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Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 133 SÍNTESE NOVA FASE V. 25 N. 80 (1998): 133-146 Notas bibliográficas I I I O presente volume recolhe o texto das aulas que Georg Picht ministrou no semestre de inverno 1965/1966 na cadeira de Fi- losofia da Religião então instituída na Faculdade de Teologia Evangélica da Universidade de Heidelberg. Aos 52 anos Picht assume pela primeira vez uma cátedra universitária e nesse seu curso inaugu- ral deixa-nos um admirável documento da sua grande erudição, da profundidade do seu pensamento e da densidade espiritual da sua meditação filosófico-teológica. Ao assumir a cátedra em Heidelberg G. Picht não era um desconhecido do mundo intelectual, tendo notadamente dirigido o Platons-Archiv da Deutsche Forschungsgemeinschaft e exercido outros cargos importantes no campo da promoção cultural. De formação clássica redigiu sua dis- sertação doutoral sobre a Ética de Panécio de Rodes que, porém, per- FILOSOFIA DA RELIGIÃO E METAFÍSICA Henrique C. de Lima Vaz CES — BH GEORG P ICHT, Die Fundamente der griechischen Ontologie (Vorlesungen und Schriften, Studienausgabe hrsg. von Constanze Eisenbart/Enno Rudolf). Mit einer Einführung von Hellmut Flashar, Stuttgart, Klett-Cotta, 1996, 337 p.

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    SNTESE NOVA FASE

    V. 25 N. 80 (1998): 133-146

    Notas bibliogrficas

    IIIII

    Opresente volume recolhe o texto das aulas que Georg Pichtministrou no semestre de inverno 1965/1966 na cadeira de Fi-losofia da Religio ento instituda na Faculdade de TeologiaEvanglica da Universidade de Heidelberg. Aos 52 anos Picht assumepela primeira vez uma ctedra universitria e nesse seu curso inaugu-ral deixa-nos um admirvel documento da sua grande erudio, daprofundidade do seu pensamento e da densidade espiritual da suameditao filosfico-teolgica.

    Ao assumir a ctedra em Heidelberg G. Picht no era um desconhecidodo mundo intelectual, tendo notadamente dirigido o Platons-Archiv daDeutsche Forschungsgemeinschaft e exercido outros cargos importantesno campo da promoo cultural. De formao clssica redigiu sua dis-sertao doutoral sobre a tica de Pancio de Rodes que, porm, per-

    FILOSOFIA DA RELIGIO E METAFSICA

    Henrique C. de Lima Vaz

    CES BH

    GEORG PICHT, Die Fundamente der griechischen Ontologie(Vorlesungen und Schriften, Studienausgabe hrsg. von ConstanzeEisenbart/Enno Rudolf). Mit einer Einfhrung von HellmutFlashar, Stuttgart, Klett-Cotta, 1996, 337 p.

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    maneceu indita. A publicao pstuma (Picht faleceu em 1982) dosEscritos e Lies em 10 volumes revelou finalmente toda a amplitude, aprofundidade e o alcance de uma obra que passa a ser, com justia,contada entre as mais importantes da filosofia alem contempornea.

    Ontologia, como sabido, no um termo da lngua filosfica gregaclssica. Encontra-se, pela primeira vez, no Lexikon Philosophicum (1613)de Rudolf Goclenius. A evoluo do termo, ou melhor, do objeto por eledesignado, o ser como ser, na filosofia clssica alem acompanhada porPicht at Hegel (pp. 21-23) para justificar o uso da expresso Ontologiagrega e a significao das lies sobre as origens gregas da Ontologiacomo introduo a um curso sobre Filosofia da Religio no mbito deuma Faculdade de Teologia (pp. 24-25).

    Com efeito, os ouvintes de Picht e, hoje, seus leitores tero tido ou tm,inicialmente, um movimento de surpresa em face da perspectiva naqual a Filosofia da Religio por ele situada e do prprio conceito comque apresenta essa disciplina recente do corpo didtico filosfico-teol-gico. Em geral o tratamento recebido pela Filosofia da Religio na lite-ratura filosfica do sculo XX permanece em visvel dependncia dosramos das cincias humanas que estudam o fenmeno religioso, sobretu-do a Antropologia cultural, a Histria das Religies e a Fenomenologiareligiosa. De acordo com tal tendncia a Filosofia da Religio enten-dida, quase sempre, como uma fenomenologia (no sentido ps-husserliano)do fato religioso empiricamente observado e descrito. Nesse caso a lei-tura fenomenolgica oferece o ponto de partida para a reflexo filos-fica mas essa se aplica, sobretudo, crtica das manifestaes histricasda religio ou sua interpretao nos quadros de uma Filosofia daCultura. Semelhante evoluo recente da Filosofia da Religio na suametodologia e no seu contedo deve-se, sobretudo, a dois dos fatoresprincipais que determinaram o clima filosfico do sculo XX: o rpidoe abrangente crescimento das cincias humanas, no caso das cincias daReligio e da Antropologia, e o florescimento da Fenomenologia no ter-reno deixado pelo declnio da Metafsica.

    sabido no entanto que, na sua origem, a moderna Filosofia da Reli-gio foi pensada em perspectiva profundamente diversa. Ao fazer daReligio um dos momentos dialticos estruturais seja do caminho daconscincia na Fenomenologia do Esprito, seja do Esprito absoluto naEnciclopdia das Cincias Filosficas Hegel, o fundador da moderna Filo-sofia da Religio, retomava intencionalmente a tradio especulativa daantiga Teologia, e obedecendo s exigncias conceptuais dessa tradi-o que se desenrolam as suas Lies sobre a Filosofia da Religio. Aquia Religio, no seu conceito e nas suas formas ou nas suas determinaeslgicas, exposta ao mesmo tempo na sucesso histrica dessas formase na necessidade conceptual com que se submetem ao progresso doEsprito no tempo como manifestaes do Esprito absoluto na formada representao religiosa, at que essas manifestaes se cumpram ple-

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    namente na chamada religio absoluta (Lies sobre a Filosofia da Religio),ou religio manifesta ou manifestada (Fenomenologia e Enciclopdia), a sa-ber, no Cristianismo. A moderna Filosofia da Religio nasce, pois, emHegel, sob o signo de um pensamento altamente especulativo e gozaexplicitamente, como de resto todos os momentos do Esprito, dopredicado de cientfica no sentido hegeliano, ao receber sua estruturaconceptual da Cincia da Lgica, vem a ser, da verso hegeliana da an-tiga Metafsica. Eis porque as Lies sobre as provas da existncia de Deus,tema clssico da Metafsica pre-kantiana, ministradas por Hegel comocomplemento s suas aulas de Lgica, acabaram anexadas pelos pri-meiros editores s Lies sobre a Filosofia da Religio.

    Compreende-se pois que G. Picht, ao inaugurar seu curso sob o signode Hegel, retome uma tradio fundadora e o inicie com uma reflexosobre a compreenso ontolgica da verdade tendo como pr-condioexistencial do exerccio do filosofar a coragem da verdade e da crenano poder do Esprito tal como Hegel a propunha aos seus ouvintes aoiniciar em Heidelberg, em Outubro de 1816, seu curso sobre a Histriada Filosofia (p. 8). Picht lembra alis que a Filosofia da Religio nessesentido rigorosamente especulativo desaparecera, desde os tempos deSchelling e Hegel, do corpus oficialmente reconhecido das disciplinasfilosficas na Alemanha. Retomar, pois, essa tradio no mbito de umaFaculdade de Teologia (pp. 3-4), tal o propsito de G. Picht cujo primei-ro passo so as lies sobre os fundamentos da Ontologia grega, agorapublicadas como dcimo volume da edio das suas Lies e Escritos.

    Por que, porm, comear com a Ontologia grega, ou seja, com a dou-trina sobre o ser tal como foi primeiramente formulada e desenvolvidapelos filsofos gregos e, exemplarmente, por Plato e Aristteles? Pichtresponde a essa pergunta nas suas primeiras aulas com clareza e extra-ordinria fora persuasiva, definindo assim a perspectiva terica naqual se situa a sua concepo de uma Filosofia da Religio pensada epensvel apenas dentro da tradio da teologia crist: exatamente aperspectiva e o desafio da concepo hegeliana (pp. 4-33).

    Ora, o fundamento e ponto de partida dessa concepo a idia hegelianada verdade, expressa na clebre proposio do Prefcio Fenomenologia:O verdadeiro o todo. O inevitvel confronto com Hegel imposto Teologia na medida em que conserva alguma ambio terica (e a umaFilosofia da Religio a ela organicamente articulada) deve iniciar-senecessariamente tendo por tema o problema da verdade (pp. 5-6) ouainda, para usar uma terminologia clssica, o problema da verdade nasua amplitude transcendental, ou seja, idntica logicamente ao ser. Emoutras palavras, trazendo a Religio na sua vertente terica ou teolgicauma inteno de explicao do todo, tal inteno dever ser refletidafilosoficamente a partir de um conceito de verdade que traduza, igual-mente, a verdade do todo. Essa a grandiosa ambio especulativa queimpele o pensamento hegeliano na construo de um Sistema da to-

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    talidade (dito Enciclopdia do saber filosfico) no qual Religio e Filosofia,ambas apresentando-se como verdade do todo, so expostas (no sentido daDarstellung hegeliana) na sua identidade na diferena da representao e doconceito. As chamadas Filosofias da Religio na verso fenomenolgica oucrtica usual permanecem muito aqum desse nvel especulativo, mas aelas deve ser dirigida a questo decisiva (p. 6) que se eleva das proposi-es fundadoras da teologia crist expressas no Prlogo joanino: comoacolher e explicar nos limites da verdade fenomenolgica a Verdade ab-solutamente universal do Logos?

    Podemos dizer que as lies de G. Picht sobre os fundamentos da Ontologiagrega, iniciadas sob o signo de Hegel, so uma resposta a essa questo naforma de uma alternativa que no admite terceira soluo: uma Filosofiada Religio que venha depois do Cristianismo e da sua tradio teolgica,ou se funda no conceito ontolgico de Verdade ou fica irremediavelmenteaqum do seu objeto.

    Impe-se, portanto, como introduo obrigatria a uma Filosofia da Reli-gio altura das exigncias tericas da revelao crist do Logos, a reflexosobre a Ontologia grega como Ontologia da verdade. G. Picht desenvolveessa reflexo em grande estilo nessas suas primeiras lies com a profun-didade do filsofo e a cincia do fillogo e do historiador da cultura grega.Como Hegel e como toda a grande tradio metafsica at Leibniz eEspinoza (p. 12) ele se eleva, no seu ponto de partida, mxima altitudeespeculativa alcanada pela identidade parmenidiana entre o pensar (noein)e o ser (einai) (p. 11, nota 6), Com ela se inaugura a histria da Ontologiagrega, posta diante do imperativo absoluto inicial de pensar a verdadecomo epifania eterna dessa identidade.

    No entanto, esse imperativo v-se diante de outro desafio especulativono menor do que o pensamento da identidade, e provindo tambm ele daherana hegeliana: como conciliar verdade e historicidade? Desafio abando-nado, como sabido, pelas filosofias ps-hegelianas que acabaram consa-grando a dissoluo relativista da verdade ou denunciando, como Nietzsche,seu carter dissimulador de iluso forjada pela vida (p. 10). Tendo tratadodesse problema do ponto de vista estritamente conceptual em outros es-critos (p. 31 nota 19), Picht limita-se aqui a mostrar a sua inevitvel pre-sena numa reflexo sobre a ontologia da verdade e, ao mesmo tempo, aassinalar energicamente a insuficincia da soluo relativista. Depois dedefinir exatamente os termos do binmio verdade e historicidade (pp.13-20) e lembrar os problemas propriamente ontolgicos que subjazem pretendida inconciliabilidade entre eles, hoje aceita sem discusso, e queemergem por exemplo na simples questo o que a histria? (p. 20), Pichtprocede a um esboo preliminar de resposta atravs de iluminadora com-parao, bem moda platnica (pp. 26-33). O axioma fundamental as-sim enunciado: da relatividade do conhecimento no se segue a relativi-dade do objeto conhecido (p. 27). Negado esse axioma como poderia, porexemplo, ser explicada a verdade transtemporal dos teoremas matemti-cos descobertos e demonstrados ao longo do tempo? Trata-se, porm, de

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    explicar igualmente a identidade entre ser e verdade nas cincias do esprito,ou seja, naquelas formas de saber que tem por objeto uma realidadeessencialmente histrica ou que histrica por definio e submetida, pois,no seu prprio teor ontolgico, ao transformadora do tempo. Pichtenfrenta esse problema em dois momentos. No primeiro ele lembra comoa partir do sculo XIX, na nova cultura da sociedade industrial e no ethosda burguesia capitalista, o conceito de verdade foi substitudo pelo conceitode valor segundo o padro do ter que erigido fundamentalmente emmedida da liberdade (pp. 26-27). A inconsistncia filosfica desse conceitofoi definitivamente demonstrada com a Umwertung, a reviravoltanietzscheana dos valores, nela envolvida a total desvalorizao do valor-verdade e o conseqente niilismo que passa a reinar na esfera espiritual dasociedade do ter. No segundo momento apresentada a comparao quepoder ajudar a introduzir no tratamento propriamente especulativo doproblema (pp. 28-31). Ela descreve a ascenso de uma montanha segundoa sucesso das paisagens que vo sendo descortinadas pelo alpinista eque traduzem a identidade da regio contemplada na diferena das pers-pectivas que a subida oferece. Quem poder dizer que as diferenas deperspectiva significam diferenas da realidade que se oferece vista? Aidentidade parmenidiana entre o ser e o conhecer permanece, mas o mo-mento do conhecer, como viu Plato, introduz nessa identidade, dialetizando-a, a diferena do movimento que , primeiramente, o prprio movimentodo conhecer, a sua historicidade, aqui representada pela ascenso do alpinis-ta. Duas estruturas constitutivas do conhecer sustentam essa historicidade easseguram a diferena na identidade: a abertura do conhecimento ao ser, seuacolhimento do que , simbolizados pelo olhar do alpinista, e a permanen-te rememorao (Erinnerung) do itinerrio j cumprido que simboliza aidentidade na diferena do conhecimento na sua histria. A comparaoproposta por Picht e essas duas estruturas ajudam-nos a compreendermelhor a situao humana da verdade. No a verdade que relativa. o homem na sua apreenso necessariamente histrica da verdade. Expri-mir de alguma forma, na relatividade histrica do discurso humano, oabsoluto da verdade, sem o qual o prprio discurso se perderia numairreparvel incoerncia final, tal o propsito de uma ontologia da verdadeque assinalou o aparecimento da filosofia na Grcia e acompanhou seucaminhar ao longo dos sculos. Repensar, pois, essa ontologia e repens-lanas suas origens gregas aparece a G. Picht no apenas legtimo mas ne-cessrio no limiar de uma Filosofia da Religio.

    IIIIIIIIII

    Como expor, porm, ao discpulo ou leitor do sculo XX o rduo itine-rrio especulativo seguido, de Parmnides a Aristteles, pela Ontologiagrega da verdade? Com perfeita sensibilidade seja s exigncias tericasseja incidncia dramaticamente existencial do problema, Picht escolhe

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    um caminho inusitado para trat-lo. A Ontologia grega da verdade serexposta atravs de uma longa e minuciosa exegese da clebre alegoriada Caverna que abre o livro VII da Repblica de Plato. De fato, essaexegese acaba ocupando a maior parte do volume que estamos comen-tando (pp. 37-236). A alegoria da Caverna apresentada como umaparbola genial da Ontologia da verdade na medida em que nela o quese descreve justamente a histria do olhar (com toda a riqueza meta-frica do termo grego idein) humano que se eleva da sombra da iluso plena luz do ser ou da verdade. Embora essa pgina, ilustre entre todasna literatura filosfica, deva ser situada no contexto de uma interpreta-o compreensiva do dilogo Repblica, a inteno de G. Picht no ade apresentar-nos o fragmento de mais um comentrio da Repblicaentre os muitos e excelentes que existem. Sem desconhecer o lugar daalegoria no movimento geral do Dilogo, Picht convida-nos a fixar nossaateno sobre o fato de que nos encontramos aqui em pleno centro dachamada digresso filosfica que ocupa os livros V a VII e que ofe-rece-nos, sem dvida, a primeira e uma das mais profundas reflexessobre a onto-logia da verdade, ou seja, sobre a presena da verdade,idntica ao ser (on) nas vicissitudes do discurso (logos) humano. Ora, aopropor a sua alegoria, Plato une numa s frase inicial cinco termos emtorno dos quais ir finalmente girar toda a histria humana da verdaderepresentada na alegoria da Caverna. So eles: apeikasa, pathos, physis,paideia e apaideusia. Apeikasia (aqui na forma verbal apeikason) significaestabelecer uma comparao entre duas realidades, de tal sorte que, pormeio de uma delas obtenhamos clara e inconfundvel imagem ou cone(eikon) da outra. A primeira realidade nos dada pela histria do prisi-oneiro que se liberta ou libertado das sombras da Caverna. O termohistria procura traduzir aqui o grego pathos que se no refere estticacondio humana (p. 41) mas ao movimento essencial e permanente quea nossa natureza (physis, conceito originariamente dinmico) cumpre notempo, ao passar da ignorncia (expressa no estado de apaideusia) aosaber verdadeiro (paideia). Portanto, o que a histria do prisioneiro nosoferece a imagem (eikon) da nossa natureza tal como ela se apresentaconfrontada com o mais radical desafio que se levanta no seu itinerriono tempo ou no exerccio da sua condio histrica: o desafio de alcanarexprimir no seu saber (noein) a identidade com o ser (on) e, assim, deidentific-lo, por sua vez, com a verdade (aletheia). Compreende-se, destasorte, que essa imagem da nossa natureza seja a mais adequada pararepresentar o problema fundamental da Repblica o problema doEstado justo ou verdadeiro pois como pensar a politeia verdadeira seno se representar o polites (o cidado) como um essencial itinerante nabusca da verdade (p. 41)?

    A paideia , pois, na sua significao mais profunda, uma educao paraa verdade; e a apaideusia um permanecer longe da verdade. A Ontologiagrega, na forma paradigmtica que lhe d Plato, uma paideia e comotal , pela sua prpria natureza, uma Ontologia da verdade. A alegoria daCaverna, aprsentando-nos a imagem (eikon) da natureza humana na

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    sua ordenao peregrinante para a verdade, pode ser interpretada por-tanto como o roteiro da Ontologia grega, e essa interpretao que G.Picht prope com soberana erudio e grande penetrao filosfica.

    A leitura da grande narrao platnica, onde a forma dialogal pratica-mente suspensa, se desenrola em trs estgios ou, mais exatamente,sob trs perspectivas, cada uma delas pondo em relevo um dos traosestruturais da alegoria. Propomos design-las como a perspectiva an-tropolgica (I parte, pp. 37-108), a perspectiva gnoseolgica (II parte, pp.109-172) e a perspectiva propriamente ontolgica (III parte, pp. 173-233).

    A primeira parte, intitulada justamente A alegoria da Caverna, ocu-pa-se com a histria do itinerrio humano da verdade, simbolizado nasperipcias do caminho que vai desde a priso no fundo da Caverna at converso da alma toda e sua libertao final na eudaimonia do conhe-cimento filosfico do conhecimento da verdade. A alegoria da Caver-na fora introduzida como uma imagem da physis humana no seu pathos,isto , na sua histria. Picht lembra com razo que as razes dessa ima-gem encontram-se, para Plato, na tradio religiosa. Com efeito, aimagem da vida humana, delineada de maneira to extraordinria (atoponeikona, 515 a 4) na situao dos prisioneiros acorrentados no fundo daCaverna, seria incompreensvel sem o precedente da doutrina rfico-pitagrica sobre a situao da psyche humana, de origem divina masencarcerada no sepulcro do corpo (soma = sema, Grgias, 492 e 12). Pichtexplica documentadamente (pp. 48-61) o sentido da transposio plat-nica das tradies mticas no contexto da crtica religiosa da Ilustraogrega do V sculo, e recorre a uma observao de crtica textual a pro-psito do termo physei (515 c 5; v. p. 62) para mostrar como a libertaoe a cura do prisioneiro que logra evadir-se do mundo das sombras onde ele mesmo apenas o sonho de uma sombra, segundo o versoclebre de Pndaro para alcanar o mundo das coisas reais, traduz apassagem de uma situao umbrtil num mundo de aparncias para amanifestao da verdadeira essncia (physis) do homem no mundo dasrealidades verdadeiras. Trata-se, em suma, de evocar, nas peripcias deuma histria de to eloqente simbolismo, o captulo decisivo na for-mao da Ontologia grega que o confronto da Ilustrao sofstica[Sofistas e poetas, segundo Picht (p. 55), representados pelos portado-res, em contnuo ir e vir, de objetos artificiais cuja sombra projetadano fundo da Caverna] com a Ilustrao socrtica. A decisiva importn-cia desse confronto para a formao da Ontologia posta em relevo porPlato na descrio da difcil e trabalhosa ascenso do prisioneiro paraa luz (515 c 6 e 5). O trecho clebre analisado por Picht (pp. 63-76)com grande rigor filolgico e, sobretudo, dedicando particular atenoao fundo de tradies religiosas sobre o qual Plato tece a sua narrao.De fato, duas categorias de inequvoca procedncia religiosa recebemaqui uma brilhante transposio filosfica que iria consagr-las parasempre na linguagem filosfico-religiosa do Ocidente: a categoria daconverso (epistrophe) e a categoria da viso(kathoran). Elas evocam

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    a linguagem do culto dos mistrios, mais provavelmente dos mist-rios de Elusis, e do rito de iniciao que nele se desenrola, onde oestgio final a viso da luz divina. Picht lembra (pp. 66-67) que amesma referncia iniciao mistrica subjaz clebre passagem doBanquete em que Ditima, a sacerdotisa de Mantinia, inicia Scratesnos mistrios do eros. Aqui o iniciante Scrates, oculto na annima equase evanescente figura do guia que conduz o prisioneiro do fundotenebroso da Caverna luz do dia (pp. 73-74). O trao inconfundivel-mente socrtico dessa libertao a pergunta que age como o santo-e-senha a abrir o verdadeiro caminho: ti esti; (o que ?), a mais genuina-mente socrtica de todas as perguntas, sendo igualmente a retomada,em perspectiva inteiramente nova propriamente ontolgica daidentidade parmenidiana do pensar e do ser, que a crtica sofstica dis-solvera no relativismo do mundo das aparncias. Para iluminar essanova perspectiva do horizonte platnico que se abre ao prisioneiro li-bertado ao sair da Caverna ao homem convertido da aparncia ao ser Picht introduz a essa altura uma erudita digresso sobre os doistermos fundamentais que assinalam o incio e o termo da conversofilosfica: thaumadzein (admirar-se) e theorein (contemplar) (pp. 77-85).As ressonncias religiosas do termo theorein so aqui particularmentelembradas (pp. 84-85) para ressaltar que, nessa aurora platnica daOntologia, contemplar a Verdade contemplar o que divino (theoria um termo ligado linguagem religiosa), no podendo, pois, a Verdadesubmeter-se em definitivo ao metron humano, e mostrando-se aOntologia, na figurao da Caverna, um necessrio itinerarium mentis inDeum. A progressiva formao do olhar do ex-prisioneiro para contem-plar as realidades iluminadas pelo Sol e, finalmente, para fixar o pr-prio Sol descreve, como sabido, os estgios da paideia filosfica e Pichta comenta em trs tpicos dedicados a pr em evidncia outras tantascaratersticas da nascente Ontologia grega na sua vertente antropolgica:o conhecimento do ser como fonte da verdadeira eudaimonia, onde seestabelece o ponto de juno entre Ontologia e tica (pp. 85-91); o alcan-ce da converso que atinge e faz voltar toda a alma (syn ole te psyche, 518c 7) para a contemplao do ser e para o que se manifesta mais lumi-noso mais verdadeiro no mbito do ser (tou ontos to phanotaton,ibid.) (pp. 92-102); finalmente, lembrada a sentena famosa de Protgorassobre o homem medida de todas as coisas para descrever o estado doser humano voltado totalmente para o sensvel, estado figurado peloshabitantes da Caverna e por onde comea a converso que leva do mundoregido pelos interesses o mundo de Protgoras ao mundo ilumina-do pela Verdade o mundo de Plato (pp. 102-105).

    A vertente gnoseolgica da leitura que Picht nos prope da alegoria daCaverna tem justamente por ttulo Verdade e aparncia. Estamosaqui no terreno da significao literalmente mais bvia dessa pginaplatnica e que, por isso mesmo, retm comumente a ateno doscomentadores. Ela se impe sobretudo em virtude da seqncia imedi-ata que Plato estabelece entre a comparao da Linha, no final do livro

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    VI e a imagem da Caverna no incio do livro VII. Como aquela trata dadiviso do conhecimento, esta retoma a mesma diviso do ponto devista dos estgios da formao (paideia) do conhecimento at a noesis,a intuio final da Idia do Bem. Se, na leitura antropolgica Picht recorresobretudo ao fundo religioso da alegoria platnica, aqui a tradioliterria da histria grega do saber da aquisio da Verdade (aletheia) que evocada na figura das Musas que presidem iniciao poticade Hesodo ou que so invocadas em Homero em virtude da sua onis-cincia (pp. 109-124). Essa histria atinge seu clmax na teoria do nous(intellectus) como olhar da alma que ser retomada por Aristteles e queir alimentar, como sabido, um dos mais importantes captulos dahistria espiritual do Ocidente, seja na sua interpretao filosfica sejana sua interpretao mstica. A teoria do nous situa-se, para Plato, nocontexto da concepo do conhecimento como rememorao ou re-miniscncia (anamnesis) que apresentado como um dos conceitoscentrais da Ontologia grega e cujas razes literrias e religiosas soinvestigadas (pp. 124-130) para explicar a origem do conceito socrtico-platnico de alma (psyche). Por sua vez, o contedo desse conceitoprofundamente inovador s pode ser plenamente entendido se o refe-rirmos grande querela entre a concepo sofstica da doxa (aparncia)e a concepo platnica da aletheia (verdade). A essa querela dedicadaa segunda parte da leitura gnoseolgica da alegoria da Caverna (pp. 131-170), e que justamente intitulada : A skepsis radical dos Gregos,onde o termo skepsis deve ser entendido no seu sentido literal como usoe modo do olhar.

    A importncia fundamental da oposio doxa-aletheia para a formao daOntologia grega emerge, portanto, da prpria histria do saber grego,desde que a acompanhemos na perspectiva da transio decisiva queconduz da sabedoria das Musas na potica homrica e hesiodea, crticareligiosa e ao monotesmo de Xenfanes no incio do V sculo que, pelaprimeira vez, formula de modo radical a oposio entre a verdade do Deusnico e a aparncia que se estende sobre todas as coisas (pp. 141-146). Umimportante parntese metodolgico, no qual se explica mais uma vez asignificao de um retorno histrico aos fundamentos da Ontologia gregapara a constituio da nossa prpria conscincia histrica (pp. 146-149), euma recapitulao na qual se avalia o problema moderno do fundamento luz do ensinamento platnico sobre o carter principial (arque) da Idiado Bem para alm do ser (epekeina tes ousias) (pp. 149-154), encaminhama reflexo para o desenlace da grande querela, onde definitivamente seoporo a absolutizao da aparncia por Protgoras e a absolutizao daverdade por Plato (pp. 154-170).

    A terceira vertente da leitura da alegoria da Caverna proposta por Picht justamente a vertente ontolgica e ela que conduz altitudeespeculativa desde a qual se podero dominar todos os caminhos pos-teriores do pensamento metafsico na histria da filosofia ocidental (pp.173-233). Essa terceira parte colocada sob o signo de Parmnides e tem

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    como ttulo Tempo e Verdade. Aqui o campo da reflexo se estabe-lece na tenso propriamente dialtica entre os dois plos que so adescoberta parmenidiana do princpio de identidade e a concepo plat-nica do tempo como lugar da manifestao do efetivamente real e daVerdade como eterno presente.

    O primeiro tpico, dedicado a Parmnides (pp. 173-200), prope umacomparao estrutural entre o poema parmendeo e a alegoria da Ca-verna ressaltando no texto do poema a celebrao do poder do pensa-mento puro (noein) para penetrar pelas portas da manso da Verdade,em paralelismo com o que ser, na alegoria da Caverna, a passagem dodomnio do sensvel para o reino do puro inteligvel. Aqui todo omovimento do pensar se desenrola sob o signo da unidade parmendeaentre o Ser (einai) e o Pensar (noein). A unidade em Parmnides apre-senta-se sob a forma da identidade (tauton), de tal sorte que s pode seruma unidade absoluta. Pensar a unidade absoluta no tempo, tal o alto etemeroso desafio que se levanta desde o primeiro passo na rota daOntologia, pois o Pensar, idntico ao Ser, se exerce no tempo ou nomovimento temporal do logos humano. Picht mostra (pp. 199-200) comoParmnides caminhou ao encontro desse desafio ao apresentar na se-gunda parte do poema o mundo sensvel como domnio da doxa ou doaparecer, que no deve ser interpretado como a vazia aparncia maistarde propugnada pelos Sofistas e assim correntemente interpretadapelos exegetas de Parmnides, mas como imagem do divino do Ser.Mas nenhum intermedirio possvel, para Parmnides, entre a aparn-cia e o Uno absoluto, e a imagem permanece uma simples metfora. APlato estava reservado, ao introduzir o movimento ou a diferena naidentidade parmendea, escrever o primeiro e definitivo captulo daOntologia. Picht afasta-se aqui decididamente da leitura heideggerianada alegoria da Caverna e da verso nela proposta do conceito de Ver-dade em Plato (pp. 201-202), ao mostrar entre Parmnides e Plato acontinuidade profunda que reside exatamente na afirmao da identida-de entre o nous e o noeton: inamovvel ponto de partida da histria daOntologia. O passo para diante dado por Plato nessa histria mostra-se na introduo do intermedirio (metacsy) ou da mediao entre aunidade absoluta do Uno ou do Bem e o mundo da aparncia. Essamediao, estabelecida dialeticamente no dilogo Sofista, Picht a estudaatravs do conceito de tempo tal como definido no Timeu como ima-gem mvel da eternidade e cuja estrutura matemtica nmero econtinuidade permite pensar a natureza da imagem (eikon) segun-do a sua participao na inteligibilidade do Uno (pp. 202-209). A con-cepo do tempo e, de resto, a cosmologia do Timeu como um todo,mostram exemplarmente onde se situa a inflexo platnica da linha depensamento de Parmnides e que a alegoria da Caverna exprime comincomparvel fora sugestiva. Picht chama a ateno para dois pontosde decisiva importncia: a gradao na ordem do ser e da verdade expressa no uso do comparativo mallon como em mallon onta (515 d 3)ou do superlativo como o mximo verdadeiro (alethestera, 515 d 6) em

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    flagrante violao do interdito de Parmnides, e a atribuio ao Uno dotermo Bem (agathon) para pr em evidncia a ordenao finalstica dosseres para o Uno ou para o Bem, situado para alm do ser.

    A manifestao do efetivamente real ou do inteligvel na experinciasensvel ou a estrutura eidtica do fenmeno explicada atravs de umailuminadora anlise (pp. 211-217) da freqentemente mal entendidaconcepo platnica da idia ou forma (eidos). Picht manifesta aqui umarejeio liminar da interpretao vulgarizada da teoria da idia por meiode um dualismo simplista, em oposio tanto com a unidade estruturalda alegoria da Caverna quanto, por conseguinte, com a doutrina sobrea natureza humana e sua paideia atravs do caminho do conhecimento,que ela pretende significar em imagem.

    Como sabido, a doutrina platnica da mediao entre o Ser e o fen-meno recebera j uma primeira explicao em forma de imagem naclebre comparao da linha ao final do livro VI. O paralelismo entre asdivises proporcionais da linha, representando a estrita correspondn-cia entre as formas do conhecimento e a natureza dos objetos conheci-dos, e os estgios da paideia filosfica na alegoria da Caverna tem sidoposto em evidncia pelos comentadores, e claro que as duas imagensdevem ser interpretadas como representaes de uma mesma concep-o. A sucesso espacial dos segmentos da linha e dos estgios docaminho para fora da Caverna um elemento integrante da imagem eno deve ser interpretada como descontinuidade gnoseolgica entre osobjetos, pois eles esto entre si na relao do modelo e da imagem oudo Ser e do fenmeno. Tal o sentido da proporo matemtica entreos segmentos da linha pois, caso contrrio, no se poderia passar de umpara outro e se recairia no monismo parmendeo. Picht ilustra essadoutrina central da Ontologia platnica com uma clebre passagem doDe Anima de Aristteles (De An., I, 404 b 16-27) sobre as doutrinas no-escritas na interpretao proposta por Konrad Gaiser. Trata-se de umapassagem controvertida (ver uma crtica da interpretao de Gaiser porGian Carlo Duranti, Verso un Platone terzo, Veneza, Marsilio, 1955, pp.194-204). Como quer que seja a comparao da linha e a alegoria daCaverna autorizam-nos a falar de uma trplice mediao admitida porPlato entre o Ser e o fenmeno e que a imagem da linha visualizacomo sendo exercida pela dianoia ou conhecimento dos objetos matem-ticos, pela pistis (ou alethes doxa) ou conhecimento dos objetos sensveisreais, e pela eikasia ou conhecimento das imagens dos objetos sensveis.

    As ltimas lies de G. Picht retornam ao tema que deu origem a essa suaintroduo Filosofia da Religio sob a forma inusitada de um estudosobre os fundamentos da Ontologia grega: o problema da Verdade.

    Um primeiro tpico trata da Verdade como presente eterno da unida-de do tempo, ou seja, da presena eterna do Uno, que Plato exprimesob a forma da Idia do Bem. A verdade do tempo e no tempo procededa Verdade dessa identidade originria que no negada contraditoria-

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    mente pelo tempo ou o movimento, mas mediatizada segundo umagradao de formas intermedirias de ser e, portanto, de verdade econhecimento -: tal a decisiva suprassuno (negao e conservao) porPlato do princpio parmendeo de identidade. Picht introduz aqui umacrtica filologicamente fundamentada da interpretao heideggeriana daconcepo platnica da verdade, que repousa numa leitura equivocadado termo orthos. Heidegger traduz esse termo como retido, sendopois a verdade originariamente a conjuno ou adequao correta doconhecimento e do ser. A verdade passa a ser uma conseqncia darelao entre a inteligncia e a realidade, derivando da a definioclssica adaequatio intellectus et rei. Picht mostra, com abundncia decitaes sobretudo dos trgicos (p. 226, n. 138), que orthos significa ori-ginalmente na direo reta ou certa do olhar em oposio ao olharesgazeado do louco (Edipo-Rei, vv. 528 segs.), sendo pois a verdade doconhecimento, na concepo platnica, o olhar da mente retamente dirigido Verdade (aletheia) do ser, o que implica justamente a converso descritana alegoria da Caverna. A Verdade primeira e fundante com relao mente (nous). Eis a uma concluso de extrema importncia para se com-preender a inteno de G. Picht ao inaugurar seu curso sobre Filosofia daReligio com uma introduo teoria grega da Verdade.

    Qual, porm, a verdadeira significao da inteligncia (nous) ou da alma(psyche) na relao entre o Ser verdadeiro (o inteligvel) e a sua manifes-tao no sensvel? As ltimas pginas do texto das lies de G. Picht(pp. 228-233) tratam de maneira densa e profunda dessa questo fun-damental que encerra o ciclo dos grandes problemas levantados peloprimeiro e emblemtico modelo da Ontologia grega a Ontologiaplatnica. Picht levou-nos a estudar esse modelo no seu cone genialque a alegoria da Caverna. Essa ltima questo faz-nos retornar, dealguma maneira, ao ponto de partida, pois s a clara anteviso dotermo do itinerrio poderia orientar o annimo guia a conduzir o pri-sioneiro pelo rduo caminho que leva das sombras do sensvel no fun-do da Caverna claridade solar do inteligvel. Uma sentena do dilo-go Menon, no contexto da teoria da anamnesis ou reminiscncia, de-fine exatamente o tema a ser aqui tratado: A verdade dos seres estsempre, para ns, na alma(Men., 81 b 1). No Prlogo do ParmnidesPlato exclui com firmeza a tese de um idealismo vulgar de que asIdias sejam pensamentos, ou de que a alma seja propriamente o toposton eidon (Parm., 132 b 4 c 12; observe-se que, para Aristteles (DeAnima, III, 4, 429 a 28-29) a expresso topos ton eidon pode ser aplicada Alma, desde que se entendam as formas em potncia, o que no temlugar na gnoseologia platnica). A comparao com o olhar, fio condu-tor da alegoria da Caverna, oferece-nos tambm aqui a analogia quenos permitir entender a relao da alma com as Idias, ou seja, com averdade. O Sol no mundo sensvel no somente ilumina os objetos masproduz no olhar a capacidade de contempl-los, de tal sorte que oespao do olhar torne-se, para o contemplante, o lugar dos objetos ilu-minados. Analogamente, a Idia do Bem no somente confere o ser

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    (ousia) e a verdade s idias dos seres permanecendo ela para alm doser (epkeina tes ousias) mas confere igualmente Inteligncia (nous) acapacidade de, contemplando a prpria Idia do Bem, contemplar as idi-as ou os seres (ousiai) na luz que dela procede. A Inteligncia ou a alma,enquanto iluminada pela plenitude inteligvel da Idia do Bem, torna-se,assim, o lugar da manifestao da verdade dos seres (pp. 230-231).

    A ontologia grega cumpre aqui uma inflexo decisiva. Ao afirmar aprecedncia ontolgica do Bem (agathon) sobre a inteligncia (nous) Platorompe com a identidade esttica parmenidiana entre o einai e o noein elevanta o problema da diferena ontolgica na ordem do inteligvel, pelaoposio entre a transcendncia absoluta do Bem-Uno e a ordem domltiplo que participa, segundo uma gradao ascendente que tem seupice na Inteligncia, da plenitude do Inteligvel do Bem consti-tuindo, pela identidade na diferena, a estrutura ontolgica profunda detoda a realidade. O Nous exerce, desta sorte, como mediador, uma duplafuno (p. 232): a de contemplante do Bem-Uno e a de intermedirioentre o Bem e as outras formas de atividade da Alma, conferindo-lheso poder de atualizar em si a estrutura de semelhana que torna a Almahomloga manifestao do Bem-Uno nos seres.

    Fica assim escrito o primeiro captulo dessa metafsica do Esprito,estudada particularmente por H. J. Krmer (Der Ursprung derGeistmetaphysik: Untersuchungen zur Geschichte des Platonismus zwischenPlaton und Plotinus, Amsterd, Schippers, 1964), expressoespeculativamente mais alta da Ontologia grega e da concepo gregada Verdade, e que encontrou no fim da Antigidade as duas versesdestinadas a permanecer como paradigmas em toda a histria espiritu-al do Ocidente: a teologia trinitria crist (a identidade na diferena des-dobrando-se como Princpio, Logos e Esprito no prprio interior doAbsoluto) e a teologia trinitria neoplatnica (a identidade na diferenaconstituindo-se pela emanao ad extra, em ordem hierrquica, da Inte-ligncia e da Alma a partir do Uno absolutamente transcendente).

    IIIIIIIIIIIIIII

    As perguntas com que G. Picht termina essas suas lies introdutrias Filosofia da Religio (p. 233) reconduzem-nos ao seu ponto de partidae prpria razo de ser de um acesso ao problema filosfico do fenme-no religioso atravs de um estudo sobre os fundamentos da Ontologiagrega tendo como fio condutor a alegoria da Caverna. Picht pergunta:a proposio de uma identidade do Ser consigo mesmo e do Ser comsua manifestao traz consigo a manifestao da essncia da Verdade? Eainda: a Verdade a unidade do Ser e do tempo na sua manifestao?A resposta a essas perguntas deixada aqui reflexo dos ouvintes e

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    dos leitores. Para o Professor j foi bastante o ter ousado formul-las.Depois de ter percorrido o trabalhoso itinerrio da Ontologia grega deParmnides a Plato, alegorizado na pgina clebre da Repblica comohistria da natureza humana na vicissitude essencial do seu existir notempo, ou seja, na passagem sempre recomeada das sombras do sen-svel para a luz do inteligvel, um primeiro e definitivo passo j foidado em ordem a uma possvel resposta: a essncia da Verdade meta-fsica, pois a Verdade o todo e como tal que ela pode manifestar-se na infinita multiplicidade dos seres. Assim sendo, a Verdade no sepulveriza no tempo num relativismo irrecupervel. Filia temporis se-gundo o dito famoso do medieval Bernardo Silvestre, ela tal no seumanifestar-se mas, na sua essncia, preside ao tempo enquanto identidadeabsoluta com o Ser.

    Se agora nos perguntarmos sobre as condies tericas preliminarespara uma Filosofia da Religio, temos que convir que a primeira delasse apresenta como uma metafsica da Verdade, sobretudo se se trata depensar filosoficamente a religio que anuncia a manifestao da Verdadeabsoluta do Logos feito homem no tempo da histria humana. Trata-se,com efeito, de pensar, na filosofia, a verdade da religio na sua constitui-o originria como evento e como discurso, e no suas formas histri-cas, antropolgicas, sociolgicas, culturais ou outras de que se ocupamas cincias humanas.

    A coragem intelectual de ter colocado esse problema no nosso tempo depensiero debole e de difuso ceticismo o grande mrito de Georg Pichtque merece toda a nossa admirao.

    Como apndice a esse importante livro os Editores reimprimiram umestudo de Picht de 1951 no qual o A. examina minuciosamente e adere tese de Bruno Snell que atribui a Hpias de Elis a autoria da informa-o sobre Tales e os primeiros filsofos transmitida por Aristteles nolivro I da Metafsica. Hpias seria, assim, o primeiro historiador da filo-sofia ocidental.

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