grandes artistas do elenco se perdeu porfalta de um comando exato. Maria Fernanda foi o atestado deque nesse gênero novela uma andorinha só não faz verão.9 Per-deu-se completamente, estereotipou-se, atirou dentro de umaenfiada de clichês e (...)

O primeiro, que, como se observa, está adaptado sintaticamentepor força da comparação, foi usado também na letra da música “Provér-bios”, de Adoniran Barbosa, ainda por comentar. (cf. caso 24)

No segundo, o provérbio aparece por inteiro, mas não com auto-nomia sintática, uma vez que funciona como complemento nominaloracional. No entanto, a cronista chama a atenção dos leitores, ao trans-crever, em itálico, o provérbio em si, razão por que o transcrevemos aquiem itálico e negrito, diferenciando das demais transcrições dos enuncia-dos proverbiais.

A adequação do provérbio no discurso de Helena Silveira é clara,intermediando que está o texto anterior “a maior parte dos grandes artis-tas do elenco se perdeu...” e o posterior “Perdeu-se completamente ...”,que se refere ainda à maior parte dos grandes artistas, dentro da qual sóMaria Fernanda, como andorinha solitária, se salvava.

Um emprego desviado, crítico e irônico desse provérbio apareceuna reportagem assinada por Josias de Souza (Folha de S. Paulo, 16.7.00)sobre a extinção dos cargos dos juízes classistas, conforme pesquisa deSalomão (2001), para sua dissertação de Mestrado.

Transcrevemos abaixo trecho da reportagem da Folha e parte docomentário de Salomão, que explica o uso:

9 O negrito itálico indica que já no original de Helena Silveira o provérbio estava em itálico).

Page 299: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

302

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Reportagem:

É preciso levar em conta que um juiz não é andorinha quefaça verão sozinha. Nos TRTs, cada gabinete acomoda pelomenos dez assessores. Há casos em que o time passa de 15. Numaestimativa modesta, incluindo parentes e aderentes, está-se fa-lando de uma legião superior a 1500 pessoas.

Comentário:

Apesar do Congresso ter aprovado uma lei que extingue ocargo de juiz classista, os Tribunais Regionais Trabalhistas decada Estado autorizaram juízes togados para assumir os lugaresdeixados pelos classistas, a um custo mensal de R$ 8.910,00cada. Ao captar o provérbio original Uma só andorinha não fazverão, por meio da modalização, o jornalista estabelece um co-mentário sobre a notícia em questão. Mesmo fazendo-lhe algu-mas modificações e transpondo-o para o texto em um juiz não éandorinha que faça verão sozinha, o leitor é capaz de reconhe-cer que está diante de um provérbio modificado e inferir que osentido inicial do mesmo se mantém. (p. 106)

Caso 15 – Wilson Figueiredo, “Coisas de política-Leão sem re-presentação”, Jornal do Brasil, 5.4..81.

O texto sob referência foi colhido por Koch, com o propósito deanalisá-lo sob o aspecto da sua argumentatividade.

Para instruir o emprego de dois provérbios e mesmo a idéia dotema sob crítica do cronista, transcrevemos o 7o. e o 10o. parágrafos dototal de onze do texto completo:

Bons tempos aqueles em que o fisco usava um leão-de-chácarapara garantir seu quinhão. Havia isenções inscritas na própria Cons-tituição que, pelo menos nisso, era rigorosamente respeitada. Um

Page 300: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

303

Interação na fala e na escrita

dia da caça, outro do caçador. Era assim antigamente. Mas até alei da fatalidade acabou revogada na confusão: o dia que não é docaçador fica reservado à engorda da caça.

(...)

A salvação geral terá de vir da classe média que tem seu destinovinculado à cédula eleitoral numa hipoteca histórica. Sem ela nãohá democracia que se agüente. Com ela, há pelo menos possibili-dade. Pode haver outras hipóteses, mas nem é bom falar de cordaem casa de enforcado. Por muito menos – tributariamente falando– Tiradentes pagou o preço do seu pescoço. (grifo nosso)

No dizer de Koch (op. cit., p. 184 ), “trata-se de um texto de bas-tante força argumentativa, embora esta se apresente quase integralmentede maneira implícita. É por meio de subentendidos, ironias, entrelaça-mentos de campos lexicais, seleção lexical altamente metafórica e dosdemais recursos retóricos assinalados que o autor constrói sua argumen-tação (...)”

Entre os “demais recursos retóricos” assinalados, a autora elencaos dois provérbios apontados, além de outros termos e ditos populares ouexpressões consagradas pelo uso.

Trata-se de exposição de opiniões, idéias e críticas, naturalmentede cunho erudito, embora com o coloquial um pouco na feição de crôni-ca. Os provérbios são aqui empregados como suporte à referida argu-mentação implícita. Nota-se, claramente porém, na seqüência imediatade cada provérbio, a ilação que deles pretende o autor.

Cabe destacar que a competência cultural do leitor deve ir alémdos provérbios, de vez que o tema tratado “cobrança do imposto derenda” possui certa complexidade que o texto explora. No início dotexto o autor apenas lembra: “O leão fiscal é um animal originário doBrasil, (...)”.

Page 301: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

304

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Caso 16 – Lilian Banc, “Cada macaco no seu galho”, Jornal daTarde, maio 2001

Diferentemente das crônicas anteriores, cujo emprego de provér-bios ocorreram no interior dos textos, aqui, e nos casos 17 e 19, o provér-bio já aparece no título. Com efeito, com um mote aparentemente poucogratuito, a não ser o provérbio-título em si de crônica toda proverbializadae apesar de uma figura ilustrativa de um macaco num requadro no centrodo texto, tentando ajustar a antena de uma televisão desfocada, a atrizBlanc, inspirada confessadamente no Amor por Anexins já comentado(Caso 9), alinha uma enfiada de provérbios, frases e expressões feitas, demaneira confusa e sem muita coerência, preenchendo mais de 60% deseu texto sobre os defeitos da (confusa?) televisão.

Só de provérbios são vinte e seis, a saber:

amarra cachorro com lingüiça; com quantos paus se faz umacanoa; comer o pão que o diabo amassou; de grão emgrão...enchendo a barriga (?); de pensar morreu um burro; depequenino que se torce o pepino; Deus ajuda quem cedo madru-ga; Deus escreve certo por linhas tortas; devagar é que se vai aolonge; devagar seu olhar vá ao longe (?); em boca fechada nãoentra mosquito; em casa de ferreiro o espeto é de pau; em casaque há pão todos comem e ninguém tem razão; em panela velhaque se faz comida boa; em terra de cego quem tem um olho é rei;nada se cria e tudo se copia; nunca faltará um chinelo velho paraum pé doente; Leve com cuidado o cântaro à fonte, pois tal qualo santo, ele é de barro (?);olho por olho e, se sobrarem inteiros,no dente por dente (?); pimenta nos olhos dos outros é colírio;quem ama o feio bonito lhe parece; quem faz sua cama se deitaou cai na prancha de surfe (?); quem não tem cão caça com gato;quem nunca comeu melado quando come se lambuza; .quemtem pressa come cru; Quem tudo quer nada tem.

Na impossibilidade de um comentário mais profundo individuali-zado, transcrevemos três parágrafos (o 1o., um intermediário e o final)dos doze de que se compõe o texto todo, de tamanhos mais ou menos

Page 302: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

305

Interação na fala e na escrita

iguais, onde se percebe, ainda que não cabalmente, a inserção forçadados provérbios, enlaçados por muitas conjunções (7 pois, 4 como, 3 que,1 se, 1 porque), alguns desfigurados, outros recuperados integralmente;de frases e expressões pretensamente criativas e insinuações publicitári-as irônicas. Alguns aparecem em outros dois ou mais eventos aqui anali-sados. Um deles (em boca fechada não entra mosquito) ocorre no referi-do Amor por Anexins:

Quem tudo quer nada tem e eu não quero outra vida pescando no Rio

Jereré, pois férias não foram feitas somente para a praia. Como quem

não tem cão caça com gato, constate, como eu, com quantos paus se

faz uma canoa e com quantos reais se faz uma fortuna, dentro e fora da

tela da televisão.

(...)

Como em terra de cego quem tem um olho é rei, deixe que devagarseu olhar vá ao longe e amarele ao colocar o par de lentes anti-reflexo,com as quais você verá o mundo melhor, nem que para isso seja precisocomer o pão que o diabo amassou apertando o controle remoto.

(...)

Leve com cuidado o cântaro à fonte, pois tal qual o santo, ele é debarro e porque essa idéia não é minha. Como devagar é que se vai aolonge e nada se cria e tudo se copia, transcrevo aqui apenas parte daidéia que teve o jovem Arthur Azevedo por volta de 1880, falando pelavoz de Isaias, no inteligente e doce Amor por Anexins.

(Lilian Blanc, atriz, acha que televisão boa é televisão desligada.)

Trata-se mais uma vez de uma situação textual criada para incor-porar provérbios e frases feitas populares: no Amor por Anexins comtom lúdico; aqui, irônico e crítico.

É de se destacar o envolvimento que a autora procura manter como leitor, não só pelo estilo informal, irônico e crítico do texto, como tam-bém pela alusão direta ao leitor. Trata-se, pois, de uma crônica bastanteinterativa, esperando-se um conhecimento partilhado intenso, sobretudoem termos das frases e expressões formulaicas e, mesmo, comotelespectador mais ou menos assíduo.

Page 303: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

306

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Como ilustração parcial do que observamos acima, constate-se noúltimo parágrafo: 1) o desmonte, mutilação e alteração dos provérbios;2) as inferências um pouco obscuras que sugere; 3) a inusitada qualifica-ção de “inteligente e doce” para o Amor por Anexins...

Quanto ao 2o. trecho transcrito, observe-se ainda a esquisita inser-ção do “amarele ao colocar o par de lentes anti-reflexo” e o final “aper-tando o controle remoto”.

Como se vê, o emprego de provérbios parece prestar-se para qual-quer preenchimento textual, quando faltam argumentos pessoais maislógicos e criativos.

Caso 17 – Folha de S. Paulo, Opinião, 13.7.00, “Dize-me comquem andas..”.

Nos casos seguintes, há também aproveitamento de provérbiosnos títulos das crônicas, mas com formulação incompleta.

O caso 17 em questão está intitulado por provérbio, suspenso aofinal de sua prótese. O caso foi colhido e analisado por Salomão. Delanos servimos do trecho abaixo, que atende nossos propósitos:

Na medida em que discorre sobre o envolvimento do senador LuizEstevão, nas denúncias de irregularidades da construção do TRT-SP, eas suas possíveis ligações com o assessor direto do presidente FernandoHenrique, Eduardo Jorge, compreendemos a razão do título da colunae o porquê de sua incompletude. O leitor é chamado para recuperar orestante do provérbio e completá-lo com e te direi quem és, deixandoimplícita a idéia de que, por meio do conhecimento de quem são nos-sos amigos, com quem andamos, podemos também ser avaliados emnossos atos.

Desse modo, poderíamos inferir que, se os amigos do presidente sãocorruptos, talvez ele também o seja. (p. 88)

Page 304: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

307

Interação na fala e na escrita

A jornalista, confiada na cultura do leitor, deixa o provérbio-títuloincompleto, dessa forma interagindo mais diretamente com o leitor que,à semelhança de um turno construído a duas mãos, é chamado a dar suacooperação semântico-interacional.

Casos mais ou menos semelhantes, inclusive com desvios maisou menos acentuados e um caso de subversão no interior de uma crônica,Salomão ainda traz à análise na sua recente Dissertação, a saber:

Escreveu, não leu..., Folha de S. Paulo, 14.7.00, Opinião, Clovis Rossi;

Escreveu, não leu, Lalau comeu. Folha de S. Paulo, 14.7.00, Opinião,Bárbara Gancia;

Assinou não leu, o pau comeu ! , Folha de S. Paulo, 15.7.00, Ilustrada,José Simão (pp.114-6)

Caso 18 – Folha de S. Paulo, 10.7.00, “A ordem das parcelas”,Opinião, Carlos Heitor Cony.

Nesta crônica, também arrolada por Salomão (p. 117), o autor nãousa provérbio inteiro ou truncado no título, mas insere no interior dotexto uma subversão do provérbio Deus escreve certo por linhas tortas,nos seguintes termos: “A natureza, ao contrário de Deus, escreve erradocom linhas certas”.

e) noticiários

Caso 19 – AGORA, 26.5.01, Onde há fumaça... , Zapping, FabíolaReipert

Também nas notícias de jornal, seus redatores utilizam-se comcerta freqüência de chamadas com enunciados proverbiais, insinuandofatos cuja interpretação acaba ficando sob a responsabilidade dos leito-res, sobretudo quando a insinuação projeta provérbios incompletos. É ocaso do box noticioso Onde há fumaça..., no qual se noticiam os rumoressobre a possível saída de Fausto Silva (o Faustão) da TV Globo.

Page 305: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

308

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Salomão, no seu citado trabalho, comenta ainda vários textos so-bre pequenas notícias encabeçadas por provérbios truncados:

– Folha de S. Paulo, 13.7.00, Painel Brasil, Devagar com o andor,noticiando o apoio de Ciro Gomes à candidatura de Marta Suplicy àPrefeitura de São Paulo (p. 91)

– Folha de S. Paulo, 20.7.00, Painel Brasil, Gato escaldado, no-ticiando que o ex-assessor de Fernando Henrique, Eduardo Jorge, envol-vido em denúncias, já havia preparado sua defesa, mas aguardava a pri-são do juiz foragido Nicolau dos Santos Neto para então depor noCongresso. (p. 92)

– Folha de S. Paulo, 30.7.00, Gato escaldado, noticiando a ex-pectativa de governadores sobre uma prometida liberação de verba porparte do governo federal. (p. 92)

Caso 20 – Notícias Populares, 13.7.00, Geral

No caso em questão, de notícia policial, não se faz uso de provér-bio ou meio provérbio no título, mas sim na legenda da fotografia que ailustra. Trata-se da frase “Alegria de mais é bobagem”, subvertendo oprovérbio Desgraça pouca é bobagem. A manchete da notícia é “Cele-brou assalto dando tiros”, em alusão à comemoração que faziam trêsassaltantes pelo assalto praticado, acabando por chamar a atenção e pre-sença da polícia.

f) relatos

Caso 21 – FAPESP Pesquisa, junho de 2001, “Com quantas te-clas se faz um piano?”

Para ilustrar a Seção Humanidades / Música, sob o título “A suavemagia feita de madeira e metal”, noticiando a tese de doutorado O Intér-prete-Pianista no Fim do Milênio, de Sílvio Baroni, a Revista anexou

Page 306: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

309

Interação na fala e na escrita

um box sobre a fabricação de pianos, com o título “Com quantas teclasse faz um piano”, naturalmente sob inspiração de Com quantos paus sefaz uma canoa.

A pesquisa que fizemos revela que o provérbio mesmo tem asseguintes variantes: Mostrar com quantos paus se faz uma canoa (RMJ),Ver de quantos paus se faz uma jangada e Ver de quantos paus se fazuma cangalha (LM). Além do mais, o título está formulado interrogati-vamente, descaracterizando ainda mais a natureza e significado prover-biais. Por isso, comentamos tratar-se apenas de uma inspiração com tomcriativo.

De qualquer forma, é uma produção textual sob inspiração e aval deum conhecido provérbio, revelando o caráter polifônico do novo texto.

Um caso semelhante foi analisado por Salomão. Trata-se da man-chete Cidade mostra com quantos sapatos se faz a canoagem (Folha deS. Paulo, 2.7.00, Esporte), no qual as modificações introduzidas (deta-lhadamente comentadas por Salomão) exigem muito mais do que umsimples conhecimento do provérbio original. Com efeito, as trocas lexicais(paus por sapatos e canoa por canoagem), bem como o sentido total dafrase (que, no nosso entender, deixa de ser provérbio), só são aceitos,com o conhecimento do seu contexto, que, segundo Salomão, é o se-guinte:

A cidade de Três Coroas [sobre a qual versa a reportagem] abriga osdois únicos competidores olímpicos de slalon, no Brasil, e 80 % daseleção brasileira dessa modalidade esportiva, que é a canoagem emágua com correnteza. Sua economia gira, basicamente, em torno depequenas indústrias de calçados; logo, é perfeitamente plausível que oenunciador altere o provérbio original e o transforme, pois é graças aossapatos que a cidade sobrevive e, conseqüentemente, a canoagem tam-bém. (p. 105)

Caso 22 – Revista da Folha, 24 de dezembro de 2000, ano 9, no. 450.

Pequenos relatos pessoais sob inspiração (um pouco distante) detemas de provérbios foram feitos por escritores amadores para concurso

Page 307: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

310

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

das diversas seções da Revista. Na seção “Úteis e Fúteis” foram publica-dos textos dos cinco primeiros colocados, a saber: 1) Água mole em pe-dra dura, 2) De grão em grão, 3) Quem espera sempre... 4) Gata debotas e 5) Quem tem boca. A revista não informa se houve ou não algu-ma sugestão ou uma simples coincidência nos quatro títulos proverbiais.O certo é que, dos cinco títulos, quatro reproduzem partes iniciais deconhecidos provérbios, sendo três (1,2,5) reprodução da primeira parteda estrutura bimembre e um (3) a suspensão do verbo final (talvez porisso finalizado por reticências). Esse procedimento pressupõe, mais doque quando se usa o provérbio inteiro, o conhecimento partilhado dosleitores, que devem, antes da leitura dos relatos, tê-los decodificados porinteiro.

Os pequenos relatos não incluem no interior dos seus textos ne-nhuma referência ou insinuação direta aos provérbios. Na verdade, asvinculações podem ser explicadas pelos seguintes índices das mini histó-rias: no 1o., a insistência da relatora para conseguir de presente do irmãoo Pato Donald; no 2o., a compra de pérola por pérola, até conseguir man-dar confeccionar um colar; no 3o., o desejo finalmente realizado da com-pra de um trem miniatura e no 5o., a obtenção de um colar de âmbar,graças a duas tias em viagem a Veneza, na Itália.

g) poesia / letra de música

Para terminar o elenco de usos e/ou aproveitamentos de provérbiosou frases proverbiais, relacionamos uma série de usos em poesias (normal-mente trovas) ou letras musicais, ou aproveitamento de versos proverbiais.

Como características básicas, é de se observar a própria forma dealguns provérbios ou a adaptação (inclusive com distorções) à formapoética, que fazem seus usuários em termos de ritmo e rima.

Caso 23 – trovas

A lista inclui poetas de primeira e segunda grandezas, como severá:

Page 308: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

311

Interação na fala e na escrita

Fantasias de donzela Não mói com água passada

Não há quem como eu as

quebre O moinho – diz o rifão...

Porque certo cuidam elas Como é dos mais diferente

Que com palavrinhas belas O moinho do coração

Nos vendem gato por lebre (Alberto de Oliveira)

(Camões)

Nunca motejes do pobre, Nem bem nem males se deve

Nem dos defeitos que vês Maldizer. Por que te importas?

Por igual o céu nos cobra Tudo é justo. Deus escreve

Cada qual como Deus fez ! Direito por linhas tortas.

(Soares Bulcão) (Soares Bulcão)

Quem foi rei tem majestade.... Ao primeiro beijo dado

É uma doce ilusão: Sentimos a alma confusa,

Que importa do rei a sombra Pois quem nunca comeu mel

Se o cetro não tem na mão? Quando come se lambuza.

(B. Silva) (Sinó Pinheiro)

Menina de saia verde O verde que ela levava

De verde cor da esperança Quer dizer firme esperança !

Teus desdéns não me amofinam Já tenho ouvido afirmar

Quem espera sempre alcança. Quem espera sempre alcança.

(Folclore pernambucano) (Em Teófilo Braga e

João do Minho)

Quando de ti me ausentei Quem espera sempre alcança

No tempo senti mudança... Disse alguém. Não é verdade

Ainda espero te ver: Pois quem vive de esperança

Page 309: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

312

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Quem espera sempre alcança. Morre sempre de saudade.

(LM, p. 360) (Aderbal Melo)

Nem tudo o que luz é ouro

Nem tudo o que é feio é mau.

Quem não tem o que fazer,

Vá fazer colher de pau

(Registrado por Mário Lamenza)

Observem-se em quatro trovas a recorrência do provérbio Quemespera sempre alcança. Na penúltima trova, porém, há uma subversãodo sentido, tendo o poeta que referir-se, ainda que indefinidamente, aosuposto enunciador original dele (Disse alguém), para poder contestá-lo.

Caso 24 – músicas

Igualmente muitos são os aproveitamentos em letras de músicas,mais eruditas ou mais populares.

A música Bom Conselho de Chico Buarque de Hollanda (de antesde 1980) registra ao menos três ocorrências das que vimos comentando,todas subvertendo os provérbios recuperados, a saber: Quem espera sem-pre alcança, Quem brinca com fogo se queima, Devagar se vai ao longe.A quarta que grifamos, contrariamente corresponde ao respectivo pro-vérbio (Quem semeia vento colhe tempestade):

Ouça um bom conselho Venha se queimar

Que lhe dou de graça Faça como eu digo

Inútil dormir Faça como eu faço

Que a dor não passa Aja duas vezes antes de pensar

Espere sentado Corro atrás do tempo

Ou você se cansa Vim de não sei onde

Page 310: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

313

Interação na fala e na escrita

Está provado Devagar é que

Quem espera nunca alcança Não se vai longe

Ouça, meu amigo Eu semeio o vento

Deixe esse regaço Na minha cidade

Brinque com meu fogo Vou pra rua e bebo a tempestade

Na mesma linha, mas com um maior número de provérbios, está aletra de Adoniran Barbosa, com melodia de Rolando Boldrin, de 1989,com o título justamente de “Provérbios”, semelhantemente ao texto deArthur de Azevedo.

É de se destacar que os compositores têm consciência e sensibili-dade quanto ao significado e aproveitamento do fenômeno proverbial.Por outro lado, no estilo próprio de Adoniran, o tratamento dos provérbi-os e das frases de uso popular é aqui irônico ou lúdico.

Como se trata de texto muito grande (52 linhas melódicas), vamosrecortar apenas trechos que contêm provérbios do nosso levantamentobásico:

(...)

Cão que ladra não morde Sexta-feira, dia treze

Bom cabrito não berra Panela velha dá sopa

Minha terra tem Corinthians O gato que é escaldado

onde canta o curió De água fria tem medo

Não tem nada mais gostoso (...)

Que o pastel da minha avó Um macaco no seu galho

(...) É preguiça o dia inteiro

Mosca em boca fechada (...)

E rato que rói a roupa Periquito leva a fama

Papagaio come milho

(...)

Page 311: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

314

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Chama ainda a atenção o fato de certos textos de escritores e poe-tas caírem no gosto do povo (culto ou não), ganhando feição e sentido deprovérbio. Na letra de Adoniran Barbosa, observamos Minha terra temcorinthians onde canta o curió, lembrando Minha terra tem palmeirasconde canta o sabiá, de Gonçalves Dias.

É interessante que a seqüência poética dos dois versos do poeta asaves que aqui gorgeiam não gorgeiam como lá também deu idéia para acrônica do psicólogo e escritor João Bosco Alves de Sousa “Os doidosda minha terra”, com o sugestivo subtítulo Os doidos que aqui gorgeiamnão gorgeiam como lá. (Revista de Psicologia, pp. 60-63)

Caso 25 – Provérbio em sambas e músicas carnavalescas

Outra conhecida composição musical é o samba de Ataulfo Alves,que inclui o trecho Laranja madura / na beira de estrada / tá bichada Zé /ou tem maribomdo no pé, referente ao provérbio Laranja madura, embeira de estrada, ou é azeda ou tem maribomdo, conforme LM, queesclarece ainda “A forma rimada é Laranja madura, em beira de estra-da, ou é azeda, ou está bichada”. (p. 136)

Ainda não se pode deixar de referir o uso de provérbios naconhecidíssima música carnavalesca, muito cantada nos anos 50: Nemtudo o que reluz é ouro / nem tudo que balança cai.

Caso 26 – Provérbio em Temas de Escolas de Samba

Finalmente, trazemos à colação um uso bem popular que apareceno tema do G. R. C. Escola de Samba Ocara, de Santo André, para ocarnaval de 2002, intitulado “Uma imensa viagem” e idealizado peloscarnavalescos Turíbio Netto e Fernando Negreiros. O tema pretende pro-jetar uma viagem do olhar humano, que recebe 80% de toda a nossainformação sensorial, aproveitando provérbios como Em terra de cegosquem tem um olho é rei, Olho por olho dente por dente, O que os olhosnão vêem o coração não sente, Uma imagem vale por mil palavras,arrolados no presente estudo.

Page 312: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

315

Interação na fala e na escrita

Casos semelhantes são ainda os das Escolas de Samba MocidadeCamisa Verde e Branco e Vai-Vai, de São Paulo. O G.R.E.S Mocidade Ca-misa Verde e Branco foi campeão em 1989, com o enredo “Estou chegandopode coçar a mão – Quem gasta tudo num dia no outro assovia”, parecendoser este de criação do próprio criador do enredo Cláudio Quattrucci; oG.R.C.E.S. Vai-Vai sagrou-se campeão em 1993, com o enredo Nem tudoque reluz é ouro, de autoria de Namur e Miguel Brandi Junior.

Considerações finais

Embora procurássemos recortar e delimitar nosso ensaio, ele pro-vocou tantas nuanças que fizeram extavasar nosso propósito inicial, va-lendo a pena, no entanto, ponderar que, apesar desses múltiplos matizesconstatados, há muitos outros ainda abertos por explorar, mesmo dentrodo enfoque de uso. Pensamos, por exemplo, nas funções da repetição dosdiscursos, à semelhança de que faz Tannen (op. cit.) sobre as funções daformulaicidade; o aproveitamento indireto em usos comerciais, comoem slogans publicitários etc.

Para um estudo mais abrangente do tema, entendemos que muitosoutros vieses das noções de enunciação, discurso, polifonia, dialogismo,intertextualidade, envolvimento e planejamento discursivos,argumentatividade, criatividade e expressividade necessitariam ainda serenfocados.

As análises, conquanto de corpus reduzido, permitiram observar,entretanto, muitos e diversificados usos, indo dos mais naturais aos maisartificiais e sofisticados, revelando, nos desempenhos dos usuários, umacompetência mais alta nos usos naturais do discurso falado e às vezesuma incompetência nos textos escritos. Esta observação leva a pensar seos dicionários sobre provérbios podem determinar o emprego corretodeles, como insinua o subtítulo do Diccionário de Aforismos ...: – Con lainterpretación para su empleo correcto... A competência ou incompetên-cia no seu uso parecem-nos condicionadas não apenas à correta interpre-tação dos sentidos, mas sobretudo à correta competência comunicativa,que envolve vários conhecimentos, sobretudo o da interação social.

Page 313: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

316

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Observamos provérbios formulados com “referência” formalmentegenérica (com “cada, quem, ninguém”) e não genérica. Esta formulação,bem como o conhecimento da origem dos provérbios, pode ajudar naanálise dos seus usos atualizados.

Uma observação freqüente foi a constatação da riqueza de varian-tes que os provérbios apresentam, indo das formas mais simples às maiscomplexas em termos semânticos ou semântico-formais. Por vezes háverdadeiros campos semântico-filosóficos e até ideológicos, com pro-vérbios formalmente diferentes. Observem-se, por exemplo: As aparên-cias enganam; Nem tudo que reluz é ouro e Quem vê cara não vê cora-ção.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Manuel Antonio de. (1941) Memórias de um sargento de milícias. 10ed. São Paulo.

ALVES, Ieda Maria. (1991) O neologismo sintagmático. Anais / V Encontro Nacio-nal da ANPOLL, Porto Alegre: ANPOLL.

AZEVEDO, Arthur N. G. Amor por anexins. Lisboa, s/d.ANTÔNIO, João. (1987) Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: Ática.BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochinov) (1979) Marxismo e filosofia da linguagem.

São Paulo:Hucitec.BENVENISTE, Émile. (1976) Problemas de Lingüística Geral. São Paulo: Nacio-

nal/Edusp.BRAIT, Beth. (1992) O processo interacional na conversação. In: CAMPOS, Odette

G. L. A. S. Tendências atuais no estudo da língua falada. Araraquara: UNESP,ano VI, no. 2 (Série Encontros).

BRANDÃO, Helena Nagamine. (1997) Introdução à Análise do Discurso. Campi-nas: Ed.UNICAMP.

BUOSI, José Carlos. (1997) Provérbio: índice de sabedoria popular? A ideologiasubjacente em sete provérbios plurinacionais. Dissertação de Mestrado,UNICAMP.

CABRAL, Tomé. (1972) Dicionário de termos e expressões populares. Fortaleza: s/e.CARVALHO, Reginaldo Pinto de. (1999) O humor e a linguagem chã contra os

trejeitos da Retórica. Tese de Doutorado, FFLCH/USP.CASCUDO, Luís Câmara. (1997) Locuções tradicionais no Brasil. 2 ed. ver. e aum.

Rio de Janeiro:MEC.

Page 314: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

317

Interação na fala e na escrita

CASTILHO, Ataliba T. e PRETI, Dino (orgs.) (1989) A linguagem falada culta nacidade de São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz:FAPESP, V. I (Elocuções For-mais).

CERVONI, Jean C. (1989) A enunciação. São Paulo:Ática.CHAIN, Regina Yu Shon. (2000) A voz na interação verbal: como a interação trans-

forma a voz. Tese de Doutorado, PUC/SP.DICIONÁRIO de Aforismos, Provérbios y Refranes - Con la interpretatión para su

empleo correcto, y la equivalencia en siete idiomas: Portugués, Francés, Italiano,Inglés, Alemán, Latin Y Catalán. (1967) 4 ed. ver. e ampl. Barcelona:EditorialSintes.

DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. (1973) Dicionário das ciências dalinguagem.Lisboa: D. Quixote.

FELIX, Henrique. (1996) Em cima do ringue. São Paulo: Atual.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1999) Novo Aurélio Século XXI: o dici-

onário da língua portuguesa. 3. Ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira.FIORIN, José Luiz. (1996) Astúcias da enunciação - As categorias de pessoa, espa-

ço e tempo, São Paulo:Ática.GREIMAS, Algirdas J. & COURTÉS, Joseph (sd) Dicionário de Semiótica. São

Paulo:Cultrix.KOCH, Ingedore G.V. (1998) O texto e a construção dos sentidos. 2 ed., São Paulo:

Contexto._____. (1987) Argumentação e Linguagem. 2 ed., São Paulo: Cortez.LOBATO, Monteiro. (1956) Fábulas e Histórias diversas. São Paulo:Brasiliense.MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. (1974) Dicionário brasileiro de provérbios,

locuções e ditos curiosos...Rio de Janeiro: Ed. Documentário.MAINGUENEAU, Dominique. (1993) Novas tendências em Análise do Discurso. 2

ed. Campinas: Pontes:Ed.UNICAMP._____. (1998) Termos-chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG._____. (2001) Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez.MARINHO, Maria Celina Novaes. (2000) A imagem da linguagem na obra de

Graciliano Ramos - Uma análise da heteregeneidade discursiva nos romancesAngústia e Vidas Secas. São Paulo: Humanitas.

MARTINS. Nilce Sant’Anna. (1989) Introdução à Estilística. São Paulo: T. A.Queiroz.

MOTA, Leonardo. (1992) Adagiário Brasileiro. Fortaleza: UFC.NASCENTES, Antenor. (1966) Tesouro da fraseologia brasileira. 2 ed. Rio de Ja-

neiro / São Paulo: Freitas Bastos.PEREZ, José. (1969) Provérbios brasileiros.Rio de Janeiro: Edições de Ouro.POTTIER, Bernard. (1970) Gramática del español. 2 ed. reestr. Madrid: Alcalá._____. (dir.) (1973) Le Langage. Paris:Centre d’Étude et de Promotion de la Lecture.RAMOS, Graciliano. (1974) Vidas Secas. 32 ed. São Paulo: Martins.

Page 315: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

318

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

ROCHA, Regina. (1995) A enunciação dos provérbios - descrições em francês eportuguês.São Paulo: ANNABLUME.

SALOMÃO, Maria do Carmo Rennó da Costa. (2001) Os provérbios e as frasesfeitas no discurso jornalístico. Dissertação de Mestrado, PUC/SP.

SERRA E GURGEL, J. B. (1998) Dicionário de Gíria. - Modismo lingüístico. Oequipamento falado do brasileiro. 5 ed., Brasília.

SLAMA-CAZACU, Tatiana. (1970) Langage y contexto.Barcelona-México: Grijalbo.SOUZA, Geraldo Tadeu. (1999) Introdução à teoria do enunciado concreto do cír-

culo Bakhtin / Volochinov / Medvedev. São Paulo: Humanitas.TANNEN, Débora. (1985) Repetition and variation as spontaneous formulaicity in

conversation. Georgetow:Georgetow Univ.URBANO, Hudinilson. (2000) Oralidade na Literatura (O caso Rubem Fonseca),

São Paulo: Cortez.____________. (2000) A linguagem falada e escrita de Helena Silveira. In: PRETI,

Dino (org.) Fala e Escrita em questão. V.III, São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, p. 157-190.

XATARA, Cláudia. (1998) O campo minado das expressões idiomáticas. Alfa, n. 42esp., p.147-159.

Abreviaturas usadas para referência a dicionários específicos, escritores e estudio-sos de provérbios

AA – AZEVEDO, Arthur N. G.AN – NASCENTES, AntenorCC – CASCUDO, Luís CâmaraFSP – Folha de S. PauloGR – RAMOS, GracilianoJÁ – ANTÔNIO, JoãoJP – PEREZ, JoséJT – Jornal da TardeLM – MOTA, LeonardoMAA – ALMEIDA, Manuel Antonio deMC – SALOMÃO, Maria do Carmo da CostaML – LOBATO, MonteiroRMJ – MAGALHÃES JUNIOR, RaimundoTC – CABRAL, Tomé

Page 316: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

319

Interação na fala e na escrita

ANEXO: RELAÇÃO DE PROVÉRBIOS PESQUISADOS (Corpus)

Obs.: Letras em caixa alta referem-se às abreviaturas conforme página anterior; números em negrito referem-se aos números dos casos analisados.

A preguiça é a chave da pobreza. GRÁgua mole em pedra dura, tanto bate até que fura. RMJ, LM, FSP, 22Águas passadas não movem moinho. LM, AA, Um anjo caiu do céu; MAA usa

Águas passadas não moem moinho; 9, 10, 23Amarrar cachorro com lingüiça. TC, JT, 16Amores velhos nunca se esquecem. MAAAndar depressa é ver namoro de viúva. MAAAs aparências enganam. AA, MC, ML, É show, 5, 8, 9Brigam as comadres e aparecem as verdades. LM, Superpop, 3Cada macaco no seu galho. JP, LM, JT, 16, 24Cada qual como Deus o fez. LM, GR, 12, 23Cão danado todos a ele. JP, LM, AA, 9Cão que ladra não morde. LM, AA, 9, 24Casa de ferreiro, espeto de pau. JP, RM, LM, JT, MC, 16Chorar de barriga cheia. Falante do NURC, 1Com quantos paus se faz uma canoa. JT, MC, FAPESP, 16, 21Comer e coçar é só começar. RMJ, LM ;Teatro: Trair e coçar é só começar; 9Comer o pão que o diabo amassou. JP, TC, JT, 16Confundir alhos com bugalhos. RMJ, JTContra força não há resistência. LM, AA, 9Cutucar onça / diabo com vara curta. FELIX, 13Dar com a língua nos dentes. 3De grão em grão a galinha enche o papo. RMJ, LM, FSP, 16, 22De pensar morreu um burro. LM, CC, JT, 16De pequenino torce-se o pepino. RMJ, JP, LM, MC, JT, 16Descobriu o mel-de-pau. LM, CC, RMJ, AN, AA, 9Desgraça pouca... é bobagem.JP, TC, LM, MAA, AGORA, 20Deus ajuda quem cedo madruga. RMJ, LM, JP, JT, SPTV, 11, 16Deus escreve certo por linhas tortas. JP, AN, LM, JT, MAA, 7, 16, 18, 23Devagar com o andor, que o santo é de barro. LM, AN, JP, RMJ, JT, AGORA, 16Devagar se vai ao longe. RMJ, LM, JT, MC, 16, 19, 24Dinheiro anda num cavalo. GRDize-me com quem andas, dir-te-ei quem és. JP, RMJ, LM, FSP, MC, 17Dois bicudos não se beijam. LM, RMJ, AA, 9Duro com duro não faz bom muro. RMJ, LM, AA, 9Em boca fechada não entram mosquitos. LM, JT, AA. 9, 16, 24

Page 317: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

320

URBANO, Hudinilson. Uso e abuso de provérbios

Em casa que há pão todos comem e ninguém tem razão. JT, 16Em panela velha que se faz boa comida. JT, 16Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. LM, RMJ, JT, 16, 26Enquanto houver vida, há esperança. RMJ, MC, Estrela guia, 10Entre marido e mulher, não metas a colher. DIC. DE PENSAMENTOS, RMJ, LM, MC, JA, 6Escreveu não leu, pau comeu. JP, TC, FSP, 5,17Estar num mato sem cachorro. LM, TC, Estrela guia, 10Feliz é o doente que se conhece. LM, AA, 9Gatos escaldados que têm medo da água fria. RMJ, LM, TC, AGORA, MC, Helena

Silveira, 14, 19, 24Há uma cousa ainda peior do que um inimigo, é um mau amigo. MAA, 13Juntado com boa fé, casado é. Cantor Leonardo, 2Mais vale um asno que me carregue e tal... NURC, V.III, 107Matar dois coelhos de uma cajadada. Estrela guia, 10Nada se cria e tudo se copia. JT, 16Não é bom falar de corda em casa de enforcado. 15Não fiar em cousa que traz calções. MAA,Nem tudo o que reluz é ouro. RMJ; música, poesia, 23, 25, 26Nem tudo que balança cai. JP; música, 25No princípio era o verbo agora é a imagem. NURC, Helena Silveira, 4Nunca falta um chinelo velho para um pé inchado. JP, JT, 16O dinheiro tira o homem da miséria, mas não tira a miséria do homem. Cantor

Leonardo, 2O futuro a Deus pertence. LM, MC, NURC, v. II, 137, 4O hábito não faz o monge. LM, RMJ, MC, JT, 9O inferno está cheio de boas intenções. Helena SilveiraO prometido é devido. LM, AA, 9O que abunda não prejudica. AA, 9O que os olhos não vêen o coração não sente. LM, 26O roto falando do esfarrapado. TannenO segredo é a alma do negócio. AA, 9O tempo que vai não volta. AA, 9Olho por olho dente por dente. LM, RMJ, JT, 16, 26Onde há fumaça... há fogo. JP, LM , AGORA, 9Os bons é que pagam o pato. AN, RMJ, Helena SilveiraOs incomodados é que se mudam. LM, AA, 9Papagaio come milho, periquito leva a fama. TC, JÁ, 6, 12, 24Passarinho que come pedra sabe o fiofó que tem. TC, Estrela guia, 10Pimenta no olho dos outros é refresco. JP, LM, JT, 16Quem ama o feio, bonito lhe parece. LM, RMJ, JT, 16Quem avisa amigo é. LM, AA, 9

Page 318: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

321

Interação na fala e na escrita

Quem brinca com fogo se queima. LM, Um anjo caiu do céu, 10, 24Quem cabras não tem e cabritos vende, de algum lugar lhe vem. RMJ, LM, AA, 9Quem é do chão não se trepa. LM, GRQuem espera, sempre alcança. LM, FSP, 22, 23 (4 vezes), 24Quem foi rei sempre tem majestade. LM, MAA, 7, 23Quem gasta tudo num dia no outro assobia. Escola de Samba, 26Quem não se arrisca não petisca. LM, Estrela guia, 10Quem não tem cão caça com gato. JP, RMJ, LM, JT, 16Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. JP, TC, JT, MC, 16, 23Quem quer mais do que lhe convém perde o que quer e o que tem. LM, DIC. DE

PENSAMENTOSQuem sai na chuva é pra se molhar. RMJ, Um anjo caiu do céu, 5, 10Quem semeia vento colhe tempestade. RMJ, LM, 24Quem tem boca vai a Roma. RMJ, LM, FSP, 22Quem tem pressa come cru. JT, 16Quem tudo quer nada tem. LM, JP, JT, 16Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz de homem. LM, AA, 9Tem uma pedra no meio do caminho. FERREIRA, NURC, Helena Silveira, 4Tirar o pai da forca. FELIX, 13Um dia da caça, outro do caçador. RMJ, JP, LM, 15Uma andorinha só não faz verão. LM (MC, Rocha, Helena Silveira, 14Vender/passar gato por lebre. JP, CC, RMJ, Camões, 23

Page 319: 6835644 Dino Preti Interacao Na Fala e Na Escrita

Ficha técnica

Divulgação Livraria Humanitas-Discurso

Mancha 10,6 x 17,8 cm

Formato 14 x 21 cm

Tipologia Times New Roman e Bookman Old Style

Papel miolo: off-set branco 75 g/m2

capa: cartão supremo 250 g/m2

Impressão e acabamento Gráfica Provo

Número de páginas 322

Tiragem 1000 exemplares