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2 UNIDADE 2 O desenvolvimento da Filosofia Patrística Objetivos de aprendizagem Identificar a Patrística como um conjunto teórico fundamental para a constituição do pensamento medieval. Compreender as características específicas da Patrística Grega e da Patrística Latina, bem como seus principais pensadores. Seções de estudo Seção 1 Os três períodos da Patrística Seção 2 A Patrística grega e a continuidade entre o mundo grego e o cristão Seção 3 A Patrística latina e o antagonismo entre o mundo grego e o cristão

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2UNIDADE 2

O desenvolvimento da Filosofia Patrística

Objetivos de aprendizagem

� Identificar a Patrística como um conjunto teórico fundamental para a constituição do pensamento medieval.

� Compreender as características específicas da Patrística Grega e da Patrística Latina, bem como seus principais pensadores.

Seções de estudo

Seção 1 Os três períodos da Patrística

Seção 2 A Patrística grega e a continuidade entre o mundo grego e o cristão

Seção 3 A Patrística latina e o antagonismo entre o mundo grego e o cristão

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Para início de estudo

Ao se iniciar o estudo do pensamento e do contexto dos primeiros padres e doutores do Cristianismo, é comum encontrar dois termos: Patrística e Patrologia. Ambos os termos derivam da designação “pais da Igreja”, estudo dos pais da Igreja; por terem sido eles os primeiros teóricos a estruturar a doutrina, a incentivar a fé e a pregar as verdades bíblicas reveladas por Cristo, ou pelo próprio Deus feito homem. Apesar de ambos os termos fazerem referência aos pais da Igreja, comumente se utiliza o termo Patrologia para designar o estudo da vida, da história e do contexto social desses homens, enquanto o termo Patrística refere-se ao estudo do seu pensamento e da sua obra.

Então, a Patrística é o estudo do pensamento dos primeiros padres cristãos, porém o conjunto das obras que fazem parte da Patrística inclui autores cristãos, mas não padres, e até mesmo autores que beiram o paganismo – gnosticismo.

Seção 1 – Os três períodos da Patrística

Considerando-se todo o período de formação do Cristianismo, pode-se dizer que a Patrística corresponde, aproximadamente, ao período compreendido entre o séc. I e o séc. VII d.C. Em geral, os estudiosos identificam três fases da Patrística, embora com algumas diferenças quanto a seus limites e designações. Por exemplo, alguns, tomando por base o platonismo, identificam uma fase inicial do neoplatonismo cristão – com Orígenes; outra fase, que seria do platonismo propriamente dito – com Agostinho; e outra, que seria uma segunda fase do neoplatonismo, já no final da Patrística. Outros autores, tomando como base o Concílio Ecumênico de Nicéia (325 d.C.), dividem a Patrística em período anteniceno; período niceno e período pós-niceno.

O Edito de Milão de 313 e o Concílio Ecumênico de Nicéia foram as duas grandes ações de Constantino para a consolidação do Cristianismo como religião oficial do Império Romano. O Concílio de Nicéia foi motivado por discussões dentro da própria Igreja.

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O impasse teológico deu-se entre o bispo Alexandre, que afirmava a identidade entre Deus pai e Jesus filho, e o padre Ário, defensor de que “o Logos Encarnado era inferior a Deus Pai e que se o Pai gerou o Filho, então houve uma época em que o Filho não existia”. Diante do perigo iminente de cisão na Igreja, Constantino convocou um Concílio que se realizou na cidade de Nicéia da Bitínia, próxima de Constantinopla, em 325, e que concluiu com a redação do Credo de Nicéia:

O Credo de Nicéia

 «Cremos em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, unigênito do Pai, da substância do Pai; Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por quem foram criadas todas as coisas que estão no céu ou na terra.

O qual por nós homens e para nossa salvação, desceu (do céu), se encarnou e se fez homem. Padeceu e ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu. Ele virá novamente para julgar os vivos e os mortos. E (cremos) no Espírito Santo. E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse gerado ele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica e Apostólica.»

Fonte: Primeiro... [200-]

Figura 2.1 - Imagem representativa do Concílio de Nicéia Fonte: Primeiro... [200-]

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Porém, na abordagem deste livro, é considerada a divisão apresentada por Reale e Antiseri (1990, p. 400), que leva em conta todo o contexto desde o nascimento de Cristo até o início da Idade Média, e divide esse período em três fases.

A primeira fase compreende as obras escritas durante o século I da era cristã, mais dedicadas à temática moral e à propagação do evangelho. Foi um período de formação das primeiras comunidades cristãs e das pregações pelos padres denominados apostólicos – por serem seguidores diretos dos apóstolos de Cristo.

A temática dos padres apostólicos circula em torno dos ensinamentos dos apóstolos para o cultivo da vida cristã. Eram poesias, homilias e cartas que deveriam passar de comunidade em comunidade, propagando a palavra sagrada e as recomendações apostólicas.

O que esses padres objetivavam não era a fundamentação e justificação do cristianismo, nem a elaboração de uma teologia ou de uma espécie de filosofia cristã, que foi o propósito da fase seguinte, dos padres Apologistas.

Os Apostólicos fizeram a ligação entre o Novo Testamento e as apologias do século II.

Acompanhe a citação que segue; ela foi tirada do texto História do Cristianismo VIII, de Maurício Junior (2001):

A primeira coleção de escritos teológicos surgidos depois do Novo Testamento é composta de documentos agrupados sob o título de Padres Apostólicos. Foi o estudioso francês Jean Cotelier quem assim os classificou no séc. XVII. Inicialmente faziam parte dessa coleção:

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a Epístola de Barnabé, a Carta de Clemente Romano, Cartas de Inácio de Antioquia, a Carta de Policarpo, e o Pastor de Hermas. Em 1765, foram incluídos na lista os fragmentos de Pápias e de Quadrato, e a Epístola a Diogneto. Mais tarde, em 1873, descobriu-se o Didaquê (2), concluindo-se com ele a coleção. São obras de estilo simples, interessadas em dar testemunho da vida cristã em face das perseguições a que era submetida a Igreja, com algumas indicações a respeito da estrutura eclesiástica incipiente.

Entre os escritos cristãos desta época, está a “Didaquê” – a “Doutrina dos doze Apóstolos”, o que não significa que tenha sido escrita pelo punho dos doze Apóstolos de Cristo. Em geral, os estudiosos afirmam que se trata de uma obra de vários autores, que reúne as regras de convivência e de celebração escritas ou apenas praticadas pelos cristãos, provavelmente das comunidades originárias palestinas.

A Didaquê mostra-nos o início da formação da tradição cristã como religião e, inclusive, como instituição ou organização política e hierárquica, e a necessidade de estabelecer o ritual. Revela, também, o contexto pagão em que viveram as primeiras comunidades cristãs, como é possível observar na seguinte instrução do Capítulo III da Didaquê (BETIATO, 2006):

4 - Meu filho, não sejas dado à adivinhação, pois ela conduz à idolatria. Abstém-te também da encantação (feitiçaria) e da astrologia e das purificações, nem procures ver ou ouvir (entender) estas coisas, pois tudo isto origina a idolatria.

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E, pelo que parece, reflete o crescente distanciamento do Judaísmo. Embora seja recomendado que se louve ao pai, ao filho e ao espírito santo, Jesus é apresentado como servo, e não como unidade com Deus pai; o pão e o vinho ainda não são representações do “corpo e do sangue de Jesus seu único filho”, mas da “vinha de Davi” e do “conhecimento revelado”; por outro lado, já aparece a exigência do batismo, como é possível observar nas seguintes instruções do Capítulo IX da Didaquê (BETIATO, 2006):

1 - No que concerne à Eucaristia, celebrai-a da seguinte maneira: 2 - Primeiro sobre o cálice, dizendo: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, que tu nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.” 3 - Sobre o pão a ser quebrado: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela vida e pelo conhecimento que nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.” 4 - Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora semeado sobre as colinas e depois recolhido para tornar-se um, assim das extremidades da terra seja unida a ti tua igreja (assembléia) em teu reino; pois tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém. 5 - Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: não deis as coisas santas aos cães!

Nesta fase, destacaram-se, também, Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Filon de Alexandria e Paulo de Tarso. Pode-se dizer que os dois últimos colocaram a pedra fundamental da “filosofia cristã”, com a explanação da identidade entre Logos, Verbo e Cristo, conforme você estudou na Unidade 1. Além disso, enfatizaram a distinção entre o Judaísmo e o evangelho cristão, e saíram a propagá-lo.

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Paulo de Tarso, especialmente, empreendeu jornadas missionárias, percorrendo a Grécia, a Ásia Menor, a Itália, etc., convertendo principalmente judeus como ele próprio.

É importante grifar que, por volta do ano 50, começaram as perseguições aos cristãos, e as hostilidades vinham de toda parte: do povo comum, porque o politeísmo tradicional dava uma segurança maior ao homem em relação à imprevisibilidade dos fenômenos naturais, ao sucesso do cultivo da terra e à solução das situações cotidianas, já que, para cada elemento da natureza, havia uma divindade correspondente; de parte dos judeus, já que o Cristianismo era uma seita judaica que crescia e se afastava de suas raízes, o Velho Testamento; da população romana culta, que entendia o cristianismo como uma “superstição nova e maléfica”, que envolvia práticas de feitiçaria e que era própria da população; e, pelo império, acusados de ateísmo, por não reconhecer o absolutismo da majestade imperial. Tudo isso justificava a violenta perseguição do Estado aos cristãos.

As perseguições contra os cristãos - Teresio Bosco Plínio não demorou em aplicar a interdição das hetérias num caso particular que lhe foi apresentado no outono de 112. A Bitínia estava cheia de cristãos: «É uma multidão de gente de todas as idades, de todas as condições, espalhada pelas cidades, nas aldeias e nos campos», escreve ao Imperador. Continua dizendo que recebeu denúncias dos construtores de amuletos religiosos, perturbados pelos cristãos que pregavam a inutilidade de tais bugigangas. Instituíra uma espécie de processo para conhecer bem os fatos, e tinha descoberto que eles costumavam «reunir-se num dia fixo, antes do levantar-se do sol, cantar um hino a Cristo como a um deus, empenhar-se com juramento a não cometer crimes, a não cometer nem roubos, nem assaltos, nem adultérios, e a não faltar à palavra dada. Eles têm também o hábito de reunir-se para tomar a própria refeição que, apesar dos boatos, é alimento ordinário e inócuo». Os cristãos não tinham cessado as reuniões nem mesmo depois do edito do governador que insistia na interdição das hetérias. Continuando a carta (10,96), Plínio refere ao Imperador que nada vê de mal nisso tudo. A recusa, porém, de oferecer incenso e vinho diante das estátuas do

Figura 2.2 - Antigo símbolo cristãoFonte: Cristianismo ([200- ?]).

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Imperador parece-lhe um ato sacrílego de desprezo. A obstinação dos cristãos parece-lhe «irracional e tola». Parece claro, da carta de Plínio, que caíram as absurdas acusações de infanticídio ritual e incesto. Permanecem a de «recusarem a oferecer culto ao Imperador» (portanto de lesa majestade), e da formação de hetérias. O Imperador responde: «Os cristãos não devem ser perseguidos por ofício. Sendo, porém, denunciados e reconhecidos culpados, é preciso condená-los». Em outras palavras: Trajano encoraja a fechar um olho sobre eles: são uma hetéria inócua como os barqueiros do Sena e os vendedores de vinho de Lion. Uma vez, porém, que estão praticando uma «superstição irracional, tola e fanática» (como é julgada por Plínio e outros intelectuais do tempo, como Epíteto, e continuam a recusar o culto ao imperador (e, portanto, consideram-se «estranhos» à vida civil), não se pode fazer de conta que não há nada. Quando denunciados, sejam condenados. Continua então (embora de forma menos rígida) o “Não é lícito ser cristão”. Vítimas desse período são seguramente o bispo Simeão de Jerusalém, crucificado quando tinha 20 anos de idade, e Inácio Bispo de Antioquia, levado a Roma como cidadão romano, e aí justiçado. A mesma política, em relação aos cristãos, é exercida pelos imperadores Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161). [...]

Fonte: Bosco (200- ?]).

A segunda fase, que se passa aproximadamente durante o séc. II, é dedicada às primeiras estruturações da doutrina com vistas à defesa do cristianismo contra o paganismo e o gnosticismo, pelos padres apologistas – assim denominados, justamente por fazerem a apologia dos ensinamentos evangélicos, para a qual utilizaram argumentos filosóficos.

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Nesta fase, o Cristianismo foi fortemente atacado por sábios pagãos, que confrontavam a nova seita, na opinião deles, repleta de misticismo, com o vigor intelectual da tradição greco-romana. As apologias cristãs representavam um retrocesso ao mito e ao misticismo, banidos pela racionalidade filosófica séculos antes e que agora ameaçavam voltar.

Um dos críticos cultos do Cristianismo foi Luciano de Samosata, escritor de estilo satírico cujo tema recorrente era a crítica aos cristãos, que ele fazia, em língua grega. Escreveu uma obra denominada “A morte do peregrino”, na qual ridiculariza os cristãos pela sua resignação estóica ao sofrimento e à perseguição, e pelo seu amor fraternal.

Outro crítico foi Celso, cuja obra mais citada, “Discurso Verdadeiro”, foi dedicada à defesa da religião pagã e à crítica da visão messiânica, à moral e à fé cristã. Em resposta a Celso, no século seguinte, Orígenes escreve a obra “Contra Celso”, na qual critica os filósofos por alterarem seus argumentos e voltarem atrás constantemente em suas afirmações, o que mostra a inverdade de seu discurso. Contra o habilidoso discurso, o cristianismo apresenta evidências do criador e sua criação, contra a adoração de vários deuses. Celso defende o Deus único. Observe a citação que segue:

Quanto mais eficaz e superior a todas essas fantasias é a persuasão, pelo que é visível, da boa ordem do mundo e a adoração do artífice único de um mundo que é uno, em harmonia com a realidade total; que, portanto, não pode ser obra de diversos demiurgos, nem ser mantido por diversas almas que movem a totalidade do céu. (ORÍGENES, 2004, p. 23).

Figura 2.3 - Pentagrama, antigo símbolo pagãoFonte: Leitte (200- ?]).

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No entanto, Orígenes utiliza uma série de recursos da filosofia grega, como será visto mais adiante, na seção sobre a Patrística Grega.

De um modo ou de outro, os escritos dessa fase estavam concentrados, principalmente, na resposta às acusações de ateísmo, insubordinação, e à rejeição do conhecimento pagão. A esse respeito, Santidrián (1997, p. 36) afirma que:

Os textos dos apologistas reúnem, assim, os argumentos e rumores que correm contra os cristãos e os rebatem contundentemente. Dirigem-se, sobretudo, contra três tipos de argumentos: a) contra a acusação de que os cristãos representavam um perigo para o Estado. Chamam a atenção sobre a maneira de viver dos cristãos: séria, austera, casta e honrada; cidadãos de Roma, como os outros; b) demonstram o absurdo e a imoralidade do paganismo e de suas divindades. Defendem a unidade de Deus, a divindade de Cristo e a ressurreição do corpo; e c) avançam mais, afirmando que a filosofia não foi capaz de encontrar a verdade, a não ser fragmentariamente. O cristianismo, ao contrário, possui toda a verdade, porque o Logos, que é a mesma razão divina, veio ao mundo por Cristo.

Nesse tempo, quanto mais o cristianismo crescia, mais acirrado ficava o conflito com os seguidores do Império. Por um lado, era necessário obedecer ao Império e justificar essa obediência sem ser infiel às escrituras sagradas. Por outro lado, era preciso estruturar a doutrina, estabelecendo seus cânones e elaborando um discurso lógico, não apenas baseado na fé, para converter ao Cristianismo as pessoas mais importantes do Império, ilustradas pela ciência e pela filosofia helênico-romana.

Além disso, era preciso combater o gnosticismo e outros heréticos. O gnosticismo ameaçava particularmente o pensamento filosófico-teológico, porque utilizava explanações no estilo platônico – “aliás, repelidas por Plotino, que escreveu um dos tratados de suas Eneadas ‘contra os gnósticos’ – com doutrinas cristãs e tradições judaicas e orientais”. (MORA, 1994, p. 319).

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Figura 2.4 - O limiar entre o céu e a TerraFonte: Universum... (2010).

Há várias formas de gnosticismo, mas o que interessa neste contexto é aquele que se vinculou ao Cristianismo e tinha caráter aristocrático, dirigindo-se às camadas mais cultas da sociedade romana. Esse gnosticismo caracterizava-se por uma compreensão de Deus, desvinculada da razão e fundada na “iluminação direta”, ou na revelação; por misturar elementos orientais, místicos, helênicos e bíblicos; por rejeitar o Velho Testamento e deturpar o evangelho; e por explicar que “esse mundo, que é caracterizado pelo mal, não foi feito por Deus, mas sim por um demiurgo malvado”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 406).

Em certo aspecto, a Patrística começou a tomar corpo justamente porque foi atacada pelas contundentes críticas dos sábios pagãos, e as Apologias dos primeiros pensadores cristãos foram escritas em resposta a essas críticas. Havia um contexto de debate entre a cultura pagã tradicional e os defensores do Cristianismo – uma nova ideologia religiosa que exigia uma profunda reforma cultural – , em disputa do convencimento, ou conversão do Império Romano; disputa vencida pelo Cristianismo.

Entre os pensadores mais importantes desta segunda fase da Patrística, estão Justino de Roma, Teófilo de Antioquia, Tertuliano de Cartago e Clemente de Alexandria.

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Por fim, a terceira fase, quando propriamente se desenvolveu a Patrística, vai do séc. III ao séc. VIII, e é considerada a fase de consolidação do sistema doutrinário cristão, sob forte influência do platonismo e do estoicismo.

É possível que, sem a incorporação de algumas bases gregas, os doutores da Igreja tivessem demorado mais para estabelecer e disseminar a doutrina, ou quem sabe, não tivessem logrado êxito nessa intenção. Porém esse foi um árduo trabalho, visto que, desde sua origem na Escola de Mileto, por volta do séc. VII a.C., até a Escola Neoplatônica de Atenas, posteriormente fechada por um Édito de Justiniano em 529 d.C., a tradição filosófica grega sempre esteve fundada na indagação racional, plenamente livre de limites externos, e cujas conclusões sustentavam organicidade própria e necessidade interna; enquanto que o pensamento cristão estava fundado nas verdades da fé e suas conclusões que, de certa forma, já estão reveladas nas escrituras sagradas. E, por mais brilhantes que fossem os escritos patrísticos, não se pode dizer que tenham sido fruto da pesquisa livre, tendo podido desenvolver-se a despeito da doutrina e de seus dogmas.

Mesmo assim, muitos aspectos da filosofia grega, sobretudo as ideias platônicas, tornaram-se bases consistentes para a fundamentação da ontologia cristã, que defendia, justamente, a oposição entre o verdadeiro “ser” de Deus, que é uno, eterno, estável, pleno, e sua cópia, o “ser” do homem, que é dividido, finito, instável e incompleto. Respectivamente, no pensamento platônico, é o mundo arquetípico das ideias, da alma, em oposição ao mundo da matéria, das aparências, das opiniões, do corpo; e, respectivamente, no pensamento de Agostinho, é a “Cidade de Deus” e a “Cidade dos Homens”.

A Patrística como um todo teve uma profunda influência do platonismo, especialmente da segunda investida neoplatônica de Plotino, no séc.III.

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Nascido no Egito, aproximadamente em 205 d.C., Plotino estudou em Alexandria e foi um dos principais divulgadores das ideias platônicas. Para Plotino, a filosofia ultrapassava a discussão moral, epistemológica e a especulação abstrata, para propor uma explicação de como todos os seres são criados a partir do Uno – o Bem, indescritível e indefinível. Sendo indefinível, não se pode, também, compreendê-lo, pelo menos não com o estudo. Somente com a contemplação, com o arrebatamento, pode-se compreender o Uno. Esta ideia será lembrada, quando estudarmos Agostinho com seu “Crer para compreender e compreender para crer”.

Nesse sentido, pode-se dizer que o propósito fundamental de Plotino foi estabelecer uma relação mais direta entre o Uno criador e o múltiplo criado. Esta relação se estabelece, segundo ele, por meio da manifestação do princípio originário e ordenador do mundo, e da alma do mundo, na qual estão incluídos os homens.

Plotino, assim como Platão, acredita que a alma humana está aprisionada ao corpo e seu propósito mais nobre é fazer a “ascese”. Porém, diferente de Platão, acredita que é possível realizar a reintegração da alma ao Uno, por meio da transcendência ou “união extática”, estando (a alma) ainda ligada ao corpo. O “êxtase” de Plotino não tinha o mesmo sentido de “graça divina”, como queriam alguns padres, mas era fruto do esforço voluntário da alma humana.

Observe a citação que segue: são palavras de Plotino sobre a relação entre o Uno e o homem:

Tu te acresces, portanto, a ti mesmo, depois de ter jogado fora o resto: depois de tal renúncia, o “Todo” se te faz presente; mas, se se faz presente para quem sabe renunciar, ele, no entanto, não aparece por nada para quem fica com as outras coisas; não creias que ele “vem para ficar a teu lado”, mas, quando ele não está junto de ti, foste tu quem foi embora. E, tendo ido embora, tu não foste embora d’Ele (pois Ele ainda está presente ali) nem foste para qualquer outro ponto, mas sim, mesmo permanecendo presente, te voltastes para a parte oposta (para o lado das coisas). (REALE; ANTISERI, 1990, p. 349).

Figura 2.5 - PlotinoFonte: Plotino ([20-- ?]).

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De acordo com Reale e Antiseri (1990), Plotino foi a última grande voz da antiguidade greco-pagã.

Um dos pensadores mais conhecidos desta longa fase é Agostinho de Hipona. Filho de pai pagão e de mãe cristã, Agostinho fez seus primeiros estudos clássicos em retórica e gramática, e, embora tenha sido fortemente influenciado pela mãe, viveu no paganismo até sua conversão no ano 387, como consta em suas “Confissões” (SANTIDRIÁN, 1997, p. 14). Este pensador será retomado mais adiante, na seção sobre a Patrística Latina.

Depois de Agostinho, a Patrística manteve-se por mais dois séculos, porém não mais com o mesmo vigor. Houve uma espécie de esgotamento das questões filosófico-teológicas tratadas até aquele momento, e, como se não bastasse a apatia interna, havia o abalo social e político pela decadência do poderoso Império Romano diante da sua ingovernabilidade, da falência do sistema escravista, do nascimento do poder feudal e das invasões bárbaras. Mesmo assim, pela crescente influência religiosa, e diante da

fragmentação política da sociedade feudal, a Igreja passou a exercer importante papel de unificação da vida social.

Vale lembrar que, principalmente em função da instabilidade político-social, muitos doutores cristãos do final desta terceira fase da Patrística dedicaram-se ao Monaquismo, em que se destaca São Bento, conhecido como “Pai dos Monges do Ocidente”, e cujas regras monásticas prevaleceram durante séculos.

Figura 2.6 - Imagem representativa de São Bento de NúrciaFonte: Fernandez (2011).

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Ao depararmos com o termo Monaquismo, de imediato nos surge a ideia de isolamento e de alheamento do mundo. Com efeito, o Monaquismo é um sistema de vida de consagração à causa divina, que tenta chegar a Deus passando pelo recolhimento e uma vida de dedicação e interiorização.

A esta palavra associa-se uma outra - monge - que deriva do grego monos, (único, só). Etimologicamente, designa aquele que vive solitário, dedicando a sua vida ao serviço de Deus, dedicação essa assumida livremente e que pressupõe o cumprimento das normas estabelecidas numa regra, baseando-se sempre nos conceitos de castidade, pobreza e obediência. [...]. Desde os primórdios da Cristandade que os ideais livremente assumidos de virgindade e castidade em louvor do Reino de Deus foram motivo de admiração. Essa escolha era feita “por fiéis de ambos os sexos que abraçaram uma vida de plena imitação de Cristo e que, para além dos votos referidos, praticavam a oração e a mortificação paralelamente com obras de misericórdia”.

Como causas deste procedimento, poderemos referir a “repugnância pela imoralidade reinante” e, sobretudo para as mulheres, o fato de esse tipo de vida lhes proporcionar certa emancipação, tendo em conta a servidão social que o matrimônio assumia na época.

Fonte: Vargas (2003).

Entre os escritores cristãos da terceira fase da Patrística, é possível citar os nomes Orígenes de Alexandria, Cipriano de Cartago, Gregório de Nissa, Jerônimo, Plutarco, Proclo, o mais conhecido deste grupo que é Agostinho de Hipona, os Padres Capadócios, Cirilo de Alexandria, Papa Gregório I, Boecio, João Damasceno, entre tantos outros que viveram e teorizaram nesses cinco séculos, entre o séc. III e o início da Idade Média.

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Também é importante lembrar o papel fundamental das grandes escolas neoplatônicas que, desde o período clássico e helênico, atuaram como centros de conhecimento artístico, filosófico e científico, às quais estavam ligados os pensadores que se envolveram com a questão do Cristianismo, seja criticando-o ou defendendo-o. Umas mais antigas que outras, umas mais voltadas ao conhecimento pagão, e outras voltadas ao desenvolvimento teórico doutrinário teológico, estas escolas fizeram parte da Patrística e da história do pensamento cristão. Reale e Antiseri (1990, p. 350) citam as Escolas Neoplatônicas. Estão na sequência:

� primeira escola de Alexandria, fundada por Amônio Sacas, em 200 d.C., da qual Plotino foi aluno. Alexandria, cidade fundada em 331 a.C. por Alexandre, no Egito, já era um reconhecido centro cultural, abrigando a famosa biblioteca. Embora estivesse estreitamente ligada à tradição metafísica grega, acabou tornando-se um dos mais antigos centros de estudos do Cristianismo;

� a escola fundada por Plotino em Roma, no ano de 244, que, provavelmente, seguiu o traço metafísico e especulativo de seu mestre Amônio, mantinha distinção em relação à “religião positiva” e às “práticas mágico-teúrgicas”, isto é, dedicadas aos rituais e ao culto de Deus;

� escola da Síria, fundada por Jâmblico pouco depois do ano 300. Diferente da anterior, esta escola destacou-se por buscar a síntese entre o sistema filosófico e o religioso, não apenas cristão, como também o politeísta;

� escola de Pérgamo, fundada em 340 por Edésio, que fora discípulo de Jâmblico, mas que não fez desta uma expressiva escola nos moldes de seu mestre;

� escola de Atenas, fundada por Plutarco entre os séculos IV e V, e fechada pelo édito de Justiniano em 529. Pode-se dizer que foi o último reduto do helenismo a sobreviver no mundo cristão;

Saiba mais sobre as Escolas Neoplatônicas, consultando a fonte bibliográfica citada no Saiba Mais.

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� segunda Escola de Alexandria, que, na verdade, é a primeira, porém renascida. Um de seus maiores pensadores foi Amônio (filho de Hermias) com sua obra dedicada ao comentário de Aristóteles. E importa grifar que os estudiosos dessa escola tendiam à erudição e estudavam Aristóteles como uma introdução ao pensamento de Platão; e

� as Escolas de Alexandria e Atenas passaram por dois momentos: o de sua fundação, e, depois de decaírem, o de seu ressurgimento, mantendo-se atuantes até o séc. VI, aproximadamente.

Até aqui foi apresentada a divisão da Patrística numa perspectiva histórica, pelo critério cronológico, mas é possível estudá-la a partir de outros critérios. Os estudiosos também identificam duas linhas de pensamento distintas na Patrística, que agrupa os filósofos-teólogos deste período em função da forma de sua argumentação, do método e dos recursos verbais e conceituais que aplicaram em suas teorias. São elas: a Patrística Grega e a Patrística Latina. Assunto das próximas seções.

Seção 2 – A Patrística grega e a continuidade entre o mundo grego e o cristão

Os pensadores da Patrística grega, na sua maioria, tiveram formação na cultura helênica e viveram no paganismo até se converterem ao Cristianismo, por motivos diversos. Há que se considerar o contexto, a multiplicidade de sistemas filosóficos que já proliferavam desde o séc. I a.C. e o inevitável ceticismo que surgia a partir da conclusão de que nenhum dos sistemas existentes poderia levar o homem à felicidade. Isso pode ter feito os pensadores da época tornarem-se receptivos ao sagrado. No início, o Cristianismo não passava de mais uma das seitas orientais que invadiam o mundo helenizado; vinha pregando a liberdade, a igualdade entre os homens, a paz e a salvação e encontrou o sincretismo e as dissidências típicas desse período de transição. O sagrado, de cuja separação nascera a filosofia, volta, então, a orientar o pensamento vigente.

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Figura 2.7 - Paulo e a cegueira de Barjesus, o magoFonte: Pedreiro (2007).

Especialmente a partir da conversão dos homens cultos e da necessidade de estruturar a doutrina cristã frente à cultura pagã, esses doutores pagãos convertidos lançaram mão da filosofia para elaborar o discurso doutrinário da nova religião. Aplicaram os esquemas conceituais, a dialética e a lógica do pensamento grego como instrumentos para dar organicidade interna e força à verdade cristã, que, até aquele momento, estava mais baseada no critério da “revelação” divina do que no critério da “elaboração” por meios humanos. Esses homens levaram para dentro de uma doutrina que estava nascendo no ocidente os modelos e os esquemas tradicionais da cultura pagã. Por esse motivo, afirma-se que a Patrística grega promove a continuidade entre a cultura pagã para a cristã.

Doutores da Patrística Grega como Justino, Taciano, Antenágoras, entre outros, enxergavam uma continuidade entre a filosofia e o Novo Testamento. O esforço especulativo dos filósofos gregos na busca do bem supremo, da felicidade e do retorno à essência por meio do conhecimento científico-filosófico foi uma etapa necessária para tornar os homens capazes de receber a “boa nova”, a verdade revelada do Cristianismo. Desse entendimento decorre a convicção de que é possível conhecer a Deus a partir do conhecimento da obra de Deus, isto é, do conhecimento do mundo natural, exterior, por meio da razão humana. Há, então, uma sabedoria cristã.

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A seguir, leia o fragmento do texto “Sobre a ressurreição dos mortos” de Antenágoras de Atenas, um dos maiores apologistas gregos do séc. II. Observe como parece que ele buscou inspiração na ironia socrática, para elaborar seu ensinamento:

Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são anteriores aos raciocínios a respeito da verdade. Assim é que o lavrador não pode convenientemente lançar as sementes na terra, se antes não arrancar todo o mato e o que pode prejudicar a boa semente; o médico também não pode aplicar medicamentos de saúde ao enfermo, se não limpa antes o mal interno ou não detém o mal que procura infiltrar-se; assim quem procura ensinar a verdade não poderá, por mais que fale dela, persuadir a ninguém, enquanto uma falsa opinião esteja agarrada à mente dos ouvintes e se oponha aos raciocínios. Nós também, visando justamente à utilidade, por vezes antepomos os raciocínios em defesa da verdade aos raciocínios a respeito da verdade. Fonte: Sobre... ([200- ?]).

Você deve lembrar que Sócrates utilizava a ironia com seus discípulos, a fim de purgar as opiniões, ou falsas verdades, de modo que o aprendiz estivesse preparado para “dar à luz” novas e verdadeiras ideias.

Segundo Étienne Gilson, Antenágoras busca justificar o estudo do conhecimento pagão e a aplicação da razão na justificação da crença. Observe:

É preciso nos informarmos sobre Deus com “Deus”, isto é, na Revelação; mas, feito isso, podemos refletir sobre a verdade revelada e interpretá-la com auxílio da razão. É o que Antenágoras chama, no capítulo da “Súplica”, de “demonstração da fé. (GILSON, 2007, p. 18).

A Patrística grega desenvolveu-se em torno de duas grandes escolas: de Alexandria e de Antioquia. Elas representavam duas linhas distintas de entendimento e interpretação das sagradas escrituras: enquanto a primeira fazia uma leitura mais alegórica da bíblia, a outra fazia uma leitura mais literal.

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São vários os representantes da Patrística grega. Nesta oportunidade, vamos abordar apenas dois deles: Justino Mártir e Orígenes de Alexandria. O codinome “Mártir” não é apenas pelo fato de Justino ter sido preso e decapitado pelo governo de Roma, mas por ter estudado profundamente o estoicismo, admirado a vida austera dos cristãos, bem como seu martírio diante das perseguições e torturas, que suportavam com resignação. Veja a Figura 2.8.

Figura 2.8 - Imagem de Justino Mártir (107 - 165).Fonte: Papa... (2007).

Justino é um dos apologistas mais conhecidos. De suas obras, conservam-se três: “Diálogo com o judeu Trifão”, um diálogo em que ele próprio explica ao sábio judeu como a mensagem de Cristo é uma continuidade dos ensinamentos do Velho Testamento; “Apologia I”, dirigida ao Senado Romano e ao Imperador Antonino Pio; e a “Apologia II”, escrita por ocasião da morte de três cristãos que professaram sua fé.

Nascido em uma família pagã, como a maioria de seus contemporâneos, Justino teve formação tradicional, até converter-se ao Cristianismo. Estudando os profetas do Velho Testamento, a quem buscara especialmente para saber sobre a questão da imortalidade da alma, Justino chegou ao Cristianismo.

Explicou a ligação da filosofia com o Cristianismo, por meio do argumento do Logos, buscado por filósofos gregos e revelado aos cristãos. Embora buscassem explicar o Logos, bem como a união com ele, com a palavra criadora, o artífice racional, esses filósofos não chegavam a um consenso e não conseguiam atingir a felicidade plena. Em função disso, Justino afirma que

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os filósofos gregos aproximaram-se da verdade de Deus por meio das verdades especulativas intuídas. Porém, somente os cristãos conheciam o verbo-logos: “O Logos se fez carne e habitou entre nós” (Jô 1,14).

Embora o apóstolo João fale do “Verbo que ilumina todo homem que vem ao mundo, foi no estoicismo que Justino aprendeu que o Lógos é a razão imanente do mundo, a lei que o rege e a força que o anima. Neste aspecto, o Lógos é chamado Logos spermatiks ou razão seminal. Cada homem tem seu lógos particular, participa do lógos total, animado, dirigido por ele. Assim, em Cristo-Logos, os cristãos têm a plenitude do conhecimento e da revelação (10,1); “A nossa doutrina supera todo ensinamento humano porque temos o Lógos em toda a sua inteireza em Cristo, que foi manifestado por nós, corpo, razão e alma. O Lógos é criador de sua própria humanidade. Cristo, Filho de Deus, é a Lei eterna e a nossa aliança para o mundo inteiro. O tema central de Justino é o plano criador e salvífico de Deus (a economia), manifestado e realizado por Cristo-Lógos. No interior deste plano divino, encontra seu lugar a sabedoria dos antigos filósofos. Sua premissa básica é que a razão humana (lógos) é uma participação do Lógos divino: em cada homem há “uma semente”, sperma do Lógos, resultante da ação do “Verbo que dá a semente” (7,3; 13,3). Fonte: Diocese de Anápolis (2011b).

Observe na citação que segue, do Capítulo décimo da II Apologia de Justino, a interessante comparação que ele faz entre Cristo e Sócrates:

Com efeito, tudo o que os filósofos e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigação e intuição, conforme a parte do Verbo que lhes coube. 3Todavia, como eles não conheceram o Verbo inteiro, que é Cristo, eles freqüentemente se contradisseram uns aos outros. 4Aqueles que antes de Cristo tentaram investigar e demonstrar as coisas pela razão, conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais como ímpios e amigos de novidades. 5Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia aqueles que a cidade considerava como deuses. 6O fato é que, expulsando

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da república Homero e outros poetas, ele ensinou os homens a rejeitar os maus demônios, que cometeram as abominações de que falam os poetas, e, ao mesmo tempo, os exortava ao conhecimento de Deus, para eles desconhecido, por meio de investigação racional, dizendo: “Não é fácil encontrar o Pai e artífice do universo, nem, quando o tivermos encontrado, é seguro dizê-lo a todos.” 7Foi justamente o que o nosso Cristo fez por sua própria virtude. 8Com efeito, ninguém acreditou em Sócrates, até que ele deu a sua vida por essa doutrina; em Cristo, porém, que em parte foi conhecido por Sócrates, – pois ele era e é o Verbo que está em tudo, e foi quem predisse o futuro através dos profetas e, feito de nossa natureza, por si mesmo nos ensinou essas coisas – em Cristo acreditaram não só filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas totalmente ignorantes, que souberam desprezar a opinião, o medo e a morte; porque ele é a virtude do Pai inefável, e não um vaso de humana razão (JUSTINO, 1995).

Segundo Justino, há “algo como uma semente do Verbo Divino” nos filósofos gregos, mas sem que seja alcançado inteiramente por eles. Prova disso é que há contradições entre esses pensadores pagãos, que se dividem e confundem em vários sistemas, enquanto, na verdade, sua filosofia é uma só. Porém, eles não sabem disso.

Influenciado pela filosofia de Platão, que considerava um caminho para o conhecimento de Deus, Justino acreditava na possibilidade da alma reintegrar-se a Deus por meio do exercício filosófico. No entanto, nem tudo Justino conseguiu absorver de Platão. É o caso da questão da alma incorruptível e do corpo corruptível: esta era uma que não se explicava para ele:

Tudo o que existe fora de Deus [...] é corruptível por sua natureza, pode desaparecer e não existir mais. Somente Deus é incriado e incorruptível – e exatamente por isso é que é Deus –, ao passo que tudo o que vem dele é criado e corruptível. Eis porque as almas morrem e são punidas; se elas não fossem corruptíveis, não pecariam. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 409).

Justino explica que o corpo e a alma do homem não estão unidos para a eternidade, mas por circunstância criada pela vontade de Deus. Embora a natureza humana participe do Lógos por meio

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da alma e do espírito que habita nela, ela não é idêntica ao verbo, mas é criada a partir dele. Porém, quando a alma se desliga do corpo, deixam de existir o corpo, a alma e o homem.

Sobre este tema, Reale e Antiseri (1990, p. 408) citam uma passagem da segunda Apologia de Justino, que resume perfeitamente a sua posição de cristão em relação à filosofia:

Eu sou cristão, glorio-me disso e, confesso, desejo fazer-me reconhecer como tal. A doutrina de Platão não é incompatível com a de Cristo, mas não se casa perfeitamente com ela, não mais do que a dos outros, dos estóicos, dos poetas, e dos escritores. “Cada uma delas viu, do Verbo divino que estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em relação com a sua natureza, chegando desse modo a expressar uma verdade parcial.” Mas, à medida que se contradizem nos pontos fundamentais, mostram que não estão de posse de uma ciência infalível e de um conhecimento irrefutável. “Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a nós, cristãos.” Com efeito, depois de Deus nós adoramos e amamos o Logos, nascido de Deus, eterno e inefável, porque ele se fez homem por nós, para curar-nos dos nossos males tomando-os sobre si. Os escritores “puderam ver a verdade de modo obscuro graças à semente do Logos que neles foi depositada”. Mas uma coisa é possuir uma semente e uma semelhança proporcional às próprias faculdades e outra é o próprio Logos, cuja participação e imitação deriva da Graça que dele provém.

Para Justino, os cristãos vivem conforme o Lógos, ainda mais inteiramente do que os filósofos gregos, já que a razão dos cristãos leva-os a um resultado definitivo. A “única filosofia segura e útil” é o Cristianismo, portanto os cristãos são filósofos por natureza, conclui Justino.

Outro personagem de grande importância para a Patrística grega foi Orígenes de Alexandria. Nasceu em Alexandria, filho de pai cristão, que viu ser perseguido e morto. Orígenes, depois da morte do pai e ainda jovem, começou a se dedicar vigorosamente ao estudo e ao ensino, até ser preso e torturado até a morte, por ordem do Imperador Décio. Foi aluno de Clemente de Alexandria e, mais tarde, pelo que tudo indica, foi de Amônio Sacas. Em sua atividade de professor manteve a linha da Escola de Alexandria.

Sobre a linha da escola de Alexandria, destacam-se os seguintes itens: a) primeiro, o aprendiz deveria dedicar-se ao exercício da dialética; b) em seguida, deveria dedicar-se ao estudo das ciências da natureza; c) depois, à ética e às virtudes morais (prudência, temperança, justiça e piedade); d) só então, o aprendiz poderia prosseguir e aprender a teologia e a metafísica.

Fonte: Otero (2003).

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Figura 2.9 - A tortura de OrígenesFonte: Dicionário... ([20-- ?]).

Segundo relatos, Orígenes é autor de uma extensa obra, que pode ser dividida em quatro blocos: obras bíblicas e exegéticas, entre elas uma edição da bíblia – Hexapla; obras teológicas, consideradas a primeira tentativa de sistematização teológica, entre as quais se destaca Sobre os Princípios, obras Apologéticas, das quais restou apenas o livro Contra Celsum; e, obras ascéticas, basicamente dedicadas aos temas da oração e do martírio. (SANTIDRIÁN, 1997, p. 432-433).

Orígenes dedicou sua vida às suas convicções, de modo que seu testemunho e pensamento foram motivo de grande polêmica entre os doutores e padres da Igreja até o séc.V. O Concílio de Constantinopla em 553 rejeitou o conjunto do seu pensamento, sobretudo a doutrina da reencarnação, declarada herética pela assembléia dos bispos. Assim, a referência ao seu pensamento foi evitada por séculos na Igreja.

A questão da reencarnação é uma das questões controversas. Há quem defenda que Orígenes referia-se à “transmigração” da alma humana por sucessivos mundos até seu reencontro final com Deus, e não propriamente em reencarnação, o que implicaria manutenção da identidade do sujeito através das sucessivas vidas e acúmulo de pecados -- karma.

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Segundo Orígenes, conforme o tamanho do distanciamento que a alma estabeleceu de Deus, e conforme seu esforço em tornar a ligar-se a Deus, a alma volta a nascer até que esteja purificada o bastante para permanecer em seu estado originário. Ele acreditava que toda alma racional, por ter sido tocada pelo espírito divino, pode captar o significado do evangelho e vislumbrar a luz divina, mas não pode conhecer Deus n’Ele mesmo. Deus está fora do mundo criado e não pode ser captado pela alma que está inserida entre as coisas criadas e corruptíveis. Observe as palavras de Orígenes, na citação que segue:

Em sua realidade, Deus é incompreensível e inescrutável. Com efeito, podemos pensar e compreender qualquer coisa de Deus, mas devemos crer que ele é amplamente superior àquilo que dele pensamos [...]. Por isso, sua natureza não pode ser compreendida pela capacidade da mente humana, mesmo que seja a mais pura e a mais límpida.(REALE; ANTISERI, 1990, p. 413).

Então, como é possível conhecer algo de verdadeiro sobre Deus?

Nessa questão, Orígenes segue as orientações de São Paulo, que apresentava a possibilidade do conhecimento humano em três níveis: sabedoria divina; conhecimento das coisas (gnosis); e fé.

Todos os cristãos crêem, pois, nas mesmas coisas, mas não da mesma maneira. O homem se compõe de um corpo, de uma alma e de um espírito. Do mesmo modo, a Igreja se compõe de simples fiéis, que se atêm à fé nua e crua na verdade do sentido histórico das Escrituras; de cristãos mais perfeitos, que, graças à interpretação alegórica dos textos, atingem a “gnose”, isto é, no sentido bíblico da palavra “conhecer”, um conhecimento que seja uma união (Jô 14, 4; 17); enfim, cristãos mais perfeitos ainda, que alcançam o “sentido espiritual” das Escrituras e, por uma contemplação superior (theôria), já discernem na própria Lei divina a sombra da beatitude vindoura. (GILSON, 2007, p.51).

Figura 2.10 - Orígenes de Alexandria (185-253)Fonte: Orígenes (2009).

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Orígenes afirmava que é possível fazer a ascese (e aqui nos lembra Platão) por meio de um processo gradativo que inicia com a dialética, passa ao conhecimento das coisas sensíveis, e às verdades intelectuais e morais. O problema, segundo ele, é que alguns homens se contentam com essa luz que ainda não é força maior (o que pode ser uma referência aos filósofos gregos).

Somente os que são tocados pelo “calor divino” é que podem, realmente, vê-lo.

É exatamente nisso que difere a gnose pagã do cristianismo que Orígenes chama de “verdadeira gnose”. E parece que nisso ele concorda com Clemente: não é possível ser verdadeiramente cristão sem o conhecimento; e não se pode ser verdadeiramente gnóstico sem a fé. Para Clemente de Alexandria, há três testamentos para o cristão: um Novo Testamento, o de Cristo, que os Apóstolos registraram, e dois Velhos Testamentos: o judaico e o grego. “A lei aos judeus; a filosofia aos gregos; a Lei, a filosofia e a fé aos cristãos”(GILSON, 2007, p. 45).

Observe a seguinte paráfrase de uma passagem da obra Estrômates (VI, 15), de Clemente:

O filósofo pagão é uma árvore bravia; consome pouco alimento mas não produz frutos. Sobrevindo um jardineiro que a enxerte com um ramo de oliveira, essa árvore precisará de mais alimento, mas dará azeite. Deus é esse jardineiro, que enxerta a fé na razão do homem. [...] Mas a melhor das enxertias se faz de borbulha. Retira-se um broto com seu fragmento de casca e substitui-se-o por um broto da árvore que se quer enxertar. É esse o enxerto que produz o gnóstico digno desse nome. O olho da fé substitui, por assim dizer, o da razão natural, e o filósofo passa a ver por ele. (GILSON, 2007, p. 49).

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Orígenes é reconhecido, também, pelo uso do método alegórico na interpretação das Escrituras Sagradas, que ele afirmava conter sentidos extra-literais. Tal método fora aplicado anteriormente por Filon de Alexandria; era uma característica da Escola de Alexandria, e pode remontar à tradição grega de interpretação das narrativas míticas. E, como vimos anteriormente, Orígenes considera a interpretação alegórica das Escrituras uma condição de aperfeiçoamento do cristão.

Outra questão importante do pensamento de Orígenes é sua doutrina da “Apocatástase”, isto é, a afirmação de que tudo o que veio de Deus, voltará a Ele, e o “fim será exatamente igual ao princípio”.

Embora o “Gênesis” aponte um começo para o mundo em que vivemos, este mundo não é o primeiro nem será o último na criação divina, visto que ela é eterna. E, nessa sucessão de mundos, há certo progresso, no sentido do bem que extirpa o mal, da alma que busca o calor de Deus e de todos os seres que se dirigem naturalmente à sua origem primitiva. Sendo assim, há uma tendência natural a Deus, somente o livre arbítrio pode afastar o homem d’Ele.

Segundo Orígenes:

Devemos crer que toda essa nossa substância corpórea será retirada a tal condição quando toda coisa for reintegrada para ser uma coisa só e Deus for tudo em todos. Isso, porém, não acontecerá em um só momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de inumeráveis ordens constituídas por aqueles que progridem e, inimigos que eram, se reconciliam com Deus, chega-se ao último inimigo, a morte, para que também ela seja destruída e não haja mais inimigo. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 416).

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Com essa citação, é possível imaginar quanta polêmica Orígenes deve ter causado não apenas entre os doutores pagãos, mas também ente os padres da Igreja. Além disso, também é possível avaliar a influência que sua doutrina exerceu sobre as diversas seitas e religiões ocidentais até hoje.

Depois de Orígenes, a Patrística grega continuou com Eusébio de Cesaréia, Atanásio de Alexandria, os Padres Capadócios, entre outros, até João Damasceno, no séc.VII, considerado o último representante da Patrística grega. Ademais, a partir do séc. IV, a Patrística latina se afirma cada vez mais entre os padres da Igreja. Veja a Figura 2.11.

Padres Capadócios é o nome dado aos seguintes padres: Basílio Cesaréia; Gregório de Nissa, irmão de Basílio; e Gregório Nazianzeno. Segundo Werner Jaeger: Orígenes e Clemente haviam-se movido por esse caminho de altas reflexões, mas agora era preciso muito mais. Certamente, Orígenes havia dado sua teologia à religião cristã no espírito da tradição filosófica grega, mas aquilo que os Padres da Capadócia visavam em seu pensamento era uma civilização cristã total. E levavam para essa empresa a contribuição de uma vasta cultura, que é evidente em cada parte de seus escritos. [...] Graças à sua obra, o cristianismo ergue-se agora como o herdeiro de tudo o que parecia digno de sobreviver na tradição grega. Com isso, ele não apenas se fortalece e reforça sua posição no mundo civil, como também salva e dá nova vida a um patrimônio cultural que, em grande parte, sobretudo nas escolas retóricas da época, havia-se tornado uma forma vazia e adulterada de uma tradição clássica já ossificada.

Figura 2.11 - Padres Capadócios Fonte: San... (2007).

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Seção 3 – A Patrística latina e o antagonismo entre o mundo grego e o cristão

Denomina-se Patrística latina o pensamento filosófico-teológico que se desenvolveu entre o séc. IV e V, cujas características principais são: o latim como língua padrão e a negação da filosofia pagã como parte necessária da doutrina cristã.

Mais influenciados pela Escola de Antioquia do que pela de Alexandria, os latinos rejeitavam a interpretação alegórica das escrituras e davam maior importância ao contexto histórico e cultural onde elas foram escritas. Em passagens bíblicas que causavam constrangimento por seu obscurantismo, por exemplo, os latinos utilizavam como explicação outras passagens bíblicas que fossem mais claras; em vez de recorrer à alegoria. E, assim, exceto no que se refere ao Velho Testamento, que precisava de certa manipulação, sobretudo para demonstrar que a vinda de Cristo já havia sido anunciada naquele documento.

Figura 2.12 - Figura 2.12 - Documento Apócrifo do início da era cristãFonte: Os livros... ([200-?]).

É válido lembrar que os padres latinos elaboraram suas doutrinas sob os auspícios dos primeiros Concílios Ecumênicos. Portanto, praticavam a exegese fechada, obedeciam aos cânones recém estabelecidos ou em vias de sê-lo.

A palavra Apócrifo vem do grego Apokryphos e significa oculto ou não autêntico. Mas este termo é usado principalmente para designar os documentos do início da era Cristã, que abordam também a vida e os ensinamentos de Jesus, mas não foram inclusos na Bíblia Sagrada por serem considerados ilegítimos. A origem dos Livros Apócrifos (também chamados de Livros Gnósticos; do grego Gnosis, que significa Conhecimento) nos remete ao ano 367 d.C. Por ordem do Bispo Atanásio de Alexandria, que seguia a resolução do Concílio de Nicéia ocorrido em 325 d.C, foram destruídos inúmeros manuscritos dos primórdios do Cristianismo.

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Pode-se dizer que, inicialmente, antes de Agostinho, os padres da Patrística latina não absorveram significativamente a filosofia em suas doutrinas, e seus enfáticos discursos estiveram baseados apenas na fé fervorosa. Como exemplo de crítica à cultura pagã e às tentativas de conciliação entre fé e filosofia, pode-se citar a seguinte passagem de Minúcio Felix, autor do primeiro escrito apologético latino em favor dos cristãos:

E note-se bem que os filósofos afirmam as mesmas coisas em que cremos “não porque nós tenhamos seguido os seus passos, mas porque eles se deixaram guiar por uma leve centelha, que os iluminou com as pregações dos profetas sobre a divindade, inserindo um fragmento de verdade em seus sonhos”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 424).

São vários os representantes da Patrística latina. Nesta oportunidade, vamos abordar apenas dois deles: Tertuliano de Cartago e Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho.

Tertuliano, cujo nome completo é Quinto Septímio Florente Tertuliano, nasceu em Cartago, que era um importante centro cultural da África “latina” da época. Recebeu sólida formação em sua juventude e, aos vinte anos, dirigiu-se a Roma onde, segundo os historiadores, teria exercido a prática do Direito. Converteu-se ao cristianismo quando já tinha por volta de trinta anos de idade, sendo ordenado sacerdote logo em seguida. Porém, aproximadamente vinte anos depois, Tertuliano abandonou o cristianismo, seguindo uma seita ascética denominada Montanismo e constituindo, posteriormente, sua própria seita, o “Tertulianismo”, que perdurou até o séc. V. O Montanismo foi considerado uma seita herética pela Igreja.

O montanismo foi um movimento herético cristão iniciado por Montano por volta do ano 170. Também é denominado heresia dos frígios ou dos pepuzianos, para indicar a região de origem e o centro do movimento. As informações sobre tal movimento chegaram até nós, sobretudo mediante a vasta literatura antimontanista. Caracterizado por uma forte consciência entusiasta e extática (inspirada talvez em antigos cultos pagãos) e por um espiritualismo radical

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de fundo escatológico, o montanismo proclamava o advento do Paráclito (ou seja, do Espírito Santo) para guiar a Igreja, à espera da iminente parusia perfeita do Cristo. Em decorrência de uma fervorosa ação apostólica, o montanismo teve ampla difusão, sobretudo, a princípio, entre as mulheres: Priscila, Quintila, Maximila são lembradas como profetisas. Também contou com adesões notáveis, como a de Tertuliano. Depois de tentativas iniciais de isolamento, passou a ser combatido como heresia nos séculos III e IV, devido, sobretudo, à sua total rejeição da eclesiologia tradicional. As várias comunidades montanistas diluíram-se pouco a pouco na ortodoxia. Fonte: Berean (2009).

A obra de Tertuliano compreende três grupos:

� Apologéticas, cujo foco era a defesa do cristianismo. São livros desse grupo: Apologética, dirigida aos governantes das províncias do Império Romano, e De testimonio animae, onde ele fundamenta a fé no testemunho da alma, e não mais no conhecimento pagão;

� Dogmáticas, que eram dedicadas à refutação das heresias – entre outras, pode-se citar De praescriptione haereticorum, Adversus Valentinianos, dirigida contra os gnósticos, De baptismo, negando o batismo dos hereges, De carne Christi, em que afirma a realidade do Corpo de Cristo, e De resurrectione, em defesa da ressurreição da carne; e

� Prático-ascéticas, relativas à moral prática e à disciplina eclesiástica, como se pode ver pelos títulos de algumas obras: De patientia; De oratione; De paenitentia; De pudicitia; De exhortatione castitatis; De monogamia; De spectaculis; De idololatria; De corona; De cultu feminarum, etc. (SANTIDRIÁN, 1997, p. 539).

Étienne Gilson (2007, p. 106) considera que suas obras mais importantes para a filosofia foram Apologética, Prescrição dos Heréticos e o tratado Da alma. Mas é consenso entre seus comentadores que os escritos de Tertuliano são os primeiros de relevância na tradição latino-cristã.

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Seguindo o lema de “buscar o Senhor com simplicidade de coração”, Tertuliano atacou fortemente a filosofia, negando-a como suporte racional da doutrina cristã ou como estágio

preparatório para a aceitação da verdade revelada. Pelo contrário, Tertuliano acusa a filosofia de corromper a alma pura e desviá-la do caminho verdadeiro. Tal posição pode ser ilustrada com um trecho de Tertuliano:

— Com efeito, o que existe de comum entre Atenas e Jerusalém? Que acordo pode haver entre a Academia e Igreja? Que pode haver de comum entre hereges e cristãos? Nossa instrução vem do pórtico de Salomão e este nos ensinou que devemos buscar o Senhor com simplicidade de coração. Longe de vós qualquer tentativa de produzir um cristianismo mitigado com estoicismo, platonismo e dialética. Depois que possuímos a Cristo não nos interessa discutir sobre nenhuma curiosidade, nem nos interessa qualquer investigação depois que desfrutamos do Evangelho. Basta-nos a nossa fé, pois não pretendemos ir atrás de outras crenças. (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 138).

Note como Tertuliano estabelece pares de opostos: Atenas versus Jerusalém, academia versus igreja; hereges versus cristãos. A própria expressão “pórtico de Salomão” revela esta contraposição, pois pórtico é a denominação de um elemento da arquitetura grega e Salomão um dos grandes sábios da tradição judaico-cristã. O autor é contrário à tentativa de estabelecer pontes entre Cristianismo e filosofia grega, bastando a fé nas Sagradas Escrituras.

Note que a simplicidade, no sentido de professar a fé ignorando a dialética e o conhecimento da natureza, que Tertuliano defende, vai de encontro com a posição de Orígenes, que considerava esta a característica da classe mais simples entre os cristãos. Enquanto Orígenes considera a filosofia um exercício fundamental para buscar a Deus pela ascese, Tertuliano considera que a filosofia corrompe a integridade da alma simples, esta sim, a mais preparada para receber a “palavra revelada”. É precisamente essa ação de ruptura dos padres deste período, com o pensamento pagão, que caracteriza a Patrística latina.

Figura 2.13 - Representação de Tertuliano (160 – 240)Fonte: Oliveira (2010).

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Na seguinte citação de Reale e Antiseri (1990, p. 426), é possível perceber a provocadora crítica que Tertuliano faz aos filósofos:

No Testemunho da alma podemos ler: “Mas não me refiro àquela alma que se formou na escola, que se treinou na biblioteca, que se empanturrou na Academia e no Pórtico da Grécia e agora dá os seus arrotos culturais. Para responder, é a ti que chamo, alma simples, ainda no redil, não manipulada ainda e privada de cultura, assim como és naqueles que só têm a ti, alma íntegra que vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação.”

Para Tertuliano basta a fé para fazer o cristão aceitar a verdade das escrituras sagradas, e, nesse sentido, valem as palavras de São Paulo: “Mas, ainda que nós, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema” (GL, 1, 8).

Pode-se dizer que o que Tertuliano fez foi retomar a questão fé incondicional que já havia sido professada pelos apóstolos. É célebre a seguinte passagem de sua obra De carne Christi, capítulo V:

O filho de Deus foi crucificado, do que não me envergonho, porque há que se envergonhar. E que o filho de Deus tenha morrido, é de todo crível, porque é inepto. E que, sepultado, tenha ressuscitado, é certo, por ser impossível. (GILSON, 2007, p. 107).

Tertuliano ficou conhecido como um exímio escritor e orador que defendia o cristianismo com um discurso contundente; e que o criticou, do mesmo modo e com igual ardor, quando seu materialismo e espírito inquieto o levaram ao montanismo. O “antifilosofismo” de Tertuliano não se vê em Agostinho de Hipona, que, depois da devida limpeza, retoma ideias fundamentais do sistema platônico.

Considerado o mais importante representante da Patrística, Agostinho viveu num período em que o Império Romano já entrava em decadência e a Igreja representava um caminho sólido, nos aspectos ideológico, ontológico e político.

Maldito, excomungado.

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Nascido no ano de 354, em Tagaste, norte da África, Agostinho recebeu os primeiros ensinamentos da vida cristã, de sua mãe, embora não tivesse sido ainda batizado. E não teria se destacado nos estudos se, aos dezenove anos de idade, não tivesse lido o diálogo Hortensius, obra de Cícero, que hoje está perdida. A partir daí, Agostinho tornou-se um “amante” da sabedoria e acabou ligando-se ao Maniqueísmo. Veja a Figura 2.14.

Agostinho aprofundou-se na busca da verdade e na explicação racional do mundo e da fé, mas se manteve insatisfeito com a perspectiva de alcançar a verdade última, por meio do racionalismo, como é possível conferir na citação que segue:

Era entre estes companheiros que eu, ainda de tenra idade, estudava eloquência, na qual desejava salientar-me, com a intenção condenável e vã de saborear os prazeres da vaidade humana. Seguindo o programa do curso, cheguei ao livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que o coração, quase todos louvam. Esse livro contém uma exortação ao estudo da filosofia. Chama-se Hortênsio. Ele mudou o alvo das minhas afeições e encaminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas aspirações e desejos. Imediatamente se tornaram vis, a meus olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor do coração, a Sabedoria imortal. (S. AGOSTINHO, 1973, p. 59-60).

Esse estado de espírito deixou-o receptivo para mais tarde conhecer as Enéadas, obra de Plotino pela qual Agostinho entrou em contato com o neoplatonismo, que passaria a ser a base de seu pensamento. Porém, mesmo seguindo as indicações da filosofia platônica acerca da purificação do corpo e o exercício da razão, Agostinho sentia o apelo da carne e a corrrupção da alma

Figura 2.14 - Aurélio AgostinhoFonte: Filosofia... ([200-?]).

Religião herética, fundada no séc. III pelo persa Mani, cujas características principais são o racionalismo, o materialismo e o dualismo bem e mal nos princípios morais, ontológicos e cósmicos.

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pelas paixões. Nesse sentido, o platonismo não supria sua necessidade de plenitude espiritual. É possível conferir isso nas palavras de Agostinho, na seguinte passagem de Confissões I – Lágrimas do Pródigo:

Quem me dera repousar em Vós! Quem me dera que viésseis ao meu coração e o inebriásseis com a vossa prensença, para me esquecer de meus males e me abraçar convosco, meu único bem! Que sois para mim? Compadecei-Vos, para que possa falar! Que sou eu aos vossos olhos para que me ordeneis que Vos ame, irando-Vos comigo e ameaçando-me com tremendos castigos, se o não fizer? É acaso pequeno castigo não Vos amar? Ai de mim! Pelas vossas misericórdias, dizei, Senhor meu, o que sois para comigo? Dizei à minha alma: “Sou a tua salvação”. Falai assim para que eu ouça. Estão atentos, Senhor, os ouvidos do meu coração. Abri-os e dizei à minha alma: “Sou a tua salvação”. Correrei após esta palavra e alcançar-Vos-ei. Não me escondais o rosto. Que eu morra para o contemplar, a fim de não morrer eternamente! (AGOSTINHO, 1973, p. 27-28).

A conversão de Agostinho ao cristianismo deu-se em 386, aos trinta e três anos de idade, quando ele entrou em contato com as Epístolas de São Paulo, que apontam Jesus Cristo como o único caminho pelo qual o homem pode viver livre do pecado, das paixões e da corrupção.

Figura 2.15 - O batismo de Agostinho de HiponaFonte: Colégio Santo Agostinho ([200-?]).

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As questões em que Agostinho deteve-se giravam em torno do homem, que deve sempre buscar o bem. Neste aspecto, sua filosofia mostra claramente a influência de Platão, para quem Deus é o bem supremo. Tudo o que existe foi criado por Deus a partir do nada. Ao homem, superior às outras criaturas porque criado à imagem e semelhança de Deus, não é dado o direito de dominar os fenômenos da natureza, mas de compreendê-los como partes da criação de Deus.

Do mesmo modo que incorporava a filosofia platônica, “cristianizando-a”, Agostinho rejeitava a especulação e as ciências físicas, que insistiam em prescrutar a natureza e o cosmo por meio da razão e da experiência, julgando poder conhecê-la, julgando poder encontrar a verdade última das coisas dirigindo-se a elas mesmas, como se não fossem, elas, obra e reflexo de Deus.

A observação dos fenômenos naturais, que era de grande interesse da ciência greco-romana, agora era negada por Agostinho, por se constituirem eles num mistério divino, velado ao homem. Observe as palavras de Agostinho, na citação que segue:

[...] quando então surge a pergunta do que devemos acreditar a respeito da Religião, não é necessário procurar entender a natureza das coisas, como faziam os que os gregos chamavam de physici; tampouco devemos ficar alarmados se o cristão desconhece a força e o número dos elementos, o movimento, a ordem e os eclipses dos corpos celestes, a forma dos Céus, as espécies e a natureza dos animais, das plantas, das pedras, das fontes, dos rios, das montanhas; (se desconhece) a cronologia e a agrimensura, os sinais que prenunciam as tempestades e mil outras coisas que esses filósofos têm descoberto ou pensam ter descoberto [...]. Basta ao cristão acreditar que a causa única de todas as criaturas, sejam elas terrestres ou celestes, visíveis ou invisíveis, é a bondade do Criador, Deus único e verdadeiro, e que nada existe, a não ser Ele, que não deve a Ele a sua existência. (AGOSTINHO apud KUHN, p. 130).

Assim como para Platão e para todos os patrísticos que seguiram suas ideias, para Agostinho, o corpo é a prisão da alma e fonte do que julgamos ser o Mal. O homem degrada-se por perversão da sua vontade, podendo recuperar-se somente pela intervenção da graça divina. Deus é o poder absoluto que salva os homens

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mediante a graça, possibilitando-lhes o conhecimento num ato de iluminação. Nesse caso, os sentidos funcionam como estimuladores da reflexão que gera os conhecimentos de ordem superior e que não são obtidos diretamente da realidade exterior.

Os conhecimentos percebidos através da mente são os que se referem a juízos morais e relações matemáticas, enfim, aos que não podem ser obtidos diretamente pelos sentidos, pois, apesar de informarem a respeito dos aspectos materiais das coisas, não são capazes de nos fazer compreender a noção de número, justiça, virtude, etc., conhecimentos que somente podem ser alcançados através da inteligência iluminada por Deus.

Platão, da mesma forma, diz serem ilusórias as imagens que os sentidos nos oferecem e que a verdade encontra-se no mundo das ideias, que corresponderia ao exterior da “caverna” (lembre-se da Alegoria da Caverna de Platão), banhado pela luz do Sol, do próprio Deus. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre Platão e Agostinho, visto que o primeiro concebe as ideias como absolutas e exteriores à mente do criado-demiurgo, e o segundo as concebe como verdades ou verbo de Deus.

Santo Agostinho também defendeu a existência de uma realidade melhor, que chamou de “Cidade de Deus”, perfeita, superior e de ordem espiritual. Na realidade, a igreja representa a Cidade de Deus, devendo todos os cidadãos e o Estado submeter-se a ela, pois seus chefes não estariam sujeitos ao erro. Esta é mais uma aproximação com o Mundo das Ideias de Platão. Veja a Figura 2.16.

Figura 2.16 - A Cidade de Deus rodeada por demônios. Livro de Horas, I-X, Paris,c. 1474-1480Fonte: Silveira (2010).

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Agostinho defende que tudo o que ocorre no mundo deve ser aceito como bom e justo porque vem de Deus; o mal é decorrência da má aplicação do “livre arbítrio” dado ao homem pela infinita bondade de Deus. Sendo assim, o escravo deve aceitar sua condição de submissão ao senhor que, por sua vez, deve obedecer ao Estado e este à Igreja, numa hierarquia que vai do mais afastado ao mais próximo de Deus. Em Agostinho, a hierarquia que há no céu, há no universo físico e, também, na organização social.

Para Agostinho, a fé principia o conhecimento, isto é, ela é uma forma de pensamento com aceitação. Com a máxima “Crê para compreender e compreenda para crer”, este filósofo teólogo concilia razão e fé.

Nas Confissões, Livro VI, há uma reflexão belíssima a respeito da relação entre a verdade da fé e a verdade das letras. Observe os seguintes trechos citados:

O desejo de saber o que havia de aceitar como verdadeiro roía tanto mais fortemente meu interior quanto mais me envergonhava de ter sido iludido e enganado durante tanto tempo com a promessa de certeza, e de ter, com erro e entusiasmo pueril, palrado tanto de inúmeras coisas incertas, como se fossem verdadeiras. Depois vi a razão por que eram falsas. [...] Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como que a recomendar, diligentemente, esta verdade: “A letra mata e o espírito vivifica”. Removido assim o místico véu, desvendou-me espiritualmente passagens que, à letra, pareciam ensinar o erro. Ele nada dizia que me desagradasse (refere-se a Ambrósio)*, embora tivesse afirmações que eu ainda então ignorava se eram ou não verdadeiras. Abstinha o meu coração de qualquer afirmativa, com medo de cair no precipício. Mas esta suspensão matava-me ainda mais, porque desejava estar tão certo do que não via, como de sete mais três serem dez. [...] Se acreditasse, poderia ter obtido a cura. Assim o olhar, já mais purificado, da minha inteligência, dirigir-se-ia, de algum modo, para a vossa verdade sempre constante e indefectível.

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Costuma suceder a um doente que consultou um médico desprestigiado ter depois receio dum médico bom. Assim acontecia à saúde da minha alma, que não podia curar-se, senão crendo. Porque temia crer o que era falso, precisava deixar-se curar, resistindo às vossas mãos, ó Divino Médico, que fabricaste o remédio da fé e o derramaste em todas as enfermidades do mundo, dando-lhe, a ela, tão grande autoridade. *nota nossa (AGOSTINHO, 1973, p. 112-113).

A fé não é obstáculo para a inteligência, mas, pelo contrário, a fé garante-nos a intuição dos princípios primeiros, dos fundamentos que nos ajudam a interpretar melhor o que nos é dado pela experiência e resolver os problemas que Deus permitiu que fossem objetos de nossas investigações.

Agostinho deixou uma obra bastante vasta. Reconhecida como a principal obra da Patrística, é um esforço bem sucedido de conciliação entre o cristianismo e a filosofia platônica.

Depois de Agostinho, durante os séculos vindouros e até mesmo hoje, as ideias de Santo Agostinho fazem-se presentes não somente na igreja, mas, também, entre filósofos e acadêmicos.

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Síntese

Nesta unidade, você pôde conferir a intensidade do pensamento e do testemunho deixado pelos primeiros padres da igreja. Verificou que é simplista resumir o período da Idade Média como a “idade das trevas” e identificar os pensadores deste período exclusivamente pelo aspecto da conciliação entre razão e fé.

Em vez disso, você viu que o estudo das ideias filosófico-teológicas cristãs desse período pode ser realizado a partir de várias perspectivas e em vários níveis de profundidade. A esse estudo denomina-se Patrística.

Considerando a perspectiva histórica, você estudou os primeiros doutores cristãos, cujo propósito principal era converter os Imperadores romanos ao cristianismo e rebater a filosofia pagã e as seitas heréticas, consolidando a doutrina cristã em religião. Esse intento foi alcançado com o Edito de Milão de 313 e o Concílio Ecumênico de Nicéia, no governo do imperador Constantino.

Você estudou que grande parte desses pensadores cristãos teve formação na cultura helênico-romana. Este fato e a inegável grandeza dessa cultura levou muitos deles a estabelecer vínculos de continuidade e fundamentação entre a filosofia grega e o pensamento cristão.

Após o Concílio de Nicéia, o pensamento que mais se destaca é o de Aurélio Agostinho, considerado o principal representante da Patrística, especialmente da corrente latina. Diferente dos primeiros doutores da igreja, Agostinho teve formação cristã por influência de sua mãe, mas se afastou do cristianismo durante a juventude. Seu retorno a ele ocorreu depois que encontrou nas palavras de Ambrósio a recomendação de entregar-se primeiramente à fé, a partir da qual vem o conhecimento iluminado de Deus.

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Atividades de autoavaliação

1) Além da perseguição promovida pelo Império Romano, cite e comente mais duas (pelo menos) barreiras que os doutores cristãos tiveram de enfrentar nos primeiros séculos da era cristã.

2) Como foi visto nesta unidade, de todos os sistemas filosóficos gregos, o de Platão foi o mais influente nas obras dos doutores da Patrística. Elabore um texto dissertativo, relacionando pelo menos três pontos em que a filosofia de Platão coincide com as ideias dos primeiros padres da Igreja.

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Saiba mais

Você pode saber mais sobre o assunto estudado nesta unidade, consultando as seguintes referências:

ABRAÃO, Bernadete Siqueira (Org). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

JUSTINO. Apologia I e II. Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995.

ORÍGENES. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004.

SANTIDRIÁN, Pedro R. Breve dicionário de pensadores cristãos. São Paulo: Editora Santuário, 1997.

VERGEZ, André; DENIS, Huisman. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1973.